Trecho da série Cosmos, onde Carl Sagan
conta resumidamente o fim da grande biblioteca
da antiguidade e a a morte brutal de sua última cientista.
A Escola de Atenas: famoso fresco do pintor renascentista Rafael.
A cena pode ser vista numa das bibliotecas do Vaticano e nela
encontra-se Hypatia, de pé e vestida de branco, a olhar directamente,
com altivez, para quem a visiona. Mais acima, Sócrates e Platão “entram”
em cena.
A vida de Hypatia é digna de um filme, pelo que não foi de admirar
que em 2009 este acabasse por chegar ao grande ecrã, através da
super-produção “Ágora”. Uma excelente obra cinematográfica que, apesar
de tudo, muito deixa por contar, ou então cai no velho pecado de
exagerar os feitos da heroína. Fiquemo-nos, assim sendo, pelo que se
conta nos velhos e poeirentos livros de história.
No longínquo ano de 355 (ou talvez 370, não existem certezas), nasceu
na cidade de Alexandria a notável Hypatia. Filha de Téon, professor e
último director da Biblioteca de Alexandria, foi educada por este para
se tornar no protótipo da perfeição e da virtuosidade. Ou seja, aquilo
que os homens de Alexandria não eram capazes de ser.
Mas a ascensão desta mulher prodígio chocava contra os preconceitos
dos pais fundadores da filosofia racional helenística, dos quais era
intelectualmente herdeira. Enquanto Platão, na sua máscula soberba,
defendia que “a mulher, em relação à virtude, é naturalmente inferior ao
homem”, Sócrates fazia render o poder do seu falo e afirmava que “a
coragem do homem revela-se no comando, e a da mulher na obediência.”
Todavia, e fazendo gato-sapato desta verborreia machista, Hypatia
acabou por exceder tudo e todos e tornar-se, na sua época, num dos nomes
mais respeitados da matemática, astronomia e filosofia.
Entre os seus feitos incluem-se o aperfeiçoamento do astrolábio – um
instrumento que mil anos depois ajudaria os portugueses a conquistar o
globo pelos mares –, assim como um conjunto de textos nos quais explica,
com extraordinária simplicidade, algumas das grandes (e complexas)
ideias científicas e filosóficas do classicismo helénico. Para esta
mulher, o conhecimento devia ser acessível a todos.
Dotada de uma oratória capaz de provocar dor de cotovelo a Winston
Churchill, tornou-se professora de muitos jovens oriundos de famílias
abastadas, e tal era o seu carisma que um dos pupilos apaixonou-se por
ela, declarando-se-lhe com pompa e circunstância. A resposta de Hypatia a
esta gesta de amor até faria congelar o coração a Don Juan: atirou-lhe
um lenço manchado com o sangue da sua menstruação e perguntou-lhe se era
aquilo que ele queria desposar. Ascética e virgem, renunciaria até ao
fim da sua vida a qualquer prazer carnal. O seu corpo deveria ser,
portanto, da sua exclusiva propriedade.
Com o passar dos anos, os seus alunos tornaram-se nos homens mais
poderosos de Alexandria. Um forte testemunho da influência que ainda
detinha sobre estes era o facto de os magistrados da cidade recorrerem
ao seu aconselhamento antes de tomarem qualquer decisão importante. Em
pleno século IV, uma mulher ter tanto poder nas mãos era único.
Ignorância, fanatismo, crime e vingança
Mas os tempos eram perigosos e o ambiente social, político e
religioso era demasiado volátil. Alexandria estava a tornar-se num
fervilhante caldeirão de intolerância entre cristãos, judeus e devotos
do politeísmo. Os distúrbios e massacres por motivos religiosos eram o
pão-nosso de cada dia, com as tradições helenísticas a entrar em franca
decadência. Aproveitando o caos, uma nova força começou a ganhar cada
vez mais poder: o cristianismo.
Depois de ter enfrentado o machismo legado pelos pesos pesados da
filosofia clássica, chegava a vez de Hypatia ter que lidar com a
misoginia dos santos teólogos da igreja cristã. O próprio São Paulo,
numa das suas epístolas, protestava: “não permito que a mulher ensine,
nem use de autoridade sobre os homens, mas que esteja em silêncio.”
Prevendo dias difíceis, Hypatia decide arregaçar as mangas e usar a sua
influência para combater o crescente poder dos intolerantes cristãos.
Muitas vezes violentos e invariavelmente adversos a que uma mulher
lhes dissesse as verdades sem papas na língua, os cristãos de Alexandria
eram liderados pelo patriarca Cirilo. Este tentava submeter à sua
autoridade o prefeito de Alexandria, Orestes, um antigo aluno de Hypatia
que continuava a estar sob a sua influência. Aliás, um dos mexericos
correntes da época tagarelava que os dois seriam amantes.
O facto de o chefe político da cidade não se submeter às ordens de
Deus tinha assim, para Cirilo, uma culpada: Hypatia. Ressabiado com a
audácia de uma pagã que não tinha papas na língua, o patriarca decide
fomentar os mais mesquinhos boatos para a afastar do seu caminho rumo ao
poder.
Acusada em praça pública de ir contra os costumes morais daquilo que
devia ser uma boa mulher temente a Deus, a cientista e filósofa foi
igualmente acusada de ser uma bruxa, uma consequência infeliz de se ter
profundos conhecimentos de astronomia e matemática numa época em que a
ignorância grassava como se fosse a peste negra. Eis como acabou por
tornar-se num alvo a abater pela turba dos fundamentalistas.
A tragédia é inevitável. Enquanto Hypatia circulava de carruagem pela
cidade, uma milícia de fanáticos cristãos captura-a, arrastando-a pelo
chão poeirento até uma das suas igrejas. No interior do santuário, a
cientista é despida por mãos furiosas e cruelmente apedrejada até à
morte. Insatisfeitos com a barbaridade, esfolam-na com lascas de vasos
de cerâmica, arrancam-lhe os membros e lançam os seus pedaços a uma
fogueira. Um fim pouco nobre que nem o cinema ousou revelar.
Orestes, vendo-se desamparado, foge da cidade. Cirilo, por sua vez,
consegue submeter os políticos de Alexandria à sua vontade. Apesar de
sempre ter negado qualquer responsabilidade na chacina de Hypatia, a
verdade é que existe tudo para duvidar do lavar de mãos de uma
personagem que acabou por ser santificada pela igreja católica.
A morte de Hypatia, em 415, acabou por marcar o fim de uma era de
racionalidade e conhecimento e a entrada na chamada “idade das trevas”. A
ciência iria emudecer até ao Renascimento e a voz emancipada das
mulheres por muito mais tempo.
Todavia, no século XVI, o pintor renascentista Rafael decidiu vingar o
seu assassínio de forma bem peculiar. Enquanto ornamentava o tecto da
sumptuosa biblioteca pessoal do Papa Júlio II, o mestre de Florença ousa
pintar um fresco no qual Hypatia surge em posição central, por baixo
das figuras de Platão e Aristóteles. Como seria de prever, o Sumo
Pontífice odiou a ideia e proibiu que a imagem aparecesse.
No entanto, Rafael desobedeceu. Sorrateiramente, introduziu Hypatia
na pintura, disfarçando-a noutra personagem. No fim, o destinou
tornou-se em ironia, pois apesar ter sido condenada à morte por um
patriarca cristão, a sua imagem observa até hoje, com um olhar directo e
altivo, os líderes da igreja católica.
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