quarta-feira, 30 de março de 2011

TRATADO DO BELO - Gnosiologia do Belo





 
Evaldo Pauli


TRATADO DO BELO.

 CAP. 1-o
O BELO COMO OBJETO QUE SE DÁ A CONHECER. 0764y060.


(Gnosiologia do belo).
 
61. Pressupostos gnosiológicos. Como é que o belo bate às portas de nossa inteligência, e se apresenta? De primeiro intuito ele se apresenta como um ser, cujos aspectos são de objeto teorético, lógico, preferido, real.
 
Seria mesmo assim que o belo se apresenta? Este é o modo como o admite a gnosiologia racionalista. Já não pensam assim os da gnosiologia empirista, que o reduzem a algo muito mais simples, situado fora do plano do ser, sem qualquer intrinsecidade, como apenas uma relação extrínseca resultante de um estado de agrado.
 
Já se vê que o Tratado do Belo, - como parte da metafísica, - é cativo da metafísica em que o tratadista se situa, desde sua fundamentação gnosiológica. Importa determinar, pois, a gnosiologia na qual o Tratado do belo se apoia, e como a partir dali coerentemente continua a explanação do sistema em andamento.
 
 
62. Devemos ter sempre em conta que o Tratado do Belo é parte de um todo maior, de que ele mesmo não é a parte inicial. Mas não pode estar desatento aos fundamento coletivo do todo maior.
 
Não podemos didaticamente voltar cada vez à totalidade dos fundamentos, quando se passa ao tratamento de um novo tema. Mas temos de ter consciência dessa dependência em relação à mencionada base remota.
 
E por que não podemos principiar cada vez ab imis fundamentis , temos ao menos que mencionar esta dependência e proceder coerentemente com os pressupostos admitidos.
 
Didaticamente, se costuma repetir a exposição dos pressupostos mais decisivos, advertindo então mais intensivamente para as conexões de sistema.

63. Divisão das questões gnosiológicas do Tratado do Belo. Há considerar introdutoriamente a questão gnosiológica fundamental, - se o belo se faz conhecer como ser, ou como de qualquer outra maneira. Eis a estética racionalista versus a estética empirista.
 
Neste plano inicial se apresentam as seguintes perspectivas gnosiológicas:
- O belo é teorético (Art. 1-o);
- O belo é lógico (Art. 2-o);
- O belo é o preferido (Art. 3-o).
 
Finalmente a gnosiologia pergunta se o belo é algo real?. Este outro tema sobre o belo como ser poderá ser tratado em separado (no cap. 6-o), porque de imediato não oferece implicações muito fortes na conceituação do belo.
 
 
64. A divisão acima em várias questões está bem atenta ao questionamento de toda e qualquer filosofia, dependente do ponto de vista bastante fundamental em filosofia, e que divide os filósofos em racionalistas, - que admitem como objeto específico alcançado pela inteligência, o ser, intrinsecamente apreendido, como conteúdo a partir de onde se constrói a filosofia, - em empiristas (ou positivistas), os quais se limitam à experiência, deixando o mais como um sem-sentido.
Uma vez admitido o ser como conteúdo do pensamento, importa ao momento gnosiológico provar esta posição, e desenvolvê-la adequadamente ainda dentro do plano gnosiológico. É quando o belo, como ser, é mostrado ainda como teorético, - algo que se faz conhecer; como apreendido logicamente, - algo entendido racionalmente; como algo preferido, - sem deixar a inteligência indiferente; como algo real, - algo efetivo, independente do sujeito conhecedor.
As perspectivas, embora muitas, se concentram na mesma noção oferecida pelo belo enquanto se apresenta como característica intrínseca ou imanente ao ser.

 
 


RT. 1. O BELO É TEORÉTICO. O764y063.
65. Atentos de imediato à redivisão da metafísica, - conforme já advertido, - em gnosiologia e ontologia, primeiramente há a justificar as condições gnosiológicas do belo como objeto de conhecimento (tema da gnosiologia do belo); somente depois de vencido este ponto de vista gnosiológico do belo enquanto se apresenta, iremos ao ontológico. Garantida uma perfeita visão gnosiológica, estaremos depois seguros de bem prosseguir.

 
Neste esforço metafísico de observação temos que conseguir que belo se vá revelando, como algo intrínseco ao ser. Se isto não for conseguido, o belo restará mesmo sendo apenas uma circunstância extrínseca, como quer a filosofia empirista, segundo a qual a experiência estética não é senão uma relação de prazer ao se manifestar daquele modo um objeto.

66. Que seria com exatidão a teoreticidade? O nome talvez ofereça alguma dificuldade, porque usado aqui numa acepção muito especial, ainda que dentro de limites semânticos compreensíveis.

 
Algo é teorético ao se manifestar sob o prisma de objeto de conhecimento. Para cada espécie de faculdade de conhecimento ocorre uma teoreticidade específica: cor diz respeito aos olhos, som aos ouvidos, verdade do ser ao inteleto.

 
De um modo geral, portanto, teoreticidade significa estabelecer-se como um objeto do conhecimento. Algo é objeto de conhecimento ao se apresentar sob a perspectiva adequada para se fazer conhecer.

 
Teoreticidade, como objeto, significa ser "assunto". A expressão "mulher é assunto" sugere exatamente que ela apresenta novidades para se fazerem conhecer. Em tais condições, o belo como assunto, é algo a conhecer.


 


67. A teoreticidade, de maneira especial, diverge de faculdade para faculdade, dando-se diferentemente nos sentidos e na inteligência. Ainda que em ambos os níveis se trate de teoreticidade, ela se diz hoje sobretudo da teoreticidade mental.

 
O ponto de vista teorético específico da mente superior é o do ser. Para a mente tudo se formula em termos de verbo ser: o objeto é... Portanto, além da teoreticidade cognoscente, ocorre uma maneira peculiar, em virtude da qual a inteligência se distingue dos sentidos.

 
Não há verdadeira teoreticidade nas perspectivas que dizem "emoção", "vontade", "bem", "instinto", "prazer". Tais regiões operacionais e das coisas são atingíveis somente através da teoreticidade; elas em si mesmas são opacas ao conhecimento, porquanto elas mesmas não são o conhecimento. Revelando-se sob prismas que não são propriamente os delas, são contudo facilmente confundidas com elas, dali nascendo as equivocadas teorias alógicas do conhecimento. Estas outras perspectivas, chamadas alógicas, efetivamente são lógicas, isto é, teoréticas, e não práticas (vd art. 2).


 


68. E o conceito de teoreticidade no belo? Em se revelando prontamente como algo cristalino, pensado diretamente como objeto, ele é portanto teorético. Não é algo evasivo, alcançado por vias confusas. Ainda que o belo possa ser visto também como um bonum, ele é primeiramente entendido como um objeto.

 
O belo, ainda se diga as vezes inefável, por ser subtil e difícil de apreender em sua totalidade, continua sendo teorético. Ele continua sendo essencialmente algo falável, e que com mais atenção se faz atingir. Do belo inefável se fala, e não se cala, porque não se oculta de todo no inefável. Quando o objeto belo assume dimensões muito grandes, se diz sublime, em vez de inefável; todavia continua ainda perfeitamente teorético, até porque foi possível equacioná-lo como sendo de objeto muito grande.

 
A teoreticidade do belo, é afirmada, por outras maneiras de se expressar, por todos os que tratam do belo como algo que se contempla, que se admira, que agrada ao ser visto ou ouvido, porque estas expressões se referem ao exercício do conhecimento. Ainda que agrade, o belo precisa primeiramente ser visto, portanto encarado teoreticamente.

 
Tomás de Aquino fez uma distinção com expressa subtileza, quando diferenciou o bem e o belo: "O bem diz respeito apropriadamente (proprie) ao apetite... O belo, porém, diz respeito à potencialidade cognoscitiva (Summa theologica, P. I, Q. 5, a. 4, ad primum).

 
Platão insiste em que o belo absoluto (a idéia real do belo) atrai muito mais nosso amor, do que o belo das coisas terrestres (imitação do belo absoluto e arquétipo); mas "a beleza é visível em todo o seu esplendor" (Fedro 250 c); esta e outras expressões mostram sempre a implícita afirmação da teoreticidade do belo, como coisa que se contempla, antes de tudo.

 
O mesmo implicitamente referem as expressões de Aristóteles ao dar o belo como "o preferido" para ser conhecido, supõe por conseguinte tratar-se de objeto do conhecimento.

 
Nos que fazem como Baumgarten e Hegel, do belo algo sensível, encontramos uma espécie de meia teoreticidade. Fazendo do belo um objeto sensível, um "pensamento confuso" (como diziam do sensível), pretendem que ele não se mostre cristalino como a verdade do puro pensamento; não obstante esta interpretação sensível do belo, o mantém como algo que é atingido no plano do conhecer.

 
Mesmo os empiristas se contradizem, quando reduzem o belo a um fenômeno de agrado. Importa primeiro que o objeto seja conhecido, A partir dele algo há, sem o que não pode agradar.


 

69. Neste primeiro artigo, no qual cuidamos da teoreticidade em geral, o conflito entre racionalismo e empirismo terá de chegar a uma decisão.

 
A metafísica, como já advertido, é a única ciência à qual é imposto provar seu próprio objeto, começando pois por uma metafísica do conhecimento (ou gnosiologia), a qual exploramos aqui com vistas a um objeto especial, o belo.

 
No caso de uma opção pelo racionalismo, o objeto do conhecimento terá sempre um emporte intrínseco, chamado ser, como intuição fundamental; o belo então é também visto como uma determinação intrínseca do ser. Dever-se-á ainda definir, se estes rumos racionalistas procedem conforme o racionalismo mais radical, como o de Platão e Descartes; ou se conforme o raciocinalismo moderado, como o de Aristóteles e Tomás de Aquino, ou ainda se conforme o racionalismo apriorista e idealista de Kant e Hegel.

 
Se entretanto os rumos forem empiristas, tudo estará em direção inversa, nos caminhos limitados que não admitem sentido e validade do que oferece o racionalismo. O experimental, se lhe for retirado o ser, fica praticamente vazio. O belo já não pode ser considerado um aspecto onipresente do ser. Tudo, - o ser e o belo metafísicos, restam um sem sentido; apenas será possível falar do belo como uma determinação extrínseca ligada ao agrado experimentalmente verificado, e não muito mais.
 

70. Pelo exposto, - devendo a metafísica provar seu próprio objeto e ficando a depender do que neste sentido resolveu o tratadista, - os pressupostos metafísicos se refletem profundamente no Tratado do Belo. Enquanto outras ciências principiam com o fato simplesmente posto, a metafísica tem de pôr o fato e depender de como o pôs, justificando pois o fato simplesmente como fato.

 
Somente é válida, pois, a metafísica fundada em dados concretos por ela mesma diretamente justificados como certos, por mais que a seguir se estenda para afirmações transcendentes.

 
Vamos dividir a prova, primeiramente para o ser em geral, depois para o ser como se apresenta no belo. Uma prova é continuação da outra. E em ambos os casos é uma prova meramente fenomenológica.


 

71. Prova do ser como objeto do pensamento. Tudo começa no instante em que fazemos a pergunta de base: que é que por primeiro conhecemos?

 
Advertimo-nos do seguinte originário incontestável: conhecer é conhecer um objeto, e este objeto primeiro é o ser.

 
Por isso nosso conhecer se dá em termos de verbo ser. O que conhecemos, o conhecemos com uma certeza inicial imediata.

 
A gnosiologia empirista quer que o pensamento seja fundamentalmente uma experiência, em que não vale o ser e toda uma sua filosofia.

 
Mas haveria um pensamento sem ser? O verbo ser aparece sempre como essencial ao pensamento. Assim sendo, o empirismo somente seria afirmável usando ao mesmo tempo o que ele nega. Muito antes o paradoxo acontecia ao ceticismo, que é impossível de estabelecer, sem ao mesmo tempo admitir o contrário. Agora se repete o paradoxo: não é possível estabelecer o empirismo, sem ao mesmo tempo ser racionalista.
 

72. Subindo para o geral, sem jamais se desprender do ponto de partida, a ascensão metafísica é similar ao papagaio de papel a subir sempre mais sem desprender-se do cordel de quem o puxa; somente sobe porque está preso à terra. O metafísico, homem pequenino a puxar pelo cordel de suas idéias, atira o seu pensamento para as alturas; com as idéias intencionalmente nas nuvens, subirá sempre mais, à medida que der impulso a partir dos dados primitivos de sua própria metafísica.


 


73. Racionalismo radical. Há metafísicas racionalistas que principiam simplesmente a partir de cima, situando-se desde logo em idéias gerais (isto é, universais), atingidas diretamente, sem qualquer dependência da singularidade empírica. Elas surgiriam como iluminação pura e simples, ou seriam mesmo inatas ao indivíduo pensante. O conhecimento sensível, embora ocorra, é dispensável, até mesmo porque pode funcionar como sombra a obscurecer o pensamento puro. Encontra-se ali a base de ascetismos de desligamento deste mundo.

 
Platão principia com idéias universais inatas. Sua ideogenia inclui a tese, de que as idéias universais inatas correspondem à realidades universais, válidas acima das realidades individuais. As almas teriam tido conhecimento de ditas realidades universais em suas vidas separadas, antes de assumirem corpos. As coisas concretas individuais deste mundo produzem idéias singulares sobre coisas que também são singulares, e assim também sobre o belo singular das coisas; mas, ainda despertam as idéias universais inatas existentes na mente humana, que seriam, pois, nada mais que recordação do conhecimento tido em vida anterior, quando teriam alcançado as realidades universais, inclusive o belo universal real.

 
Agostinho de Hipona, um neoplatônico, dizia não poderem idéias universais surgir a partir de experiências singulares, e por isso admitia uma iluminação natural própria à inteligência, que a tem a partir de Deus. Paralelamente ainda poderia acontecer uma iluminação sobrenatural extraordinária, que seria a graça divina, uma revelação, como a que teria acontecido aos autores bíblicos. Estava evidentemente sob influência do platonismo de sua época.

 
O racionalismo de Descartes também considera as idéias universais como um fato inato permanente da inteligência humana. A filosofia cartesiana é, pois, eminentemente racionalista e foi cultivada também por Spinoza e Leibniz, até que Kant a converteu no mais puro apriorismo mental, que alimentou toda a filosofia idealista. Em todas estas formas de racionalismo o tratamento do belo se encaminha num quadro igualmente racionalizado.


 

74. Racionalismo moderado. Uma outra metafísica racionalista, chamada moderada, desenvolvida sobretudo por Aristóteles, o ser é dado como empiricamente alcançado; esta primeira intuição do ser é explorada sem desligar-se de seu conteúdo originário, de sorte que todo outro ser se alcança por analogia com este primeiro. Esta fica sendo a índole de todas as noções crescentemente abstratas, de natureza analítica, resultantes de simples dissociações, em categorias cada vez mais amplas e modos gerais de ser, até chegarem às noções de "ser geral" e "ser como tal", onde também se manipula com as noções sobre o belo.
 

Uma vez que o ser geral é estabelecido como absoluto, os parâmetros gerais se firmam, e a filosofia escapa do relativismo.


 


75. Prova aplicada ao belo. Que é mesmo que fundamentalmente se pensa, ao nos advertir para o belo, que se apresenta? Tudo vem imediatamente ligado ao mesmo ser, o qual a primeira intuição alcançou.

 
Não é fácil de entender a pergunta sobre o fato fundamental da apreensão do belo e combiná-lo claramente com o ser e respectiva teoreticidade. Todavia, algo imediatamente já se mostra. Mas precisamos chegar até lá com toda a plenitude. Trata-se de uma questão de gnosiologia, anterior à ontologia, mas intimamente conectadas, porquanto de uma se vai imediatamente para a outra.

 
Encontramo-nos no campo do mais fundamental do objeto de conhecimento. Segundo o racionalismo, não pensamos senão pensando ser. E achamos, que ao pensarmos belo, estamos ao mesmo tempo pensando-o como ser, como este mesmo ser enquanto em destaque. Então é impossível pensar belo sem muito de imediato estarmos atendendo à uma só grande questão.

 
Prova-se a teoreticidade do belo pela simples alegação do fato, de evidência explícita. Diretamente se verifica o fato, sem necessidade de descobri-lo como implícito, nem como virtual. Sem qualquer cursividade, a prova é direta, fenomenológica.

 
Trata-se de uma situação fenomenológica, do mesmo caráter como quando dizemos que pensamos diretamente o ser, a coisa, a verdade, o bem. Não pensamos primeiramente algo, a partir do qual vamos ao ser. Assim também acontece com as noções de coisa, verdade, bem, diretamente alcançadas como originárias. Igualmente o belo surge como um acontecimento originário.

 
Diferentemente sucede com as noções implícitas, por exemplo, com o princípio de contradição, afirmando dever ser o que é enquanto é. Também é implícita a afirmativa do dever ser bom; suposto o bem, a partir deste encontramos ser implícito que o ente, ao agir dever agir bem.

 
A verdade em si mesma surge primeiramente como um dado. Poderá, ao ser analisada, conter implícitos. Mas antes que os implícitos se apresentem, foi preciso haver o explícito. E assim finalmente o belo poderá conter implícitos, mas antes que revele tais implícitos, ele mesmo já existe como fato explícito.

 
Importa advertir que nem toda a análise é um caminhar do explícito ao implícito; pela análise também se caminha do explícita para o explícito. Este é o caso da abstração total (vd...), que abstrai uma noção geral, desligando-a de seus sujeitos individuais. Neste sentido passamos do belo concreto (ou de vários belos concretos individualizados) para a noção do belo em geral. Esta progressão jamais é cursiva e não é por este caminho que vamos ao belo, porque já antes nos encontrávamos no fato mesmo do belo e depois de fazermos dita análise pela abstração total continuamos no mesmo nível de evidência explícita. Portanto, quer digamos teoreticidade do belo concreto, quer teoreticidade do belo em geral, sempre nos encontramos no estado de evidência explícita.


 


76. A respeito do método fenomenologia na gnosiologia e ontologia do belo. Na investigação uns aspectos são intuitivos e se revelam de pronto, não dependendo de cursividades interdependentes, e por isso são chamados fenomenológicos; outros são dependentes de cursividade, e por isso denominados teóricos. Estes resultados teóricos são mais difíceis; uns são mais simples e seguros, porque são apenas implícitos aos dados fenomenológicos, bastando explicitá-los, obtendo-os por simples inferência; outros dependem de raciocínios (indutivos e dedutivos), estando apenas potencialmente nos antecedentes.

 
Na extensão e aprofundamento da elaboração do saber ocorrem, portanto, etapas sucessivas, em que a primeira etapa acontece no espaço que não ultrapassa o fenomenológico. Insistimos nesta primeira etapa, porque nela se situa principalmente o Tratado do Belo. Os primeiros juízos, emitidos sobre os dados, são de evidência explícita, intuitiva, fenomenológica.

 
Numa nova etapa é possível teorizar sobre o belo. Por exemplo, para postulá-lo como norma na construção do homem, tanto de seu corpo, como de sua pessoa. Ora por inferência, ora por raciocínio, seguindo para bem mais longe, seja raciocinando dedutivamente, seja indutivamente. No caso da inferência os resultados estão formalmente no antecedente; este é o caso da ponderação, por exemplo, quando se afirma que o belo é o preferido. No caso do raciocínio os resultados estão contidos no antecedente apenas virtualmente (ou potencialmente), decorrendo como efeito, pois não estavam formalmente nos juízos usados como antecedentes (ou seja, como premissas). Esta outra etapa, a raciocinativa, é a que se usa para recomendar, por exemplo, o belo como ideal moral e mesmo como ideal artístico, embora não como o único; usa-se um raciocínio para fundamentar a recomendação.

 
Para chegar até às primeiras importantes noções abstratas sobre o belo não requer a filosofia, como já adiantamos, desenvolver um raciocínio pleno com premissas e conclusões. Basta-lhe, por abstração, caminhar da individuação concreta para o que os indivíduos têm como noção comum, e desdobrar cada vez mais esta noção originária de sua intuição. Caminhando a filosofia por simples análise abstrativa e sem ainda apelar à cursividade teórica (por inferência ou por raciocínio), nada ela inventa até esta altura dos seus procedimentos. Apenas revela, por dissociação, aquilo que os dados concretos desde o primeiro instante já conheciam como evidência explícita. O Tratado do Belo, ao menos nos seus primeiros instantes, é apenas uma fenomenologia. Mostra o belo e insiste em mostrá-lo sempre diretamente, como característica do mesmo ser e como noção de evidência tão imediata quanto a evidência do próprio ser. Assim sendo, o Tratado do belo nada mais é do que uma metafísica fundamental ( gnosiologia fundamental e ontologia fundamental), ou seja, uma parte dos primeiros capítulos da gnosiologia e da ontologia. O Tratado do Belo dissocia o belo concreto em estratos sucessivos, como o espaço matutino desdobra a luz nos festivos dedos da aurora.

 
Os primeiros elementos da ponderação filosófica são em princípio mais seguros que as sistematizações raciocinativas posteriores. Contudo podem oferecer dificuldades; desde logo desatenções a aspectos importantes provocam desvios de repercussão definitiva em todo o restante dos resultados. Seria também este o caso exatamente da questão do belo? Pelo menos gostaríamos que o belo como objeto de estudo do Tratado do Belo surgisse desde logo com mais clareza.


 


77. Dificuldade, mesmo na fenomenologia do belo. Ao que parece, há no belo algo de manifestação tão contundente, que por isso não importaria em uma longa ciência ou volumoso tratado filosófico para o esclarecer.

 
Nisto o belo se assemelha ao espetáculo oferecido pelas flores; convencem antes de qualquer demonstração. Por isso, todos conseguimos falar do belo, sem que precisemos de apelar a um penoso processo raciocinativo como acontece em um grande número de outras questões. As flores, qualquer posição que se lhes dê no vaso, apresentam-se belas; contudo, há aquelas composições mais capazes de exercer impressão. Eis o que acontece com a beleza em geral. Todos a verificamos; por isso não há quem não fale do belo.

 
Contudo, depois de mais algumas análises, uma coisa simples pode passar a apresentar problemas, e até mesmo paradoxos.


 

78. Dificuldades no campo do metafísico. Situam-se estas dificuldades primeiramente no plano mesmo da metafísica, onde a noção do belo surge como uma das propriedades transcendentais do ente. Logo depois, como mais adiante cuidaremos de também analisar, acontece um envolvimento tríplice do belo com a arte, o que ainda mais complica todo o afazer com a noção do belo.

 
Na metafísica os impasses surgem desde as coisas mais simples, como a da certeza sobre si mesmo, e se faz a pergunta se tenho certeza de que eu mesmo exista; então, ainda que ninguém duvide de que exista, dever-se-á, em boa filosofia, mostrar porque não duvida. Quanto ao belo (que é nosso tema), ocorrem nele implicações metafísicas que escapam à perspeciência espontânea do espírito. E quando não nos escapam, não conseguimos perceber de pronto como se compõem na estrutura sistemática do todo. Encontramos ali a razão por que se faz mister o Tratado do Belo, como ordenador integral de todo o fenômeno da beleza.

 
Semelhantemente ponderou Diderot, o da Enciclopédia Francesa:

 
"Antes de entrar na difícil investigação do belo , começarei por escrever, à semelhança de todos os autores que escreveram sobre a matéria em causa, que, por uma espécie de fatalidade, as coisas de que mais se fala entre os homens são de ordinário aquelas que menos se conhecem; como muitas outras está neste caso a natureza do belo; admiram-no nas obras da natureza; exigem-no na produção das artes; a todo o momento concedem ou recusam esta qualidade; no entanto, se se perguntar aos homens de gosto mais seguro e requintado qual a sua origem, a sua natureza, a sua noção precisa, o seu verdadeiro conceito, a sua exata definição; se é alguma coisa de absoluto ou de relativo; se existe um belo eterno, imutável, regra e modelo do belo subalterno, ou se com a beleza se passa o mesmo que com as modas, logo se verifica que os sentimentos divergem, e que uns confessam a sua ignorância, outros se refugiam no ceticismo.

 
Como se explica que quase todos os homens estejam de acordo em que existe um belo; que entre eles tantos haja que o sentem vivamente onde se acha, e que tão poucos saibam o que é?" (Tratado do belo).

 
O problema fundamental metafísico, sobre o que é o belo, do qual aqui
falamos introdutoriamente como sendo difícil de determinar, o devemos encarar logo nos primeiros capítulos do Tratado do Belo, determinando-o gnosiologicamente como um objeto. Depois na ontologia aparecerá como um transcendental do ser.
 

79. Remotamente, em última instância, a teoreticidade do belo se prende à verdade ontológica ( vd cap. 2-o), quando se esclarecerá melhor o fenômeno. Comparado com o seu arquétipo, o belo da coisa se mostrará no seu instante de realce (o belo em tais condições se define como o esplendor da forma). Esta conexão entre a teoreticidade e a verdade ontológica lança luz sobre o porque da cristalinidade do belo que se dilata prontamente diante de nós.

 
Situa-se a teoreticidade do belo no plano inteletual. Não vêem os sentidos o belo, senão materialmente a coisa bela; escapa aos sentidos a perspectiva exata em função do qual se dizem belas as cores, as formas, os sons. Por essa razão, para os animais o mundo não é belo, por que não o percebem sob este prisma.

 
Na medida que o homem é atrasado, não aprecia a beleza. Ainda que diante de seus olhos, a beleza praticamente não se manifesta ao estulto, porque é muito pouco capaz de perceber a perfeição em destaque. O bruto simplesmente não o percebe, por ser incapaz de operar juízos de comparação; mas se o fosse, também ele perceberia o belo.

 
No animal o prazer estético não se deve ao conhecimento do belo, mas ao exercício lúdico do conhecimento; basta o exercício do conhecimento para que haja prazer estético, pois agrada o simples conhecer, ainda que este não reconheça o belo como o perfeito em destaque.


 

80. Dificuldades no campo da arte. A outra grande dificuldade para o estabelecimento exaustivo da noção do belo se encontra no seu relacionamento tríplice com a arte, sem contudo ser a arte. Contudo por causa deste seu relacionamento com a arte, pode com ela confundir-se. Para não embaralhar o belo em si mesmo com o que respectivamente é a arte em si mesma, importa preliminarmente clarear o que essencialmente a arte é e como se envolve com o belo.

 
Efetivamente, sem se confundir com a arte, o belo costuma estar presente nela. A arte, para ser bela, o poderá conseguir por três vias.

 
Primeiramente, a arte é expressão, e então o belo da arte poderá estar no seu belo expressar, isto é, no seu perfeito modo de expressar.

 
Em segundo lugar, o tema que a expressão exprime, poderá ser um tema belo, e mais uma vez a arte é bela.

 
Em terceiro lugar, a arte usa algo material, como a cor e o som, para exercer nele a sua expressão, e este material, podendo ser belo (como belo pré-artístico), faz com que, por um terceiro motivo, a arte seja bela.
 
81. Importa insistir primeiramente que a arte é expressão e não simplesmente um coisa que nada exprime.

 
Há os que não se advertem que a arte é expressão de algo, ou seja de um tema, para o qual adverte intencionalisticamente. Vêem a arte apenas como uma coisa física, a qual não passaria de uma criação prática. Então somente ocorre a diferença, pela qual a natureza já se encontra ali, enquanto a obra de arte é coisa criada pelo homem.

 
Historicamente, dividem-se as concepções sobre a arte em duas posições fundamentais: fisicista (practicista), que consideramos falsa, e intencionalista (a arte como expressão teorética), que consideramos certa.

 
Para os fisicistas, a arte é apenas criação na ordem prática; cria simplesmente objetos novos, como se faz na indústria, sem que os artefatos devam significar algo; e, se eventualmente significam algo, não é por isso que se tornam arte. Então estes novos objetos assumem por ideal geralmente a beleza. Não expressam a beleza, mas são belos simplesmente.

 
Todavia, na concepção practicista não fica excluída a expressão quando ela por acréscimo se fizer; por isso, a referida teoria sobre a arte não é senão um alargamento do seu conceito a tudo o que o homem faz, seja com expressão, seja sem expressão. Em tempos idos prevaleceu a concepção practicista da arte, acontecendo então que vagamente se confundia o artístico com o belo.

 
Para os intencionalistas a arte é expressão de algo, e que por isso se chama tema, ou simplesmente objeto significado. Tal como a idéia da mente, ou o pensamento, exprime assuntos, também a arte os exprime. O pensamento está na mente (neste sentido é consciente de si mesmo). Diferentemente a obra de arte está no mundo exterior, onde exprime objetivamente, sem estar consciente de si mesma. Não se distinguem como expressão, mas por estarem uma no interior, a outra no exterior.

 
Nestas condições a obra de arte não é apenas uma coisa; tal como acontece com a expressão mental, que transcende à si mesma, para falar de objetos, assim também a expressão artística adverte para algo fora dela mesma, sobre a qual informa. Ainda que haja diferenças entre a expressão interna (o pensamento) e a expressão externa (a arte), no essencial conferem entre si, e que consiste em ambas serem expressão de algo, de outro objeto, ao qual, portanto, têm como tema expresso.
 
82. Um segundo problema do belo, por causa da arte, diz respeito ao seu tema, se este é o próprio belo.

 
Neste caso importa distinguir entre expressar o belo abstratamente, como a assim chamada arte abstrata exprime qualquer outro tema abstrato (por exemplo, a riqueza, a nobreza, o terror, o pavor, a fome, a felicidade) , e exprimir o belo concretamente (por exemplo, como a arte figurativa apresenta o belo em seu estado de natureza, nos panoramas, nas flores, nas mulheres, nas modas, nos tecidos).

 
Advirta-se, entretanto, que a arte, tanto a abstrata como a figurativa, não precisam expressar o tema do belo, nem o abstrato, nem o concreto. Também o feio, quer abstrato, quer o concreto, podem ser tema de arte. É que a arte em primeiro lugar é uma operação para expressar. Seja qual for seu tema, em todos os casos ela continua sendo o que essencialmente a define como expressão.

 
Assim sendo, a arte expressa também o feio da natureza, e não somente o que contém de belo; e ainda a arte pode expressar-se feiamente, por deficiência de expressão. Neste último caso, o da arte feia, por deficiência da expressão, acontece o não desejado. Então, mesmo querendo expressar o belo da natureza, a arte o expressa mal.
 

83. A arte ainda pode ser bela em virtude do material belo utilizado. Neste belo pré-artístico poderão ocorrer desatenções, que, em última instância vão provocar confusões na percepção da noção geral do belo.

 
Aqui a superação do problema se consegue, atendendo para o fato de que as cores já são belas, antes de passarem ao uso da arte.

 
O mesmo poderá acontecer com as formas. Estas são contêm uma beleza pré-artística já na própria natureza.

 
Sobretudo se explora a beleza pré-artística na música. Em si mesmo o som é de pouca capacidade para expressar temas, tanto como expressão direta (em prosa), como por expressão indireta associativa das imagens (em poesia). Mas o som em si mesmo admite uma dinâmica de harmonias, com efeitos estéticos apreciáveis, e que o músico sabiamente explora, criando arranjos estéticos especiais sem serem portadores de uma significado.


 

84. Conclusão sobre as relações entre o belo e a arte. Diante da arte caracterizada como expressão fica patente, que ela em si mesma não é o belo. Ainda que a arte possa ser bela, do mesmo modo como o pensamento também poderá ser belo, - tanto pela sua perfeição em exprimir, como pelos temas que oferece, ou o material usado,- nem a arte e nem o pensamento se confundem com o mesmo belo. Como se determinará oportunamente, há no pensamento e na arte um elemento transcendental que os determina como belos, e é neste elemento transcendental que se encontra o belo.

 
Com a distinção entre o belo e a arte, não se diminui ao mesmo belo, predicado sempre tão louvado. Não se apeia o belo do pedestal em que se ergue, de onde brilha, acendendo a formosura brilhante das cores onipresentes. A arte segue o seu caminho, sem com isso prejudicar a estrada real de Vênus. Como a divindade que tudo contém, a beleza é anterior e nada tem a pedir à arte. Mas esta, quando além de ser arte ainda quer ser bela, tem de pedir o importante predicado ao ente em geral, onde está o belo como a perfeição em destaque.

 
O Tratado do belo continua, portanto, com os velhos merecimentos. Assuntos distintos, ambos, o artístico e o belo, se justificam como objetos de investigação. A filosofia, que tudo exaure, estuda, tanto o belo, como o artístico, mas em disciplinas separadas.
 
85. Diferenças teóricas e pragmáticas distinguem os dois temas, ainda que por vezes se aproximem.

 
Na vida ordinária nos ocupamos mais com o estudo da arte, que com a filosofia do belo. A razão talvez seja porque seja mais útil a arte e mais fácil entendê-la. O belo, ainda que nos preocupe, o usufruímos, sem todavia especular sobre ele. E se o quisermos entender, logo esbarramos com dificuldades metafísicas. Não obstante ficamos ao menos a contemplá-lo.
 

86. Pode-se todavia discutir, sobre se é mais fácil a arte ou mais fácil o belo. A arte, para que seja arte, basta que consiga exprimir. Diferentemente, o belo importa em alcançar a perfeição com destaque.

 
Muito depressa construímos a arte; difícil é para a arte chegar a ser bela, isto é, perfeita com destaque. Diante do belo, se não o entendemos, continuamos satisfeitos; já diante da arte que não entendemos, fica esta uma inutilidade para nós.

 
Mesmo quando a arte é difícil, o seu caráter pragmático e útil leva a praticá-la com esforço. Proliferam os estudos sobre a arte, certamente muito mais que sobre o belo, porque na ordem prática mais importa a arte que o belo.

 
Quando a arte se apresenta difícil, o é geralmente por um motivo acidental. Isto pode acontecer por causa do tema difícil, que por vezes tem de expressar. Então, embora em si mesma seja um exercício fácil, poderá ser atropelada pelo tema em si mesmo abstruso. Aliás, é o caso agora; é difícil falar sobre o belo, em si mesmo difícil, ainda que o falar, pelo falar, seja fácil

 
A arte pode eventualmente tornar-se difícil por erro, por falta de sabedoria na escolha dos seus recursos. Este é o caso evidente da linguagem, que costuma basear-se num sistema de equivalentes convencionais estabelecidos muito empiricamente e não por uma comissão de sábios cientistas.

 
As línguas nacionais não foram inventadas com as melhores regras; são produto da sabedoria popular, e por isso são línguas folclóricas, mais complexas e difíceis do que precisariam ser; as línguas planificadas ou artificialmente criadas são mais fáceis, além de mais eficientes. Por estas e outras razões da sem sabedoria humana, podem as artes eventualmente se tornar mais difíceis do que a construção do belo.

 
Já dizia velho provérbio, citado pelo divino Platão - "Difíceis são as belas coisas"! Não obstante, o belo, que todos os dias desfila diante de nós, costuma ser de algum modo reconhecível.

 
Sobretudo as mulheres são de ordinário muito atentas ao belo. Ainda que os homens também apreciem o belo, não raro consultam às mulheres, sobre se um roupa lhes cabe bem. Trata-se de uma diferença de atenção: a dos homens vai geralmente para o que é mais eficaz, mais eficiente, mais produtivo, mais capaz de dar poder; por isso o homem tende a ser um administrador, e as mulheres acreditam mais no comando de um homem, que no de uma outra mulher, como inversamente os homens acreditam mais nas ponderações estéticas de uma mulher, que nas de um outro homem.

 
É claro que as afirmações acima não podem ser radicalizadas.

 
Certamente todavia elas são indicadoras de uma diferença de comportamento mental entre mulheres e homens no que se refere ao belo.


 

 

 
ART. 2-o. O BELO É LÓGICO. 0764y090.
(Estética logicista, versus estética alogicista).
 
ESTÉTICAS DE OBJETO E ESTÉTICAS SEM OBJETO.
ESTÉTICAS LOGICISTAS E ESTÉTICAS ALOGICISTAS.
ESTÉTICAS INTELETUALISTAS E ESTÉTICAS IRRACIOALISTAS,
INTUICIONISTAS E OUTRAS.

 
91. A confusão é inimiga do belo. A ordem, a proporção, a harmonia se mostram sempre presentes onde há o belo. Em suma, o belo é lógico, não é alógico.

 
Podem acontecer limitações na capacidade de apreender os objetos, e então se trata de uma limitação da mesma logicidade, e não do belo propriamente dito. É conhecido que o ritmo agrada (vd). Este ritmo não é o belo, mas a ordem da apreensão do conhecimento das partes, e portanto também a ordem das coisas belas.
 
92. Enquanto certas áreas do pensamento se apresentam perfeitamente lógicas, com a clara presença de sujeito e objeto conhecido, outras se mostram mais confusas e difíceis.

 
Em consequência, não faltam aqueles que se imaginam outra modalidades de conhecimento, cujas denominações são as mais variadas, como conhecimento místico, alógico, irracional, intuitivo (com interpretação especial deste nome), voz do coração, filosofia dos valores, etc.

 
Os reflexos para o campo do belo e da arte, sobretudo da poesia, se dão imediatamente, e se tornam muito do gosto de certas pessoas impressionáveis e que se sentem bem com o misterioso e confuso.

 
Nesta área tudo parece difícil de tratar, desde o momento em que procuramos equacionar o questionamento. É preciso então descer aos fundamentos mesmos da natureza do conhecimento, opondo sua interpretação intencionalista (que a nós parece óbvia), com a interpretação psicologista (que somente por equívoco domina aos desatentos).

 
A insistência sobre a questão nos envolve na repetitividade, para advertir, ora para um aspecto, ora para outro. Importa reexaminar até se pensar é pensar objetos (como quer o intencionalismo), ou se pensar é apenas uma ação sem a representação de um objeto.

 
Como provar a intencionalidade e com ela encaminhar os fundamentos da estética inteletualista? Principiando pela tentativa de duvidar, a fim de determinar se é possível duvidar; por conseguinte, antes de irmos à prova, devemos bem entender como duvidar e como nos encaminhar para uma solução.

 
Quando a dúvida nos arrebata até o fim, todos os objetos do pensamento se dissolvem. Em profunda perspiciência inquirimos então a própria maneira de pensar. É quando nos vemos colocados diante de uma situação meramente ;formal, a inquirir se há representação de algum conteúdo.

 
Sempre que pensamos, surgem dois termos ligados entre si pela conexão de sujeito e objeto. Seria mesmo este o modelo fundamental do pensamento? Importa saber colocar a posição inversa, para compará-la com a anterior, a intencionalista, e decidir. A relação intencional poderia ser mera construção ulterior do pensamento, cuja fase inicial seria um pensar sem sujeito e objeto, portanto um psicologismo anti-intencionalista.

 
Eis que nos colocamos diante da pergunta mais radical que a filosofia pode fazer. Todas as demais questões, enquanto pressupõem a divisão em sujeito e objeto, lhe são posteriores. Havendo descido até ao fundo do Oceano das inumeráveis situações da consciência, encontramo-nos agora diante do próprio oceano das inumeráveis situações da consciência, encontramo-nos diante do próprio oceano, a perguntar se ele é feito de água, ou não. Assim também inquirimos, se o pensamento (atualmente sujeito intencionalizado na direção do objeto) é mesmo fundamentalmente constituído de sujeito e objeto, ou não.
 
94. Parece-nos impossível duvidar da natureza intencional do pensamento; uma verificação fenomenológica nos aponta esta circunstância frontalmente, como constitutivo manifesto à própria intuição mental, ao mesmo tempo que reflexiona.

 
Contudo a hipótese contrária pode ser levantada, como já advertimos quando equacionávamos o problema, à semelhança como se fala em geometrias não-euclidianas. Não pensamos termos de sujeito e objeto, diz o psicologista; haveria então somente atos absolutos, sem qualquer intencionalidade cognoscitiva.

 
Afastadas as posições psicologistas radicais, restam ainda as ecléticas. Tais são as colocações dos que admitem dois modelos de conhecimento, o lógico e o alógico (ou intuicionista). Então sobretudo dão como exemplo o conhecimento do belo e a vivência artística. Como enfrentar estes ecletismos? Só há um caminho: mostrar que o conhecimento do belo e toda a atividade artísticas se esclarecem unicamente pelo conhecimento lógico. Neste esforço há a mostrar que não há mistérios, nem na apreensão do belo, nem na expressão artística. Este trabalho é longo, mas longo para uns como para outros.

 
Nos sistemas clássicos de Platão e Aristóteles, bem ainda nos racionalismos modernos de Descartes e Kant, estes subrepticiamente psicologizados, o conhecimento se interpreta como relação intencional. A tendência da racionalização total segue o seu caminho natural. O belo e o sentimento estético vão passando logo para um fundo transparente. O gênio artístico, que aos primeiros poderia parecer um impulso cego, passa a erguer-se como o próprio ápice da inteligência.

 
O pensamento (a teoreticidade), como a gnosiologia, conforme o exposto, a estuda, oferece subtilidades que fogem à observação superficial. Importa muito que nos advertimos da intencionalidade como sendo essencial ao conhecimento. Consiste a intencionalidade em um certo movimento, não um movimento físico, mas um movimento da atenção para fora do sujeito na direção do objeto. Que é verdadeiramente saber, conhecer, pensar? Na interpretação intencionalista do conhecimento conhecer é conhecer objetos. Isto quer dizer que não acontece um conhecimento sem a marcha na direção de um objeto. Não há conhecimento sem uma atenção, esta atenção tem a forma de um caminhar para fora de si como sujeito, para algo que tem como que defronte de si. No mundo físico, o este "como que de fronte de si" pode significar uma distância; mas, no conhecimento este estar de fronte é de mera intencionalidade da atenção para o referido objeto, não importando se há, ou não há distância física. Quando o sujeito conhece a si mesmo, como que se posiciona diante de si, mas só intencionalisticamente.

 
Conclusão, o belo, como um objeto do conhecimento, o qual o alcança intencionalisticamente, é uma noção apenas teorética, como acontece com todos os demais objetos, sem haver sido alcançado por nenhuma faculdade alógica especial.
 
95. Importam algumas considerações mais sobre a alegação dos que se referem a um "sentimento" especial do belo e da arte. Não se trata senão de situações falsamente interpretadas sobre o inefável do sentimento e do processamento da associatividade das imagens.

 
Ainda que o sentimento não se confunda com as representações cognoscitivas (pois na verdade o sentimento é um dado originário, enquanto que o conhecimento também o é), não podemos negar que o sentimento está em função a objetos, e estes finalmente do conhecimento. Por isso, tudo se resolve com o sistema intencionalista, ou lógico, do conhecimento. Embora em si mesmo inefável e sem imagem, o sentimento está em função a objetos, os quais permitem entender ao mesmo sentimento. Nada acrescenta o sentimento ao objeto, para que este acréscimo seja dito um conhecimento alógico especial.

 
Em virtude da inefabilidade do sentimento, porque se situa na faculdade apetitiva e não no plano do conhecimento, o campo da estética se prestou para confusão fácil e propício para as tentativas de irracionalização. A estética inteletualista mostra que o sentimento, embora inefável, é posterior ao conhecimento dos objetos, oscilando em intensidade com a própria intensificação do conhecimento. Nada de novo nos oferecem os sentimentos a fim de que nos possam apresenta conhecimentos peculiares e alógicos, mais além e acima dos operados pelos sentidos e pela inteligência. As complexas combinações de ritmos nos oferecem um exemplo do que pode o paralelismo do conhecimento e do sentimento, que correm sempre em paralela. Apenas uma observação superficial poderia não ver isto, para asseverar, como o fez por exemplo Schelling, ao pretender colocar o ritmo entre as coisas misteriosas da natureza (Schelling, Filosofia da arte, § 75)
 
96. Outro caso que tem conduzido a interpretações estéticas irracionalistas é o da associação de imagens, que ocorre principalmente na expressão poética e na música de um modo generalizado.

 
Não se trata senão de leis da memória, ou subconsciente. Criadas as imagens estas possuem uma lei para despertar, por estimulação mútua. Imagens semelhantes despertam as que se lhes assemelham. Principalmente se atraem as imagens contíguas no tempo e no espaço. É óbvio que coisas vistas em conjunto se fixem em uma grande imagem conjunta. Posteriormente, despertada uma das imagens, ou seja parte da imagem conjunto, volte à tona da consciência todo o conjunto. O poeta, ao referir-se a uma das imagens, consegue evocar as demais. Por isso toma como técnica expressar coisas, cujas imagens estejam associadas com outras.

 
Assim explicada a poesia, não importa em uma operação alógica de caráter inteiramente especial, por fora do pensamento lógico. Ainda que as leis da associatividade sejam alógicas, elas não dão origem a uma estética alogicista, irracionalista. Acrescente-se ainda que as imagens alogicamente evocadas, tiveram contudo nascimento, em seu primeiro instante, diretamente como objetos fixados pelos sentidos, os quais também operam intencionalisticamente.
 
97. Aquilo que se denomina por vezes mistério da criação artística e do belo em geral se reduz aos procedimentos da simples combinação de imagens e comparação de juízos. O fazer é orientado pela imagem. Inclusive os animais operam de acordo com as imagens que previam têm. Certas combinações felizes dos grandes artistas provocam a pergunta, sobre o como se formou neles a inspiração. Fundamentalmente a inspiração artística como a criação do belo em geral decorre somente da capacidade da inteligência em comparar e eleger.

 
A inteligência forma juízos comparando termos, para finalmente afirmar uns dos outros. Aqueles termos aos quais se faz uma atribuição, ficam na função de sujeitos, aqueles que foram atribuídos, ficam na de predicado. Enquanto se processa a comparação entre os termos, há o momento em que a inteligência percebe haver, ou não haver a conexão; consiste a inspiração naquela percepção, e nada mais. Evidentemente a capacidade para este fim muito varia de homem para homem.

 
No caso da poesia, a inspiração propriamente artística se encontra no instante em que se seleciona a imagem capaz de associar o objeto em vista como tema.

 
No caso da arte podemos distinguir ente a inspiração temática (ou de conteúdo) e a inspiração dos meios de expressão. Uns têm muito a dizer e não dispõem de capacidade de expressão; inversamente outros possuem o virtuosismo da expressão, mas pouca inspiração temática.
 
98. H. Bergson (1859-1941) tratou particularmente do belo e da arte como atividade da intuição, que ele interpretava como operação distinta e superior ao da inteligência; a intuição seria uma espécie de amenização da inteligência, ou mesmo uma espécie de simpatia para com o objeto alcançado. Ainda que no uso comum da filosofia intuição se dissesse de qualquer conhecimento imediato do objeto, agora este caráter imediato é conservado, todavia elevado a um processo alógico.

 
A intuição de Bergson não ocorre apenas na arte, mas é um processo largamente usado em sua filosofia.

 
"O objeto da arte é adormecer as potências ativas ou antes resistentes de nossa personalidade e levar-nos assim a um estado de perfeita docilidade em que realizamos a idéia que nos é sugerida e em que simpatizamos com o sentimento expresso. Nos processos da arte nos encontramos sob forma atenuada requintados e como que espiritualizados os processos pelo quais se obtém geralmente o estado simpático... Assim a arte visa imprimir em nós sentimentos, mais do que exprimi-los. Sugerindo-os e prescindindo da imitação da natureza quando encontra meios mais eficazes" (Essai sur les données immédiates de la conscience, 1888, p. 11).
 

100. Bergson não era novo no empreendimento de um processo de conhecimento alógico. Os primeiros remotos sinais se encontram na doutrina "senso comum" dos moralistas ingleses, como Shastesbury (1671-1713) e os estetas do tempo. Na França Maine de Biran (1766-1824) faz do esforço voluntário "um expediente gnosiológico, para distinguir a experiência interna e a externa, provando alogicamente a realidade do mundo exterior. Bergson se situa no ápice de um movimento intuicionista para o qual criou um sistema vasto e embelezado pelo estilo de imagens brilhantes. Por isso mesmo iludiu a muitos desatentos.

 
O conhecimento alógico, ou afetivo, foi também uma peculiaridade da Filosofia dos Valores, de Scheler e Nicolai Hatmann.

 
Omar Argerami também descreveu a intuição poética como conhecimento afetivo: "Esta experiência não é uma percepção em sentido estrito (não é consciente); não constitui um ato inteletual, não é um arrazoar. É fundamentalmente uma atitude de simpatia, um conhecimento afetivo dessa realidade fora do comum. E é um conhecimento imediato, direto, alcançado; em uma atitude puramente contemplativa; em uma palavra, uma intuição. Por isso, podemos denominá-la sem temor intuição poética" (Sapientia, 1964, out. n. 74, p. 254).


 

101. A estética sem objeto de Kant se apresenta como um caso muito especial e que não se deve confundir com uma Estética sem objeto em sentido alogicista e psicologista radical.

 
Conforme oportunamente veremos, o que o filósofo da antiga Koenigsberg denomina "objeto", se restringe a um grupo de noções, semelhante às categorias aristotélicas; tais noções dizem respeito à constituição estrutural do objeto, e por isso se predicam como conceitos que dizem algo do objeto como em si mesmo é. As noções pertencem á área do "entendimento", na qual, segundo Kant, são formas a priori, com as quais o objeto é construído.

 
O belo não pertence a este campo do objeto, e por isso não é objeto neste sentido. Há, entretanto, uma outra espécie de noções, exercidas por uma faculdade específica, denominada por Kant juízo, e que ainda afirma "sem objeto", a que se reduz a noção do belo.

 
Em termos de filosofia aristotélica estas outras noções correspondem mais ou menos ao que se denomina "modos transcendentais", como coisa (ou res), verdade (ou verum), verdade (ou verum), belo (ou pulchrum). Estas noções se predicam do objeto como um todo já constituído. Não se distinguem entre si, do mesmo modo como entre si se separam as categorias (que são estanques umas em relação às outras). As noções transcendentais se envolvem umas nas outras, contendo-se formalmente. Quando se diz, por exemplo, que o ser é verdadeiro, que é coisa, que é belo, mal se pode dizer, que tais noções ponham alguma coisa de novo na estrutura do ser; elas não lhe advém como novos componentes categorias, porque de certo modo já se encontravam nele, havendo sido apenas explicitados a partir da noção do mesmo ser.

 
Ora, Kant, ao considerar a questão com referência ao belo, anotou que as beleza se apresentava como uma noção predicada da coisa vista como um todo, sem pôr novas partes constitutivas em sua essência. Há certamente alguma diferença entre o ponto de vista aristotélico, em que apesar de tudo o belo e a verdade se consideram como determinações do objeto, e o ponto de vistas de Kant, até porque neste tudo é a priori, até mesmo o belo.

 
Entretanto, o que agora nos interessa, não é este apriorismo, e sim a noção kantiana do belo como sendo "sem objeto", e que este modo de falar não se reduz ao modo de falar alogicista dos sistemas gnosiológicos anti-intelectualistas. Pelo contrário, muito se aproxima a noção kantiana do belo, da noção de Aristóteles e dos escolásticos.

 
Pretendeu Kant limitar a denominação "objeto" para as noções do entendimento, enquanto estas dizem respeito aos constitutivos do objeto. Não denominando pelo mesmo nome de "objeto" as noções da faculdade do juízo, onde o belo é afirmado, resulta dali que o belo se define como "sem objeto". Considerando ainda que Kant denomina conceitos somente às noções categoriais do entendimento, fica o belo algo que não é conceito.
 

102. Uma vez situados em uma interpretação inteletualista do conhecimento, e não em uma alogicista, o belo passa a ser interpretado teoreticamente, como algo do campo límpido do ser. Libertos da apreensão confusa das gnosiologias alogicistas, místicas, intuicionistas, etc., passamos a perguntar diretamente, o que é o belo?, esperando uma resposta sem obscuridades e sem mistérios. Firmada a estética de objeto, ou estética intencionalista, ou intelectualista, ou teoreticista, a progressão do Tratado do belo se desenvolve sem acidentes de percurso, em estrada franca, por entre arborização ordenada, rumo sempre à vista, com dados sempre penetráveis pela perspiciência mental




A.RT. 3-o. TEORETICIDADE PREFERENCIAL DO BELO. 0764y105.
 
106. Suposto o belo como objeto da inteligência, passamos a considerá-lo num novo tempo, como seu objeto preferido.

 
A teoreticidade do belo se apresenta preferencial e até mesmo uma curiosidade.

 
Todo objeto, enquanto objeto que se apresenta e se manifesta, atrai. Sobretudo o belo estimula poderosamente a curiosidade da mente.

 
Ainda que os sentidos por si sós não consigam alcançar o belo, pode-se falar da curiosidade dos sentidos, principalmente da curiosidade dos olhos, enquanto são fornecedores de material para a mente, que imediatamente os interpreta do ponto de vista do belo, isto é, como perfeições em destaque.
 

107. A prova da teoreticidade preferencial do belo é fenomenológica, tão bem como a do belo em geral e a de todo o ser. Como fato simplesmente fenomenológico, imediatamente evidente, não depende de provas de explicitação, muito menos de provas cursivas raciocinativas.

 
O que resta fazer é apenas descrever minuciosamente como a preferibilidade se dá. Colocando uma ordem nesta indagação da preferibilidade do belo, cabe considerar primeiramente seu fundamento ontológico; por exemplo, onde há mais ser, ocorre mais belo, mais preferibilidade. Restam considerações importantes, a preferibilidade do artista, pelo belo. No plano psicológico é evidente a preferibilidade das mulheres pelo belo, enquanto os homens se concentram no eficaz. No plano social ou sociológico, o belo atua como importante fator na interação das relações humanas.


 

108. Uma outra divisão do tema da preferibilidade, considera a curiosidade pelo belo, primeiro simplesmente como objeto de curiosidade; depois, como a maior das curiosidades, portanto como, dentre de todos os objetos, o preferido.

 
a) A abundância de aspectos que a beleza nos oferece, conduz-nos a sair ao seu encontro. Saímos a ver o belo pelas avenidas, pelas alamedas, pelos jardins em flor. Buscamos a beleza nos campos, nas campinas, no beira-mar. Levantamos a vista, giramo-la em toda a volta do horizonte, anelando a beleza. No sol, na lua nas estrelas continuamos a procurar o belo. Fabricamos o belo, para que exista em abundância. Belas hão de ser as vestes; belo deverá ser o penteado; elegante a maneiras de gesticular; bem composto o modo de andar e conviver na sociedade. Também o artista, na escolha dos temas formais, prefere a beleza. Faz belas formas para delas transcender na direção do belo como tema a apreciar. Também haverá de ser bela a cidade, a construção das casas e de seu arranjo interno.

 
Uma sede universal nos consome, conduzindo-nos a oferecer constantemente objetos à curiosidade mental. Entre os que se oferecem, como o de mais brilho e atração, o belo, prova de que é eminentemente teorético, peculiaríssimo para satisfazer a sede de saber.

 
b) Enquanto se estabelece nas preferências da curiosidade mental, o belo ainda é o "preferido". Esta índole foi anotada por Platão e Aristóteles, não somente para uma preferência apetitiva, mas também para a inteletiva. Contudo, a preocupação do Mestre da Academia mais se ocupa da apetência volitiva (Fedro 249). Com ênfase descreve o sentimento estético, mostrando que poderá ir ao delírio e ao entusiasmo.

 
Quanto ao grande Aristóteles, fez a sua afirmação sobre o belo como "o preferido "em um sentido que parece envolver a ambas as faculdades, à mente e à apetição (Arte retórica I, c. 9,3), por conseguinte, tanto no sentido de preferência teorética, como no de preferência estética.

 
A razão porque o inteleto incide fortemente no interesse pela beleza está em que a verdade ontológica é maior nos objetos perfeitos. Na medida que a perfeição ocorre, aumenta o volume de ser, e com isso a preferência cresce.
 
110. Comparando, a preferência do inteleto pela beleza se sobrepõe a tudo, inclusive à arte. Esta sempre fala ao espírito, porque é uma expressão, veiculando uma mensagem; neste sentido capta o interesse do inteleto que a entende. Mas o belo continua na preferência do espírito; por isso mesmo, o espírito reclama que a arte seja perfeita, e neste sentido bela. E não a arte não é apenas apreciada como expressão, mas como bela. Se o tema da arte for o próprio belo (seja o belo abstrato, como na arte abstrata, seja o belo concreto como na arte figurativa), então sempre a arte será apreciada.

 
O belo em si mesmo é sempre a verdade que encanta o espírito. Hegel, embora dentro do contexto de sua filosofia, alegava que o artístico apresentava uma expressão de idéia, todavia de maneira incipiente, incoativa. Certamente tinha razão, porque a arte somente começa a ser arte quando exprime algo. Mas, ao insistir que o belo da natureza se apresentava inferior ao artístico, porque faltava idéia à beleza natural, poderá ter-se enganado, porque a verdade ontológica domina todo o ser.

 
Na arte acontece não somente o belo artístico, que se encontra na mensagem da expressão. A arte utiliza a matéria, a qual em si mesma também opera sobre o apreciador. Há na arte sempre dois quadros de beleza: a pré-artística (do objeto simplesmente em si) e a beleza da expressa (propriamente artística). Algumas artes, como a música, vastamente exploram os elementos pré-artísticos, e por acréscimo introduzem nos sons a mensagem. As alianças na arte se podem dar entre as mesmas artes, como no teatro a figura e a fala, e ainda com os materiais, que, em seus instantes pré-artísticos já podem em si mesmos ser teoréticos e estéticos.
 
112. Nas coisas, quando comparadas entre si, ocorre também uma preferência. Ordinariamente preferimos a cor ao som. Em conjunto estes dois "sensíveis próprios" (cor e som) os preferimos aos "sensíveis comuns" (movimento e quantidade). Finalmente, acontece uma preferência por todos os sensíveis (sejam próprios, sejam comuns) aos objetos abstratos.

 
Funda-se esta preferência no conteúdo do objeto. Neste sentido considere-se a distinção que diz "compreensão" do objeto e "extensão" do objeto. Diz-se a compreensão a respeito do conteúdo revelado pelo conhecimento; a extensão do número de indivíduos aos quais se atribui determinada compreensão. Ora, nos sensíveis próprios (a cor, o som) ocorre um máximo de compreensão; o objeto é alcançado intuitivamente, diretamente, tal qual é; por isso a cor e o som se apresentam de maneira muito insistente.

 
Sobretudo a cor, objeto da vista, revela nitidamente os detalhes e as precisões; por esta razão é a vista o mais apreciado dos sentidos. Sendo o que mais precisões nos oferece, o que nos mostra o maior número de detalhes, é a vista o sentido que, ao ser perdido pela cegueira, mais nos aflige na desgraça. Em assim sendo, particularmente belas hão de ser as coisas que vemos. Dali porque afirmamos com ênfase que belas são "as coisas, que, vistas, agradam" (quae visa placent - S. Tomás). Também são belos os sons; mas, por antonomásia, são belas sobretudo as coisas próprias à vistas, particularmente as cores.

 
Os "sensíveis próprios", em conjunto, superam os "sensíveis comuns"; por isso, nas flores, apreciamos primeiramente as cores, e depois as suas formas. O mesmo sucede cm os vestuários e os objetos em geral. O vulgo, incapaz de maiores abstrações, aprecia quase somente as cores ao considerar as estatuetas de santos. Por isso também são mais frequentes as flores nas casas dos simples; nas residências de pessoas evoluídas, capazes de apreciar por acréscimo elementos menos concretos, ocorrem também as folhagens, as esculturas, a arte abstrata.

 
Observe-se quem folheia um livro. Sempre que segue para uma nova página, primeiramente olha as figuras, passando a seguir à leitura, por causa da força de maior atração que o intuitivo exerce. O maior volume teorético capta para junto de si a atenção.

 
É a ação do objeto que nos faz conhecê-lo, apesar de haver uma ação de nossa parte de querer possuir o conhecimento do mesmo. Ao alcançá-lo, dizemos que o possuímos, e efetivamente assim é. Mas, depende do objeto podermos possuí-lo. E assim também a preferência depende dele e de nós. Quanto mais significativo ele é, portanto, quanto mais belo ele é, mais consegue se impor e atrair. De outra parte, também nós assim o queremos, e portanto preferimos o objeto mais significativo, preferimos o belo.

 
Importa compreender o belo. Devemos ser capazes de o apreender. Senão ele desfila e passa por despercebido. "Compreender a beleza significa possuí-la"(W. Lübke). Por isso, as grandes belezas, naturais e humanas, como também as grandes obras de arte, vão sendo cada vez mais possuídas na proporção que continuamos na contemplação das mesmas, e descobrimos sempre mais o que contém.
 
113. Tem a qualidade a importante propriedade de se exercer com termos contrários: perfeito, imperfeito; verdade, erro; belo, feio.

 
Os pólos em que se situam os contrários, logicamente se apresentam preferíveis, uns; indesejáveis outros. Evidentemente que o positivo se mostra como sendo o preferido.

 
A assertiva de que o belo é o preferido se prende à questão dos contrários. Comporta-se o feio, exatamente como o não preferido.

 
Se a preferibilidade nos conduziu ao belo, como um contrário do feio, o belo referido se situou numa posição positiva, a de perfeição e nobreza.
 


IntroducaoÍndicesCap. 2
 Fonte:

ENCICLOPÉDIA    SIMPOZIO

(Versão em Português do original em Esperanto)
© Copyright 1997
http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/megaestetica/TratBelo/0764y060.html
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres. 
             Sejam abençoados todos os seres.

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