Roda Viva - José Arthur Giannotti - 07/05/2012
Filósofo vem ao Roda Viva
dar um panorama da corrupção na política brasileira atual.
Trans/Form/Ação
ENTREVISTA:
Como
interpreta toda a sua produção teórica? Haveria um projeto comum, uma
"linha mestra", que a percorre? Teria havido rupturas, "cortes
epistemologicos"? Quais e em que momentos?
Vamos a primeira parte da questão. Linha mestra..., diria, muito mais, uma obsessão. Já em meu primeiro trabalho, me ocupei com o empirismo; no último, agora publicado nos Estudos CEBRAP (n.° 9), retomei o mesmo problema. No fundo reside a obsessão da recusa do empirismo, a ideia fixa a respeito do universal, do conceito cuja constituição não se liga exclusivamente a semelhança. Obviamente, o exercício dessa obsessão não foi linear. De acordo com as influências que recebi, os estudos que fiz, aprofundei esta ou aquela direção. É fundamental assinalar o encontro com Marx. No que diz respeito à segunda parte, não creio que tenha havido qualquer corte epistemológico, pois desconfio muito desse conceito.
Quais as determinantes da formação cultural brasileira que deram surgimento e desenvolvimento ao seu trajeto teórico?
A pergunta é caprichosa, pois me obrigaria a pensar numa determinação estrutural da formação cultural brasileira que me determinasse, obrigando-me então a pensar e, ao mesmo tempo, pensar meu pensamento com categorias que não são minhas. Vamos primeiramente botar aspas nessas determinações, bem como no próprio trajeto. "Determinações" da formação cultural brasileira ... Em vez desse caminho estruturalista, prefiro tomar outra linha, voltando aos fatos e lembrando a biografia de minha formação. Só assim podemos encontrar o meio termo entre a "estrutura" e eu mesmo como parte dela.
Acho que meu primeiro contato importante com a vida intelectual brasileira foi por intermédio de Oswald de Andrade. Um grupo de garotos, do qual eu participava, tinha realizado o primeiro Congresso Infanto-Juvenil de Escritores, promoção da Biblioteca Municipal e da Biblioteca Infantil. Para preparar o segundo, a ser realizado em Belo Horizonte, convidamos alguns conferencistas. Ruda trouxe seu pai e, depois, me levou para a casa dele. Era dia de festa. Me lembro muito bem, logo ao entrar fui apresentado a dois monumentos: um quadro de Picasso, que pendia da parede e Antônio Candido, debaixo do quadro, sentado numa cadeira e em mangas de camisa. Em seguida fui sendo apresentado a outros.
Frequentar a casa de Oswald foi para mim uma abertura, a possibilidade de conhecer novas ideias, o modernismo, além de abalar meu moralismo pequeno-burguês.
Foi o próprio Oswald quem me encaminhou para o seminário de Vicente Ferreira da Silva. São Paulo naquela época era ainda muito acanhada e provinciana; mesmo os grupos antagônicos se sentiam unidos pelo exercício da "cultura". Vicente lia Platão com seu grupo no qual logo me integrei. Me indicou um livro que, no momento, foi fundamental para mim: Paidéia, de Jaeger. Por mim mesmo, lia um capitulo e a obra clássica correspondente, desde Homero a Platão. Foi minha paixão pelos gregos.
Uma das bibliotecárias da Biblioteca Infantil acabara seu curso de Letras Clássicas na USP. Ela me aconselhou a seguir como ouvinte este curso da Faculdade. Isto resolvia meu problema. Terminara o Ginásio e preferia cursar o Científico, mas o programa de Filosofia incluía Latim. Minha decisão de fazer Filosofia já tinha sido tomada, com a concessão, para a família, de também prestar vestibular para Direto; conexão, obviamente, logo abandonada. Por dois anos frequentei regularmente esse curso, deixando de lado apenas o grego, pois as aulas eram mecânicas demais. Meu interesse maior era pela literatura. Nessa época aprendi a gostar dos clássicos Portugueses e brasileiros. Pensava em especializar-me em estética.
Ao prestar o vestibular (1950) ocorreu a primeira ruptura com Vicente, que se consumou anos depois. Ele me acusava de não acreditarem minha vocação, procurando a escola e a profissão de professor. Encontrei um Departamento de Filosofia muito estranho, ou melhor, duas cadeiras dirigidas por Lívio Teixeira e João Cruz Costa. O primeiro nos obrigava ao exercício maçante da História da Filosofia, o segundo nos encantava com seu charme, suas leituras, seu nacionalismo. Da perspectiva de hoje sou obrigado a reconhecer que minha turma foi injusta com Lívio. Ainda imperava no Departamento o ensaismo deixado por Jean Maugiie, o primeiro professor que veio com a Missão Francesa encarregada de estruturar a Faculdade. Ao lado disso, a preocupação com a filosofia brasileira, cuja ênfase era dada por Cruz Costa e Laerte Ramos de Carvalho, este já interessado em fenomenologia, palavra feia naqueles tempos no âmbito da Rua Maria Antônia.
No entanto, desde a primeira aula, nosso grande mestre foi Gilles G. Granger. Até aquele momento, Granger não conseguira impôr-se, sofrendo a hostilidade velada dos ensaistas e do pessoal de Laerte. Nosso grupo logo mergulhou na Lógica e na Filosofia das Ciências. No mesmo ano conheci Martial Guerroult, que, na qualidade de professor visitante, nos ensinava Leibniz. Era a descoberta da grande História da Filosofia, dos problemas técnicos de análise de texto, enfim, de toda problemática que predominou no Departamento dos anos 60. Em 53, no quarto ano, já me encarregaram de um seminário sobre Lógica, para "tapar o buraco" deixado pela partida de Granger. Substituiu-o Claude Lefort, que nos trouxe para os redemoinhos do pensamento politico.
Nessas circunstâncias, minha ruptura definitiva com Vicente era inevitável. Ela se deu de forma dramática, oswaldiana, numa conferência de Heraldo Barbuy, sobre Hegel, onde não se sabia bem onde acabava a noção de Fuerst e a de Fuehrer. No meio da conferência, gritei: é mentira. Estava na parte superior do auditório da Biblioteca Municipal; logo a saída Vicente investe contra mim gritando: "Tudo isto é trama da Faculdade de Filosofia". A luta entre a Faculdade e os outros filósofos "municipais", como dizia Cruz Costa, era intensa, girando em torno do concurso de cátedra de Filosofia. Cruz Costa era regente e candidato, concorrendo com Vicente e muitos outros. A Universidade conseguiu excluí-los do concurso, alegando que nenhum deles tinha curso especializado de Filosofia. De um lado, foi uma vitória do profissionalismo, mas de outro, o primeiro passo no sentido da burocratização. Voltando a conferência. Um guarda veio e me acompanhou até a saída. Mas na parte de baixo o "pau quebrou" feio entre amigos meus, que nada tinham a ver com o caso, e os adeptos de Barbuy. No dia seguinte, manchete num jornal: Bofetadas por causa de Hegel.
Na secção de Filosofia, a presença forte era de Cruz Costa. Lívio, que somente se impõe a partir da turma de Bento Prado, nos parecia muito escolar. Nosso grupo, politicamente, estava tornado pelo nacionalismo, filosoficamente mergulhava na História da Filosofia e na Epistemologia. Com isso rompíamos com o ensaismo das gerações precedentes, tarefa que nos foi facilitada pela passagem de Laerte Ramos de Carvalho para a Filosofia da Educação. Assim o Departamento ficou sem a geração intermediária, liderada por Antônio Candido, Florestan Fernandes etc., o que nos permitiu ascender rapidamente a posições de liderança. Lembro-me que uma de minhas maiores preocupações era formar uma biblioteca, e não foi sem dificuldades e sem reclamações que comecei a comprar os primeiros textos em alemão, vencendo a enorme desconfiança da francófila de Cruz Costa. Meus amores com este sempre foram intensos e contraditórios. Quando comecei a estudar fenomenologia, e foi por ela que penetrei na Filosofia, Cruz Costa, que não distinguia a posição de Husserl do heideggerianismo sustentado por Vicente, costumava me gozar, dizendo: "Ai vem o Husserl da Alienação". Mas, ao mesmo tempo, me presenteava com as Investigações Logicas, na tradução Morente, livro raro na época.
Era grande honra pertencer aos quadros da Universidade de São Paulo, honra que implicava em prestar serviços gratuitos por anos a fio, a espera de uma vaga. Nas melhores circunstâncias, o professor conseguia um lugar no Ensino Secundário e pedia comissionamento para a Faculdade. Procurei seguir esse caminho. Mas ao tomar posse de minha cadeira de Sociologia, em Ibitinga, surge, para atrapalhar, a eleição de Jânio Quadros, que acaba com essa forma de transferência de verbas. Tinha diante de mim a seguinte opção: permanecer em Ibitinga, com muito tempo para estudar, ou voltar para São Paulo, lecionar na Faculdade e me esfalfar ensinando em colégios particulares. Fiquei por lá. Somente depois de ano e meio, graças ao concurso de Filosofia para o Secundário, pude voltar e retomar minhas funções de professor universitário honorifico.
No entanto, logo em seguida parto para a França, onde continuo a estudar com Granger, descubro o estruturalismo de Goldschmidt e a fenomenologia de Merleau-Ponty. Na volta trouxe "a alma na mala", como dizia Rodolpho Azzi, tal era minha obsessão por uma filosofia da consciência. Meu projeto de escrever um estudo sobre a lógica de Husserl logo se reduz ao trabalho modesto sobre Stuart Mill, dada a urgência em assegurar um lugar independente na Universidade. Também o segundo livro, As Origens da Dialética do Trabalho, responde as premências da vida acadêmica: contém, entretanto, uma intenção polêmica precisa. Dada minha formação lógica, não podia senão recusar a leitura antropologizante de Marx, que estava em voga, de um lado, por causa do peso da esquerda cristã, por outro, graças a influencia do psicologismo retomado pela Critica da Razão Dialética, de Sartre. Esse se tornara o livro de cabeceira de Bento Prado Jr., que sustentava, no grupo interdisciplinar que havíamos formado para ler O Capital, a tese de que a teoria do valor se fundava numa antropologia previa. Meu livro foi escrito contra essa tendência moralizante do marxismo. Aliás, escrever, para mim, significa fazer polêmica.
A tecnização do Departamento seguia a passos largos, principalmente com o impulso dado pelos franceses. Preparávamos nossos quadros na França, junto aos historiadores ligados a Guerroult e, sistematicamente, tínhamos entre nos professores franceses como visitantes ou regulares. Estávamos tão afrancesados que um dia Michel Foucault, que nos expunha as premissas de Les Mots et les Choses, me declarou: "Le Departament de Philosophie cest un departement francais doutre-mer". Na verdade, estávamos criando as condições de um estudo regular da Filosofia, entre nós, mas não deixávamos de formar um quisto em nossa sociedade. Nessas circunstâncias, um conflito era inevitável. Uma primeira investida, ainda muito tímida, ocorreu durante a época do nacionalismo isebiano. Particularmente fui acusado de não dar uma lógica nacionalista. A grande ruptura, entretanto, se deu em 68, quando o Departamento já estava cindido por dentro. Os estudantes seguiam a linha da U.N.E., que procurava obter resultados políticos jogando a Universidade no fogo. Em tese, tinham razão, pois já a Universidade brasileira não tinha muito porque ser preservada. Havia, porém, exceções, grupos dinâmicos, muito importantes para a formação de quadros intelectuais e criação de um novo estilo científico, que a meu ver precisavam ser poupados. Me opus a paridade em todos os níveis, porque ela significava uma politização de todos os comportamentos da vida universitária, pleiteando que, ao menos certas decisões, de ordem pedagógica e de recrutamento, ficassem nas mãos dos professores.
Tentei conciliar política com a manutenção de um ritmo de trabalho, de formas de coerção que os professores, como um grupo de intelectuais, devem impor-se a si mesmos e aos estudantes, desde que esses a aceitem com um todo. Daí minha proposta de paridade nos conselhos universitários, nas congregações, que, entretanto, não deveria se estender aos departamentos. É bem possível que o Departamento de Filosofia estivesse se alienando na teima de exigir de professores e estudantes uma formação técnica muito rigorosa, que poderia até mesmo colocar obstáculos à criatividade. No entanto, é preciso desde já começar a pensar sobre a experiência "gauchista" da Universidade. Um dos problemas básicos, assim me parece, reside na impossibilidade de existir, modernamente, uma instituição social que não comporte uma dose de coação. Ao invés de cairmos na negação mecânica do autoritarismo burocrático, desde logo devemos pensar nas formas possíveis de uma coerção consentida. Um líder estudantil, por exemplo, não é, em virtude de sua liderança, um bom professor de Filosofia.
Um bom professor não é necessariamente um bom pesquisador. Retirar de um Departamento sua capacidade de selecionar bons pesquisadores resultará inevitavelmente num abaixamento do nível técnico de um país e numa forma de coerção intolerável, que será feita assim em nome de uma liberalização. Num departamento paritário, que devera tratar de questões dessa ordem, a metade dos estudantes será meramente passiva e, nessas condições, massa de manobra dos próprios professores. Isto não quer dizer que defenderia, hoje, minhas posições anteriores. Não abro mão, porém, de minha liberdade de discutir a questão como a entendo, sem medo dos radicais infantis.
Voltando a história do Departamento de Filosofia. Grande parte de seus professores ansiava pela experiência da paridade. Não convinha reprimi-los. Graças à abstenção de Oswaldo Porchat e minha, eles obtiveram o número suficiente para alterar o regulamento. Se não tinha mais condições de continuar na chefia desse Departamento, não podia recusar o diálogo com os alunos. Diante do convite cauteloso para que realizasse uma conferência na Faculdade ocupada, respondi com um curso. Era o mesmo curso sobre a dialética que havia desenvolvido durante o ano, agora, porém, desprovido de seu arcabouço técnico. Em nenhuma condição eu deixaria de exercer minha profissão de professor; não recuso qualquer oportunidade de falar sobre as ideias que me obsedam, seja lá onde for.
Logo depois da tormenta, fundamos o CEBRAP. No início, minha intenção era emigrar. Mas, aos poucos, fui me convencendo de que nem todas as condições de trabalho estavam cortadas. Sendo o único filósofo trabalhando nessa instituição, nem sempre encontro meios de discutir as ideias que me são mais caras. O acordo, todavia, entre eu e meus colegas me parece frutífero. De um lado, eles me mostram como se faz ciências sociais no cotidiano; de outro, eu os provoco com minhas inquietações, que sempre estiveram ligadas a possibilidade de uma ciência do homem.
Como é que você interpreta esse estilo de produção teórica, na área das ciências humanas, no quadro cultural brasileiro?
A pergunta importa na medida em que revela o tipo de inserção que procuramos no contexto da vida intelectual brasileira. Não foi apenas o Departamento de Filosofia que enveredou pela precisão e pelo amor as questões técnicas. Outros faziam o mesmo em outras áreas da Universidade. De um lado, procuramos encontrar uma forma mais precisa de argumentação que fugisse aos enganos do discurso ideológico; de outro, tentamos coletar dados com maior precisão. Dai certa desconfiança, por exemplo, contra os intelectuais cariocas da década de 60, tão impregnados que eles foram pela ideologia do ISEB. Nessa época, deixamos de fazer o processo do ISEB, porque acreditávamos, platonicamente, que nosso estilo, por ser verdadeiro, se imporia de per si. Além disso, era-nos difícil, naquele momento, fazer a crítica do nacionalismo. O movimento de 64, porém, não só interrompe a continuidade de nosso trabalho universitário, mas lança uma suspeita sobre nosso próprio estilo. Nosso amor à precisão e a técnica pode ser confundida com a ideologia burocrática. Até quanto a precisão do pensamento, a proposta de racionalidade, não se confunde com a racionalidade do poder? Não estou certo de que, no CEBRAP, estejamos resolvendo a contento as vicissitudes de nossa posição. Ou melhor, muitas vezes, para fugir aos enganos do pensamento burocrático, estamos de novo caindo no ensaismo, quando não acabamos reunindo os dois.
Quais suas atuais preocupações no campo das ciências humanas?
Tenho trabalhado em duas vertentes que, no fundo, constituem duas faces de uma mesma moeda. De um lado, procuro escrever uma série de monografias sobre o pensamento sociológico. Isto é, busco apanhar os vários momentos da reflexão sobre o social, examinando os pressupostos e os quadros a partir dos quais essa reflexão se tece. Assim procedi com Durkheim e agora com o behaviorismo de Skinner. De outro, continuo elaborando minha velha obsessão: a possibilidade de uma dialética materialista. Para isso sou obrigado a retomar o problema que, a meu ver, deu origem a dialética moderna; a saber: a oposição entre juízos determinantes e juízos reflexionantes. Voltar, portanto, a ideia de reflexão. Como na série de monografias tenho sempre em vista esse problema da reflexão, como ele desponta de um modo ou de outro no âmbito de um determinado discurso sobre o social, as duas vertentes se juntam numa única ideia fixa. Parto do pressuposto de que, se a reflexão é a mola em relação a qual uma sociedade se instaura, o pensamento sociológico sempre acaba se defrontando com ela, por mais ideológico que ele seja. Mostrei como em Durkheim a reflexão surge na proposta da sociedade como um ideal que se pensa em si mesmo; em Skinner, na análise do operante e, em particular, na definição de reforço generalizado, quando os termos se definem uns pelos outros.
Você fala do operante que modela ou que exige a reposição da resposta sobre a modalidade do condicionante enquanto incorpora o universo do operando, o ambiente. Em que medida essa reflexão não assume apenas a modalidade kantiana da reflexão?
A meu ver, o grande mistério, o grande interesse das ciências humanas de hoje reside no fato de elas estarem efetuando uma problemática kantiana sem tomar explicitamente consciência dos pressupostos kantianos aos quais estão sempre recorrendo. Na medida em que se exercem, por exemplo, pela oposição entre instituições, formas sociais e a multiplicidade de comportamentos concretos, estão recorrendo a velha noção de entendimento. Mas suas próprias práticas científicas as levam para além de seus quadros teóricos de referenda. Assim é que tentei mostrar como o behaviorismo, ao defrontar-se com o comportamento social, vê-se forçado a pensar os reforços generalizados, base de toda cultura, determinados por uma classe de consequências do operante, que não pode, creio eu, ser pensada por uma lógica de classe. Se a unidade da generalização é criada pelo comportamento, esta unidade comparece como uma forma que não se resume tão somente a uma função de unidade; traz em si uma relação com seus conteúdos, constitui um processo em que o resultado e pressuposto e vice-versa. Tal ciclo da reflexão parece constituir o horizonte das ciências humanas, pondo em xeque os bastidores a partir dos quais elas se teceis. Assim sendo, se assumo, de início, a perspectiva do historiador da ciência, que toma cada teoria como um grande fato lógico, e para logo abandonar esse ponto de vista neutro, obrigado como estou a examinar e ao mesmo tempo criticar as teorias, de uma ótica que me parece constituir o núcleo da reflexão dialética.
Terá a prática uma dimensão em si mesmo reflexão tal como se produz de alguma maneira com o conceito?
Creio que o resultado de meu último ensaio é importante na medida em que, de certo modo, chego "ao fundo do poço". Encontro a reflexão ao nível do comportamento mais elementar. Isto quer dizer que não podemos pensar nenhuma prática humana que não esteja marcada por seus próprios resultados, que surgem então como antecipações, representações, da ação individual. Importa portanto ver como existe um movimento constituinte das categorias, das antecipações e dos conceitos, que o velho Kant só via ao nível do próprio exercício do entendimento. Ora, a recuperação da representação e da presença, feita nesses termos, implica também em romper com a metafísica tradicional: se a forma e antecipação e presença, ela só se mantem e presentifica como poder de síntese graças ao decurso sucessivo, temporal, de tudo aquilo que vem satisfazer as necessidades humanas. A atemporalidade daquilo que Marx chamou de histórica contemporânea a sincronia das estruturas, para falar numa linguagem mais corrente é fruto da estrutura do próprio comportamento.
O pensamento de G. G. Granger se formula, cada vez mais, como uma filosofia da prática. Que proximidades ainda mantem com ele?
Muito de meu pensamento está marcado por Granger, a despeito da enorme distância que hoje nos separa. Para mim, entretanto, chegar ao nível da reflexão é chegar ao problema do trabalho, não da relação sujeito-objeto, mas de todos esses produtos intermediários, desses resultados da atividade produtiva, que determinam tanto a operação individual do trabalho quanto a própria natureza como efetividade. O mundo da instrumentalidade, marcado tanto pelas promessas feitas por cada objeto no sentido de seu uso, quanto pelos obstáculos, que as relações sociais deixam impressas em cada coisa; esse mundo aparece pois como a matriz dos comportamentos sociais. Trata-se de pensar o mundo cotidiano como terminal de um sistema produtivo. Isto equivale a retomar a ideia hegeliana de instrumento como algo que possui uma atividade própria, pedaço da natureza circunscrito pelo trabalho do homem e, por conseguinte, sistema causal a que se imprimiu um fim. Por isso, percorrer o caminho inverso daqueles que pensam o instrumento como inercia, a efetividade, como um prático-inerte.
Se a prática se situa como uma prática reflexionante, como colocar-se face a atualidade do fim da história no seio do pensamento hegeliano?
Fecho o Ardil do Trabalho deixando uma pista por onde espero mostrar que o modo de produção capitalista vem finalizar a reflexão do trabalho. Na medida em que todos os elementos da produção passam a integrar essa reflexão, em particular, na medida em que a terra aparece como se fosse um valor, produto do trabalho humano, a história atinge o "bom infinito" da lógica hegeliana. Agora, porém o absoluto se dá como uma ilusão necessária, mas superável. Isto indica que o fechamento da reflexão ocorre no imaginário, embora não deixe de implicar numa completa reversão no sentido da própria História. O capitalismo, ao englobar todos os outros modos de produção, historializando-os pela sua presença, traz o cumprimento da dialética do trabalho, duma relação do homem com a natureza em que ambos os termos estão subsumidos ao mundo da instrumentalidade. A revolução resulta numa nova relação do homem com o trabalho, porquanto este se liberta do império do instrumento e aquele se abre para uma nova forma de temporalidade.
O desenvolvimento das forças produtivas vem permitir um novo tipo de relacionamento com nossas próprias necessidades. Atualmente cada coisa promete um uso que não se efetua a não ser quando cada um de nos cumpre uma série de relações sociais. Para que possa mergulhar num livro, necessito ir a uma loja, realizar a operação de compra pela qual troco uma parcela de meu salário etc. A todo o momento estamos esbarrando com objetos que ostentam para nós sua fertilidade, que, contudo não se realiza porque antes é preciso cumprir os rituais da dominação. Nesse sentido, a revolução é a festa que reencontra a infância do mundo, não os seus primórdios escondidos nas brumas dos tempos passados, mas esta infância que está a mão, na contemporaneidade das promessas frustradas.
Que pensa da observação de um critico, segundo a qual o projeto de Origens da Dialética do Trabalho, a dialética primitiva do jovem Marx é bastante prejudicada pela ambiguidade do método utilizado do estudo sincrônico, arquitetônico das doutrinas a luz da elaboração progressiva do materialismo dialético como pela ambiguidade do seu objeto, ao mesmo tempo trabalho de história da filosofia, de filosofia e tout-court de filosofia da história?
Diria que essa ambiguidade nasce de uma profissão de modéstia, do reconhecimento de que não existe um discurso sobre a História da Filosofia que não seja simultaneamente Filosofia. Quando pretendo estabelecer os mecanismos pelos quais a dialética do jovem Marx se instaura ou, pelo menos, se esboça, tendo como pressuposto a ideia de um ser genérico do homem, estou privilegiando uma leitura ontológica do marxismo, que como tal não deixa de ser uma leitura. Trata-se, pois, ao mesmo tempo de ler e reviver o texto. Apenas assumo uma posição que me parece estar inscrita em qualquer interpretação, sem me mascarar com a frieza da neutralidade científica.
O "ajuste de contas" com a dialética tem necessariamente de passar por Hegel, Feuerbach e pelo jovem Marx?
Sim, desde que a dialética pense a negação da negação. Obviamente se enveredarmos pela dialética da ambiguidade ou da interrogação, como acontece com o último Merleau-Ponty, então aqueles autores podem ser esquecidos. Da perspectiva em que estou trabalhando, que traz uma recuperação ativa do mundo cotidiano na qualidade de terminal de um sistema produtivo, Hegel permanece o grande mestre.
Mantém ainda a crítica, feita em Contra Althusser, de que o althusserianismo, pelo horror a ontologia, pela substantivação da teoria, enfim, pelo seu positivismo, traz a história para a égide do psicologismo?
É preciso lembrar que escrevi um artigo contra Althusser e não contra o althusserianismo: simplesmente porque este ainda não existia. O artigo foi publicado quando os trabalhos de Althusser ainda eram apenas uma leitura de Marx e não se haviam transformado numa ideologia de certos intelectuais de esquerda que, principalmente na América Latina, revive o formalismo do pequeno-burguês. Mas gostaria de lembrar que a volta a Kant na interpretação de Marx não é só característica do pensamento althusseriano. Habermas e Colletti, em que pese as suas enormes diferenças, caminham na mesma direção. Minha preocupação visa a própria noção de forma em que labora uma dialética materialista. Daí a recusa do ponto de vista epistemológico, que faz do marxismo uma teoria do conhecimento, daí o retorno à problemática de Lukàcs, de uma ontologia do social. Toda a dificuldade reside em perceber como essas formas que permeiam a vida social, transformando-se nos conteúdos em vista dos quais cada um regula seu comportamento, estão marcadas pela ilusão. A tarefa e mostrar como as relações sociais são ao mesmo tempo relações e substanciais processos e objetos de fetiche.
O que deve ser exigido hoje num curso de "formação de filósofos"?
Evidentemente não gostaria de insistir nos requisitos técnicos que todo investigador deve cumprir. Mas a meu ver existe um ponto de partida para toda atividade filosófica: a dissociação das significações cotidianas, as moedas correntes do pensamento ideológico. Não vejo como o investigador moderno, principalmente vivendo nas condições brasileiras, possa deixar de lado essa tarefa de interrogação e, por conseguinte, de oposição a tudo o que e tornado como dado. Resumiria dizendo que a primeira coisa a ensinar num curso de filosofia é formular questões de uma forma rigorosa.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
— ex-professor livre docente do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Autor de John Stuart Mill, o psicologismo e a fundamentação da Lógica (1961) e Origens da Dialética do Trabalho (1966) — este último traduzido para o espanhol e francês. Escreveu vários artigos e ensaios; entre eles destacam-se "O ardil do trabalho" e "O que é fazer", ambos publicados pela revista Estudos, Cebrap, n.°s 4 e 9. Atualmente faz parte de um grupo de pesquisadores reunidos em torno do Centro Brasileiro de Planejamento (Cebrap).
1 Entrevista publicada na Revista Trans/Form/Ação, v. 1, p. 25-36, 1974.
Vamos a primeira parte da questão. Linha mestra..., diria, muito mais, uma obsessão. Já em meu primeiro trabalho, me ocupei com o empirismo; no último, agora publicado nos Estudos CEBRAP (n.° 9), retomei o mesmo problema. No fundo reside a obsessão da recusa do empirismo, a ideia fixa a respeito do universal, do conceito cuja constituição não se liga exclusivamente a semelhança. Obviamente, o exercício dessa obsessão não foi linear. De acordo com as influências que recebi, os estudos que fiz, aprofundei esta ou aquela direção. É fundamental assinalar o encontro com Marx. No que diz respeito à segunda parte, não creio que tenha havido qualquer corte epistemológico, pois desconfio muito desse conceito.
Quais as determinantes da formação cultural brasileira que deram surgimento e desenvolvimento ao seu trajeto teórico?
A pergunta é caprichosa, pois me obrigaria a pensar numa determinação estrutural da formação cultural brasileira que me determinasse, obrigando-me então a pensar e, ao mesmo tempo, pensar meu pensamento com categorias que não são minhas. Vamos primeiramente botar aspas nessas determinações, bem como no próprio trajeto. "Determinações" da formação cultural brasileira ... Em vez desse caminho estruturalista, prefiro tomar outra linha, voltando aos fatos e lembrando a biografia de minha formação. Só assim podemos encontrar o meio termo entre a "estrutura" e eu mesmo como parte dela.
Acho que meu primeiro contato importante com a vida intelectual brasileira foi por intermédio de Oswald de Andrade. Um grupo de garotos, do qual eu participava, tinha realizado o primeiro Congresso Infanto-Juvenil de Escritores, promoção da Biblioteca Municipal e da Biblioteca Infantil. Para preparar o segundo, a ser realizado em Belo Horizonte, convidamos alguns conferencistas. Ruda trouxe seu pai e, depois, me levou para a casa dele. Era dia de festa. Me lembro muito bem, logo ao entrar fui apresentado a dois monumentos: um quadro de Picasso, que pendia da parede e Antônio Candido, debaixo do quadro, sentado numa cadeira e em mangas de camisa. Em seguida fui sendo apresentado a outros.
Frequentar a casa de Oswald foi para mim uma abertura, a possibilidade de conhecer novas ideias, o modernismo, além de abalar meu moralismo pequeno-burguês.
Foi o próprio Oswald quem me encaminhou para o seminário de Vicente Ferreira da Silva. São Paulo naquela época era ainda muito acanhada e provinciana; mesmo os grupos antagônicos se sentiam unidos pelo exercício da "cultura". Vicente lia Platão com seu grupo no qual logo me integrei. Me indicou um livro que, no momento, foi fundamental para mim: Paidéia, de Jaeger. Por mim mesmo, lia um capitulo e a obra clássica correspondente, desde Homero a Platão. Foi minha paixão pelos gregos.
Uma das bibliotecárias da Biblioteca Infantil acabara seu curso de Letras Clássicas na USP. Ela me aconselhou a seguir como ouvinte este curso da Faculdade. Isto resolvia meu problema. Terminara o Ginásio e preferia cursar o Científico, mas o programa de Filosofia incluía Latim. Minha decisão de fazer Filosofia já tinha sido tomada, com a concessão, para a família, de também prestar vestibular para Direto; conexão, obviamente, logo abandonada. Por dois anos frequentei regularmente esse curso, deixando de lado apenas o grego, pois as aulas eram mecânicas demais. Meu interesse maior era pela literatura. Nessa época aprendi a gostar dos clássicos Portugueses e brasileiros. Pensava em especializar-me em estética.
Ao prestar o vestibular (1950) ocorreu a primeira ruptura com Vicente, que se consumou anos depois. Ele me acusava de não acreditarem minha vocação, procurando a escola e a profissão de professor. Encontrei um Departamento de Filosofia muito estranho, ou melhor, duas cadeiras dirigidas por Lívio Teixeira e João Cruz Costa. O primeiro nos obrigava ao exercício maçante da História da Filosofia, o segundo nos encantava com seu charme, suas leituras, seu nacionalismo. Da perspectiva de hoje sou obrigado a reconhecer que minha turma foi injusta com Lívio. Ainda imperava no Departamento o ensaismo deixado por Jean Maugiie, o primeiro professor que veio com a Missão Francesa encarregada de estruturar a Faculdade. Ao lado disso, a preocupação com a filosofia brasileira, cuja ênfase era dada por Cruz Costa e Laerte Ramos de Carvalho, este já interessado em fenomenologia, palavra feia naqueles tempos no âmbito da Rua Maria Antônia.
No entanto, desde a primeira aula, nosso grande mestre foi Gilles G. Granger. Até aquele momento, Granger não conseguira impôr-se, sofrendo a hostilidade velada dos ensaistas e do pessoal de Laerte. Nosso grupo logo mergulhou na Lógica e na Filosofia das Ciências. No mesmo ano conheci Martial Guerroult, que, na qualidade de professor visitante, nos ensinava Leibniz. Era a descoberta da grande História da Filosofia, dos problemas técnicos de análise de texto, enfim, de toda problemática que predominou no Departamento dos anos 60. Em 53, no quarto ano, já me encarregaram de um seminário sobre Lógica, para "tapar o buraco" deixado pela partida de Granger. Substituiu-o Claude Lefort, que nos trouxe para os redemoinhos do pensamento politico.
Nessas circunstâncias, minha ruptura definitiva com Vicente era inevitável. Ela se deu de forma dramática, oswaldiana, numa conferência de Heraldo Barbuy, sobre Hegel, onde não se sabia bem onde acabava a noção de Fuerst e a de Fuehrer. No meio da conferência, gritei: é mentira. Estava na parte superior do auditório da Biblioteca Municipal; logo a saída Vicente investe contra mim gritando: "Tudo isto é trama da Faculdade de Filosofia". A luta entre a Faculdade e os outros filósofos "municipais", como dizia Cruz Costa, era intensa, girando em torno do concurso de cátedra de Filosofia. Cruz Costa era regente e candidato, concorrendo com Vicente e muitos outros. A Universidade conseguiu excluí-los do concurso, alegando que nenhum deles tinha curso especializado de Filosofia. De um lado, foi uma vitória do profissionalismo, mas de outro, o primeiro passo no sentido da burocratização. Voltando a conferência. Um guarda veio e me acompanhou até a saída. Mas na parte de baixo o "pau quebrou" feio entre amigos meus, que nada tinham a ver com o caso, e os adeptos de Barbuy. No dia seguinte, manchete num jornal: Bofetadas por causa de Hegel.
Na secção de Filosofia, a presença forte era de Cruz Costa. Lívio, que somente se impõe a partir da turma de Bento Prado, nos parecia muito escolar. Nosso grupo, politicamente, estava tornado pelo nacionalismo, filosoficamente mergulhava na História da Filosofia e na Epistemologia. Com isso rompíamos com o ensaismo das gerações precedentes, tarefa que nos foi facilitada pela passagem de Laerte Ramos de Carvalho para a Filosofia da Educação. Assim o Departamento ficou sem a geração intermediária, liderada por Antônio Candido, Florestan Fernandes etc., o que nos permitiu ascender rapidamente a posições de liderança. Lembro-me que uma de minhas maiores preocupações era formar uma biblioteca, e não foi sem dificuldades e sem reclamações que comecei a comprar os primeiros textos em alemão, vencendo a enorme desconfiança da francófila de Cruz Costa. Meus amores com este sempre foram intensos e contraditórios. Quando comecei a estudar fenomenologia, e foi por ela que penetrei na Filosofia, Cruz Costa, que não distinguia a posição de Husserl do heideggerianismo sustentado por Vicente, costumava me gozar, dizendo: "Ai vem o Husserl da Alienação". Mas, ao mesmo tempo, me presenteava com as Investigações Logicas, na tradução Morente, livro raro na época.
Era grande honra pertencer aos quadros da Universidade de São Paulo, honra que implicava em prestar serviços gratuitos por anos a fio, a espera de uma vaga. Nas melhores circunstâncias, o professor conseguia um lugar no Ensino Secundário e pedia comissionamento para a Faculdade. Procurei seguir esse caminho. Mas ao tomar posse de minha cadeira de Sociologia, em Ibitinga, surge, para atrapalhar, a eleição de Jânio Quadros, que acaba com essa forma de transferência de verbas. Tinha diante de mim a seguinte opção: permanecer em Ibitinga, com muito tempo para estudar, ou voltar para São Paulo, lecionar na Faculdade e me esfalfar ensinando em colégios particulares. Fiquei por lá. Somente depois de ano e meio, graças ao concurso de Filosofia para o Secundário, pude voltar e retomar minhas funções de professor universitário honorifico.
No entanto, logo em seguida parto para a França, onde continuo a estudar com Granger, descubro o estruturalismo de Goldschmidt e a fenomenologia de Merleau-Ponty. Na volta trouxe "a alma na mala", como dizia Rodolpho Azzi, tal era minha obsessão por uma filosofia da consciência. Meu projeto de escrever um estudo sobre a lógica de Husserl logo se reduz ao trabalho modesto sobre Stuart Mill, dada a urgência em assegurar um lugar independente na Universidade. Também o segundo livro, As Origens da Dialética do Trabalho, responde as premências da vida acadêmica: contém, entretanto, uma intenção polêmica precisa. Dada minha formação lógica, não podia senão recusar a leitura antropologizante de Marx, que estava em voga, de um lado, por causa do peso da esquerda cristã, por outro, graças a influencia do psicologismo retomado pela Critica da Razão Dialética, de Sartre. Esse se tornara o livro de cabeceira de Bento Prado Jr., que sustentava, no grupo interdisciplinar que havíamos formado para ler O Capital, a tese de que a teoria do valor se fundava numa antropologia previa. Meu livro foi escrito contra essa tendência moralizante do marxismo. Aliás, escrever, para mim, significa fazer polêmica.
A tecnização do Departamento seguia a passos largos, principalmente com o impulso dado pelos franceses. Preparávamos nossos quadros na França, junto aos historiadores ligados a Guerroult e, sistematicamente, tínhamos entre nos professores franceses como visitantes ou regulares. Estávamos tão afrancesados que um dia Michel Foucault, que nos expunha as premissas de Les Mots et les Choses, me declarou: "Le Departament de Philosophie cest un departement francais doutre-mer". Na verdade, estávamos criando as condições de um estudo regular da Filosofia, entre nós, mas não deixávamos de formar um quisto em nossa sociedade. Nessas circunstâncias, um conflito era inevitável. Uma primeira investida, ainda muito tímida, ocorreu durante a época do nacionalismo isebiano. Particularmente fui acusado de não dar uma lógica nacionalista. A grande ruptura, entretanto, se deu em 68, quando o Departamento já estava cindido por dentro. Os estudantes seguiam a linha da U.N.E., que procurava obter resultados políticos jogando a Universidade no fogo. Em tese, tinham razão, pois já a Universidade brasileira não tinha muito porque ser preservada. Havia, porém, exceções, grupos dinâmicos, muito importantes para a formação de quadros intelectuais e criação de um novo estilo científico, que a meu ver precisavam ser poupados. Me opus a paridade em todos os níveis, porque ela significava uma politização de todos os comportamentos da vida universitária, pleiteando que, ao menos certas decisões, de ordem pedagógica e de recrutamento, ficassem nas mãos dos professores.
Tentei conciliar política com a manutenção de um ritmo de trabalho, de formas de coerção que os professores, como um grupo de intelectuais, devem impor-se a si mesmos e aos estudantes, desde que esses a aceitem com um todo. Daí minha proposta de paridade nos conselhos universitários, nas congregações, que, entretanto, não deveria se estender aos departamentos. É bem possível que o Departamento de Filosofia estivesse se alienando na teima de exigir de professores e estudantes uma formação técnica muito rigorosa, que poderia até mesmo colocar obstáculos à criatividade. No entanto, é preciso desde já começar a pensar sobre a experiência "gauchista" da Universidade. Um dos problemas básicos, assim me parece, reside na impossibilidade de existir, modernamente, uma instituição social que não comporte uma dose de coação. Ao invés de cairmos na negação mecânica do autoritarismo burocrático, desde logo devemos pensar nas formas possíveis de uma coerção consentida. Um líder estudantil, por exemplo, não é, em virtude de sua liderança, um bom professor de Filosofia.
Um bom professor não é necessariamente um bom pesquisador. Retirar de um Departamento sua capacidade de selecionar bons pesquisadores resultará inevitavelmente num abaixamento do nível técnico de um país e numa forma de coerção intolerável, que será feita assim em nome de uma liberalização. Num departamento paritário, que devera tratar de questões dessa ordem, a metade dos estudantes será meramente passiva e, nessas condições, massa de manobra dos próprios professores. Isto não quer dizer que defenderia, hoje, minhas posições anteriores. Não abro mão, porém, de minha liberdade de discutir a questão como a entendo, sem medo dos radicais infantis.
Voltando a história do Departamento de Filosofia. Grande parte de seus professores ansiava pela experiência da paridade. Não convinha reprimi-los. Graças à abstenção de Oswaldo Porchat e minha, eles obtiveram o número suficiente para alterar o regulamento. Se não tinha mais condições de continuar na chefia desse Departamento, não podia recusar o diálogo com os alunos. Diante do convite cauteloso para que realizasse uma conferência na Faculdade ocupada, respondi com um curso. Era o mesmo curso sobre a dialética que havia desenvolvido durante o ano, agora, porém, desprovido de seu arcabouço técnico. Em nenhuma condição eu deixaria de exercer minha profissão de professor; não recuso qualquer oportunidade de falar sobre as ideias que me obsedam, seja lá onde for.
Logo depois da tormenta, fundamos o CEBRAP. No início, minha intenção era emigrar. Mas, aos poucos, fui me convencendo de que nem todas as condições de trabalho estavam cortadas. Sendo o único filósofo trabalhando nessa instituição, nem sempre encontro meios de discutir as ideias que me são mais caras. O acordo, todavia, entre eu e meus colegas me parece frutífero. De um lado, eles me mostram como se faz ciências sociais no cotidiano; de outro, eu os provoco com minhas inquietações, que sempre estiveram ligadas a possibilidade de uma ciência do homem.
Como é que você interpreta esse estilo de produção teórica, na área das ciências humanas, no quadro cultural brasileiro?
A pergunta importa na medida em que revela o tipo de inserção que procuramos no contexto da vida intelectual brasileira. Não foi apenas o Departamento de Filosofia que enveredou pela precisão e pelo amor as questões técnicas. Outros faziam o mesmo em outras áreas da Universidade. De um lado, procuramos encontrar uma forma mais precisa de argumentação que fugisse aos enganos do discurso ideológico; de outro, tentamos coletar dados com maior precisão. Dai certa desconfiança, por exemplo, contra os intelectuais cariocas da década de 60, tão impregnados que eles foram pela ideologia do ISEB. Nessa época, deixamos de fazer o processo do ISEB, porque acreditávamos, platonicamente, que nosso estilo, por ser verdadeiro, se imporia de per si. Além disso, era-nos difícil, naquele momento, fazer a crítica do nacionalismo. O movimento de 64, porém, não só interrompe a continuidade de nosso trabalho universitário, mas lança uma suspeita sobre nosso próprio estilo. Nosso amor à precisão e a técnica pode ser confundida com a ideologia burocrática. Até quanto a precisão do pensamento, a proposta de racionalidade, não se confunde com a racionalidade do poder? Não estou certo de que, no CEBRAP, estejamos resolvendo a contento as vicissitudes de nossa posição. Ou melhor, muitas vezes, para fugir aos enganos do pensamento burocrático, estamos de novo caindo no ensaismo, quando não acabamos reunindo os dois.
Quais suas atuais preocupações no campo das ciências humanas?
Tenho trabalhado em duas vertentes que, no fundo, constituem duas faces de uma mesma moeda. De um lado, procuro escrever uma série de monografias sobre o pensamento sociológico. Isto é, busco apanhar os vários momentos da reflexão sobre o social, examinando os pressupostos e os quadros a partir dos quais essa reflexão se tece. Assim procedi com Durkheim e agora com o behaviorismo de Skinner. De outro, continuo elaborando minha velha obsessão: a possibilidade de uma dialética materialista. Para isso sou obrigado a retomar o problema que, a meu ver, deu origem a dialética moderna; a saber: a oposição entre juízos determinantes e juízos reflexionantes. Voltar, portanto, a ideia de reflexão. Como na série de monografias tenho sempre em vista esse problema da reflexão, como ele desponta de um modo ou de outro no âmbito de um determinado discurso sobre o social, as duas vertentes se juntam numa única ideia fixa. Parto do pressuposto de que, se a reflexão é a mola em relação a qual uma sociedade se instaura, o pensamento sociológico sempre acaba se defrontando com ela, por mais ideológico que ele seja. Mostrei como em Durkheim a reflexão surge na proposta da sociedade como um ideal que se pensa em si mesmo; em Skinner, na análise do operante e, em particular, na definição de reforço generalizado, quando os termos se definem uns pelos outros.
Você fala do operante que modela ou que exige a reposição da resposta sobre a modalidade do condicionante enquanto incorpora o universo do operando, o ambiente. Em que medida essa reflexão não assume apenas a modalidade kantiana da reflexão?
A meu ver, o grande mistério, o grande interesse das ciências humanas de hoje reside no fato de elas estarem efetuando uma problemática kantiana sem tomar explicitamente consciência dos pressupostos kantianos aos quais estão sempre recorrendo. Na medida em que se exercem, por exemplo, pela oposição entre instituições, formas sociais e a multiplicidade de comportamentos concretos, estão recorrendo a velha noção de entendimento. Mas suas próprias práticas científicas as levam para além de seus quadros teóricos de referenda. Assim é que tentei mostrar como o behaviorismo, ao defrontar-se com o comportamento social, vê-se forçado a pensar os reforços generalizados, base de toda cultura, determinados por uma classe de consequências do operante, que não pode, creio eu, ser pensada por uma lógica de classe. Se a unidade da generalização é criada pelo comportamento, esta unidade comparece como uma forma que não se resume tão somente a uma função de unidade; traz em si uma relação com seus conteúdos, constitui um processo em que o resultado e pressuposto e vice-versa. Tal ciclo da reflexão parece constituir o horizonte das ciências humanas, pondo em xeque os bastidores a partir dos quais elas se teceis. Assim sendo, se assumo, de início, a perspectiva do historiador da ciência, que toma cada teoria como um grande fato lógico, e para logo abandonar esse ponto de vista neutro, obrigado como estou a examinar e ao mesmo tempo criticar as teorias, de uma ótica que me parece constituir o núcleo da reflexão dialética.
Terá a prática uma dimensão em si mesmo reflexão tal como se produz de alguma maneira com o conceito?
Creio que o resultado de meu último ensaio é importante na medida em que, de certo modo, chego "ao fundo do poço". Encontro a reflexão ao nível do comportamento mais elementar. Isto quer dizer que não podemos pensar nenhuma prática humana que não esteja marcada por seus próprios resultados, que surgem então como antecipações, representações, da ação individual. Importa portanto ver como existe um movimento constituinte das categorias, das antecipações e dos conceitos, que o velho Kant só via ao nível do próprio exercício do entendimento. Ora, a recuperação da representação e da presença, feita nesses termos, implica também em romper com a metafísica tradicional: se a forma e antecipação e presença, ela só se mantem e presentifica como poder de síntese graças ao decurso sucessivo, temporal, de tudo aquilo que vem satisfazer as necessidades humanas. A atemporalidade daquilo que Marx chamou de histórica contemporânea a sincronia das estruturas, para falar numa linguagem mais corrente é fruto da estrutura do próprio comportamento.
O pensamento de G. G. Granger se formula, cada vez mais, como uma filosofia da prática. Que proximidades ainda mantem com ele?
Muito de meu pensamento está marcado por Granger, a despeito da enorme distância que hoje nos separa. Para mim, entretanto, chegar ao nível da reflexão é chegar ao problema do trabalho, não da relação sujeito-objeto, mas de todos esses produtos intermediários, desses resultados da atividade produtiva, que determinam tanto a operação individual do trabalho quanto a própria natureza como efetividade. O mundo da instrumentalidade, marcado tanto pelas promessas feitas por cada objeto no sentido de seu uso, quanto pelos obstáculos, que as relações sociais deixam impressas em cada coisa; esse mundo aparece pois como a matriz dos comportamentos sociais. Trata-se de pensar o mundo cotidiano como terminal de um sistema produtivo. Isto equivale a retomar a ideia hegeliana de instrumento como algo que possui uma atividade própria, pedaço da natureza circunscrito pelo trabalho do homem e, por conseguinte, sistema causal a que se imprimiu um fim. Por isso, percorrer o caminho inverso daqueles que pensam o instrumento como inercia, a efetividade, como um prático-inerte.
Se a prática se situa como uma prática reflexionante, como colocar-se face a atualidade do fim da história no seio do pensamento hegeliano?
Fecho o Ardil do Trabalho deixando uma pista por onde espero mostrar que o modo de produção capitalista vem finalizar a reflexão do trabalho. Na medida em que todos os elementos da produção passam a integrar essa reflexão, em particular, na medida em que a terra aparece como se fosse um valor, produto do trabalho humano, a história atinge o "bom infinito" da lógica hegeliana. Agora, porém o absoluto se dá como uma ilusão necessária, mas superável. Isto indica que o fechamento da reflexão ocorre no imaginário, embora não deixe de implicar numa completa reversão no sentido da própria História. O capitalismo, ao englobar todos os outros modos de produção, historializando-os pela sua presença, traz o cumprimento da dialética do trabalho, duma relação do homem com a natureza em que ambos os termos estão subsumidos ao mundo da instrumentalidade. A revolução resulta numa nova relação do homem com o trabalho, porquanto este se liberta do império do instrumento e aquele se abre para uma nova forma de temporalidade.
O desenvolvimento das forças produtivas vem permitir um novo tipo de relacionamento com nossas próprias necessidades. Atualmente cada coisa promete um uso que não se efetua a não ser quando cada um de nos cumpre uma série de relações sociais. Para que possa mergulhar num livro, necessito ir a uma loja, realizar a operação de compra pela qual troco uma parcela de meu salário etc. A todo o momento estamos esbarrando com objetos que ostentam para nós sua fertilidade, que, contudo não se realiza porque antes é preciso cumprir os rituais da dominação. Nesse sentido, a revolução é a festa que reencontra a infância do mundo, não os seus primórdios escondidos nas brumas dos tempos passados, mas esta infância que está a mão, na contemporaneidade das promessas frustradas.
Que pensa da observação de um critico, segundo a qual o projeto de Origens da Dialética do Trabalho, a dialética primitiva do jovem Marx é bastante prejudicada pela ambiguidade do método utilizado do estudo sincrônico, arquitetônico das doutrinas a luz da elaboração progressiva do materialismo dialético como pela ambiguidade do seu objeto, ao mesmo tempo trabalho de história da filosofia, de filosofia e tout-court de filosofia da história?
Diria que essa ambiguidade nasce de uma profissão de modéstia, do reconhecimento de que não existe um discurso sobre a História da Filosofia que não seja simultaneamente Filosofia. Quando pretendo estabelecer os mecanismos pelos quais a dialética do jovem Marx se instaura ou, pelo menos, se esboça, tendo como pressuposto a ideia de um ser genérico do homem, estou privilegiando uma leitura ontológica do marxismo, que como tal não deixa de ser uma leitura. Trata-se, pois, ao mesmo tempo de ler e reviver o texto. Apenas assumo uma posição que me parece estar inscrita em qualquer interpretação, sem me mascarar com a frieza da neutralidade científica.
O "ajuste de contas" com a dialética tem necessariamente de passar por Hegel, Feuerbach e pelo jovem Marx?
Sim, desde que a dialética pense a negação da negação. Obviamente se enveredarmos pela dialética da ambiguidade ou da interrogação, como acontece com o último Merleau-Ponty, então aqueles autores podem ser esquecidos. Da perspectiva em que estou trabalhando, que traz uma recuperação ativa do mundo cotidiano na qualidade de terminal de um sistema produtivo, Hegel permanece o grande mestre.
Mantém ainda a crítica, feita em Contra Althusser, de que o althusserianismo, pelo horror a ontologia, pela substantivação da teoria, enfim, pelo seu positivismo, traz a história para a égide do psicologismo?
É preciso lembrar que escrevi um artigo contra Althusser e não contra o althusserianismo: simplesmente porque este ainda não existia. O artigo foi publicado quando os trabalhos de Althusser ainda eram apenas uma leitura de Marx e não se haviam transformado numa ideologia de certos intelectuais de esquerda que, principalmente na América Latina, revive o formalismo do pequeno-burguês. Mas gostaria de lembrar que a volta a Kant na interpretação de Marx não é só característica do pensamento althusseriano. Habermas e Colletti, em que pese as suas enormes diferenças, caminham na mesma direção. Minha preocupação visa a própria noção de forma em que labora uma dialética materialista. Daí a recusa do ponto de vista epistemológico, que faz do marxismo uma teoria do conhecimento, daí o retorno à problemática de Lukàcs, de uma ontologia do social. Toda a dificuldade reside em perceber como essas formas que permeiam a vida social, transformando-se nos conteúdos em vista dos quais cada um regula seu comportamento, estão marcadas pela ilusão. A tarefa e mostrar como as relações sociais são ao mesmo tempo relações e substanciais processos e objetos de fetiche.
O que deve ser exigido hoje num curso de "formação de filósofos"?
Evidentemente não gostaria de insistir nos requisitos técnicos que todo investigador deve cumprir. Mas a meu ver existe um ponto de partida para toda atividade filosófica: a dissociação das significações cotidianas, as moedas correntes do pensamento ideológico. Não vejo como o investigador moderno, principalmente vivendo nas condições brasileiras, possa deixar de lado essa tarefa de interrogação e, por conseguinte, de oposição a tudo o que e tornado como dado. Resumiria dizendo que a primeira coisa a ensinar num curso de filosofia é formular questões de uma forma rigorosa.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
— ex-professor livre docente do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Autor de John Stuart Mill, o psicologismo e a fundamentação da Lógica (1961) e Origens da Dialética do Trabalho (1966) — este último traduzido para o espanhol e francês. Escreveu vários artigos e ensaios; entre eles destacam-se "O ardil do trabalho" e "O que é fazer", ambos publicados pela revista Estudos, Cebrap, n.°s 4 e 9. Atualmente faz parte de um grupo de pesquisadores reunidos em torno do Centro Brasileiro de Planejamento (Cebrap).
1 Entrevista publicada na Revista Trans/Form/Ação, v. 1, p. 25-36, 1974.
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Trans/Form/Ação
Print version ISSN 0101-3173
Trans/Form/Ação vol.34 no.spe Marília 2011
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732011000300003
Transmitido ao vivo em 07/05/2012