Os
ideais que lhe servem de referência, os modelos identitários a que
aderem, as modalidades de prazer e de sofrimento que organizam sua
existência expressam os traços fundamentais do mundo social em que
vivem.
Nas últimas décadas
este cenário tem sofrido transformações profundas.
O
esvaziamento da política e da ação coletiva, a explosão das
biotecnologias, a espetacularização da vida social, o elogio à
performance etc, têm produzido impactos nos processos de subjetivação,
redesenhando fronteiras tradicionais entre mente e corpo, normal e
patológico, natural e artificial, real e virtual.
Benilton Carlos Bezerra Junior
Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/7875349862267769
Última atualização do currículo em 11/12/2011
Possui graduação em Direito e em Medicina, mestrado em
Medicina Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1982) e
doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (1996).
Atualmente é professor adjunto no Insituto de Medicina
Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisador do PEPAS
(Programa de Estudos e Pesquisas sobre Ação e Sujeito (IMS/UERJ) e
membro da direção do Instituto Franco Basaglia no Rio de Janeiro.
Membro da direção da ONG Casa da Árvore.
Participa como pesquisador do
projeto de cooperação intercultural Brasil/Alemanha PROBRAL (CAPES/DAAD)
sobre o tema
: "O sujeito cerebral: impacto das neurociências na
sociedade contemporânea".
Tem experiência na área de Psicanálise,
Psiquiatria e Saúde Coletiva, atuando no momento com os seguintes temas:
neurociências, psiquiatria e psicopatologia; psicanálise e cultura;
teorias da subjetividade, história dos processos de subjetivação, ética e
clínica em saúde mental, reforma psiquiátrica no Brasil. (Texto informado pelo autor)
A subjetividade humana na sociedade de indivíduos.
Entrevista especial com
Benilton Bezerra
Na manhã do terceiro dia do Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos? Uma platéia atenta assistiu à conferência O futuro da autonomia e a construção de uma sociedade de indivíduos. Uma leitura psicanalítica,
conduzida pelo professor Benilton Bezerra Jr., da UERJ. Em sua
brilhante explanação, Bezerra falou sobre o impacto da autonomia e do
individualismo na subjetividade humana. Para ele, nós vivemos, hoje, uma
situação paradoxal. “Livramo-nos da pressão da tradição, no desejo de
sermos autônomos. Afirmamo-nos como indivíduos quando colocamos a
tradição em segundo plano”. No entanto, paradoxalmente, “somos escravos
de modelos que nos ensinam como devemos agir para sermos indivíduos mais
auto-suficientes e vencedores em nossas atividades diárias”. “Ser
indivíduo é seguir um modelo que nos é imposto”, explica o palestrante,
ao constatar que hoje o individualismo vive uma exacerbação, uma vez que
a modernidade inventou que cada sujeito se constrói a si próprio.
Ao abordar o tema do Simpósio em geral, Bezerra
esclareceu que a autonomia é uma das facetas do individualismo. “Ela nos
transformou em autônomos de forma que tudo na vida se torna opção
individual. Paradoxalmente, nunca uma cultura teve tão forte a
experiência da desassistência. Há sempre um expert em tudo. Nossa
existência se tornou banalidade.”
O “Terceiro” indivíduo, o elemento poderoso em nossa vida, que tinha
um poder inquestionável, tornou-se “líquido”, utilizando a terminologia
de Zygmunt Baumann. “E é isso o que possibilita a
exacerbação da autonomia. Desaparece o impossível, a noção do limite.
Hoje o assombro diante das coisas é cada vez menor”, esclarece o
professor da UERJ.
Ao descrever a sociedade da imagem, Benilton Bezerra afirmou que
“hoje importa muito mais parecer ser alguma coisa. Vivemos na sociedade
da imagem, do espetáculo, da exibição. Temos que estar sempre sorrindo,
sempre felizes, sempre bem, passando essa imagem de bem-estar e
felicidade”.
O professor explicou também o conceito de subjetividade somática,
pelo qual cada vez mais tendemos em radicar em nosso corpo a nossa
individualidade. “Vemos uma proliferação de modificações corporais. Esse
fenômeno cultural mostra a necessidade do ser humano de ser singular.”
Outro conceito importante trazido pelo professor Benilton Bezerra Jr. é o
da cultura do sujeito cerebral, que está emergindo em nossos dias.
“Tendemos a pensar nossa subjetividade orientada pelo cérebro, que passa
a ser o sujeito de nossas ações”.
Confira, a seguir, uma entrevista especial realizada pela redação da IHU
On-Line com o professor Benilton, logo após sua conferência no Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos? IHU On-Line - O senhor pode descrever um pouco a situação paradoxal em que vivem os indivíduos da sociedade contemporânea? Benilton Bezerra Jr. - Esse paradoxo pode ser
descrito de duas maneiras. Uma primeira em relação ao individualismo e
uma segunda em relação à autonomia. Em relação ao individualismo, o
paradoxo consiste no fato de que o valor do indivíduo e do
individualismo surgir no momento em que as pessoas começaram a se
desvencilhar das marcas e das determinações da tradição, da religião, da
família. O indivíduo propriamente dito surge na modernidade, como
alguém que se funda, se constitui a si próprio na sua trajetória pessoal
durante a vida. Você faz aquilo em que irá se reconhecer como sendo
seu. Na origem, o individualismo é uma tomada de posição, uma abertura
de possibilidade para que o sujeito confronte a tradição, a
determinação. O paradoxal hoje é que isso, que antes era algo subversivo
em relação à realidade social prévia, virou a norma, a ideologia
dominante. Todo mundo precisa ser indivíduo e ser singular. É uma
obrigação, não é mais uma conquista. Com isso, temos essa situação
paradoxal de que o indivíduo que se constituiria por contraste à
tradição é agora instado a se construir conforme a tradição do
individualismo. Trocamos uma servidão por outra. A diferença é que,
antigamente, você era filiado inequivocamente a coisas que tinham uma
dimensão simbólica muito mais ampla. Hoje em dia, esse individualismo
não se constrói pela adesão a algum valor mais alto. Não são ideais; são
modelos. Não são princípios em relação aos quais você se mede; são
modelos que você tem que repetir.
Do lado da autonomia, o paradoxo consiste no fato de que, com o
desenvolvimento do individualismo e da radicalidade da crítica moderna a
todas as determinações sobre os indivíduos, hoje em dia, vivemos uma
cultura na qual, de fato, as pessoas se sentem cada vez menos
submetidas, de maneira superior a sua vontade, a princípios, normas,
valores, etiquetas e ideais. Todos nós somos mais autônomos do que nunca
para fazermos as nossas escolhas. Tudo depende das escolhas que
fazemos. Isso aparentemente faz com que devêssemos nos sentir mais
autônomos, mais capazes de decidir. Mas curiosamente – aí é que está o
paradoxo – numa cultura onde todo mundo é autônomo, a grande parte das
pessoas se sente desassistida, precisando da assistência de alguém que
diga o que deve fazer, qual é a escolha certa. Aí entram os experts em
tudo, com o “discurso competente”, que explicam à mãe se ela deve ou não
dar comida de sal “na marra”, ou se deixa o filho escolher, explicam
que tipo de roupa é adequada para suas pretensões sociais, que tipo de
música se deve escutar. Isso causa uma espécie de enfraquecimento de
algo fundamental na vida de todo mundo que é a possibilidade de sentir a
marca pessoal nas escolhas. Nós nos sentimos instados por uma força
anônima, que nos conduz a querer fazer as coisas certas, adequadas.
IHU On-Line - O que caracteriza a exacerbação do individualismo e quais as conseqüências disso para a subjetividade dos indivíduos? Benilton Bezerra Jr.– Esse fenômeno tem a ver com o
fato de o indivíduo dispensar qualquer referência a um estatuto
simbólico de uma força transcendente, da política, ou da religião. O
sujeito tenta acreditar que pode viver plenamente no plano puro da
imanência do cotidiano, das escolhas feitas a cada momento. Essa
exacerbação tem um efeito muito importante entre muitos: é o fato de que
isso modificou bastante os nossos ideais de felicidade, de realização
pessoal. O que antes – na modernidade e na pré-modernidade – era medido
com a referência a certos padrões e expectativas vinculadas a itens
simbólicos, hoje está cada vez mais vinculado à posse, à conquista e à
fruição de objetos. Esse individualismo levado ao extremo faz com que o
sujeito se veja sempre numa espécie de luta incessante para poder se
reafirmar, não pela filiação a algo maior do que ele, mas pela posse
contínua de bens que têm uma insígnia fálica, com uma obsolescência
social e psicológica muito rápida. Você compra qualquer coisa e aquilo,
em pouco tempo, está obsoleto. É a busca por qualquer coisa que nos dê
socialmente a imagem de sucesso. Por isso, essa adesão frenética a
dietas e todo esse cultivo do corpo.
IHU On-Line - O senhor fala em uma outra forma de sociabilidade humana. Como seria essa nova sociabilidade, essa outra forma do ser humano? Benilton Bezerra Jr.– Um dos traços dessa nova
sociabilidade é a importância cada vez maior concedida à corporeidade, à
dimensão somática da existência pessoal, nas trocas entre as pessoas.
Por exemplo, a questão da imagem do corpo vem sendo cada vez mais
importante em detrimento das características psicológicas e dos valores.
É a moralização crescente dos atributos físicos. Outro traço dessa nova
sociabilidade é o que alguns autores chamam de biosociabilidade: o fato
de que, nessa mesma esteira da importância do corpo, temos a construção
de identidades a partir de itens que são referidos ao corpo. Outro
aspecto dessa nova forma de subjetivação é o lugar dos objetos na vida
do sujeito em relação a si próprio e em relação ao outro. Os objetos
passam a ser uma parte importante da construção da própria identidade. E
também numa sociedade e numa cultura onde todos estão numa luta
incessante pela posse de objetos que não são para todos, o outro passa,
cada vez menos, a ser visto como semelhante e cada vez mais a ser, das
duas, uma: ou um espelho, no qual eu fico me reconhecendo, ou um rival,
que disputa comigo a posse daqueles bens que são escassos.
IHU On-Line – Qual é o futuro de uma sociedade assim? Benilton Bezerra Jr. – Não podemos dizer, porque
acontecem mudanças na história que são imprevisíveis. Ninguém previu a
queda do muro de Berlim em 1989. Ela precipitou mudanças, da mesma forma
que ninguém previu a invenção da internet e ela está mudando também a
nossa vida social. O que podemos dizer é que, quaisquer que sejam as
mudanças profundas que aconteçam, nós podemos, pelo menos, apostar na
idéia de reconquistar a atividade política no sentido mais amplo da
palavra: a política entendida como o engajamento na reflexão e na ação
que visa a construção de existências pessoais e coletivas mais
desejáveis no futuro. É o exercício de imaginar cenários mais desejáveis
no futuro do que o presente, tanto no plano pessoal quanto no plano
coletivo.
IHU On-Line - Onde fica, nessa sociedade individualista, a solidariedade, a fraternidade e os valores cristãos? Benilton Bezerra Jr.– O que pode alavancar uma ação
que permita o pensamento crítico e o uso consensuado das tecnologias é a
presença, no imaginário social e na prática subjetiva, de certos
valores que transcendem esse plano da imanência do uso dos objetos, da
fruição, das sensações. Esse é o desafio não só do cristianismo, mas do
budismo e do pensamento político laico, que também perdeu suas
referências. A grande política, a política laica, mesmo atéia do século
XVIII para cá, é herdeira dessa transcendência religiosa. O cristianismo
foi o primeiro movimento humano a inventar essa idéia de que todos são
iguais. E isso está na base do pensamento democrático. O desafio do
cristianismo hoje é conseguir estar à altura desse tipo de questão e
como responder a esse desafio mantendo algum equilíbrio com a
necessidade de auto-preservação da instituição Igreja, com suas regras.
IHU On-Line - Se não são mais os mesmos ideais e sonhos que unem os seres humanos, o que nos une e faz de nós seres iguais? Benilton Bezerra Jr. – A verdade verdadeira é que nós não somos iguais. Somos todos muito diferentes.
IHU On-Line – Então, hoje o que assemelha os seres humanos é a preocupação com os próprios interesses individuais? Benilton Bezerra Jr. – É, o que torna todo mundo
incapaz de compartilhar de horizontes coletivos. O que pode reabrir a
possibilidade de compartilharmos horizontes coletivos é, por exemplo, a
salvação do Planeta. De fato, nunca houve antes o reconhecimento de que,
ou agimos em comunhão para salvar a Terra, ou vamos acabar com ela.
Isso é recente. Não é papo de “verde”, de um grupelho de pessoas. É uma
questão fundamental, pois está no centro da possibilidade da gente
prosseguir vivendo.
IHU On-Line - O senhor poderia explicar a cultura do sujeito cerebral? Qual sua relação com a subjetividade humana? Benilton Bezerra Jr. – O termo “sujeito cerebral” foi criado por um colega do Instituto Max Planck, de Berlim, Fernando Vidal.
Aparece também sob outras designações, como “homem cerebral” e “homem
neuronal”. São várias formas de apontar para uma realidade
antropológica, que é essa em que, cada vez mais, as pessoas vão
identificando-se com o próprio cérebro. Ou seja, o cérebro vai se
tornando não apenas um órgão corporal. Ele passa a ser pensado e sentido
como a sede da nossa identidade. Eu não sou mais uma pessoa que tem um
cérebro. Eu sou um cérebro que me faz pela experiência de ser uma
pessoa. Isso se expressa em várias dimensões. Há uma dimensão teórica
que tenta fazer do cérebro o denominador comum dos fenômenos mentais,
sociais, antropológicos, etc. O cérebro passa a ser uma espécie de
personagem, um ator social. O que atribuíamos ao sujeito, passa a ser
atribuído ao cérebro. De forma prática, isso se expressa pela quantidade
cada vez maior de intervenções biológicas na subjetividade, sobretudo
medicações, e também com a introdução de novas tecnologias de
intervenção.
IHU On-Line – Como o senhor avalia os temas discutidos no Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos? Benilton Bezerra Jr.– Esse é o tipo de iniciativa
que precisa ser reduplicada e difundida ao máximo. É disso que sentimos
falta: poder juntar essas pessoas para discutir questões comuns e que
transcendem às competências específicas de cada grupo.
A Paixão Segundo São Mateus (Johann Sebastian Bach)
A Paixão Segundo São Mateus Johann Sebastian Bach (com legenda em português) duração: 2 h 43 min 18s Kolner PHILHARMONIE Solista: Christoph Pregardien (Evangelista)
Informações do site; wikipedia
A
Paixão Segundo São Mateus BWV 244 (em latim: Passio Domini nostri Jesu
Christi secundum Evangelistam Matthaeum), conhecida na Alemanha pelo
nome de Matthäuspassion, é um oratório de Johann Sebastian Bach, que
representa o sofrimento e a morte de Cristo segundo o Evangelho de São
Mateus, com libreto de Picander (Christian Friedrich Henrici). Com uma
duração de mais de 2 horas e meia (em algumas interpretações, mais de 3
horas) é a obra mais extensa do compositor. Trata-se, sem dúvida alguma,
de uma das obras mais importantes de Bach e uma das obras-primas da
música ocidental.
A Paixão segundo São Mateus consta de duas grandes
partes constituídas de 68 números, em que se alternam coros(5), corais,
recitativos, ariosos e árias. A Paixão Segundo São Mateus de Bach foi
escrita, provavelmente, em 1727. Apenas duas das quatro (ou cinco)
composições sobre a Paixão de Cristo, que Bach escreveu, subsistiram
integralmente; a outra é a Paixão Segundo São João. A obra foi
apresentada pela primeira vez na Sexta-feira da Paixão de 1727 ou na
Sexta-feira da Paixão de 1729 na Thomaskirche (Igreja de São Tomás) em
Leipzig, onde Bach era o Kantor. Ele a revisou em 1736, apresentando-a
novamente em março desse mesmo ano, incluindo dessa vez dois órgãos na
instrumentação.
A Paixão segundo São Mateus não foi ouvida fora
de Leipzig até 1829, quando Felix Mendelssohn apresentou uma versão
abreviada em Berlim, com grande aclamação. A redescoberta da Paixão
segundo São Mateus através de Mendelssohn conduziu a música de Bach —
principalmente as grandes obras — à atenção pública e acadêmica que
persiste até os dias atuais.
Estrutura Muitos
compositores escreveram composições sobre a Paixão de Cristo no século
XVII. Como outras Paixões em forma de oratório, a composição de Bach
apresenta o texto bíblico de Mateus, capítulos 26 e 27, de um modo
relativamente simples, usando, prioritariamente, recitativos, enquanto
nas árias e ariosos emprega textos poéticos, que comentam os vários
eventos da narrativa bíblica.
Dois aspectos distintos da
composição de Bach brotam de seus outros esforços eclesiásticos. Um
deles é o formato de coro-duplo, que se origina em seus próprios motetos
a coro-duplo e os muitos motetos desse tipo, escritos por outros
compositores, com os quais ele iniciava rotineiramente os cultos
dominicais. O outro é o uso abundante de corais, que aparece na
composição padrão a 4 partes, como interpolações em árias, e como um
cantus firmus em extensos movimentos polifônicos, notadamente "O Mensch,
bewein dein' Sünde groß," a conclusão do primeiro meio-movimento que
essa obra tem em comum com a sua Paixão segundo São João — e o coro
inicial, Kommt, ihr Tochter, helft mir Klagen, no qual o soprano in
ripieno coroa a colossal edificação da tensão polifônica e harmonica,
cantando um verso do coral O Lamm Gottes, unschuldig (atribuído a
Nikolaus Decius (1541).
Os manuscritos remanescentes consistem de
oito partituras concertate, usadas por oito solistas que também atuavam
nos dois coros, umas poucas partes extras, e uma parte para o soprano
in ripieno. Ao contrário da Paixão segundo São João, onde existem partes
de ripieno dobrando os coros, existe pouca evidência de que se usavam
cantores adicionais além dos solistas que cantavam nos coros.
A
narração dos textos do Evangelho é cantada pelo tenor Evangelista em
recitativo secco acompanhado apenas pelo contínuo. Solistas cantam as
palavras de vários personagens, mesmo em recitativos; além de Jesus, há
partes designadas para Judas, Pedro, Caifás (o sumo sacerdote), Pôncio
Pilatos, mulher de Pilatos, e duas ancillae (serventes), embora nem
sempre sejam cantadas por diferentes solistas. A esses "personagens"
solistas são frequentemente designadas árias além de cantarem no coro,
prática nem sempre seguida pelos intérpretes modernos. Dois duetos são
cantados por um par de solistas, representando dois falantes
simultâneos, e um grande número de passagens para vários falantes,
chamados turba (ou multidão), são cantadas por um dos dois coros. As
passagens da turba não são recitativos, mas são música métrica
convencional.
Os recitativos cantados por Jesus são
particularmente diferentes, pelo fato de serem acompanhados não apenas
pelo contínuo, mas por toda a seção de cordas da 1ª orquestra
(recitativo acompagnato), usando notas longas e criando um som
sustentado chamado frequentemente de "halo" de Jesus. Apenas as palavras
finais Eli, Eli, lama sabactani (Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?), são cantadas sem esse "halo".
Quinta, 17 de abril de 2014
O grito de Jesus na cruz e seus ecos na contemporaneidade.
Entrevista especial com Francine Bigaouette
“Esse mistério do
rebaixamento de Cristo a ponto de cair no abismo do abandono por Deus
nos é posto à disposição no aqui e agora da nossa existência, graças à
Eucaristia, que atualiza o sacrifício pascal de Cristo”, diz a teóloga.
Especialmente na Semana Santa, momento em que, tradicionalmente, os católicos celebram a Paixão, o sofrimento, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo, entre o Domingo de Ramos e o Domingo da Páscoa, “a escuta do grito de Jesus
crucificado nos permite vivenciar a perturbadora descoberta de que,
quando experimentamos de diversas maneiras o poder do mal e da morte,
temos o direito de pensar que somos abandonados por Deus, de nos sentir
entregues por Ele e de lhe perguntar por que, sem que isso viole a
qualidade de nossa confiança e de nossa esperança Nele”, assinala Francine Bigaouette, teóloga canadense, nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Autora da tese de doutorado intitulada Le cri de déréliction de Jésus en croix. Densité existentielle et salvifique (Editions du Cerf, 2004), na qual propõe uma reflexão sobre o grito de Jesus na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, Francine
ressalta que, diante das nossas indagações em relação ao silêncio e
abandono de Deus nos momentos de sofrimento, “ao mesmo tempo, porém,
descobrimos que as situações existenciais de abandono que vivenciamos
não podem mais ser interpretadas como a expressão da ausência de Deus,
de sua indiferença, de seu recuo, de seu castigo. Aqui, sem negar a
ambiguidade trágica da existência humana em certos momentos, Jesus nos chama para uma conversão radical do nosso juízo sobre Deus e nós mesmos”.
Na interpretação da teóloga, é justamente no instante da morte de Jesus na cruz que “é desvelada a face de um Deus que luta contra a hostilidade dos adversários do Filho,
mostrando-lhes o que é feito de seu amor quando eles o rejeitam: não a
vingança, mas a misericórdia. (...) Ele, Deus, vem para suscitar nesse
lugar a resposta que o ser humano, entregue a si mesmo, é incapaz de lhe
dar: a resposta da fé. No clamor de Jesus na cruz, o silêncio de Deus
diante da morte de seu Filho se faz ouvir como a palavra-ápice pela
qual Ele nos revela a profundeza inaudita de seu respeito e de seu amor
por nós”.
Francine Bigaouette nasceu em 1961 na cidade de Quebec, no Canadá. Entrou para a ordem religiosa em 1985, na Congregação das Dominicanas Missionárias Adoradoras. Realizou seus estudos de teologia na Faculdade de Teologia e Ciências Religiosas da Universidade Laval, em Quebec. Sua tese de doutorado foi publicada sob o título Le cri de déréliction de Jésus en croix. Densité existentielle et salvifique (Editions du Cerf, 2004). É missionária no Peru há cerca de 10 anos. É professora de teologia no Seminário da diocese de Chosica e colabora para a formação de jovens religiosos e religiosas dessa diocese.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é o significado do grito de Jesus na cruz diante da morte: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste”?
Francine Bigaouette - Esta questão é vasta, muito vasta. É o tema da minha tese, que foi publicada com o título Le cri de déréliction deJésus en croix. Densité existentielle et salvifique [O grito de derrelição de Jesus na cruz. Densidade existencial e salvífica].
No subtítulo, decidi empregar o termo “densidade”, em vez de
“significado”, pois não se pode esgotar o significado desse grito.
Precisaríamos estar na consciência e no coração de Cristo morto na cruz e ressuscitado em Deus
para realmente entender essa palavra-grito. À luz dos diferentes
elementos do texto das Sagradas Escrituras, em que se situa essa
palavra-grito, assim como à luz da identidade filial de Cristo, enviado pelo Pai para instaurar seu Reino,
podemos, contudo, ouvir essa palavra-grito e tentar ter acesso à sua
compreensão. Nos limites desta entrevista, vou me ater a alguns
elementos que me parecem fundamentais para tentar responder à pergunta:
“o que significa o grito de derrelição de Jesus na cruz?”.
Abandono de Deus
Primeiramente, é importante considerar o conceito bíblico de abandono por Deus. Quando Israel ou um fiel se diz ou é dito abandonado por Deus,
trata-se concretamente, para eles, da dolorosa e angustiante
experiência de uma ausência de socorro, da intervenção libertadora de Deus
numa situação de sofrimento ou opressão. Esta situação é geralmente
percebida como a resposta divina ao abandono primordial, inicial, de
Deus pelo ser humano, pois Deus, de acordo com a promessa feita aos
padres e à Aliança que estabeleceu com Israel, não abandona o seu povo ou seu fiel se estes permanecerem ligados a Ele e a sua Lei.
Este binômio “abandono de Deus pelo ser humano—abandono do ser humano por Deus”, sendo o primeiro termo a causa do segundo, é, no entanto, vigorosamente questionado por Jó.
Este homem, despojado de todos os seus bens, vive a experiência de um
abandono por Deus, mesmo sabendo ser justo e fiel ao seu Deus.
Bem mais do que isso, ele clama seu desatino e sua revolta diante do
espetáculo insuportável da prosperidade de muitos ímpios e do destino
desafortunado de muitos justos. Embora Jó não obtenha resposta de Deus
para suas perguntas, este lhe dá razão perante os amigos, que defendem a
tese tradicional da relação de causa e efeito entre pecado e
infortúnio. No quarto Cântico do Servo em Isaías, assim como no capítulo
7 do segundo Livro dos Macabeus,
defrontamos-nos com os justos que sofrem, não por causa de seus
pecados, mas pelos pecados do povo. Por fim, no Livro da Sabedoria, é
claramente declarado que, ao contrário do que parece, o justo que
experimenta a perseguição e a morte não foi abandonado por Deus. Sua experiência é uma provação que o conduzirá a uma vida de intimidade com Deus. O fato de ser abandonado por Deus não significa, pois, necessariamente, que Deus não esteja mais presente para o ser humano, que não esteja mais com ele.
Compreensão do Salmo 22
Para entendermos o sentido do grito de derrelição de Jesus na cruz,
além de considerar os diversos sentidos do conceito bíblico de abandono
por Deus, precisamos também tentar responder à seguinte pergunta: no
grito de Jesus “meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, devemos ouvir apenas o versículo 2 do Salmo 22,
ou o Salmo inteiro evocado pela menção de seu primeiro versículo?
Conforme optamos por uma possibilidade ou por outra, parece-me que não
podemos evitar uma interpretação diferente do abandono por Deus vivenciado por Jesus. De fato, se a citação indica que Jesus
recitou todo o Salmo, seu grito significa então que ele se sentiu
momentaneamente abandonado por Deus, mas que morreu com os mesmos
sentimentos do justo do Salmo 22, louvando a Deus por sua salvação, numa
confiança tranquila livre de qualquer angústia. Ao contrário, se a
palavra-grito posta nos lábios de Jesus consiste apenas no versículo 2
desse Salmo, então Jesus é tido como aquele que morre vivenciando a
experiência do abandono divino.
Alguns pesquisadores, baseando-se em dados veterotestamentários e no uso da Mishnah [1], pensaram que o grito de Jesus em Mc 15:34
eram as primeiras palavras do Salmo, servindo de título para referir-se
ao Salmo inteiro. Tal hipótese apresenta, contudo, como assinala a
exegeta Lorraine Caza, duas dificuldades que requerem
certa reserva. Por um lado, não se dispõe de bases de apoio provenientes
da literatura do século primeiro da nossa era e, por outro lado, não é o
início, mas o versículo 6 do Salmo 31 que o evangelho de Lucas põe nos lábios de Jesus em agonia.
Observou-se também que, para os antigos
leitores judeus ou cristãos, um texto citado evocava o texto inteiro. E
como o último terço do Salmo expressa a confiança final do desventurado,
pode-se então pensar que Jesus tenha dado a entender que, depois do
desamparo, viria a salvação. Porém, de acordo com o exegeta Xavier Léon-Dufour [2], isso não prova que a citação desse Salmo em Mc 15, 34 implique, enquanto tal, o teor de toda a oração. De fato, diferentemente de outra passagem em seu Evangelho (Mc 14, 27), Marcos não diz que Jesus cita o Salmo. Além disso, a expressão em aramaico “Élôï, Élôï, lema sabachthani” não favorece uma citação literal do texto sagrado escrito em hebraico.
Soma-se a esses argumentos outro que me parece determinante: aquele proposto por Aletti [3].
Este ressalta que as súplicas sálmicas são geralmente construídas
conforme o seguinte esquema: a descrição da situação difícil do orante
ou das razões do apelo dirigido a Deus segue a esse apelo. É justamente o
que acontece no Salmo 22. No relato da cruz, em Marcos (mas também em
Mateus), é a situação descrita pelo narrador que precede o grito de
Jesus endereçado a Deus.
"Jesus está eternamente fixado nesse ato que o levou a se entregar ao Pai"
O “por quê?” e a confiança em Deus
Essa retomada, na narrativa da cruz, do esquema invertido do Salmo 22 leva Aletti a interpretar o grito de Jesus em função da sequência que precede e na qual estão enumeradas as razões que conduzem Jesus a se dirigir ao seu Deus. A organização invertida dos elementos do Salmo 22 na narrativa da crucificação parece excluir o fato de que seu grito seja um simples intitulado, sugerindo a recitação inteira do Salmo que termina com o louvor. Ao contrário do orante do Salmo 22, Jesus, que não foi libertado por Deus da experiência da morte, entrega sua alma levando no coração a seguinte pergunta: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”.
Abandonado por Deus ao poder mortífero daqueles que o condenaram, Jesus expressa também, com o seu “por quê?”,
que, no cerne dessa experiência da não intervenção de Deus para
libertá-lo, ele se sente no abandono de Deus, deixado por Ele, sem
compreender por quê.
Isso não significa que Jesus tenha deixado de depositar toda a sua confiança e esperança em Deus.
Como o orante do Salmo 22, Jesus se dirige a Deus
como o único capaz de responder ao seu tormento, apesar do aparente
abandono. Em seu coração, ele continua esperando, contra qualquer
esperança: Deus permanecerá seu Deus, até mesmo na morte!
Diferentemente do justo do Salmo 22, Jesus não suplica ao Pai que interceda em seu favor. Ele já o fizera no Jardim de Getsêmani: “Abba! (Pai)!
Tudo é possível para ti: afasta de mim este cálice”. Mas numa total
adesão à vontade do Pai: “Contudo, não seja o que eu quero, e sim o que
tu queres” (Mc 14:36). O cálice não foi afastado, e Jesus consentiu em beber, entregando-se ao misterioso desígnio de Deus.
Na cruz, então, como poderia ele suplicar a Deus que o libertasse, que
encerrasse o silêncio? Sua súplica não é mais um pedido urgente para que
tal destino lhe fosse poupado. É, de certa maneira, o ato pelo qual ele
expressa a tensão de todo o seu ser na direção Daquele que é o Amor de
sua vida, Deus desejado à noite.
Essa tensão de todo o ser de Jesus em direção a Deus adquire um caráter único. Por certo, como seus irmãos e irmãs israelitas, Jesus está visceralmente ligado ao Deus da Aliança. Mas, para ele, essa comunhão com o Deus vivo é de ordem única: ele é o Filho amado (cf. Mc 1:11; 9:7), que pode dizer em seu coração: “Abba! Pai!” (cf. Mc 14:36);
é aquele cujo ser e cuja vida identificam-se com o anúncio do Reino de
Deus por vir. Nessa perspectiva, ao mesmo tempo em que é solidário com
todos os pobres e perseguidos que enviaram a Deus suas súplicas
confiantes, o sofrimento vivido por Jesus crucificado em sua relação com
Deus se revela muito peculiar: é o sofrimento do Filho.
IHU On-Line - Como Deus se revela no grito de abandono do Filho? Como, a partir do clamor
de Jesus na Cruz, podemos ouvir o Deus que está em silêncio e, ainda,
qual o significado do silêncio de Deus diante da morte do Filho?
Francine Bigaouette - Na cruz, Jesus
foi submetido a uma experiência de obscurecimento da face do Pai, pois o
Pai, segundo seu misterioso desígnio, deixou o pecado dos humanos se
abater com todo o peso sobre seu Filho, mergulhando-o assim no sofrimento de uma aparente separação definitiva do Pai. No entanto, Jesus
não sucumbiu à tentação de pensar que Deus é como parece ser nessa
experiência: um Deus que o rejeita, o amaldiçoa, o priva de sua presença
e de seu amor; um Deus ausente diante de seu drama. Muito longe de cair
nessa tentação, Jesus superou a provação, consentindo em manter, sob o
olhar do Pai, a atitude própria do Filho que reconhece e confessa, como
demonstra seu grito, que essa situação não lhe confere o direito de se
fiar unicamente em suas visões humanas para dizer o que cabe a ele e ao
Reino. A soberania do amor pelo Pai pode parecer ter se tornado uma pura
quimera sob o efeito obscuro de sua rejeição pelos humanos, mas isso
não significa que o seja efetivamente. O amor pelo Pai,
que o faz subsistir como Filho o torna impermeável a qualquer declínio
de sua confiança e de sua esperança na onipotência desse amor.
Revelação de sua identidade filial, a morte de Jesus, no abandono por Deus, parece também constituir uma teofania. Em sua narrativa, Marcos associa estreitamente o acontecimento da morte de Jesus
com o rasgo da cortina do santuário: “Então Jesus lançou um forte grito
e expirou. Nesse momento, a cortina do santuário se rasgou de alto a
baixo, em duas partes” (15, 37-38). O mesmo Deus cuja
face não podemos ver sem morrermos rasgou a cortina e mostrou sua face
no ato-ápice em que Jesus, entregando-se ao Pai até a
morte, manifestava o que significa para ele ser o Filho. O abandono
[entrega] de Jesus a Deus, na própria experiência de seu abandono por
Deus, revela-se, então, enquanto última atualização de sua identidade
filial, como a manifestação suprema de Deus Pai que dá seu Filho à
morte, e à morte na cruz. É então desvelada a face de um Deus que luta
contra a hostilidade dos adversários do Filho, mostrando-lhes o que é
feito de seu amor quando eles o rejeitam: não a vingança, mas a
misericórdia. Em Jesus na cruz como amaldiçoado de Deus, em Jesus em
sofrimento por sentir-se definitivamente separado do Pai, Deus
vem justo ao lugar em que se encontra aquele que não está ou deixou de
estar em relação com Ele e que, por essa razão, deveria ser, segundo a
Lei, abandonado e rejeitado por Ele. Deus vem para suscitar nesse lugar a
resposta que o ser humano, entregue a si mesmo, é incapaz de lhe dar: a
resposta da fé. No clamor de Jesus na cruz, o silêncio de Deus diante
da morte de seu Filho se faz ouvir como a palavra-ápice pela qual Ele
nos revela a profundeza inaudita de seu respeito e de seu amor por nós.
"Cristo cativa todos nós, cativa e une em seu sacrifício todos os sofrimentos pelos quais chora nossa humanidade"
IHU On-Line - O que significa o conceito de entrega no cristianismo no sentido do Pai que entrega o Filho por nós?
Francine Bigaouette -
Não poupando o Filho do destino que seus inimigos pretendiam lhe
infligir, Deus foi ao extremo de suas exigências do dom de seu Amado.
Quis assim nos conceder a vida nova de seu Reino, engajando-se
plenamente na realidade histórica da nossa condição humana, e isso
implicava que Ele assumisse, no próprio ato desse dom, a recusa daqueles
aos quais Ele enviava seu Filho e as consequências cruéis dessa recusa.
“Na ‘entrega’ dolorosa, escreve Bruno Forte, Deus se inclina totalmente para o homem: é o sinal ‘finito’ do despojamento ‘infinito’ de seu amor por nós” [4].
Considerado do ponto de vista de Jesus, esse engajamento do Pai
sem arrependimento pode, no entanto, nos deixar um tanto perplexos. Sua
ação em favor dos humanos não seria exercida em detrimento de seu
Filho? E se assim o fosse, a entrega de Jesus por Deus
não manteria certa cumplicidade com o ato de Judas, dos grandes
sacerdotes e dos anciãos que rejeitaram Jesus na morte? Para responder a
essa pergunta, parece-me importante assinalar, primeiramente, esse dado
muito esclarecedor da narrativa evangélica: Jesus aparece aí como só
podendo ser realmente entregue por Deus às mãos de seus adversários em
virtude de seu discernimento do desígnio de Deus e de seu livre
consentimento em seguir o caminho do sofrimento, da rejeição e da morte (cf. Mc 8, 31-35; 9, 30-31; 10, 32-34). Ante a incredulidade e a hostilidade que ele encontra da parte daqueles que ensinam e governam o povo, Jesus
compreende que não pode, preocupado em salvar sua vida, furtar-se à sua
missão, ou renunciando a ela ou adaptando-a às expectativas e às visões
de seus ouvintes. Nele, a vontade salvífica do Pai
encontra uma consciência e uma liberdade humanas que lhe são
perfeitamente concedidas a partir do interior, pois são as do Filho,
cujo Eu é Acolhida do Pai e Entrega de si a esse Pai.
Quando afirmamos que Deus
foi ao extremo das exigências do dom sem arrependimento por seu Filho,
não lhe poupando o destino que seus adversários queriam lhe infligir,
isso não significa de modo algum que esse dom fosse realizado em
detrimento de seu Amado. Para o Pai, entregar Jesus nas mãos de seus
inimigos é certamente entregá-lo ao poder deles até a morte, e a morte
na cruz, mas lhe comunicando, nesse mesmo ato, o amor que o faz
subsistir no dom de si mesmo. Da mesma maneira, para Jesus,
manter-se fiel à missão recebida do Pai não constitui uma obrigação
imposta do exterior, mas uma exigência que brota de seu coração, uma vez
que sua missão é interior ao seu próprio ser, ao seu Eu de Filho que
vive do próprio amor do Pai. Entregue pelo pai, Jesus só é realmente
entregue ao se entregar ele mesmo sob o domínio do amor do Pai, que o
faz subsistir no dom de si mesmo.
IHU On-Line - Como
compreender o paradoxo do Deus que se rebaixa, se esvazia e se aniquila
na condição humana, morrendo solitário na cruz?
Francine Bigaouette- A chave da compreensão desse paradoxo nos é dada por Deus mesmo, ao revelar, pelo seu rebaixamento, quem Ele é. Ele é Amor (1 Jn 4,8), Amor absoluto. O amor Nele não é um simples atributo; é sua própria essência, sua vida divina, comunhão do Pai com o Filho no Espírito. Sendo o Amor
absoluto, Deus tem o poder de assumir o que é totalmente distinto Dele,
tornando-se um de nós, além do poder de assumir o que lhe é
radicalmente contrário: o pecado, assumindo até o fim as consequências
de sua encarnação num mundo que lhe é hostil. Sua transcendência
absoluta, o caráter insondável de seu mistério manifestam-se, mais além
de qualquer concepção e imaginação humanas, em sua capacidade de
tornar-se pequeno, pobre, de pôr-se ao nosso alcance e de manifestar-se
em todo o seu esplendor no mesmo momento em que a morte parece tê-lo
vencido definitivamente.
IHU On-Line - Em que medida o
grito de Jesus na cruz é também o nosso diante da condição humana? Como
esse grito explica a relação humana com Deus?
Francine Bigaouette - A escuta do grito de Jesus
crucificado nos permite vivenciar a perturbadora descoberta de que,
quando experimentamos de diversas maneiras o poder do mal e da morte,
temos o direito de pensar que somos abandonados por Deus,
de nos sentir entregues por Ele e de lhe perguntar por que, sem que
isso viole a qualidade de nossa confiança e de nossa esperança Nele. Ao
mesmo tempo, porém, descobrimos que as situações existenciais de
abandono que vivenciamos não podem mais ser interpretadas como a
expressão da ausência de Deus, de sua indiferença, de seu recuo, de seu
castigo. Aqui, sem negar a ambiguidade trágica da existência humana em
certos momentos, Jesus nos chama para uma conversão radical do nosso juízo sobre Deus e nós mesmos.
Como diz muito bem o teólogo Ghislain Lafont, “a verdade do homem está numa obediência a Deus cujo término não avistamos” [5],
mais do que num esforço de autodivinização. Ao consentir em perseverar
na adoração filial, no momento em que sofria por se sentir
definitivamente separado de Deus e não percebia mais o sentido e a saída dessa experiência, Jesus
alcançou em si mesmo essa verdade do ser humano. Foi também dessa
maneira que ele deixou transparecer plenamente em sua humanidade a face
do Pai.
Representante vivo de Deus na terra, Jesus
exerceu seu papel chegando ao extremo dessa atividade suprema de sua
paixão e de sua morte, como total entrega de si mesmo, na impotência
radical, à onipotente atividade do amor criador do Pai. Representante de
Deus na terra, ele o foi enquanto Filho que assume até
o fim, na obediência, nossa condição humana, que éramos incapazes de
viver como filhos e filhas amados.
Esse juízo positivo sobre Deus
realizado por Jesus na provação de sua paixão supõe uma postura
interior de ordem ontológica. Esta consiste, ainda de acordo com as
palavras de Ghislain Lafont, no reconhecimento de que “Deus, mesmo em seu mistério, é o fundamento e a medida de todas as coisas”. Ora, para Jesus, Deus em seu mistério não é conhecido como desconhecido, e sim como seu próprio Pai, como seu Abba,
que o gera no dom de si e que, no mesmo elã desse engendramento,
volta-se para aqueles e aquelas a quem deu existência, diante Dele, para
lhes participar o eterno nascimento desse Filho.
Esse amor absolutamente gratuito, benevolente e recriador que o Pai tem por todo ser humano em seu Filho Jesus
constitui a própria essência de sua soberania divina no mundo. Foi em
virtude desse amor que o Pai não poupou seu filho, mas o entregou por
todos nós (cf. Rm 8:32), inspirando-lhe a entrega por nós até a morte, e a morte na cruz.
O dom de si mesmo no amor "A Eucaristia é, pois, o momento por excelência da intercessão por todos aqueles e aquelas que são esmagados pelo sofrimento e que, seguidamente, não conseguem perceber o sentido e o valor disso"
Todavia, mesmo que, para Jesus, conhecer Deus em seu mistério transcendente não signifique conhecê-lo como desconhecido, e sim como seu próprio Pai, a proximidade complacente desse Pai no Calvário,
sem que diminuísse ou desaparecesse, é sentida por Jesus como uma
aparente e dolorosa separação que o leva à experiência, até então
insuspeita, da radical transcendência. Porque essa proximidade não é a
de um Pai cuja preocupação com o Filho amado, e, nele, com seus filhos e
filhas, os dispensaria de assumir suas responsabilidades neste mundo e a
realidade integral, por mais rude que esta seja.
Trata-se antes de uma proximidade que
comunica ao ser amado a capacidade do Pai de doar-se sem medida e de
transformar os rigores da realidade finita e pecaminosa do mundo em
tantas formas de encarnar o amor. O amor gratuito e benevolente do Pai é
certamente um amor que salva, recria, dá a vida, mas na medida em que
comunica seus próprios costumes àquele que se abre para esse amor e o
acolhe. Daí a experiência inexorável a que somos chamados, cedo ou
tarde: somente aquele que consente em perder-se se salva (cf. Mc 8:34-35), pois a salvação que Deus
nos oferece nada mais é que a participação naquilo que constitui a
própria essência de sua vida divina: o dom de si mesmo no amor.
Soberanamente preocupado com o ser humano, Deus faz um apelo a este para que siga os passos de seu Filho, que caminha para a cruz por amor.
Assim, mesmo se Jesus, na cruz, continua sendo aquele que conhece Deus como seu Pai, como seu Abba
que o gera no amor, esse mistério afirma-se, nesse momento, como nunca
na transcendência absoluta, que foge a qualquer representação e
crucifica Jesus na experiência vivida. Submetido por nós a tal prova,
Jesus deve consentir em morrer em sua experiência anterior do amor do
Pai para manter sua comunhão com Ele, bem mais para vivenciar de outra
maneira, desnorteante por certo, a paternidade que o gera no dom de si
mesmo, um dom de si mesmo cujo caráter excessivo ele não conseguira até
então dimensionar em sua própria carne. Nessa perspectiva, a privação do
sentimento da presença do Pai pode ser paradoxalmente considerada uma
autêntica experiência de sua presença. A sabedoria que foge a qualquer entendimento humano
A renúncia a que Jesus
consente nada tem a ver, portanto, com a adesão a uma sabedoria divina
cuja transcendência seria a do arbitrário que ignora o bem do ser
humano, pois essa renúncia se dá justamente no seio de uma experiência
da sabedoria de Deus como Amor que leva ao dom de si
mesmo. Dizer isso, contudo, não diminui em nada o caráter absolutamente
transcendente dessa sabedoria que foge a qualquer entendimento humano,
uma vez que um amor dessa ordem implica, para Jesus, a
experiência da perda de si mesmo na certeza não sentida de que os braços
do Pai estão estendidos, abertos para acolhê-lo; bem mais que isso,
eles o trazem para Ele, inspirando-lhe a entrega a Ele sem reservas.
Diante da verdadeira transcendência de Deus, aquela do seu amor, o coração humano pode então iniciar um processo de conversão de seu juízo sobre Deus
e sobre si mesmo. Habitado pela imagem de um Deus do qual deve se
proteger de certa maneira, eis agora o ser humano habilitado, por Jesus e nele, a invocar Deus pelo seu verdadeiro Nome: Abba, Pai!
Ele é agora capaz de passar de uma adoração motivada pelo desejo de
obter o favor de Deus a uma adoração que é entrega amorosa de si mesmo
Àquele que foi o primeiro a se mostrar totalmente a nosso favor,
dando-nos seu Filho (cf. Rm 8:31-32).
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Francine Bigaouette - Eu gostaria de terminar chamando a atenção para o fato de que esse mistério do rebaixamento de Cristo a ponto de cair no abismo do abandono por Deus nos é posto à disposição no aqui e agora da nossa existência, graças à Eucaristia, que atualiza o sacrifício pascal de Cristo. Por certo, Cristo
não morre mais; por sua ressurreição, ele venceu definitivamente a
morte; a morte foi deixada para trás. No entanto, sua morte — do modo
como a vivenciou — permanece para sempre marcada nele, enquanto entrega
radical de si mesmo a Deus por nós, enquanto ato de amor ao extremo (cf. Jn 13, 1).
Em seu corpo ressuscitado, ele não traz as marcas dos pregos e da
lança? Jesus está eternamente fixado nesse ato que o levou a se entregar
ao Pai, nas profundezas de seu abandono, e foi assim vivificado, glorificado por Ele, na potência do Espírito.
É levado por esse ato que ele não cessa de doar seu corpo e seu sangue à sua Igreja,
cada vez que esta se reúne para celebrar sua memória, do modo como o
recebeu das mãos de seu Mestre e Senhor, às vésperas de sua paixão. É
este mesmo ato que se torna presente, pela Eucaristia, no aqui e agora de nossa existência histórica. Nesse ato, Cristo
cativa todos nós, cativa e une em seu sacrifício todos os sofrimentos
pelos quais chora nossa humanidade. Ele os purifica e transforma para
que se tornem, no ritmo de nossas trajetórias pessoais e coletivas, um
meio de nos assemelhar misteriosamente a ele em sua oblação pascal. A
Eucaristia é, pois, o momento por excelência não só da oferta, mas
também da intercessão por todos aqueles e aquelas que são esmagados pelo
sofrimento e que, seguidamente, não conseguem perceber o sentido e o
valor disso.
(Por Patricia Fachin – Tradução de Vanise Dresch)
NOTAS
[1] A este respeito, cf.
Lorraine Caza. Mon Dieu, pourquoi m’as-tu abandonné? Montréal,
Bellarmin, collection "Recherches – Nouvelle Série", 24, 1989, p. 419.
[2] Cf."Le dernier cri de Jésus", dans Études, 348 (1978), p. 672.
[3] Cf. J.- N. Aletti. "Mort de Jésus et théorie du récit". Dans Recherches de science religieuse, 73 (1985), p. 150-151.
[4] Bruno Forte. Jésus de
Nazareth: histoire de Dieu, Dieu de l'histoire. Parie, Éd. du Cerf,
collection “Cogitatio Fidei”, 122, 1984, p. 254.
[5] Dieu, le temps et l’être. Parie, Éd. du Cerf, collection “Cogitatio Fidei”, 139, 1986, p. 214.