sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A SUBJETIVIDADE HUMANA NA SOCIEDADE DE INDIVÍDUOS - Benilton Bezerra Jr. - ao som de Alessandro Piccinini Works for Lute,Fred Jacobs Theorbo


Publicado em 16/09/2012 por
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A subjetividade humana na sociedade de indivíduos. Entrevista especial com Benilton Bezerra

Na manhã do terceiro dia do Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos? Uma platéia atenta assistiu à conferência O futuro da autonomia e a construção de uma sociedade de indivíduos. Uma leitura psicanalítica, conduzida pelo professor Benilton Bezerra Jr., da UERJ. Em sua brilhante explanação, Bezerra falou sobre o impacto da autonomia e do individualismo na subjetividade humana. Para ele, nós vivemos, hoje, uma situação paradoxal. “Livramo-nos da pressão da tradição, no desejo de sermos autônomos. Afirmamo-nos como indivíduos quando colocamos a tradição em segundo plano”. No entanto, paradoxalmente, “somos escravos de modelos que nos ensinam como devemos agir para sermos indivíduos mais auto-suficientes e vencedores em nossas atividades diárias”. “Ser indivíduo é seguir um modelo que nos é imposto”, explica o palestrante, ao constatar que hoje o individualismo vive uma exacerbação, uma vez que a modernidade inventou que cada sujeito se constrói a si próprio.

Ao abordar o tema do Simpósio em geral, Bezerra esclareceu que a autonomia é uma das facetas do individualismo. “Ela nos transformou em autônomos de forma que tudo na vida se torna opção individual. Paradoxalmente, nunca uma cultura teve tão forte a experiência da desassistência. Há sempre um expert em tudo. Nossa existência se tornou banalidade.”

O “Terceiro” indivíduo, o elemento poderoso em nossa vida, que tinha um poder inquestionável, tornou-se “líquido”, utilizando a terminologia de Zygmunt Baumann. “E é isso o que possibilita a exacerbação da autonomia. Desaparece o impossível, a noção do limite. Hoje o assombro diante das coisas é cada vez menor”, esclarece o professor da UERJ.
Ao descrever a sociedade da imagem, Benilton Bezerra afirmou que “hoje importa muito mais parecer ser alguma coisa. Vivemos na sociedade da imagem, do espetáculo, da exibição. Temos que estar sempre sorrindo, sempre felizes, sempre bem, passando essa imagem de bem-estar e felicidade”.

O professor explicou também o conceito de subjetividade somática, pelo qual cada vez mais tendemos em radicar em nosso corpo a nossa individualidade. “Vemos uma proliferação de modificações corporais. Esse fenômeno cultural mostra a necessidade do ser humano de ser singular.” Outro conceito importante trazido pelo professor Benilton Bezerra Jr. é o da cultura do sujeito cerebral, que está emergindo em nossos dias. “Tendemos a pensar nossa subjetividade orientada pelo cérebro, que passa a ser o sujeito de nossas ações”.

Confira, a seguir, uma entrevista especial realizada pela redação da IHU On-Line com o professor Benilton, logo após sua conferência no Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos?

IHU On-Line - O senhor pode descrever um pouco a situação paradoxal em que vivem os indivíduos da sociedade contemporânea?
Benilton Bezerra Jr. - Esse paradoxo pode ser descrito de duas maneiras. Uma primeira em relação ao individualismo e uma segunda em relação à autonomia. Em relação ao individualismo, o paradoxo consiste no fato de que o valor do indivíduo e do individualismo surgir no momento em que as pessoas começaram a se desvencilhar das marcas e das determinações da tradição, da religião, da família. O indivíduo propriamente dito surge na modernidade, como alguém que se funda, se constitui a si próprio na sua trajetória pessoal durante a vida. Você faz aquilo em que irá se reconhecer como sendo seu. Na origem, o individualismo é uma tomada de posição, uma abertura de possibilidade para que o sujeito confronte a tradição, a determinação. O paradoxal hoje é que isso, que antes era algo subversivo em relação à realidade social prévia, virou a norma, a ideologia dominante. Todo mundo precisa ser indivíduo e ser singular. É uma obrigação, não é mais uma conquista. Com isso, temos essa situação paradoxal de que o indivíduo que se constituiria por contraste à tradição é agora instado a se construir conforme a tradição do individualismo. Trocamos uma servidão por outra. A diferença é que, antigamente, você era filiado inequivocamente a coisas que tinham uma dimensão simbólica muito mais ampla. Hoje em dia, esse individualismo não se constrói pela adesão a algum valor mais alto. Não são ideais; são modelos. Não são princípios em relação aos quais você se mede; são modelos que você tem que repetir.

Do lado da autonomia, o paradoxo consiste no fato de que, com o desenvolvimento do individualismo e da radicalidade da crítica moderna a todas as determinações sobre os indivíduos, hoje em dia, vivemos uma cultura na qual, de fato, as pessoas se sentem cada vez menos submetidas, de maneira superior a sua vontade, a princípios, normas, valores, etiquetas e ideais. Todos nós somos mais autônomos do que nunca para fazermos as nossas escolhas. Tudo depende das escolhas que fazemos. Isso aparentemente faz com que devêssemos nos sentir mais autônomos, mais capazes de decidir. Mas curiosamente – aí é que está o paradoxo – numa cultura onde todo mundo é autônomo, a grande parte das pessoas se sente desassistida, precisando da assistência de alguém que diga o que deve fazer, qual é a escolha certa. Aí entram os experts em tudo, com o “discurso competente”, que explicam à mãe se ela deve ou não dar comida de sal “na marra”, ou se deixa o filho escolher, explicam que tipo de roupa é adequada para suas pretensões sociais, que tipo de música se deve escutar. Isso causa uma espécie de enfraquecimento de algo fundamental na vida de todo mundo que é a possibilidade de sentir a marca pessoal nas escolhas.  Nós nos sentimos instados por uma força anônima, que nos conduz a querer fazer as coisas certas, adequadas.

IHU On-Line - O que caracteriza a exacerbação do individualismo e quais as conseqüências disso para a subjetividade dos indivíduos?
Benilton Bezerra Jr. – Esse fenômeno tem a ver com o fato de o indivíduo dispensar qualquer referência a um estatuto simbólico de uma força transcendente, da política, ou da religião. O sujeito tenta acreditar que pode viver plenamente no plano puro da imanência do cotidiano, das escolhas feitas a cada momento. Essa exacerbação tem um efeito muito importante entre muitos: é o fato de que isso modificou bastante os nossos ideais de felicidade, de realização pessoal. O que antes – na modernidade e na pré-modernidade – era medido com a referência a certos padrões e expectativas vinculadas a itens simbólicos, hoje está cada vez mais vinculado à posse, à conquista e à fruição de objetos. Esse individualismo levado ao extremo faz com que o sujeito se veja sempre numa espécie de luta incessante para poder se reafirmar, não pela filiação a algo maior do que ele, mas pela posse contínua de bens que têm uma insígnia fálica, com uma obsolescência social e psicológica muito rápida. Você compra qualquer coisa e aquilo, em pouco tempo, está obsoleto. É a busca por qualquer coisa que nos dê socialmente a imagem de sucesso. Por isso, essa adesão frenética a dietas e todo esse cultivo do corpo.

IHU On-Line - O senhor fala em uma outra forma de sociabilidade humana. Como seria essa nova sociabilidade, essa outra forma do ser humano?
Benilton Bezerra Jr. – Um dos traços dessa nova sociabilidade é a importância cada vez maior concedida à corporeidade, à dimensão somática da existência pessoal, nas trocas entre as pessoas. Por exemplo, a questão da imagem do corpo vem sendo cada vez mais importante em detrimento das características psicológicas e dos valores. É a moralização crescente dos atributos físicos. Outro traço dessa nova sociabilidade é o que alguns autores chamam de biosociabilidade: o fato de que, nessa mesma esteira da importância do corpo, temos a construção de identidades a partir de itens que são referidos ao corpo. Outro aspecto dessa nova forma de subjetivação é o lugar dos objetos na vida do sujeito em relação a si próprio e em relação ao outro. Os objetos passam a ser uma parte importante da construção da própria identidade. E também numa sociedade e numa cultura onde todos estão numa luta incessante pela posse de objetos que não são para todos, o outro passa, cada vez menos, a ser visto como semelhante e cada vez mais a ser, das duas, uma: ou um espelho, no qual eu fico me reconhecendo, ou um rival, que disputa comigo a posse daqueles bens que são escassos.

IHU On-Line – Qual é o futuro de uma sociedade assim?
Benilton Bezerra Jr. – Não podemos dizer, porque acontecem mudanças na história que são imprevisíveis. Ninguém previu a queda do muro de Berlim em 1989. Ela precipitou mudanças, da mesma forma que ninguém previu a invenção da internet e ela está mudando também a nossa vida social. O que podemos dizer é que, quaisquer que sejam as mudanças profundas que aconteçam, nós podemos, pelo menos, apostar na idéia de reconquistar a atividade política no sentido mais amplo da palavra: a política entendida como o engajamento na reflexão e na ação que visa a construção de existências pessoais e coletivas mais desejáveis no futuro. É o exercício de imaginar cenários mais desejáveis no futuro do que o presente, tanto no plano pessoal quanto no plano coletivo.   

IHU On-Line - Onde fica, nessa sociedade individualista, a solidariedade, a fraternidade e os valores cristãos?
Benilton Bezerra Jr. – O que pode alavancar uma ação que permita o pensamento crítico e o uso consensuado das tecnologias é a presença, no imaginário social e na prática subjetiva, de certos valores que transcendem esse plano da imanência do uso dos objetos, da fruição, das sensações. Esse é o desafio não só do cristianismo, mas do budismo e do pensamento político laico, que também perdeu suas referências. A grande política, a política laica, mesmo atéia do século XVIII para cá, é herdeira dessa transcendência religiosa. O cristianismo foi o primeiro movimento humano a inventar essa idéia de que todos são iguais. E isso está na base do pensamento democrático. O desafio do cristianismo hoje é conseguir estar à altura desse tipo de questão e como responder a esse desafio mantendo algum equilíbrio com a necessidade de auto-preservação da instituição Igreja, com suas regras.
IHU On-Line - Se não são mais os mesmos ideais e sonhos que unem os seres humanos, o que nos une e faz de nós seres iguais?
Benilton Bezerra Jr. – A verdade verdadeira é que nós não somos iguais. Somos todos muito diferentes.

IHU On-Line – Então, hoje o que assemelha os seres humanos é a preocupação com os próprios interesses individuais?
Benilton Bezerra Jr. – É, o que torna todo mundo incapaz de compartilhar de horizontes coletivos. O que pode reabrir a possibilidade de compartilharmos horizontes coletivos é, por exemplo, a salvação do Planeta. De fato, nunca houve antes o reconhecimento de que, ou agimos em comunhão para salvar a Terra, ou vamos acabar com ela. Isso é recente. Não é papo de “verde”, de um grupelho de pessoas. É uma questão fundamental, pois está no centro da possibilidade da gente prosseguir vivendo.

IHU On-Line - O senhor poderia explicar a cultura do sujeito cerebral? Qual sua relação com a subjetividade humana?
Benilton Bezerra Jr. – O termo “sujeito cerebral” foi criado por um colega do Instituto Max Planck, de Berlim, Fernando Vidal. Aparece também sob outras designações, como “homem cerebral” e “homem neuronal”. São várias formas de apontar para uma realidade antropológica, que é essa em que, cada vez mais, as pessoas vão identificando-se com o próprio cérebro. Ou seja, o cérebro vai se tornando não apenas um órgão corporal. Ele passa a ser pensado e sentido como a sede da nossa identidade. Eu não sou mais uma pessoa que tem um cérebro. Eu sou um cérebro que me faz pela experiência de ser uma pessoa. Isso se expressa em várias dimensões. Há uma dimensão teórica que tenta fazer do cérebro o denominador comum dos fenômenos mentais, sociais, antropológicos, etc. O cérebro passa a ser uma espécie de personagem, um ator social. O que atribuíamos ao sujeito, passa a ser atribuído ao cérebro. De forma prática, isso se expressa pela quantidade cada vez maior de intervenções biológicas na subjetividade, sobretudo medicações, e também com a introdução de novas tecnologias de intervenção.

IHU On-Line – Como o senhor avalia os temas discutidos no Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos?
Benilton Bezerra Jr. – Esse é o tipo de iniciativa que precisa ser reduplicada e difundida ao máximo. É disso que sentimos falta: poder juntar essas pessoas para discutir questões comuns e que transcendem às competências específicas de cada grupo.



Fonte:
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/7366-a-subjetividade-humana-na-sociedade-de-individuos-entrevista-especial-com-benilton-bezerraLicença padrão do YouTube 

TRANSFORMAÇÕES AO NOSSO ALCANCE - Benilton Bezerra Júnior



 

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 Transformações ao Nosso Alcance - Benilton Bezerra Júnior por LuizFernandoSarmento  no Videolog.tv.

 

Benilton: - Que tipo de desafios nós temos que enfrentar, superar, para criar uma atmosfera de união, um centro de gravidade que possa trazer mais atores sociais para mudança? Não digo só dos outros, mas nós mesmos precisamos refletir sobre quais são as inibições, quais são os impedimentos que dificultam que a gente se transforme num ator social como deveríamos ser. 

* Benilton Bezerra Júnior - pensador, psicanalista, escritor - compartilha conhecimentos, estimula reflexões. 

* Sem fins comerciais, este vídeo registra uma palestra realizada no Sesc Rio voltada para o desenvolvimento humano e social. 

* Na internet, especificamente no Videolog, o vídeo integral talvez esteja dividido em partes.

 * Produção: Luiz Fernando Sarmento & Gilberto Fugimoto de Andrade. Gravação e Edição: Gijs Andriessen. 

* Realizado cerca de 2006. Aproximadamente 68 minutos.

 Desafios da Reforma Psiquiátrica no Brasil
Desafios da Reforma Psiquiátrica no Brasil
BENILTON BEZERRA JR.
Com a virada do século, a Reforma Psiquiátrica no Brasil deixou
definitivamente a posição de “proposta alternativa” e se consolidou como o
marco fundamental da política de assistência à saúde mental oficial. Mais do
que isso, a influência do seu ideário vem-se expandindo no campo social, no
universo jurídico e nos meios universitários que formam os profissionais de
saúde. Apesar das conhecidas dificuldades enfrentadas pelo sistema de saúde
pública no Brasil, é fato que o cenário psiquiátrico brasileiro vem mudando a
olhos vistos. Os mais de mil Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) espalhados
pelo país vêm modificando fortemente a estrutura da assistência à saúde mental.
A rede composta por este tipo de equipamento vem substituindo
progressivamente o modelo hospitalocêntrico e manicomial, de características
excludentes, opressivas e reducionistas. Em seu lugar vem sendo construído
um sistema de assistência orientado pelos princípios fundamentais do Sistema
Único de Saúde (universalidade, eqüidade e integralidade), acrescido da proposta
de desinstitucionalização - cujo alcance ultrapassa os limites das práticas de
saúde e atinge o imaginário social e as formas culturalmente validadas de
compreensão da loucura.
No entanto, a própria consolidação da Reforma vem trazendo à tona
uma quantidade crescente de desafios que precisam ser incorporados à agenda
dos campos da Saúde Mental e da Saúde Coletiva. Não há precedente de
implantação de uma reforma deste tipo num país com as características
(geográficas, políticas, sociais) do Brasil. A construção de um sistema assistencial,
um imaginário cultural e uma rede de laços sociais inspirados nos ideais da
Reforma exige que a imaginação, a criatividade e a reflexão crítica encontrem
uma maneira de delinear com clareza quais são os desafios específicos que
este horizonte de transformação enfrenta nas condições de nosso país.
Sendo uma proposição de mudança paradigmática - e não apenas mais
uma proposta de modelo assistencial -, a Reforma Psiquiátrica se desdobra em
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vários planos, situados em diversos campos. No plano assistencial, trata-se de
pensar não apenas formas inovadoras de organização da atenção, mas também
modelos de cuidado e intervenção adequados aos novos dispositivos - muito
diferentes tanto dos ambientes hospitalares quanto dos espaços ambulatoriais
tradicionais, e aos novos objetivos - mais abrangentes que os da clínica individual
tradicional. Além disso, num país como o Brasil, de dimensões continentais e
enorme diversidade cultural, não é possível construir um modelo assistencial
que sirva igualmente para as megalópoles e as pequenas cidades do interior,
para grandes concentrações populacionais e regiões de população escassa,
como em certas áreas amazônicas. As noções de rede e território, por exemplo,
que são centrais às proposições da Reforma, não podem ser pensadas de forma
idêntica em contextos socioculturais tão diferentes como os pequenos municípios
do interior do Nordeste e os imensos bairros de São Paulo ou Belo Horizonte.
Na esfera da clínica (uma dimensão, mas não a única, do plano
assistencial), os desafios apontam para duas direções: de um lado, é preciso
avançar na elaboração de dispositivos teóricos e de formas de ação que ao
mesmo tempo retenham o horizonte fundamental da clínica (a ampliação da
capacidade normativa psíquica, existencial e social do sujeito) e amplie o alcance
da rede (a constituição de uma clínica ampliada, a incorporação de várias
categorias profissionais às estratégias terapêuticas, o recurso a modalidades de
intervenção oriundas de diversas orientações teóricas, etc.). Esse tipo de
discussão é, por assim dizer, interior ao campo da Reforma.
De outro lado, existe o debate com os adversários. O sucesso do
movimento da Reforma pode ser medido em parte pelo fato de que ninguém
mais resiste abertamente ao ideário antimanicomial. Mesmo os defensores dos
hospitais psiquiátricos que tentam reverter os dispositivos legais e as articulações
políticas que sustentam o novo cenário psiquiátrico no país afirmam estar de
acordo com as diretrizes gerais do movimento transformador da assistência,
centrando suas críticas e reivindicações no que apresentam como insuficiências
ou inconsistências do novo modelo assistencial.
A resistência às propostas reformistas aparece de forma indireta, na
defesa da hegemonia absoluta dos médicos no campo da atenção à saúde, na
ênfase nos tratamentos biológicos como única forma efetiva de tratamento, na
importação acrítica, para a Psiquiatria, do modelo da medicina baseada em
evidências, no abuso na utilização da nosografia descritiva dos DSMs, em
detrimento da atenção às dimensões psicodinâmica, fenomenológica e
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Desafios da Reforma Psiquiátrica no Brasil
psicossocial das psicopatologias, e assim por diante. Deste modo, o embate que
nos primeiros anos se centrava na busca de espaços dentro do sistema políticoassistencial
hoje tende a girar em torno de debates fortemente marcados por
questões de natureza epistemológica, teórica e ética.
Ainda no plano assistencial, há uma dimensão política importante,
que se manifesta no esforço de consolidação do poder de indução que os
órgãos de coordenação da atenção à saúde mental precisam exercer para
estimular transformações nas práticas assistenciais, tanto na rede pública
quanto na rede privada. Isto implica defender mecanismos e critérios de
financiamento que reforcem as propostas da Reforma - como a construção
de redes territoriais de assistência, o estímulo a dispositivos do tipo CAPS, a
implantação de programas de moradia e assim por diante.
A indução desse tipo de mudança, no entanto, exige que tenhamos
como avaliar seu impacto, e ainda não dispomos de modelos de avaliação
adequados às necessidades da saúde mental, que não pode ser avaliada com
base nos mesmos critérios e medidas utilizados na clínica médica e na saúde
pública. Na atenção ao sofrimento psíquico, é preciso encontrar formas de
estimar subjetivamente, e não apenas medir objetivamente, os resultados das
estratégias terapêuticas. O estabelecimento de critérios de avaliação
consensualmente aceitos tornou-se hoje um fator crucial de sustentação do
movimento da Reforma.
A formação de recursos humanos é outro desafio fundamental. A
maior parte dos novos profissionais da rede é formada de jovens que não
passaram pelo processo de luta política e ideológica que envolveu a criação
do movimento antimanicomial, não viveram o intenso intercâmbio com figuras
emblemáticas desse movimento no nível internacional, como Basaglia,
Foucault, Rotelli e outros, em suas vindas ao Brasil. Boa parte desses
profissionais se tornou adulta num momento da vida do país em que as grandes
bandeiras de transformação política já tinham se tornado história, momento
em que a própria esfera da política começou a experimentar um esvaziamento
que só fez se acentuar desde então.
Para a primeira geração de profissionais envolvida na construção da
Reforma, o pano de fundo político e ideológico em que esta construção se dava
era claro, até porque ele abarcava várias outras áreas da vida social, como a
luta contra os resquícios do regime militar e os movimentos reivindicatórios de
setores sociais. O reflexo, junto aos novos profissionais, do esmaecimento da
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política, e a hegemonia crescente do discurso técnico tornam a formação desses
profissionais uma tarefa complexa, pois se de um lado é preciso dar-lhes uma
formação teórica e técnica sólida, de outro é necessário que ela suscite uma
vocação crítica e criativa, de modo a atender aos desafios que um processo de
transformação contínuo, como a Reforma, impõe de modo constante. Isto implica
não apenas o entendimento e a colocação em prática das políticas e modelos
propostos, como também a possibilidade de auto-reflexão, de reavaliação
constante do impacto que o trabalho cotidiano nas atividades assistenciais exerce
sobre a própria subjetividade - única forma de combater os insidiosos
“manicômios mentais”, muito mais resistentes à mudança justamente por não
serem objetivos, e sim enraizados em padrões cognitivos e pautas afetivas
profundamente internalizadas.
As novas formas de organização das equipes, a transformação dos papéis
destinados aos técnicos, o trabalho interdisciplinar e intersetorial, a articulação
entre os aspectos clínicos e políticos da atenção psicossocial, o entrelaçamento
entre estratégias de cuidado e estratégias de responsabilização ou interpelação
do sujeito, todos esses são temas cruciais para a formação de profissionais capazes
de levar adiante o processo de transformação defendido pelo ideário reformista.
Nos planos jurídico e político, a temática dos direitos humanos e da
defesa da dignidade da pessoa, presente desde o início dos movimentos de
contestação da cultura manicomial, tem sido acrescida de iniciativas que avançam
na discussão dos direitos civis e sociais dos portadores de transtornos mentais.
Talvez a característica mais importante do debate atual seja o deslocamento
progressivo do centro de gravidade da discussão, que vem deixando de ser uma
defesa dos mecanismos de proteção jurídica a pessoas com déficit ou
perturbação (trabalho protegido, pensão protegida), para se constituir numa
discussão sobre mecanismos jurídicos que possibilitem a inclusão civil e social
de pessoas com características especiais (formas de contratualidade,
mecanismos de responsabilização) e ampliação de sua autonomia. Em outras
palavras, o debate ultrapassa os limites da argumentação médica e se insere
progressivamente no debate político acerca da inserção no campo da cidadania.
No plano sociocultural, o desafio é fazer da loucura e do sofrimento
psíquico uma questão que ultrapasse as fronteiras do discurso técnico, e do
saber psiquiátrico em especial, insistindo na dimensão existencial e humana que
facilmente se esconde por trás dos jargões e protocolos médico-psicológicos,
trazendo para o debate público do tema atores de diversos segmentos sociais.
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Desafios da Reforma Psiquiátrica no Brasil
Várias iniciativas bem-sucedidas têm sido realizadas neste sentido no
país, tanto a partir das próprias unidades assistenciais (participação de blocos
organizados nos CAPS nos carnavais, presença de grupos musicais em eventos
da cidade, etc.), quanto fora delas. Filmes como Bicho de sete cabeças (2001),
de Laiz Bodanski, e Estamira (2004), de Marcos Prado, matérias jornalísticas
sobre a transformação de manicômios (como o de Barbacena) são exemplos
de como a arte e o jornalismo se tornaram atores fundamentais no processo de
sustentação social do ideário da Reforma.
Mais do que buscar a aceitação de uma nova política assistencial, o
desafio nesse campo é produzir uma nova sensibilidade cultural para com o
tema da loucura e do sofrimento psíquico. Trata-se de promover uma
desconstrução social dos estigmas e estereótipos vinculados à loucura e à figura
do doente mental, substituindo-os por um olhar solidário e compreensivo sobre
a diversidade e os descaminhos que a experiência subjetiva pode apresentar,
olhar fundado numa atitude de respeito, tolerância e responsabilidade com aqueles
que se encontram com sua normatividade psíquica restringida.
Os três artigos que se seguem retomam, cada um a seu modo, esses
desafios como tema de reflexão. Em “Rodas de conversa sobre o trabalho na
rua: discutindo saúde mental”, Izabel Cristina Rios descreve uma experiência
realizada na periferia de São Paulo com agentes comunitários de saúde
integrados ao Programa de Saúde da Família. Esses profissionais estão na ponta
da atenção à saúde mental, e sua atuação pode ser decisiva, não só no
encaminhamento precoce e bem-feito de situações clínicas que exijam
atendimento especializado - casos de psicose, perturbações pós-parto, autismo
infantil, etc. - como também na imensa maioria das situações de sofrimento
psíquico em que uma intervenção sensível e cuidadosa pode abrir caminhos
para soluções que não necessariamente envolvam tratamento especializado,
reduzindo muito o processo de patologização e medicalização que o sistema de
saúde formal tende a estimular.
Os agentes comunitários ocupam uma posição especial, na interface
entre o campo médico e a vida social, entre o discurso competente e a sabedoria
popular, entre a ação técnica e a mobilização de recursos da própria comunidade,
e com isto se habilitam a exercer papel fundamental no cuidado do sofrimento
psíquico. Para que possam dar conta desse desafio, é preciso dar-lhes mais do
que uma formação técnica bem-feita - conceitos e práticas básicas em saúde
mental. É necessário que se ofereça a eles a possibilidade de uma formação
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continuada, que envolva não apenas o ensino formal, mas também a análise dos
casos e situações atendidas que possibilite uma discussão sobre como sua própria
subjetividade intervém e é afetada em sua prática cotidiana, situando o centro
de sua atuação no espaço relacional, na trama interpessoal, na rede de lugares
que compartilham com a população atendida.
O essencial da experiência relatada no artigo é a valorização de um
aspecto cuja importância quase nunca é reconhecida: o cuidado para com os
profissionais e a transformação de sua experiência em fonte preciosa de informação
para a gestão e a formulação de propostas de atenção. Essa valorização resulta
numa profunda mudança no papel exercido por esses profissionais, que passam a
ocupar o lugar (e sentirem a importância de serem) protagonistas, e não apenas
auxiliares, nas estratégias de atenção à saúde. A riqueza do trabalho ultrapassa
em muito as fronteiras dos programas de saúde da família, sendo de interesse
para todos os níveis dos programas de saúde mental.
O artigo “Modos de subjetivação dos trabalhadores de saúde mental
em tempos de Reforma Psiquiátrica”, de Henrique Caetano Nardi e Tatiana
Ramminger, também aborda o papel dos trabalhadores na psiquiatria da Reforma,
insistindo na tese de que os modos de subjetivação dos profissionais que militam
nos novos dispositivos jogam um papel decisivo na sustentação e no
aprofundamento das propostas reformistas. Isto é exigido pela própria natureza
das propostas, que não se restringem a modificações de ordem técnica ou
organizacional, girando, na verdade, em torno da construção social de uma
nova relação com a loucura e o sofrimento mental.
Neste sentido, os autores descrevem um deslizamento histórico desta
relação, que passou do modelo religioso da salvação do louco (no período colonial)
para o modelo médico da cura e do reparo (a partir do fim do século XIX), para
chegar às proposições reformistas que buscam uma superação deste modelo,
não por uma recusa romântica do sofrimento provocado pela loucura, mas pela
insistência na inclusão das formas de atenção fundadas no paradigma do cuidado
(e não apenas na busca da cura) e na ancoragem das estratégias assistenciais e
culturais de confronto com a loucura no processo mais geral de ampliação do
exercício da cidadania. Ora, isto implica a existência de profissionais de saúde
mental capazes de levar em conta esta característica especial da psiquiatria: a de
ser um campo essencialmente atravessado por determinantes biológicos,
influências culturais, jogos de verdade, paradigmas teóricos, dinâmicas sociais,
lutas econômicas e seus reflexos político-assistenciais, e assim por diante.
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Desafios da Reforma Psiquiátrica no Brasil
Em suma, o desafio imposto pela Reforma exige a formação de
profissionais dotados de capacidade de reflexão crítica - elemento indispensável
para a superação das imensas dificuldades inerentes ao trabalho (desvalorização
do servidor público, investimentos aquém do necessário) - e para a sustentação
de uma prática de cuidado que se constitua como um exercício de transformação
para todos os envolvidos: pacientes, profissionais e as redes sociais em volta
deles. Só isto permite manter a esperança de construção de uma nova atitude
epistemológica e ética frente ao fenômeno da loucura.
É justamente a natureza das premissas éticas existentes na proposta
de desinstitucionalização - elemento nuclear da Reforma - que Maria Gabriela
Godoy e Maria Lúcia Bosi apresentam e discutem em “A alteridade no discurso
da Reforma Psiquiátrica brasileira face à ética radical de Lévinas”. Em seu
artigo, as autoras põem o centro de gravidade da desinstitucionalização na idéia
de desconstrução e na concepção de alteridade, que elas analisam a partir de
uma reflexão sobre a ética radical encontrada na obra de Emmanuel Lévinas.
As autoras mostram como desinstitucionalização é um termo que se presta a
mais de uma interpretação: desospitalização, desassistência ou desconstrução -
sendo apenas esta última a adequada às premissas e projetos inscritos no ideário
da Reforma. Essa adequação está no fato de a desconstrução da cultura
manicomial implicar uma transformação radical dos pressupostos nos quais se
baseia a aproximação à loucura moldada nos últimos séculos no Ocidente,
marcada pelo racionalismo na definição do sujeito, pela abordagem
tecnocientífica do sofrimento e pela lógica de exclusão social e simbólica da
diferença exibida pela experiência dos loucos.
O movimento antimanicomial é uma das formas de luta contra a exclusão
e a favor da tolerância e respeito pela diferença. Neste sentido, a abordagem
de Lévinas ilumina um aspecto fundamental do projeto reformista, que o
caracteriza em relação a outros movimentos de ampliação do campo da
cidadania. Como salientam as autoras, na perspectiva levinasiana a alteridade
é pensada de forma radical, como diferença inassimilável e irredutível. O “Outro”
- figura multiforme desta alteridade - não é um pólo em relação ao qual o eu
possa entrar em sintonia, num movimento de aproximação que reduziria a
assimetria inicial. O Outro, para Lévinas, é o radical e essencialmente diferente,
o desconhecido, o estranho, o estrangeiro, o inimigo, o não-representável, o que
não sou, não experimento, não imagino. O Outro é a exterioridade radical,
irredutível e inabsorvível, mas que - por sua própria exterioridade - se revela
como fundamental para a própria constituição e sustentação da experiência do
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Benilton Bezerra Jr.
mim-mesmo. A relação com o Outro, neste sentido, é fundante e conclama o
mim-mesmo à responsabilidade por tudo aquilo que, não sendo idêntico a ele, o
constitui e sustenta.
A loucura é uma das figurações desse Outro. Portanto, uma proposta
inspirada nas proposições levinasianas não pode se restringir à denúncia de
exclusão cultural do louco e à defesa de seus direitos civis, sociais e políticos.
Ela precisa se apoiar numa reconfiguração profunda da relação com a alteridade radical, o Outro. Essa reconfiguração molda de maneira diferente nossa própria experiência subjetiva, na medida em que este Outro se expressa não apenas na experiência do louco, mas também nas fímbrias, desvãos e mistérios que habitam a experiência de todos nós. Esta perspectiva teórica, portanto, amplia o alcance ético e político contido nas propostas da Reforma, uma vez que seu horizonte ultrapassa os limites da simples assimilação do louco à realidade social compartilhada, projetando uma transformação profunda de nossas concepções e relações com a subjetividade.
Ultrapassada a fase de resistência e proposições alternativas, o projeto
reformista encontra-se de certo modo numa encruzilhada: ou aprofunda seu
movimento - deixando claro seu horizonte ético e seu projeto de transformação social e subjetiva -, ou corre o risco de deixar-se atrair pela força quase irresistível da burocracia e da institucionalização conservadora.
Os artigos aqui publicados, pelos temas que abordam e pela perspectiva
que adotam, certamente contribuem para o diagnóstico e o enfrentamento dos
desafios que encontramos na construção de uma sociedade que deixe para trás a história da cultura manicomial.


NOTA
Psiquiatra, doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; professor adjunto no Departamento de Políticas e Instituições de Saúde do IMS-UERJ; membro da direção do Instituto Franco Basaglia. Endereço eletrônico: benilton@superig.com.br.

 Li-Sol-30
 Fonte:
  http://www.videolog.tv/video.php?id=527009
 http://www.scielo.br/pdf/physis/v17n2/v17n2a02.pdf
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

SOMOS TODOS MIGRANTES - Benilton Bezerra Jr.





SOMOS TODOS MIGRANTES

Benilton Bezerra Jr.
Este texto de Benilton Bezerra Jr é o prefácio ao livro O Migrante na Rede do Outro, de Ademir Pacelli Ferreira, publicado pela Te Corá Editora. A Rubedo agradece a autorização para sua reprodução. Conheça mais sobre o livro visitando a Revista de Literatura.


Este não é um livro sobre migrantes. Ou melhor, é isso, mas é muito mais. É certo que Pacelli se debruça sobre os dramas, as tragédias e as lutas dos migrantes nordestinos quando descem para o sul maravilha em busca de seus sonhos de sucesso e reconhecimento. A tríade que ele organiza para trazer aos leitores uma imagem bem viva do que são essas experiências (um caso clínico, um personagem de filme e a protagonista de um romance) apresenta exemplos acabados dessas figuras quase míticas do pau-de-arara, do paraíba, que se vêem, perplexas, mergulhadas na atmosfera inóspita e hostil de um mundo que lhes outorga nada mais que um lugar de diferença mal suportada.

Mas o fato é que a reflexão acerca das experiências dilacerantes dos migrantes nordestinos funciona como um foco, que o autor vai pouco a pouco ampliando de modo a fazer surgir aos nossos olhos uma complexa rede de temas e questões que se articulam em torno do seu ponto de partida. Ao final da leitura nos encontramos na posição a que o livro parece nos convidar desde o início: com a estranha sensação de que estamos todos - quer tenhamos ou não clareza disso - potencialmente envolvidos na mesma trama que envolve seus personagens-tema: Nano, o migrante que enlouquece, Severino, o bom nordestino que se torna um criminoso, Macabéa, "malabarista da existência humana", como diz Pacelli, um pequeno ser de vida inútil e morte irrelevante, e Deraldo, que encontra uma saída por meio da palavra poética.

A originalidade deste trabalho está justamente aí: no modo como o tema do migrante abre caminho para uma reflexão mais abrangente acerca de pontos fundamentais na agenda de todos que queiram pensar sobre os dilemas e desafios cruciais de nossa cultura. 

Num plano, o que está em pauta é a análise das relações entre o imaginário social hegemônico com a alteridade, a diferença, num mundo em que a globalização, ao invés de realizar os sonhos utópicos modernos de fraternidade e solidariedade, cria múltiplas formas de exacerbação da intolerância, do preconceito e da exclusão. Noutro viés, que se articula com o primeiro, o que está em jogo é uma reflexão sobre o impacto desse quadro sobre os processos de construção da experiência subjetiva dos indivíduos. Ao tecer sua discussão, Pacelli vai aos poucos nos apanhando em sua rede. Seu objetivo é o de capturar nossa atenção para este fato: no mundo em que vivemos hoje, somos todos mais ou menos migrantes. Ao deter nosso olhar sobre as trajetórias e vicissitudes dos personagens que convoca à cena, ele aciona uma estratégia cuja finalidade é nos instigar a pensar sobre nós mesmos, e sobre o mundo que consentimos em deixar existindo.

A discussão proposta pelo autor não poderia ser mais oportuna. Jamais o planeta esteve tão próximo de se tornar uma aldeia. As distâncias continuam sendo as mesmas, mas a velocidade com que chegamos a qualquer canto, fisicamente ou por meio de imagens, notícias e comunicações, torna essas distâncias cada vez mais irrelevantes. Nas últimas poucas décadas vimos o desenvolvimento tecnológico criar uma realidade inimaginável há poucas gerações. Hoje, não há lugar do mundo a que não possamos chegar no intervalo de algumas horas.

 O extraordinário crescimento do fluxo de turistas por todo o globo transforma culturas antes exóticas e distantes em cenários ao alcance de prosaicos pacotes financiados a perder de vista. O que quer que aconteça em algum recanto perdido pode imediatamente estar diante de nossas telas. 

Com o surgimento da internet um outro espaço se cria. Um espaço diferente, virtual, que contrai distâncias, dilui obstáculos, e torna possível trazer um quadro do Louvre, um livro de uma biblioteca sueca ou a receita de uma dona de casa japonesa para frente dos olhos em questão de segundos. Novos mecanismos de aproximação entre pessoas distantes vão se criando aos nossos olhos. Pessoas dos mais diferentes países e culturas estabelecem relações de proximidade rapidamente.

 Ao contrário do que os mais apressados e pessimistas insistem em salientar, parece haver de fato a criação de novas formas de laços intersubjetivos em gestação no momento.

Nunca estivemos tão perto uns dos outros. Fronteiras geo-políticas se diluem, articulações supra-nacionais se organizam, fluxos migratórios são cada vez mais intensos, instâncias e agendas planetárias de todo tipo são cada vez mais presentes. No entanto, de forma contrastante com estes movimentos que visam - e já de certo modo supõem - uma perspectiva mais encompassadora do mundo e o estabelecimento de formas de vida coletiva, vemos crescer de modo espantoso e assustador o nacionalismo, a xenofobia, o preconceito, a exclusão. 

Um mal-estar pervasivo parece infiltrar-se por todo o tecido social. Contingentes imensos são postos à margem desses processos inclusivos. Que destino está reservado aos deserdados da chamada globalização? Qual o lugar, numa cultura planetária, para os que não se inserem de algum modo nas expectativas e exigências ditadas pela lógica totalizante e imperativa do mercado (de bens, de serviços, de identidades, de itens culturais de consumo)? Para os que se encontram no interior dessa totalidade, o consolo do consumo não substitui a ausência de ideais, horizontes partilhados, elos entre o passado e o futuro que tornem o presente uma experiência de criação. Projetos coletivos e trajetórias individuais diluem-se numa frenética fruição do imediato.

 O mundo da cultura, degenerado em oferta de entretenimento, não oferece aos sujeitos um encontro com sua própria história e identidade. Vagando em função dos ditames mercadológicos do momento, desprovidos de um sentido forte de ação no mundo dos negócios humanos, mesmo aqueles plenamente incluídos no processo de globalização padecem dos dramas de desenraizamento, de fragilidade identitária, de perplexidade em relação a si. 

Toda a psicopatologia do cotidiano atual, com seu espectro de tonalidades depressivas, pânicos e fobias sociais, denunciam o que se esconde por trás da euforia consumista.

Nesse contexto, a figura do migrante funciona aqui como uma espécie de metáfora. Quando Pacelli fala de seus personagens nordestinos e analisa seus dramas, suas estratégias de reação, seus sucessos e fracassos, sua intenção é a de dissecar a tessitura dessas experiências, não apenas revelando seus conteúdos psicológicos, aquilo que se passa no plano da vivência singular de seus personagens, ou ainda aquilo que peculiariza o vivido de pessoas oriundas de uma certa região do Brasil. Seu objetivo é o de ir um pouco mais além, e extrair de suas análises elementos que nos permitam compreender de que tipo de argamassa subjetiva somos feitos - nós, sujeitos desse cenário de fim de milênio. É isso que o subtítulo do livro indica. 

Trata-se de uma reflexão acerca da constituição da experiência subjetiva e a presença, neste processo, do polo alteritário - tanto na origem da construção do eu, como nos processos de crise e transformação dessa experiência. Tomar o migrante como metáfora, nesta perspectiva, significa descrever de modo inabitual o que poderiam ser, hoje, algumas características axiais da experiência dos sujeitos habitantes do universo social contemporâneo. Não apenas os que efetivamente migram de um lugar para outro, mas todos os que vivemos num cenário de mobilidade e fluidez de nossos referentes simbólicos mais caros. Todos os que enfrentamos o desafio de - num mundo de incertezas - lidar com a diversidade, a diferença, tentando encontrar o caminho estreito que separa os padrões habituais de assimilação a uma identidade prévia ou exclusão do que não é espelho.


O autor começa o seu fio argumentativo discutindo a tendência - recorrente em muitos estudos - de assimilação do migrante à ideia de carência. Deste ponto de vista, a experiência migrante seria caracterizada basicamente pelos problemas decorrentes de uma deficiência de cultura, de capacidade simbólica e afetiva, de potencialidade semiótica. O drama do migrante se resumiria a questões de adaptação/desadaptação num contexto que lhe é estranho. Todo o esforço do autor, em contrapartida, é o de remar contra essa corrente, e mostrar a positividade e a riqueza da experiência do migrante.

 Se, de fato, esta é marcada por processos de ruptura, perplexidade, desorientação, não é menos verdade que do outro lado da moeda encontramos um complexo processo de enfrentamento da diferença, de elaboração da estranheza intrigante, que remete o sujeito a uma reinvenção de si, a uma reconstrução de suas referências, a um processo complicado, doloroso, mas potencialmente criativo de afirmação de si.

Pacelli chama atenção para o fato de que a questão do migrante - tomada como emblema do impacto daquilo que nos interpela em nossas descrições estabilizadas do mundo - não diz respeito apenas àqueles que chegam a uma realidade que não é a sua, em busca de acolhida e reconhecimento. Também aqueles a quem este pedido é endereçado são profundamente afetados. O autor recorre a exemplos históricos para mostrar como foi lento e progressivo o aparecimento, na cultura ocidental, da capacidade de reconhecimento da alteridade de outros indivíduos ou grupos da mesma espécie como fazendo parte de um mesmo universo humano.

 A percepção da diferença nem sempre implicou o reconhecimento desses outros como outros eus. As razões para este fato, como Pacelli faz ver, são de duas ordens. A primeira é histórica: somente com o cristianismo e o ideário individualista da modernidade é que se criaram as condições culturais capazes de propor uma visão universalista do ser humano. As utopias modernas de construção de um mundo ideal passaram a exigir a promoção da igualdade entre os indivíduos e as culturas, sendo as diferenças inevitáveis entre eles pensadas agora como particularidades contextuais, submetidas ao universal do humano.

 A segunda razão diz respeito ao funcionamento do próprio sujeito. Apoiando-se em Freud, Pacelli lembra o papel complexo que o polo da alteridade desempenha na vida psíquica, não apenas na constituição do sujeito individual e dos emblemas identitários coletivos, mas ao longo de toda a trajetória de uns e de outros. De um lado ela é elemento primordial na construção do psiquismo individual, por meio da exterioridade da linguagem ou do simbólico que inscreve cada organismo humano individual no universo de sentido de pares humanos. 

De outro podemos ver como, uma vez constituídas as estabilizações narcísicas que compõem as identidades dos indivíduos e grupos, cada vez que o polo da alteridade, do não-idêntico, comparecem à cena psíquica, mecanismos são postos em ação para neutralizar ou reduzir seu potencial disruptivo: absorvê-la como expressão disfarçada do mesmo, ou excluí-la como emergência de uma estranheza ameaçadora.

Quem encarna a diferença, quem é afetado por ela? Pacelli sugere que não se deve identificar essas posições em personagens concretos. O migrante pode ser visto como encarnação da diferença perturbadora. Mas do seu ponto de vista, a estranheza se encontra no contexto a que chega, e naqueles que o habitam. Mesmo no interior de nossa cultura, o enigma e o desafio da estranheza, da diferença, estão presentes. De certo modo invadiram o cotidiano. Ao volatizar os quadros de referência mais sólidas de que dispunham nossos antecessores, nossa cultura criou essa situação algo paradoxal: jamais fomos tão aptos a admitir o novo, o inusitado, já que nos acostumamos com a velocidade de mudanças e não precisamos nos referir de maneira rígida a quaisquer padrões que a tradição nos tenha legado.

 No entanto, esse desconhecimento ou recalque de nossas filiações mais profundas parece promover uma atmosfera subjetiva que está longe de ser confortadora. Sem raízes profundas, padecemos de uma profunda nostalgia de fundamentos, de âncoras firmemente plantadas em algum solo duro e estável. A experiência de inscrição na dimensão temporal da existência, e o modo como se organiza a cartografia do espaço que habitamos, vêm sofrendo profundas modificações nas culturas urbanas. 

As ambivalências em relação ao passado e ao futuro, a dificuldade de circular pelos novos espaços descontínuos e fragmentados em que nos vemos atirados, são experiências comuns aos migrantes nordestinos cujos percursos Pacelli descreve, e a todos nós, migrantes do cotidiano. As estratégias criadas em nossa cultura ocidental para dar conta dessa situação paradoxal são muitas. Uma delas é afirmação dos traços diferenciais como base sólida e indiscutível para a construção identitária.

 É o que vemos preconizada pela política de identidades fundada em características de gênero, ou de preferência sexual, ou nas propostas fundamentalistas defendidas por grupos religiosos, políticos e étnicos.
Pacelli, no entanto, não privilegia essa perspectiva de análise, e segue outro caminho. Em primeiro lugar ele escolhe um assunto que nos é familiar, o migrante nordestino que desce o país em busca do sul, espaço investido idealmente como depositário das melhores promessas. Em segundo lugar, ao invés de se deter unicamente em noções, conceitos e teorias, ele procura trazer o vivido, a experiência sensível, para dentro de sua reflexão. Seu objetivo é não apenas convencer argumentativamente o leitor, mas impactá-lo pela exposição da intensidade, da afetação íntima que seus personagens experimentam em seus percursos. 

Os capítulos dedicados ao caso clínico, ao filme de João Batista de Andrade., e ao romance de Clarice Lispector são construídos de modo a fazer com que as idéias do autor ganhem em força pela persuasão que essas narrativas são capazes de produzir, numa cumplicidade entre a reflexão racional e a adesão afetiva. Pacelli apela à imaginação do leitor. Com ela, a letra fria do raciocínio é imantada pelo colorido afetivo do vivido dos personagens. O leitor é convidado a fazer uma passagem entre uma discussão acerca da diferença e o acompanhamento dos caminhos e descaminhos de alguns diferentes.

O que poderia ser mais um estudo especulativo, abstrato e mais ou menos artificial sobre o idêntico, o mesmo e a diferença, se transforma noutra coisa. Entra em cena uma discussão acerca da necessidade prática, numa sociedade globalizada e interdependente, de todos poderem estar em contato com diferentes, tentando entender seus modos idiossincráticos de pensar e agir, sendo receptivos à afetação por eles provocada, fazendo deste encontros com o alter uma uma experiência de redefinição de si. E é nessa combinação entre reflexão conceitual e expressão narrativa, entre o interesse teórico e a preocupação política que o livro encontra seu melhor caminho.


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    www.campinas.com.br/.../psiquiatra-benilton-bezerra-discute-o-que-e...
    27 set. 2012 – Benilton Bezerra A CPFL Cultura, em Campinas, realiza nesta sexta-feira (28), às 19 horas, mais um encontro do Café Filosófico, desta vez ...
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    www.apontador.com.br/.../benilton_bezerra_da_silva___benitec___c...
    Encontre o endereço ou o telefone de contato Benilton Bezerra da Silva - Benitec - Coqueiral Coqueiral em Recife.
  3. Inconsciente e impermanência | Mente e Cérebro | Duetto Editorial

    www2.uol.com.br/vivermente/.../inconsciente_e_impermanencia.htm...
    Benilton Bezerra Jr. ©DARYL BENSON/GETTY IMAGES. A busca pelo conhecimento de si e a abordagem holística do ser humano e do mundo são apenas ...

Vídeos sobre benilton bezerra no Videolog.tv

www.videolog.tv/busca.php?cx...cof...benilton%20bezerra
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Fonte:
http://www.rubedo.psc.br/Artlivro/migrante.htm
Pesquisa GOOGLE
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A HISTÓRIA DA PSICOPATOLOGIA NO BRASIL - Benilton Bezerra



 

A história da psicopatologia no Brasil – Benilton Bezerra

 

Benilton Bezerra Jr.

Benilton Bezerra possui graduação em Direito e em Medicina, mestrado em Medicina Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1982) e doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1996). Atualmente é professor adjunto no Insituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisador do PEPAS (Programa de Estudos e Pesquisas sobre Ação e Sujeito (IMS/UERJ) e membro da direção do Instituto Franco Basaglia no Rio de Janeiro. Membro da direção da ONG Casa da Árvore. Participa como pesquisador do projeto de cooperação intercultural Brasil/Alemanha PROBRAL (CAPES/DAAD) sobre o tema: "O sujeito cerebral: impacto das neurociências na sociedade contemporânea". Tem experiência na área de Psicanálise, Psiquiatria e Saúde Coletiva, atuando no momento com os seguintes temas: neurociências, psiquiatria e psicopatologia; psicanálise e cultura; teorias da subjetividade, história dos processos de subjetivação, ética e clínica em saúde mental, reforma psiquiátrica no Brasil.

Benilton Bezerra | A história da psicopatologia no Brasil from cpfl cultura on Vimeo.
O que é ser “normal”? O que significa “patologia mental”? Qual o limite entre uma diferença extravagante e a expressão de uma doença da mente? Como lidar com os que rotulamos como sendo loucos ou portadores de transtornos mentais? Estas e outras questões contextualizam a história da psicopatologia no Brasil, tema deste Café Filosófico CPFL, que terá a participação de Benilton Bezerra, psicanalista, psiquiatra e professor do Instituto de medicina social da UERJ. “Uma das maneiras de refletir sobre a cultura brasileira, passada e atual, é explorar as maneiras como o olhar psiquiátrico e o imaginário social lidaram, e lidam, com essas questões”, afirma Bezerra. Segundo ele, a “ainda pouco conhecida história psiquiátrica brasileira tem capítulos tristes e outros vigorosamente estimulantes. A cultura brasileira atual é atravessada pela expansão aparentemente ilimitada dos transtornos mentais. Este encontro visa abordar alguns dos tópicos centrais desse universo temático.

Benilton Bezerra possui graduação em Direito e em Medicina, mestrado em Medicina Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1982) e doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1996). Atualmente é professor adjunto no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisador do PEPAS (Programa de Estudos e Pesquisas sobre Ação e Sujeito (IMS/UERJ) e membro da direção do Instituto Franco Basaglia no Rio de Janeiro. Membro da direção da ONG Casa da Árvore. Participa como pesquisador do projeto de cooperação intercultural Brasil/Alemanha PROBRAL (CAPES/DAAD) sobre o tema: “O sujeito cerebral: impacto das neurociências na sociedade contemporânea”.
Gravado em 28 de setembro de 2012

 Pablo Picasso
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