sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A ARTE EM BERGSON




           Trans/Form/Ação  
Bergson e a busca metódica do tempo perdido
I
E bem o que a Natureza fez de vez em quando, por distração, para alguns privilegiados, a Filosofia, em matéria parecida, não poderia tentar, num outro sentido e de uma outra maneira, para todo mundo? O papel da Filosofia não seria aqui o de nos levar para uma percepção mais completa da realidade por um certo deslocamento de nossa atenção? Tratar-se-ia de desviar essa atenção do lado praticamente interessante do Universo e de fazê-la voltar-se àquilo que, praticamente, não serve a nada. Essa conversão da atenção seria a própria Filosofia (Bergson, 1, p.153).

Em La Perception du Changement Bergson afirma que a filosofia - compreendida e exercida tal como ele a concebe, isto é, livre e desembaraçada de certas tendências e certos equívocos clássicos - poderá fazer para as pessoas de um modo geral mais ou menos aquilo que a Natureza fez para os artistas. E o que a Natureza fez para os artistas? Ela desligou, desvinculou neles o conhecimento real do interesse pela vida. O que significa, em termos mais precisos, que, no artista e em relação às pessoas comuns, os obstáculos para uma percepção mais alargada, mais próxima da temporalidade pura, são mais facilmente transponíveis, devido justamente à sua natureza de artista.

Esse desligamento do conhecimento real do interesse pela vida diz respeito, antes de tudo, a uma espécie de distração, que se dá em relação à tendência natural do ser humano de atenção à vida. O artista, pode-se dizer, é um desatento relativamente à consciência prática e sempre orientada para a ação, que concentra seus esforços naquilo que transforma a todo tempo o presente em futuro e aceita do passado apenas o que pode ajudá-lo a esclarecer o momento que advirá. 

A atitude do artista, como artista, isto é, desligado em certo grau e em relação a certo sentido da ação prática, segue na direção oposta ao que é habitual para o espírito: ao contrário do que naturalmente requer a consciência, a saber, um máximo de concentração e ao mesmo tempo um mínimo de amplitude, a atitude do distraído, em virtude mesmo de sua distração, chega a alcançar as zonas mais profundas e dilatadas do eu, em que se encontra tudo o que nossa percepção apreendeu do mundo exterior e que, em virtude do processo de "triagem" que o nosso sistema intelectual realiza, lá permanece na forma de esquecimento.

Os hábitos de pensamento e raciocínios aos quais nos impele a vida só fazem sentido se o que estiver em questão for a própria vida comum, isto é, um conhecimento que visa à ação em virtude de uma permanência do ser humano no mundo. Mas se o que está em questão é o conhecimento especulativo, que visa à gênese e a explicação da própria vida e da existência, então o caminho deverá ser o contrário ao habitual, pois a vida em si mesma, o real, a existência real ultrapassa toda e qualquer necessidade e individualidade, e se nós não temos acesso ao que é, é porque nos detemos demais no que funciona.

Nesse sentido, o que a nova filosofia poderá e deverá fazer é apontar primeiramente os maus hábitos (com relação ao conhecimento do ser, da existência, da vida) e, em seguida, dar as condições para marchar na direção do conhecimento verdadeiro. Conhecimento, no mais, que deverá possibilitar, entre outras coisas, que cada indivíduo possa conhecer o ser a partir de si próprio, que possa conhecer a si próprio, construindo seu próprio percurso "de si para si mesmo".

A constituição do método deverá levar o filósofo a percorrer um longo caminho - e mostrar, por exemplo, as confusões e intromissões dos dados espaciais na percepção do tempo, ou a "inutilidade" do conhecimento real em face da "utilidade" do conhecimento abstrato e representacional -, isso para que ele possa fazer algo próximo ao que a Natureza fez num ato simples: dar marcha, ou as condições de se marchar na direção do Tempo Perdido. Podemos dizer que a principal tarefa do filósofo, nesse sentido, deverá ser, ao fim e ao cabo, a de nos livrar dos obstáculos para um conhecimento verdadeiro, sobretudo acerca de nós mesmos, nosso eu integral que é essencialmente memória.

Em outras palavras, uma vez que a ação livre pressupõe essa integralidade do eu em plena atividade - e não apenas sua parte mais superficial, que visa a atender às necessidades funcionais -, a filosofia poderá nos dar as condições de avançarmos livremente com nosso ser no mundo. Tal como acontece com o artista, pois de certa maneira essa sua distração é também uma espécie de atalho à ação livre que fortuitamente a Natureza lhe concedeu.


               II
Há identidade entre o que somos e o ato de nossa liberdade, ou melhor, entre esse ato e nós há uma "indefinível semelhança", afirma Bergson nos Ensaios sobre os Dados Imediatos da Consciência, como, por vezes, se encontra entre a obra e o artista. A fim de compreender melhor o sentido preciso dessa afirmação, e da própria noção de liberdade, poderíamos nos perguntar, em primeiro lugar, o que significa essa semelhança entre nosso eu e nossos atos e, no caso da arte, entre a obra e o artista? 

Nossos atos livres são, em relação a nós mesmos, o resultado de um processo de amadurecimento, o qual não pode ser predeterminado nem desvinculado de nosso eu como um todo. 

Somente o nosso eu, isto é, tudo que somos e fomos até então é que lhes pode "reivindicar a paternidade". Eles são resultado de um movimento interno criador, e por essa razão mesma, único, pessoal, exclusivo, relativo unicamente àquele que o produziu. Eles são, pois, criação. A criação é o possível, ele mesmo apresentando-se como realidade: é "a doação de ser ao que não era e que poderia não vir jamais" (Bergson, 2, p. 52).2

No caso da arte, a obra não é extensão do artista, pois é um ser próprio, autônomo, mas que também guarda em si algo de sua própria origem - daí a semelhança. A obra é o "fruto amadurecido" que se desprende do artista, e que será dado a conhecer, como um ser único e autônomo, a posteriori, com o seu "desprendimento".

A obra de arte é, nesse sentido, um risco, já que não há como prevê-la; e até mesmo o artista só a conhece plenamente quando ela está pronta. Todo o jogo da criação é interno, e se realiza dentro de um campo de hesitação. A hesitação não é senão esse risco, de lançar-se num movimento que não tem mais razão de seguir nesta ou naquela direção, mas que só será reencontrado depois de realizado. A liberdade é o alcance desse esforço de mudança sem garantias. O ato livre, tal como a obra de arte, é o "fruto amadurecido" que poderia não amadurecer.

A criação se dá a partir dessa determinação interna, que atravessa a hesitação e faz com que obra, no caso do artista, e nossos próprios atos, com relação a nós mesmos, nasçam, enfim, de seu próprio devir.
Poderíamos nos perguntar também por que essa semelhança é indefinível. Por que e para quem ela é indefinível? A semelhança entre o artista e sua obra é indefinível para nós que a vemos de fora, isto é, nós, os não-artistas, é que não podemos defini-la? Quanto a este ponto, dado que há exclusividade, parece não haver dúvida de que não há mesmo como apreender exatamente a emoção única vivida pelo artista, donde não haver meios para uma comparação. Mas mesmo em relação ao artista, essa relação não seria indefinível por si mesma ao olhar de si mesmo? 

De tudo o que podemos apreender das noções bergsonianas envolvidas nessa questão, chegamos ao ponto de que do eu o próprio eu não pode ter definição. Não porque seja mistério, um enigma que a vida não nos possa revelar, mas antes porque é o que não tem proporção nem relação: é a incomensurabilidade e a imprevisibilidade. "Às vezes" há semelhança, nunca saberemos, pois nada pode ser dito nem definido a priori. A obra é, com efeito, o "que se diz depois", tarde demais, já que a referência é o ato que a originou, o movimento contínuo do qual surgiu. Ela nunca dirá tudo, pois não há meios materiais para isso, não há linguagem que possa traduzir a emoção da duração. Assim, também o artista toma conhecimento de sua experiência por intermédio de sua obra, e até mesmo para ele, essa experiência não será de todo revelada.

              III
Ao apresentar o tema da liberdade nesses termos, Bergson toma uma direção totalmente diversa daquela tomada pelos defensores da tese do livre-arbítrio. Diferentemente do que acontece ali, na concepção bergsoniana de liberdade não há lugar para um sujeito atemporal diante de dois pólos de uma escolha predeterminada. Esse esquema, nos alerta o filósofo, é puramente representacional. Nossa atitude - aquela que advém do nosso eu mais profundo, isto é, que advém de uma intimidade própria em que há o menor comprometimento possível com as circunstâncias práticas de atenção à vida - esse ato enfim, se dá no tempo. E o que é o tempo, nos ressalta Bergson, senão aquilo que impede que tudo seja dado de uma só vez? "O tempo deve ser, pois, elaboração" (Bergson, 3, p. 102).

A própria modificação engendra modificação: no caso de um pintor, afirma, seu talento "se forma ou deforma, em todo caso se modifica, sob a influência das próprias obras que produz. Da mesma maneira, continua, cada um de nossos estados, ao mesmo tempo em que sai de nós, modifica nossa pessoa, sendo a forma nova que nós iremos nos dar" (Bergson, 5, p. 7). Todo o nosso eu se modifica a cada ação, e então é um eu todo diferente que age livremente a cada vez.

A liberdade bergsoniana se distancia do esquema clássico de alternativa, em que se supõe o sujeito do livre-arbítrio em face de dois pólos ante os quais ele oscila, e nos oferece um novo esquema, o da alternância, de resto compatível com o absoluto da duração.3 E de que se trata essa alternância? O que o Ensaio nos mostra é que o ser humano é tanto mais livre quanto mais a determinação de seu ato emanar do eu profundo; e tanto menos livre quanto mais o eu superficial dirigir, no campo do automatismo, seus atos. 

Vemos assim, na prática, uma alternância entre dois momentos: aquele em que nosso eu toma a direção do seu interior e aquele outro em que permanecemos na superfície. Assim, quando o eu profundo se cala, permanecemos indiferentes ao plano do tempo perdido (plano da interioridade, da memória integral), e a liberdade não se realiza plenamente; e quando o eu superficial reina, a lei nos é dada do exterior, principalmente pelas necessidades sociais. Quando o eu profundo emerge e se impõe, não há um processo de escolha propriamente dita, nem de dever, mas existe antes uma inversão súbita da relação de forças, normalmente desfavorável à manifestação de diferenças individuais, íntimas. Mas se não há que se falar em escolha nem em decisão, devemos nos perguntar então o que faz com que se realize essa inversão na relação de forças. 

Somos levados assim a observar o papel singular exercido pelas circunstâncias nessa análise acerca do problema da liberdade. São as circunstâncias excepcionais vividas pelo indivíduo que provocam de alguma maneira o eu profundo, dando-lhe densidade e fazendo com que ele se imponha à sua camada mais superficial. E só mesmo circunstâncias muito especiais são capazes de nos retirar da nossa cômoda posição de superfície. O sujeito atemporal do livre-arbítrio dá lugar assim ao indivíduo, o qual não pode ser um a priori, mas um contemporâneo do ato livre: é a pessoa que encontra a ocasião de se recolher, de contrair todo o seu ser num ponto, em um instante que lhe dará uma direção única.

Seguindo os passos do Ensaio, poderíamos afirmar que a liberdade que ele nos apresenta consiste antes num estado do que numa faculdade. Na verdade, um estado de exceção. O próprio termo faculdade parece já remeter fatalmente ao esquema representacional de um sujeito que pode e deve escolher entre possibilidades preexistentes e por isso mesmo exteriores ao próprio tempo. Entretanto, para que se considere o termo estado, é preciso não perder de vista o seu caráter ativo, pois não se trata aqui de uma referência a uma situação de espera ou de passividade, mas muito ao contrário, trata-se de uma atividade que apenas difere da ação ordinária na medida em que a imprevisibilidade é que dita as leis. Mais uma vez, de maneira muito semelhante à do artista quando cria sua obra. 

O que é uma obra de arte senão elaboração, fazer, trabalho de construção, objeto palpável? 
Ora, esse trabalho de construção, de composição, de feitura enfim do objeto também se dá no tempo. Assim sendo, não há como supor algo como uma obra possível, no sentido de preexistente, que anteceda a obra real:

Quando um músico compõe uma sinfonia, sua obra era possível antes de ser real? Sim, se entendermos por isto que não havia obstáculos intransponíveis à sua realização. Mas deste sentido negativo da palavra passamos, sem perceber, para um sentido positivo; admitimos que tudo o que se produz podia ser antecipadamente percebido por um espírito suficientemente informado, preexistindo assim, sob forma de idéia, à realização; concepção absurda no caso de uma obra de arte, pois desde o momento em que o músico possui a idéia precisa e completa da sinfonia que ele fará, sua sinfonia está pronta.

Nem no pensamento do artista, nem, e com maior razão, em nenhum outro pensamento comparável ao nosso, mesmo impessoal, mesmo virtual, estava a sinfonia na qualidade de possível, antes de ser real (Bergson, 2, p.13).
            IV
Dizer que a liberdade se relaciona a um estado, a um estado de exceção propriamente, significa reconhecer que os momentos de liberdade e de criação são de um modo geral muito raros. Na maioria do tempo permanecemos na superfície do nosso eu. Para o artista nem tanto. E por quê? Porque para ele essas circunstâncias extraordinárias propícias à interiorização do seu eu não são tão extraordinárias assim. Ou melhor, devido justamente a essa sua percepção mais desligada, ele é muito mais permeável à força da ação das coisas e dos seres sobre si. As oportunidades para a criação lhe são, digamos, mais favoráveis, devido justamente a sua própria natureza, a sua percepção mais desimpedida do real. Com relação a esse ponto, a filosofia parece desempenhar um papel muito importante. 

O que pode o filósofo? Ele pode propiciar em certo sentido e grau essa espécie de abertura às circunstâncias tão características nos artistas. De que maneira? Metodicamente.

O método filosófico visa a um meio de apresentar mais diretamente a verdadeira realidade que é puramente temporal e, portanto, imediata. Mas em Bergson, mesmo o imediato precisa de uma mediação, ao menos no sentido de que é preciso livrar o espírito dos hábitos espacializantes da matéria. A filosofia expõe e se expõe no seu percurso crítico. O filósofo não pode deixar que assistamos ao seu trabalho de filósofo. Nesse sentido, podemos dizer que uma das principais contribuições do seu método seria a de viabilizar para todos, ou qualquer um, as condições fundamentais de caminhada em busca da realidade absoluta, que é pura temporalidade. Não obstante a filosofia vise à Totalidade, o conhecimento do real não exclui a esfera da individualidade. No caso de um indivíduo, ele pode se dar na coincidência de sua consciência com sua duração própria. E como já vimos acima, esse é o momento em que o eu se desloca livremente e recria a si próprio.

Voltando mais uma vez à aproximação entre o ato livre e a atividade artística - ou o que chamaríamos aqui de dimensão estética da liberdade bergsoniana - não seria lícito pensar na atividade filosófica - cujo principal objetivo deve ser o de "provocar um certo trabalho que tende a entravar, na maior parte dos homens, os hábitos de espíritos mais úteis à vida" (Bergson, 4, p.186) e, assim, dirigir a consciência a uma observação mais desimpedida do real - como uma espécie de estímulo dirigido à distração?

Não poderá o filósofo, por meio do método, promover uma certa distração com relação à vida, justamente para que se possa, enfim, percebê-la melhor? E isto também não significaria a promoção dirigida da inversão das forças internas do eu profundo que se realiza fundamentalmente em virtude das circunstâncias? Neste caso, pode-se dizer, o filósofo poderá fazer metodicamente algo próximo ao que a Natureza fez com absoluta simplicidade: transformar pessoas comuns em artistas, em agentes livres, criadoras de si mesmas. No caso da vida de cada pessoa, trata-se principalmente de dar condições para que cada indivíduo crie a si próprio, pelo menos mais freqüentemente, tal como o artista incansável em busca de sua própria perfeição.


Todas as pessoas hoje não conseguem mais se situar em cada momento que elas estão. Elas não estão ali. O tempo foge”, opina o relojoeiro.
A arte, para Bergson, permite uma outra experiência do tempo.
“O ator, no processo de criação, é Deus. Ele tem o poder de lidar com o tempo. O ator é um duplo. É quase como o jogo do ventríloquo, ou da marionete. Quer dizer, o ator está sempre manipulando o tempo, ele está conduzindo o espectador”, teoriza o ator Luís Mello.

Na arte, os ponteiros do relógio podem correr para trás. As leis do tempo, como conhecemos, deixam de valer. O instante poético rompe com o instante do nosso cotidiano. Era o que pensava o filósofo francês Gaston Bachelard.

“O poeta vive outro tempo quando está fazendo poesia. É um tempo desconstruído, um tempo que não tem sujeito, verbo e predicado; início, meio e fim”, diz o poeta Chacal. “O barato e a onda é o tempo em suspensão. É muito bom exercitar isso, para você não achar que o tempo é essa coisa que nos escraviza, que nos martiriza”.

“Se você conseguir, pelo menos aos poucos, ter consciência desse tempo e tentar, como na arte, ali no momento, criar esse tempo para você como pessoa, pessoa comum, que vai à farmácia, que vai ao supermercado... Você consegue um tempo de andar pelas ruas, tempo de olhar. Observar as coisas”, opina Luís Mello.

“O tempo do embrião talvez não seja o mesmo tempo do ancião. Talvez o tempo da ira e da alegria não sejam rigorosamente os mesmos. Talvez haja uma revolução para se fazer na experiência do tempo. Talvez seja necessário fazer uma reengenharia do tempo”, diz o físico.


                                          FRAGMENTO –
A intuição como requisito para a compreensão da obra de arte
A fundamentação da crítica de Ângelo Guido constitui-se de elementos advindos de tendências divergentes: de um lado, o pensamento filosófico do idealismo romântico - nas teorias de Fichte, Schelling e Hegel - estendendo-se no intuicionismo de Bergson e Croce; e, de outro lado, as teorias formalistas de concepção da arte, nas abordagens de Fiedler, Riegl e Wölfflin. Estas vertentes teriam uma mesma origem, o criticismo de Kant, mas com um desenvolvimento de suas propostas em rumos opostos.

Na concepção de Ângelo Guido, a crítica de arte é a tomada de consciência dos valores formais e expressivos que constituem a produção artística. A obra de arte deve ser uma expressão, criada de tal maneira, que permita ao observador recompor, reviver a realidade viva que se expressou. Por isso, para julgar uma obra, é preciso, primeiro, saber compreendê-la, e compreender “não é, simplesmente, analisar e descrever a forma e estabelecer relações de seus elementos estruturais com os de outras formas já conhecidas. Compreender é penetrar interiormente, ressuscitar a vida, extrair do imóvel a mobilidade, da aparência o real, do superficial o profundo.” (2)

Um dos parâmetros de Guido foi o conceito de intuição de Bergson, que ele transpõe para sua crítica e esclarece ser por meio da intuição (3) que podemos compreender o sentido da obra de arte, tornando-o vivo. Ao contrário da análise, que se encaminha no sentido de traduzir os símbolos de uma representação, a intuição permitiria perceber o “palpitar da alma” que criou, assim é possível penetrar no interior do objeto e atingir o que ele tem de inexprimível. O historiador da arte, segundo ele, precisa penetrar nesse conteúdo presente na obra, tornando-a viva, para não cometer o erro de “exumar formas mortas”. Descobrindo o sentido da forma, descobre-se o processo em que ela foi criada.

Guido tinha como meta a realização de uma arte ideal, espiritualizada. Ter presente a espiritualidade é essencial para a arte realizar-se de forma verdadeira, e é, exatamente, a ausência desse espírito que faz com que ele critique a arte modernista, embora seja a favor de uma expressão artística moderna, como algo inovador e revelador da vida interior. E é como revelação de uma vida transcendental que Ângelo Guido concebe a arte. A arte não tem sentido se não for uma busca do espírito de procurar revelar-se por meio de formas e ritmos.

A sua crítica tende a julgar as obras de uma maneira orgânica e a considerar a produção dos artistas individualmente, em relação às manifestações artísticas e socioculturais. A crítica de Guido também busca tanto a essência da arte ou do fenômeno artístico, como uma correspondência entre a linguagem específica de um artista e o contexto cultural em que este se insere.
                                                   
           John Alexander Gunn

Bergson e a Filosofia dele pensamento conceitual. Ambos são momentos no processo total de homem
tente vir a condições com o universo, e muito grande ênfase em
qualquer um torce e falsifica a situação na qual nós nos achamos
neste planeta. A insistência em intuição é indubitavelmente devida, a fundo,,
para a admiração de Bergson para a atividade no artista criativo. 

O borda-linha entre Arte e Filosofia se torna quase uma linha imaginária
com ele. No um caso como no outro nós temos, de acordo com ele, para
adquira dentro do objeto por um tipo de condolência. Retifique, há isto
diferencie, ele diz, aquela intuição estética alcança só o
individual--que é duvidoso--considerando que a intuição filosófica é
seja concebido como um "recherche orientee dans la meme sens que l'art,
realmente, mas prendrait de qui vertem la de objet competem o general de en." Ele falha
note, pode ser observado, que a expressão do estético
intuição, quer dizer, Arte, sempre é fixo e estático. 

Isto à vista de outros aspectos da doutrina dele é notável. Mas aparte disto
tente identificar praticamente Arte e Filosofia--uma tentativa desesperada--
há, claro que, disponível como uns meios de explicação o famoso
e não tendência completamente deplorável do protestant e inovador para
exagere o caso dele, trazer fora por ênfase forte o aspecto com,
o qual ele está principalmente preocupado e o qual ele pensa foi indevidamente
negligenciado. Isto, como indicado, tem seus méritos, e não só ou principalmente para
Filosofia, mas também, e talvez principalmente, para a conduta de vida. Se
ele convence os homens, se eles deveriam precisar convencer, que eles não podem ser salvados
só, pela razão discursiva ele terá feito um serviço bom a seu
geração, e aos filósofos entre eles pode que (entretanto eles
não deva) seja tentado para ignorar o elemento intuitivo em experiência.

A mesma tendência para em cima de-ênfase pode ser observada em outro lugar. É
por exemplo, notável nas discussões dele de Mudança que é assim 



 
  


Fonte: 
Trans/Form/Ação

Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O EXISTENCIALISMO È UM HUMANISMO - Frankin Leopoldo e Silva- 06


Anotações de aula do curso sobre Sartre 
ministrado pelo professor
dr. Franklin Leopoldo e Silva 
na FFLCH-USP

Material Enviado por José de Medeiros Machado Jr.
    Aula 6
[SARTRE, J-P -
Questão de Método  
– Segundo capítulo]

A verdade metódica do marxismo, ou o seu modo de verificar a realidade para atingir a compreensão de sua produção histórica, é algo que precisa ser reposto no seu caráter regulador e heurístico, para afastar os obstáculos do dogmatismo e da abstração. Trata-se talvez menos de discordar dos marxistas do que de fazer com que eles entrem em acordo com eles mesmos, isto é, com o potencial e o alcance do materialismo histórico. Neste sentido o método deve ser posto em questão para ensejar uma reflexão crítica acerca da racionalidade materialista e seus procedimentos implícitos. 

Com isto é possível que se desfaça pelo menos um equívoco: a confusão entre os procedimentos que se valem de conceitos heurísticos e reguladores, e uma tábua categorial fixa universalmente aplicável a partir de sua forma. Vejamos alguns exemplos de verdades metódicas que o marxismo traz em si, mas que ele precisa no entanto reconhecer como meios de construir a relação entre o movimento da realidade e o movimento de idéias.

1 – “O marxismo forma hoje, de fato, o único sistema de coordenadas que permite situar e definir um pensamento em qualquer domínio que seja, da economia política à física, da história à moral.” (Garaudy) Sartre acrescenta: “estamos de acordo com ele. E o estaríamos da mesma maneira se ele tivesse estendido sua afirmação – mas não era seu tema – às ações dos indivíduos e das massas, às obras, ao modo de vida, de trabalho, aos sentimentos, à evolução particular de uma instituição ou de um caráter.”

2 – “Não é, pois – como querem acreditar alguns por mera comodidade – um efeito automático da situação econômica, são ao contrário, os homens, eles próprios, que fazem a história; mas o fazem em um meio dado que os condiciona, sobre a base de condições reais anteriores, entre as quais as econômicas (…)” (Engels)

3 – “O modo de produção da vida material domina em geral o desenvolvimento da vida social, política e intelectual.”
(Marx)[1]

Uma vez aceitas tais afirmações como parâmetros de compreensão materialista da realidade histórica, resta construir o conhecimento concreto. Isto significa que o teor verdadeiro destas direções metódicas implica que elas se constituem como meios para o conhecimento de verdades concretas e não que elas são verdades concretas. Isto que parece óbvio, porque aparentemente se trata da relação entre meios e fins, mostra-se no entanto muito complexo. O movimento histórico ocorre através de um processo de relacionamento constante entre todos os elementos que compõem a realidade. As relações históricas ocorrem em vários níveis porque tudo que é real é histórico ou possui significado histórico. 

Os níveis de realidade se organizam desde a particularidade mais concreta, individual e singular até os patamares mais gerais e universais de relações que consigamos alcançar. O movimento da realidade histórica inclui todos os níveis de relações, e a passagem de um a outro somente conservará a verdade do movimento se preservar a carga de especificidade concreta de cada um. A consideração da realidade como práxis histórica supõe que se leve em conta todos os momentos envolvidos na produção desta realidade. Esta produção é um engendramento do real que depende da ação humana e das condições objetivas em que ela acontece. 

Quando se trata de uma realidade conflituosa, a percepção de cada momento concreto é essencial para que as relações progressivamente estabelecidas permaneçam reais, isto é, lastreadas pelo concreto, por mais gerais que venham a se tornar. Caso contrário o conhecimento se desvincula de sua base prática e se faz abstrato. Tomar todos os momentos compreendidos na especificidade de cada um é proceder a uma totalização que jamais abandona o movimento da realidade que se trata de conhecer, e não ignora qualquer de seus níveis de constituição histórica. Em suma, as verdades metódicas devem ser entendidas como condições reguladoras para o estabelecimento, o mais completo possível, das mediações.

Esta é a preocupação fundamental de Sartre: a totalização somente resulta em conhecimento concreto da realidade histórica se cumprir a exigência das mediações. É preciso então, mesmo correndo o risco da redundância, insistir no significado de mediação.

Dissemos que o movimento da realidade é um processo que ocorre por via de relações pelas quais a história se vai constituindo. Observemos desde já que o caráter objetivo destas relações não deriva de que o conhecimento as estabelece, mas sim do conhecimento de como elas se estabelecem no movimento real da história. Assim, o conhecimento deve acompanhar o engendramento do real nos diversos níveis de múltiplas relações, porque cada um dos momentos é meio para que o seguinte venha a ser. 

Mas como não se trata de vínculo causal linear e direto, a passagem de um momento a outro é ao mesmo tempo a produção da diferença, cujo esquema básico foi estabelecido por Hegel como o trabalho do negativo, isto é, o engendramento dialético do movimento histórico, pelo qual o momento seguinte surge muito mais a partir da negação do anterior do que da afirmação causal do primeiro.

Cada momento é pois meio não apenas no sentido de elo transmissor do movimento, mas graças à atividade que lhe é peculiar, atividade que provoca a sua própria supressão, ou a sua superação que é ao mesmo tempo a sua conservação, integrado no momento posterior. É esta identificação entre meio e ação pela qual algo se faz meio para que outra coisa venha a surgir que se designa como mediação – a ação média ou o meio agente que é o motor de transformação, isto é, de mudança das formas de experiência histórica, que são decisivas para a compreensão do movimento do fazer histórico.

Como cada momento é sempre ação de produzir outro momento, conhecer o movimento consiste em apreender cada um na sua especificidade produtora, caso contrário perdemos o caráter concreto desta produção. A relação que um momento mantém com outro é sempre de ação, mesmo que esta ação seja reiteração. O problema está portanto em entender as ações mediadoras pelas quais a história acontece. Para Sartre isto significa compreender as relações a partir do nível da singularidade, pois é nele que ocorre a experiência histórica concreta, sob condições que a ultrapassam. Não se pode portanto, separar a experiência singular da sua superação no contexto das condições objetivas, pois a experiência concreta da ação histórica já é a experiência de como a história supera esta ação. Pois é na efetuação concreta do fazer histórico que tal superação acontece. 

Quando Marx e Engels estabelecem a relação entre a atividade dos sujeitos históricos e as condições da ação, o que estão dizendo é que qualquer diferença que se faça entre a ação e suas condições obrigatoriamente supõe, de modo inseparável, o sujeito agindo e as circunstâncias sob as quais age, e que fazem com que sua ação lhe escape. Caso contrário haveria, entre a ação e as condições de seu contexto, uma determinação causal linear e não uma relação dialética. Por isso não há como desprezar a ação particular e a singularidade de quem age.

Como a ação escapa ao sujeito agente, a mediação ocorre também na inseparabilidade entre a ação e o momento histórico em que ela se dá: o engendramento da história se faz assim por via de ações mediadoras que se referem tanto à singularidade da ação quanto ao momento histórico em que ela ocorre, isto é, a situação a partir da qual o sujeito compreende o presente e visa o futuro. Sem esse cuidado com a consideração das mediações, as condições metódicas podem se transformar em “verdades concretas”, caso em que os meios de conhecimento não se distinguem mais da finalidade.

“È que consideramos as afirmações de Engels e de Garaudy princípios diretores, indicações de tarefas, problemas e não verdades concretas; é que elas nos parecem insuficientemente determinadas e, como tais, susceptíveis de numerosas interpretações: numa palavra, é que elas nos aparecem como idéias reguladoras.”[2]

Por que estas condições metódicas, em si verdadeiras, comportam o risco do idealismo e mesmo da fetichização?

1– A afirmação de Garaudy acerca da definição de “um pensamento em qualquer domínio” como correspondente à maneira de situá-lo é uma indicação vaga exatamente porque não nos informa como passamos, por via das mediações, do conhecimento geral à compreensão situada. Quais são os elementos que devem ser considerados para que possamos estabelecer o sentido de uma ação singular como inserção do sujeito na situação vivida, o mais das vezes contraditoriamente?

2 – Como a “compreensão possível” deve articular a relação entre o sujeito agente e as condições da ação, de que fala Engels, e também articular a pluralidade das condições para estabelecer o fio condutor do conhecimento? Que agimos sob condições e que nossa ação nos escapa não são afirmações difíceis de aceitar; o problema é compreender de modo concreto o peso relativo da ação e das condições, bem como a posição relativa das diversas condições (por ex., o prevalecimento da condição econômica).

3 – Como a dimensão social, a política e a intelectual, além de outras, devem ser compreendidas a partir de uma razão materialista e dialética? Como se dá a dominância da vida material, numa determinada experiência histórica de sua produção, sobre os demais aspectos?

O marxismo corre o risco de transformar estas questões em conclusões, e portanto iniciar o conhecimento histórico já de posse dos resultados que deveria obter. Os exemplos que Sartre fornece no início do capítulo 2 de Questão de Método procuram mostrar esta confusão. Ela deriva principalmente, como já se havia visto, da identificação de procedimentos heurísticos com idéias constitutivas. Classe, interesse de classe, antagonismos, objetivos, burguesia, pequena burguesia, campesinato, conflitos, etc., deveriam ser entendidos como elementos de elucidação concreta de uma dada situação, e não como categorias que, uma vez postas em relação, produzem por si próprias conhecimento. Dessa maneira, a história se torna uma relação de forças desvinculadas dos indivíduos que as vivem e as encarnam. 

Não se trata de afirmar que os indivíduos, pela liberdade de agir, superam as forças das condições e das circunstâncias. É preciso considerar a relação dialética presente em cada momento histórico, e portanto o modo como o indivíduo reage a estas forças, pela interpretação da situação e pelo modo de agir decorrente. Se não considerarmos este nível singular de mediação, não compreenderemos a relação entre as ações concretas e o movimento histórico, e a tendência será então traduzir a relação num determinismo linear entre a universalidade e a singularidade. 

Nesse caso, os conceitos perdem de vista a experiência que deveriam esclarecer e que se refere sempre a episódios históricos concretos. Se há um sentido geral, ele só pode surgir do embate contingente entre os indivíduos e os fatos, na forma da dupla efetividade da realidade e da subjetividade. O conhecimento da prática efetiva nem sempre irá corroborar um saber antecipado acerca do interesse de classe, do antagonismo e dos objetivos perseguidos. O saber não está previamente constituído nas condições metódicas.

“É preciso simplesmente rejeitar o apriorismo: unicamente o exame sem preconceitos do objeto histórico poderá, em cada caso, determinar se a ação ou a obra reflete os móveis superestruturais de grupos ou de indivíduos formados por certos condicionamentos de base ou se só se pode explicá-los referindo-se imediatamente às contradições econômicas e aos conflitos de interesses materiais.”[3] 

Situar, preceito metódico indispensável para a análise de situação, pode vir a tornar-se de fato a aplicação de um esquema, precisamente aquele formado pela rede conceitual a priori das condições de conhecimento. Esta rede assegura a universalidade, sem dúvida; mas quando a utilizo simplesmente para capturar o objeto concreto, sua singularidade se dissolve na generalidade esquemática, porque o quadro conceitual que absorve aquele objeto poderia fazê-lo com qualquer outro. Tal homogeneidade forçada somente triunfa como conhecimento se o ponto de partida e o ponto de chegada forem as condições de inteligibilidade da experiência: a passagem pelo objeto particular, isto é, pela própria experiência, reduz-se apenas à designação de um exemplo, dentre muitos outros possíveis, de determinação geral.

Tomemos, o caso de Paul Valéry, hipótese de Sartre. Para compreendê-lo, podemos remeter o indivíduo ao grupo de que se origina, a pequena burguesia; estudaremos suas contradições, seus interesses e as condições materiais dos conflitos em que está envolvido; definiremos assim este grupo perante a sua classe e perante outros grupos, e deduziremos daí uma atitude social típica, que aplicaremos a Valéry.

Ora, isto não constitui um conhecimento compreensivo, pela simples razão de que tais procedimentos não nos fizeram ir mais longe do que o estabelecimento, ou a reiteração, das condições gerais de conhecimento. Falta a passagem à singularidade, mas esta se torna impossível se o ponto de partida já não tiver sido também o singular. Por isso Sartre diz que neste caso temos um “esqueleto de universalidade” que é a “verdade em seu nível de abstração”.[4] Podemos até falar aqui em uma dupla abstração: as condições de conhecimento consideradas em si mesmas redundam em generalidade abstrata; e o objeto singular que nelas é dissolvido torna-se a particularidade abstrata.

É importante assinalar que as condições de conceitualização ou de universalidade devem ser consideradas verdades, do ponto de vista metódico; mas como se trata de conhecer um objeto singular e não uma categoria universal, o método é parte integrante da produção de uma verdade que somente será encontrada numa relação dialética entre as condições de conhecimento e a consideração da singularidade do objeto. Se não, Valéry e sua obra serão diretamente explicados pela relação de subordinação entre o esquema conceitual e o objeto particular. Chama-se a isso determinar.

Ora, em que sentido devemos entender aqui a determinação? Não no sentido realista, que é o conhecimento do particular na sua particularidade, mas no sentido lógico ou ideal de subsumir, isto é, de trazer o particular para o nível de generalidade onde já possuo uma explicação para ele na medida em que esta já está pressuposta nas condições gerais de subsunção, para usar um termo kantiano. É neste sentido que Sartre conclui a análise do exemplo dizendo que Valéry “evaporou-se”, pois a única coisa que se pode concluir da análise é uma vinculação geral entre as condições materiais da pequena burguesia e o idealismo no qual ela expressa suas contradições. O que, aliás. é verdadeiro: o idealismo é o meio de expressão do grupo a que pertence Valéry; é ao mesmo tempo a sua afirmação e a sua defesa perante os outros grupos com os quais está em conflito. 

Mas se queremos conhecer concretamente o poeta Valéry não basta considera-lo como uma manifestação do idealismo pequeno burguês; temos de compreender o duplo processo pelo qual ele produziu o seu idealismo ao mesmo tempo em que o idealismo de sua classe o produzia. Temos de compreendê-lo como sujeito ativo, que elabora ou reelabora o modo de expressão idealista do mundo; esse modo de pensar e de exprimir que foi arma de ataque quando a burguesia era classe ascendente e que se torna arma de defesa quando ela se torna classe dominante.

Isto significa que o caráter conservador do idealismo é ele mesmo um produto histórico e não uma forma lógica. Analogamente, o idealismo em Valéry não é simplesmente a forma de expressão burguesa manifestando-se num indivíduo; é uma produção singular pela qual Valéry reinventa singularmente as aspirações de sua classe.

Em suma, as condições particulares que somente podem ser encontradas no sujeito particular são mediações indispensáveis para que possamos apreender realmente a inserção histórica do indivíduo e o seu modo singular de expressar a universalidade. A verdade de Valéry é a totalização sintética dos condicionamentos de classe e da experiência singular pela qual o indivíduo as viveu. Totalização que só pode ser atingida se o conhecimento for o resultado da aplicação heurística dos conceitos gerais à compreensão do trabalho singular de historialização do sujeito. Porque Valéry se faz histórico como Valéry e não como qualquer outro indivíduo. “Valéry é um intelectual pequeno-burguês; quanto a isto não há dúvida. Mas nem todo intelectual pequeno-burguês é Valéry. A insuficiência heurística do marxismo contemporâneo revela-se nestas duas frases.”[5]

Assim Sartre pretende recuperar o realismo imanente ao materialismo histórico pelo estabelecimento de relações mediadas entre o geral e o particular. Para isso é necessário explorar em todo o seu alcance e profundidade a noção de situação. Situar não é apenas relacionar o universal abstrato com o particular abstrato: dizer que o intelectual pequeno-burguês é idealista porque sua classe é idealista é quase uma tautologia, ou pelo menos é algo que já sabemos antes de conhecer qualquer intelectual pequeno-burguês.

Relacionar duas instâncias abstratas pode levar a uma causalidade lógica, mas não mostra como a subjetividade engendra sua singularidade a partir de condições gerais de modo mais complexo do que uma causalidade linear. “Este método não nos satisfaz: ele é a priori; não tira os seus conceitos da experiência – ou, pelo menos, não da experiência nova que ele procura decifrar -, ele já os tem formados, já está certo de sua verdade, emprestar-lhes-á o papel de esquemas constitutivos: seu único objetivo é fazer entrar os acontecimentos, as pessoas ou os atos considerados em moldes pré-fabricados.”[6]

É preciso ainda apontar a incongruência deste apriorismo na sobreposição da causalidade final à causalidade eficiente. Se a consciência individual, a ação e outras instâncias do particular são apenas reflexos das condições gerais que as determinam, então estas atuam à maneira de causas eficientes, produzindo imediatamente o efeito. Ao mesmo tempo, no entanto, como os efeitos são considerados conseqüências necessárias, eles devem estar de algum modo presentes nas causas não apenas como desdobramento produtivo mas também como finalidade implicada no desenvolvimento das causas. Pois a causa não age tanto no plano imanente da relação eficaz ou mecânica quanto na dimensão finalística do efeito a ser necessariamente produzido. 

É neste sentido que a totalidade pode ser dada a priori: os fins devem estar contidos no movimento inicial para que haja determinação completa. Dessa maneira joga-se com dois sentidos de determinação causal: a produção eficiente entendida como relação mecânica; e a necessidade do efeito a partir de uma ordem finalista.

Este procedimento apresenta pelo menos dois problemas. O primeiro deles consiste na dificuldade de se explicar como a finalidade pode estar contida na ação inicial e no encadeamento das ações posteriores já que é precisamente neste processo que as ações escapam aos agentes. Há que se supor uma força que encaminha o processo para o desfecho necessário, quaisquer que sejam as ações. Mas então como se pode dizer que os homens fazem a história?

O segundo problema consiste em supor que há uma relação entre condições iniciais e conseqüências finais concebida de forma direta e como desdobramento finalístico, o que torna supérfluo a consideração das mediações, já que afinal se pode totalizar sem elas, considerando-se a determinação apenas como relação formal entre causas e conseqüências, e esquecendo-se que há neste caso um movimento histórico que passa pela desordem e pela contradição dos projetos humanos. Em vez da produção histórica pela ação diferenciada – e até o ponto da contradição – temos a assimilação do resultado à ação inicial, como num esquema antecedente/conseqüente.

Ora, isto implica uma visão absoluta do processo histórico, a temporalidade desdobrada diante de um sujeito onisciente, a anulação da contingência, enfim, “o movimento perpétuo em direção à identificação.”[7] Se a expressão idealista do mundo, própria da burguesia, é uma em 1930 e outra em 1950, não importa: trata-se da expressão burguesa do mundo. Se ocorre neste romancista, naquele poeta ou naquele filósofo, também não importa. As diferenças têm que ser absorvidas pelas condições gerais. Não será este procedimento uma conservação da hierarquia característica do racionalismo tradicional, segundo o qual o particular concreto somente encontra seu sentido nas condições gerais de totalização formal?

Ora, Sartre cita uma carta de Marx a Lassalle, em que a pesquisa é definida como movimento que “se eleva do abstrato ao concreto”, isto é, em que a totalização respeita os elementos da situação concreta.[8] Isto significa que o conhecimento ganha amplitude compreensiva (“se eleva”) quando o abstrato for, quando muito, ponto de partida. Assim ao estudar a população inglesa em meados do XIX, Marx parte da “população” como referência geral de um objeto ainda abstrato. Terá de considerar as classes que a formam, as relações de trabalho, etc., para que a visão de conjunto ganhe articulação e pertinência e não permaneça como representação geral.

Nem por isso caímos no nominalismo; as representações gerais são os elementos condicionantes da situação e, por isso, o movimento histórico pode ser conhecido também através de estruturas gerais. O marxismo fornece uma armação conceitual para compreender estas estruturas: forças produtivas, relações de produção, capital, trabalho assalariado, mais-valia, etc. Tudo isso forma uma generalidade que comporta abstratamente o que há para saber.

O conhecimento “consiste em esclarecer as estruturas mais profundas pela originalidade do fato considerado, para poder determinar em compensação esta originalidade pelas estruturas fundamentais. Há um duplo movimento.”[9] 

Novamente Sartre insiste na relação dialética entre universalidade e singularidade, aqui nomeadas como estruturas e fatos. O fato se conhece pela estrutura e a estrutura pelo fato. Do ponto de vista analítico seria uma circularidade, e seria ainda um círculo vicioso, porque romperia a ordem hierárquica entre geral e particular. Mas se abandonamos a simples relação de subordinação lógica e consideramos as articulações reais, nada nos impede de compreender que a estrutura modifica o fato assim como o fato modifica a estrutura. Assim a burguesia comprometida com o movimento histórico do qual resultou a Revolução é também a burguesia que deseja frear o movimento histórico. 

Para compreendermos esta dualidade, temos que entender as relações entre ações e situação em cada caso, a ação revolucionária e a ação contra-revolucionária a partir das condições históricas (materiais, econômicas) que levam o indivíduo a modificar o seu contexto ao mesmo tempo em que é modificado por ele. O burguês revolucionário naturalmente não se reconhece como também contra-revolucionário, ele não quer deliberadamente parar a história, ele quer que uma determinada institucionalização política da Revolução a consolide e o consolide – e à sua classe – no poder, e neste sentido ele quer parar a história no mesmo momento em que pretende realizá-la. Ele está situado numa estrutura mais ampla que somente será elemento de explicação se compreendermos também como ele se situa neste contexto.

Se o indivíduo faz a história, ele não pode ser instrumento passivo, nem da história e nem de sua classe.

É neste sentido que Sartre critica Guérin quando este procura explicar certos episódios da Revolução, as controvérsias e os resultados, em termos de “operação da burguesia”, fazendo da noção um ente e caindo assim na confusão entre condições de inteligibilidade e fatos reais.

Esse propósito contínuo de evitar a singularidade talvez possa ser explicado por uma estranha inversão: como a estrutura condicionante é histórica, isto é, prática, somos levados a ver nela o elemento concreto de explicação e a diluir na generalidade da condição o singular, que em si mesmo nos aparece como abstrato, já que o seu sentido está a princípio nas relações que o definem no interior do contexto.

Mas esta visão não está de acordo com a produção histórica. É verdade que o indivíduo isolado na sua particularidade torna-se abstrato. Mas tal abstração não é a única maneira de considera-lo. Pois a sua singularidade é intrínseca ao processo histórico no qual ele se faz indivíduo singular, e a sua individualidade é histórica e concretamente produzida, ao mesmo tempo por ele e pelas condições de sua inserção na situação. Este duplo movimento produz sua diferença e o torna concreto. Por isto Valéry é idealista subjetivo à sua maneira, que é diferente de outro intelectual pequeno-burguês. 

Se esta relação ativa do indivíduo com a história, com a sua classe e com os demais não for considerada, se nos fixarmos numa visão unilateral de história, de classe, etc. corremos o risco de tornar a própria prática uma estrutura abstrata, ou um determinante lógico-causal.


 Fonte:
CONSCIENCIA:ORG
http://www.consciencia.org/cursosartrefranklin6.shtml
Material Enviado por José de Medeiros Machado Jr.
Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

O EXISTENCIALISMO È UM HUMANISMO - Frankin Leopoldo e Silva- Aula 05


Anotações de aula do curso sobre Sartre 
ministrado pelo
professor dr. Franklin Leopoldo e Silva 
na FFLCH-USP

A relação entre subjetividade e conduta supõe o problema da reflexão, e este por sua vez está ligado à questão da posição da consciência no processo de conhecimento e de ação. Procuremos compreender como Sartre rearticula estes elementos. A reflexão é atividade subjetiva e este ponto não pode ser ignorado mesmo nas teorias mais objetivistas do conhecimento, se entendermos que este é uma relação entre dos termos, sujeito e objeto, qualquer que seja o peso relativo que se venha a atribuir a cada um. O conhecimento é uma conduta humana que possui uma determinada forma de expressão. Esclarecer a função da subjetividade no conhecimento é compreender seu modo de presença na conduta cognitiva. Tal conduta consiste no estabelecimento de um vínculo entre três elementos: sujeito, objeto e verdade: a relação entre os dois primeiros deve ensejar o aparecimento do terceiro na forma do desvelamento, sobre o qual falaremos mais adiante. Como deve ser pensado o vínculo entre a relação sujeito/objeto e a verdade?

Habitualmente a verdade é vista como o resultado da relação sujeito/objeto estabelecida a partir de regras formais e de uma determinação do conteúdo. O modelo kantiano, por ex., prescreve estas regras e este modo de determinação, instituindo um certo equilíbrio entre a estrutura formal e o conteúdo de realidade, e este equilíbrio, como depende do conhecimento de razão, tem seu fundamento na concepção apriorística do conhecimento, na qual se revela o trabalho da subjetividade transcendental.

Na concepção do conhecimento como conduta, a diferença entre as instâncias subjetiva e objetiva deve ser feita no plano da realidade, pois a conduta do sujeito não pode ser reduzida à forma de apreensão, nem o objeto pode estar formalmente constituído no nível do a priori, ou seja, a conduta cognitiva supõe a relação entre um sujeito real e uma realidade objetiva. Reencontramos aqui a idéia da dupla realidade ou da reciprocidade das efetividades: a realidade efetiva e a subjetividade efetiva. Isto significa que não pode haver atividade constituinte, nem em sentido metafísico, nem em sentido transcendental. Dito de outro modo, a posição da consciência na relação de conhecimento não pode ser vista como constituinte, a menos que consideremos a realidade extra-subjetiva como amorfa e inefetiva.

Conseqüentemente, a verdade não pode ser um resultado, se por essa expressão entendemos algo constituído apenas a partir da relação sujeito/objeto. A concepção da verdade como resultado é solidária da definição do objeto como relativo ao sujeito, ou como constituído no âmbito da subjetividade, seja em termos de correspondência e causalidade, seja como estruturação formal. Se quisermos falar em relatividade, ela tem que ser pensada como uma via de mão dupla: o objeto é relativo ao sujeito tanto quanto o sujeito é relativo ao objeto, porque o processo de relação supõe modificações em ambas as instâncias.

Vistas as coisas dessa maneira, temos como nos afastar da concepção idealista da reflexão, solidária de uma autonomia abstrata da subjetividade. Não se trata de afirmar uma relação de imanência entre subjetividade e reflexão como necessária à independência do sujeito porque, sendo este atividade, a sua realidade, e o que nela possa haver de autonomia, define-se na relação com o não-subjetivo. 

Neste sentido, a verdade não pode ser concebida como invenção do sujeito. Dir-se-á que a verdade somente nasce graças à relação sujeito/objeto. Admitindo que assim seja, isto significa que a verdade nasce na relação, muito mais do que da relação. A dupla efetividade (mundo objetivo e sujeito) supõe processo e produção; mas, justamente, trata-se da produção do verdadeiro a partir da relação, em que participam tanto a realidade dos objetos quanto a realidade do sujeito. É preciso portanto abandonar o sentido tradicional de transcendência do sujeito em relação ao objeto, na medida em que isto significa anterioridade absoluta e puro apriorismo.

Com isto elimina-se também a idéia de produção subjetiva da verdade, na acepção constituinte. A verdade pode ser pensada como desvelamento: a revelação de algo que já estava aí e no qual nós mesmos já estávamos. Esta revelação supõe um processo de interrogação, mas a resposta a esta interrogação não constitui a verdade, e sim a desvela, provocando o aparecimento do que já lá estava. Pois se há uma identificação entre a verdade e o ser, se a consciência constituísse a verdade ela teria que constituir o ser. Num texto escrito em 1948, mas publicado postumamente, “Verdade e Existência”, lemos: “O que nos faz crer que a verdade se identifica com o Ser é que, com efeito, tudo que é para a realidade humana é na forma da verdade (essas árvores, essas mesas, essas janelas, esses livros que me rodeiam são verdades) porque tudo que é para o homem surgiu na forma desse ‘há’.

O mundo é verdadeiro. Vivo no verdadeiro e no falso. Os seres que se manifestam diante de mim se oferecem como verdadeiros, e às vezes, depois se revelam como falsos. O para-si vive na verdade como o peixe na água.”[1] A verdade consiste em haver coisas, em haver mundo, e a relação entre o ser das coisas e o sujeito é de constante revelação, que propicia ao sujeito a exploração deste “haver”. Uma manifestação primária, que é tão pouco constituída pelo sujeito quanto este nem sequer pode recusá-la; manifestação cuja espontaneidade não implica sempre certeza do sujeito, pois como a revelação depende também da atividade do sujeito, este pode enganar-se na identificação do que se revela ou do que ele desvela. O significado do enunciado: o mundo é verdadeiro indica este caráter originário da verdade: haver coisas.

Por isso Sartre descreve a verdade como o elemento no qual se vive: o para-si vive na verdade como o peixe na água. Que não nos iluda o aparente otimismo epistemológico; pois a água não é dada ao peixe para que ele a contemple; mas ela se revela a ele ao exigir seu movimento, que ela também facilita e impede ao mesmo tempo. O peixe está no seu elemento enquanto nele vive a age. 

Assim, também não estamos rodeados de verdade no sentido aurático, ela não nos envolve como uma nuvem repousante. Temos de corresponder com nossa interrogação a este “haver” que se revela e nisto consiste o procedimento de desvelamento do ser inerente á condição humana. Por ser ativamente reveladora, a realidade objetiva é processo de ser e de revelar-se; estamos na verdade na forma do ente que a interroga, que deseja saber onde está, o que é este mundo que é verdadeiro na medida em que há coisas que me rodeiam, e com as quais me relaciono conhecendo-as e agindo sobre elas ao mesmo tempo. Esse movimento de conhecer e agir é histórico, ou é a história.

“Assim, a verdade não é uma organização lógica e universal de ‘verdades’ abstratas: é a totalidade do Ser na medida em que se manifesta como um há na historialização da realidade humana.”[2] O que Sartre quer dizer é que não há um quadro de verdades diante de nós que se defina pela forma lógica da sua apresentação. Há uma totalidade que se manifesta e cuja revelação apreendemos na medida em que nos historializamos, isto é, que nos movemos e nos fazemos realidade humana neste elemento. 

Assim a pergunta pela posição da consciência diante da verdade é respondida quando compreendemos a posição do sujeito diante da realidade, desse há que é a instância originária da revelação do ser. E como nos movemos e nos fazemos sujeitos da verdade no elemento histórico em que vivemos, a verdade é uma questão de experiência histórica, na qual a realidade se revela e nós nos revelamos a nós mesmos no processo de historialização. Há uma relação entre verdade e existência na medida em que há uma relação entre verdade e historicidade. Observemos que à ressonância heidegeriana do texto de Sartre se contrapõe a ênfase na compreensão do Dasein como experiência histórica concreta.

Será necessário ressaltar que estar na verdade não significa saber tudo? O que dissemos acerca da revelação como experiência histórica deveria ser suficiente para esclarecer a questão. Entretanto, podemos mencionar também a alusão de Sartre à atitude socrática. “Quando Sócrates diz ‘só sei que nada sei’ essa modéstia é ao mesmo tempo a afirmação mais radical do homem, pois supõe que tudo está por saber. Assim, a ignorância não provém de uma recusa por parte do mundo, que me ocultaria seus segredos: pelo contrário, todo o Ser está presente a mim desde minha aparição …”[3] A superioridade de Sócrates frente a seus interlocutores deriva de que saber “que nada sei” significa saber que “tudo está por saber”. 

A essência da verdade é a liberdade, como diz Heidegger, porque todo o ser está presente à minha liberdade, e a assunção da ignorância é condição da interrogação. Mas esta ignorância guarda em si um projeto autêntico de saber, de vir a saber o que há para saber, isto é, a verdade implicada em haver um mundo verdadeiro, a presença das coisas em que meu agir e meu saber acontecerão historicamente. Haveria assim, na atitude socrática, uma relação entre ignorância e liberdade, na medida em que a liberdade de saber depende de assumir a ignorância como projeto de saber. É a essa projeção livre do saber que Sartre designa, em Sócrates, como “a afirmação mais radical do homem”. A ignorância, no sentido socrático, não é neutralidade ou inocência; ela significa que a verdade de si e das coisas se revela na experiência das possibilidades do que nos é dado ser e saber.

Neste processo, que função desempenha a atividade subjetiva a que chamamos reflexão? “O princípio metodológico, que faz começar a certeza com a reflexão, não contradiz de maneira alguma o princípio antropológico, que define a pessoa concreta pela sua materialidade. A reflexão, para nós, não se reduz à simples imanência do subjetivismo idealista: só é um início que nos lança imediatamente entre as coisas e os homens.”[4] O movimento da reflexão envolve o ato pelo qual a consciência se põe na posição de refletir e o “tema imediato” da reflexão, o campo antropológico que delineia a auto-constituição do sujeito nas condições da existência histórica situada. Por ser um movimento que se dá no elemento da verdade, a reflexão não pode deter-se no seu ato inicial e encerrar-se no plano subjetivo; ela deve alcançar as coisas que rodeiam o sujeito, o que há para conhecer: as coisas e os homens. Assim, o ato reflexivo do sujeito o lança “imediatamente” para fora de si, e a reflexão, movimento que se inicia no sujeito, tem que se completar fora dele. 

Trata-se de um só movimento em que sujeito e objeto não podem ficar absolutamente separados, já que o conhecimento é relação. O próprio sentido da distinção entre os termos é a relação que os une. Daí a menção da característica do conhecimento na microfísica: “o experimentador faz parte do sistema experimental.”[5] A alusão favorece o argumento sartreano, pois, longe de significar que sujeito e objeto são o mesmo, ou que um é o simples reflexo do outro, aponta para a interferência do sujeito no objeto e para a reciprocidade referencial. Associa-se também à instância originária do mundo verdadeiro em que se dá o movimento do conhecer, “o homem real no meio do mundo real”.

Sendo assim, a reflexão é começo, ponto de partida, mas a consciência não é fonte nem de conhecimento nem de ação, o que significa que a consciência que procede ao desvelamento não é a sua origem: “o desvelamento de uma situação é feito na e pela práxis que a modifica.”[6] A realidade humana, como já vimos, tem todo o Ser diante de si, da sua liberdade, como o que há para saber. E como estar na verdade não significa dominá-la completamente, este elemento em que o homem vive revela-ser para ele na historicidade dos conhecimentos situados, nas situações a partir das quais o conhecimento acontece no processo de totalização da práxis. O sujeito não constitui nem ilumina a ação: a realização da ação é o seu próprio processo de esclarecimento, pois “a ação se dá em curso de realização de suas próprias luzes.”[7] Mas assim como o desvelamento se dá na e pela práxis, as luzes que esclarecem a ação aparecem na e pela consciência, o que significa que é pela tomada de consciência que o ser se revela ao sujeito como desvelamento prático de uma situação. 

Por isso o que se requer é uma teoria da consciência dos agentes, isto é, dos sujeitos da ação. O que quer dizer que uma teoria da consciência não precisa começar e terminar no interior da subjetividade; pelo contrário, a compreensão da consciência agente a supõe sempre lançada no meio das coisas e dos homens. O que Sartre quer marcar é que a consideração da consciência não é por si mesma contrária ao materialismo e pode ser mesmo necessária para fundamentá-lo; ao passo que a omissão da consciência do agente introduz na compreensão da ação dificuldades tais que podem levar ou a aporias ou a um monismo idealista.

É bem verdade que Marx pretendia um “olhar objetivo” que fosse além da subjetividade. Mas entenderia ele por isso um olhar que não partisse da subjetividade e que se realizasse inteiramente no plano da objetividade? Lênin certamente o compreendeu assim, pois postula uma consciência que é “no melhor dos casos, um reflexo aproximadamente exato” da realidade objetiva. Ora, mesmo para considerara consciência um reflexo, ainda é preciso a consciência; é preciso pelo menos tomar consciência do caráter absolutamente negativo da consciência. Marx pretende um universo em que a objetivação supere a subjetividade; Lênin postula pretende negá-la numa instância aquém de seu próprio nascimento. Talvez Sartre esteja aqui apontando para a inexorabilidade do cogito: só posso negá-lo num ato que consiste na sua afirmação.

Essas dificuldades poderiam ser contornadas se evitássemos as dicotomias metafísicas. Esquematicamente se pode dizer que o idealismo postula a consciência constituinte e o materialismo a consciência constituída. De um lado está o dogma da soberania do sujeito, de outro o dogma da materialidade sensível como única realidade. Sabemos da complexidade do materialismo antigo e do idealismo clássico. Mas pode-se dizer que ambos degeneraram, chegando às suas respectivas versões vulgares. E certamente Sartre vê na teoria do reflexo, em que a consciência é completamente constituída, um materialismo vulgar.

Mas este não é o problema principal. Para Sartre, o mais importante é que se trata de duas versões do idealismo vulgar: uma que dissolve a subjetividade na objetividade e outra que dissolve a objetividade na subjetividade.
 
Nos dois casos temos o vezo idealista que se expressa na pretensão de uma racionalidade constituinte: ou a subjetividade constitui a objetividade ou a objetividade constitui a subjetividade.

Mais uma vez trata-se de reivindicar que o marxismo seja fiel ao caráter histórico do seu materialismo, que não pode ser um dogma metafísico. A dupla efetividade já deveria ser suficiente para mostrar que nem a realidade deve seu ser a uma constituição subjetiva, nem a subjetividade empresta sua realidade de uma objetividade que a constituiria. Ambas são ativas, efetivas. A realidade, sendo histórica, não é dada nem constituída: é produzida pela atividade recíproca da história sobre o sujeito e do sujeito sobre a história. O que o marxismo trouxe de novo foi justamente a possibilidade de superar tanto o essencialismo naturalista e empiricista quanto o essencialismo idealista.

O homem produz historicamente o homem. Neste sentido, pensa-lo como um aparato psicofisiológico inteiramente determinado pelas leis naturais é tão abstrato quanto concebê-lo como puro espírito aprisionado num corpo.[8] Não pode haver abordagem concreta do homem além ou aquém da história. Assim, um materialismo que se quer histórico não pode supor no que o âmbito do físico-natural considerado em si mesmo seja a origem dos dados imediatos a partir dos quais se possa reconhecer o homem. 

O imediato é a ação, é a efetividade, que são fatores de transformação, 
e não de regularidade natural. 

Se a história não se dá ao acaso, se há leis que podem ser discernidas no devir dos acontecimentos, temos aí um conhecimento que envolve tanto a realidade do objeto quanto a realidade objetiva do sujeito. “O experimentador faz parte do sistema experimental” significa: não há teoria pura do real – do objeto ou do sujeito – , porque não há objeto ou sujeito isolados na pureza de seu ser, e neste sentido supor um mundo exclusivamente de objetos é pensar o objeto abstratamente, porque só há representações históricas produzidas em regime de interação. Quando se enfatizam as condições materiais é porque, na inexistência de uma teoria pura, prevalecem as relações materiais historicamente definidas nos diferentes momentos da práxis.

Disso decorre que ser realista não é optar decidida e exclusivamente pelo objeto, e fazer com que a verdade resida somente nele. O realismo de Marx, segundo Sartre, consiste simplesmente na concepção prática da verdade. “No movimento das ‘análises’ marxistas e sobretudo no processo de totalização, assim como nas observações de Marx sobre o aspecto prático da verdade e sobre as relações gerais entre a teoria e a prática, seria fácil encontrar os elementos de uma epistemologia realista que jamais foi desenvolvida.”[9] Para isso seria talvez adequado articular: a praxis como contexto condicionante da ação; o sujeito agente que responde a este contexto de forma ativa e não exclusivamente determinada; e a produção prática da verdade a partir das situações em que essa práxis se constitui por obra da realidade efetiva e da efetividade do sujeito agente.

A racionalidade é ao mesmo tempo objetiva e subjetiva. Por isso é preciso distinguir metodologicamente o ato reflexivo da consciência no início de seu movimento para fora de si, e a interação prática entre consciência e realidade no âmbito da ação histórica.

Agora vejamos o que diz Marx acerca da ação histórica na primeira página do 18 Brumário: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.”[10] Não é a minha consciência, nem a de qualquer outro sujeito individual, que constitui a realidade histórica na qual devo agir. 

Não posso escolher as circunstâncias porque elas foram historicamente constituídas, eu as herdei e me defronto com elas. Este elemento de conflito entre minhas ações e o meio histórico em que elas ocorrem é constitutivo da relação entre os sujeitos e a realidade. O presente traz o lastro da tradição e ambos se confundem no peso que nos oprime, e que se constitui em boa parte da inércia da morte, ou dos mortos que habitaram o passado, no movimento presente da vida. O passado, este tempo e esta realidade definitivamente constituídos e a partir dos quais temos de agir, limita nossas possibilidades. 

A configuração do presente, a história que havemos de fazer, nascerá do confronto entre nossas escolhas e aquilo que não escolhemos. A partir do passado, da configuração do presente pelo passado, operamos nossas escolhas, que portanto se situam entre nossa herança e nossa iniciativa, entre o que reconhecemos e do que nos apropriamos desse passado, e do que projetamos como tarefa construtiva do presente.

Isto significa que a análise de situação deve produzir um conhecimento que incorpore todos estes elementos: que leva em conta o passado constituído, o presente em vias de constituição, a herança das condições consolidadas e a presença daquelas que a própria atualidade vai engendrando na dupla efetividade a que nos referimos. Mas nada é estático e completamente determinante, nem mesmo o passado constituído, já que ele depende da maneira pela qual o presente o entenderá como referência. Assim a análise supõe um movimento de idéias que produz o conceito ao mesmo tempo em que o uso heurístico deste instrumento produz conhecimento.

Observe-se por exemplo o movimento pelo qual a análise de Marx, no 18 Brumário, visa a realidade histórica do campesinato francês em dois momentos.

1)      A revolução de 1789 derruba o feudalismo, acabando assim com a relação senhor/servo, bem como com as grandes propriedades fundiárias, e a terra é distribuída. O camponês, que antes era servo, torna-se proprietário, mas de uma pequena propriedade na qual pratica a agricultura de subsistência. No império, Napoleão consolida a pequena propriedade como parte da estratégia da centralização do poder, evitando assim uma eventual disputa com grandes proprietários rurais. Os camponeses entendem que esta política os protege e os preserva de um retorno à servidão, habituando-se a associar a segurança da propriedade a um governo absoluto. Ademais, as conquistas de Napoleão abrem os mercados europeus à produção agrícola francesa.

2)      A partir de 1830, a fragmentação da terra mostra seu lado negativo. Sem os mercados compulsoriamente abertos por Napoleão, a agricultura definha. A burguesia enriquecida pelo desenvolvimento urbano e pela atividade financeira encontra na falência da agricultura ocasião de lucro fácil através de empréstimos e hipotecas, aos quais os pequenos agricultores têm de se submeter. A exploração é acentuada na medida em que a fragmentação da propriedade gerou a fragmentação dos indivíduos, que como donos de terras não se reconhecem como classe e não se organizam. A subordinação ao capital corrói a autonomia conquistada na Revolução, e os camponeses regridem à condição de dependência, agora de banqueiros e financistas. A ausência de organização deixa os camponeses fora do jogo de poder, que se constitui como conflito de várias facções e de vários interesses.

3)      A situação se agrava com o advento da república em 1848, na qual prossegue a situação política de compromissos amplos entre tendências variadas, mas com perfil dominante da burguesia urbana enriquecida pela especulação financeira. A agricultura enfraquecida é alvo fácil de políticas fiscais particularmente vorazes, facilitadas pela máquina do estado centralizada, herança de Napoleão. Os camponeses, desorganizados, não conseguem se opor. A burguesia consolida seu domínio esmagando o proletariado na revolução de 48. Nenhuma das tendências que dividem o parlamento republicano contempla as necessidades dos camponeses.

4)      O descontentamento, que até então não possuía canal de expressão, é canalizado por Luiz Bonaparte na presidência da república. Acirrando os conflitos entre o poder executivo e legislativo, sugere a idéia de que reformas que venham a beneficiar os camponeses seriam mais eficientemente implementadas num governo forte, em que as iniciativas não tivessem que ser filtradas pelos interesses da Assembléia Nacional. A mesma tática é aplicada ao grande contingente de desempregados e de lumpens que vivem à margem do sistema. Mas é importante considerar o modo como o camponês pode chegar a ver em Luiz Napoleão o governo forte que defenderia seus interesses assim como o fizera o primeiro Napoleão. E isto explica como a demagogia e a aventura política foram os meios pelos quais se restaurou na França o império e como uma figura medíocre veio a tornar-se o imperador Napoleão III.

Esta análise está baseada na visão do movimento histórico que permite diferenciar o camponês da época da Revolução e do império napoleônico do camponês de 1848, em termos de situação econômica, isto é, a partir das condições que deverão ser traduzidas em posições políticas. O que permite entender o tipo de repetição da história de que fala Marx: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Causedière por Danton, Luís Blanc por Robespierre, a Montanha de 1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio.” A compreensão do movimento histórico que vai do império de Napoleão à sua paródia é explicada pelo movimento que vai do camponês revolucionário ao camponês reacionário.



 Fonte:
CONSCIENCIA:ORG
http://www.consciencia.org/cursosartrefranklin5.shtml
Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

O EXISTENCIALISMO È UM HUMANISMO - Frankin Leopoldo e Silva- 04

Anotações de aula do curso sobre Sartre ministrado pelo 
professor dr. Franklin Leopoldo e Silva 
na FFLCH-USP



J.P SARTRE
. Questão de Método 
– primeiro capítulo (2)]

A diferença entre idealismo e materialismo não pode ser reconhecida apenas em termos de opção metafísico-doutrinária se o que estiver em questão for a efetividade concreta da realidade. Assim, não se trata somente de abandonar o idealismo, uma vez constatado que a totalização abstrata a partir de uma subjetividade formal serve ao interesse de classe burguês concernente à universalização de uma determinada concepção de homem. O que se deve conseguir, a partir dessa relativização do idealismo, é o reconhecimento concreto do homem em meio às práticas efetivas pelas quais ele realiza a sua humanidade. 

O que está em jogo, portanto, é, em última análise, a substituição de uma natureza simples por uma pluralidade complexa, ou a diferença entre conhecer o homem pela unidade de essência ou pela apreensão do sentido de um processo concreto. Daí a inutilidade de uma discussão que se paute unicamente pela oposição entre idealismo e materialismo, tentando avaliar qual dessas orientações conceituais deveria constituir o quadro teórico exclusivo do conhecimento. Em princípio, essa polarização não deveria existir, uma vez que a própria orientação histórica do Materialismo em Marx nos dispensaria da opção metafísica, já que o teor indissoluvelmente histórico e material do processo de construção do humano torna desnecessário conceber um quadro metafísico ou formal a partir do qual a totalidade se defina a priori. Pois o que se trata de elucidar é justamente a relação entre condições materiais e criação histórica; e a revolução metodológica proposta por Marx consiste em que se deve passar a ver nessa relação, assim constituída, a verdade do que até então se tentava compreender como a questão da correspondência entre objetividade e subjetividade. 

A novidade consiste precisamente em que devemos abandonar tanto a visão conceitual de cada uma dessas instâncias quanto a construção conceitual da relação. Essa postura metodológica implica tanto a recusa do paradigma de uma inteligibilidade puramente ideal quanto a recusa do materialismo naturalista que consideraria o agir humano nos mesmos moldes da fabricação de uma coisa. 

Toda a questão estaria pois em compreender a significação complexa presente tanto na necessidade que pesa sobre os homens quanto no trabalho pelo qual ele responde a essa necessidade. Entre as condições materiais da ação e os resultados materiais dessa ação situa-se a mediação do agente que em si mesma não pode ser sublimada numa subjetividade ideal ou reduzida à pura materialidade da coisa. É neste sentido que se pode dizer que o aporte da intencionalidade para a elucidação da prática humana é importante, desde que sigamos a recomendação que Sartre faz na Transcendência do Ego: não supor uma entidade transcendental no interior da consciência, mas vê-la projetando-se no mundo e nele construindo a subjetividade, ao vivê-la.

Sartre expressa a expectativa da compreensão dessa relação ao relatar aquilo que a sua geração buscava ao abandonar o idealismo espiritualista: “estávamos convencidos ao mesmo tempo de que o materialismo histórico fornecia a única interpretação válida da história e de que o existencialismo permanecia a única abordagem concreta da realidade. Não pretendo negar as contradições desta atitude.”[1] Ora, se uma tal contradição resultou do abandono do idealismo, a razão pode estar vinculada ao que dissemos antes acerca do materialismo como opção metafísico-doutrinária e, dessa forma, se não abstrata, pelo menos insuficientemente concreta para abarcar a sinuosidade efetiva da realidade. 

Isto significa que não basta uma interpretação materialista da história na sua generalidade; é preciso que uma tal interpretação se organize, se construa ou se explicite por via de elucidações das mediações situadas entre a generalidade da história e as ações dos sujeitos considerados a partir da existência concreta. Há portanto duas questões a responder. Primeiramente: é possível conciliar teoricamente a exigência de interpretação materialista da história com a exigência da compreensão do caráter existencialmente singular da ação individual? Em segundo lugar: essa contradição, aparente ou real, em todo caso esta dificuldade, não deve ser entendida como a condição para que a interpretação materialista da história não recaia numa opção metafísica pelo materialismo como pressuposto ontológico e como critério geral de inteligibilidade?

Quanto à primeira pergunta, é necessário postergar a resposta porque ela talvez dependa de um exame da segunda questão, já que nesta aparece de modo mais nítido a tensão entre as duas exigências. O abandono do idealismo não foi a adesão plena ao marxismo porque este se havia cristalizado numa doutrina rígida, que no limite não aceitava perguntas para as quais não tivesse respostas prontas. 

As circunstâncias teriam gerado um paradoxo: o marxismo, em determinado período de recolhimento e refluxo, teve que proteger a doutrina da experiência histórica na qual ela deveria viver e da qual deveria alimentar-se, para que o devir da verdade, ao qual é inerente o risco, não viesse quebrar a unidade doutrinária e política. Teve de cristalizar-se para não correr o risco de enfraquecer-se. A dogmatização e a rigidez institucional, em suma, a paralisação do movimento das idéias, teria sido necessária para preservar a unidade, concentrar as forças e assim sobreviver. Disso teria resultado a separação entre teoria e prática, precisamente (e paradoxalmente) no caso em que a nova teoria se diferenciava das tradicionais por ter de realimentar-se constantemente da práxis. Tal divórcio gera necessariamente um certo idealismo, que o contexto político logo transformou num autoritarismo idealista e, no limite, em violência decorrente de uma posição idealista.

O diagnóstico de Sartre, no qual reconhecemos o estalinismo, deve ser visto sob dois aspectos. O primeiro diz respeito ao prejuízo que a separação entre teoria e prática acarreta a um movimento de idéias cuja peculiaridade é exatamente não poder transformar-se em doutrina sem perder o seu perfil e a sua eficácia. O caráter heurístico do marxismo, ao qual já nos referimos, só se pode manter, com efeito, por via de um permanente intercâmbio entre as idéias e a experiência histórica, já que o sentido da teoria está justamente na incorporação dessa experiência ao pensamento. É nesse sentido que Sartre fala da verdade em devir, isto é, nunca entendida como aquisição definitiva, jamais fixada em doutrina. 

Todas as idéias devem ser consideradas reguladoras porque o alcance objetivo de cada uma delas é medido pelo poder de incorporar o movimento real da história, gerando uma compreensão que venha obrigatoriamente a acompanhar este processo. Se as idéias fixam-se num corpo doutrinário estabelecido, não temos mais a relação dinâmica possibilitada pela heurística, mas sim uma representação definida pelo viés idealista.

Num segundo aspecto devemos considerar o fator circunstancial, ou a necessidade política de fixar uma verdade teórica para preservar a unidade considerada ao mesmo tempo como diretriz de ação histórica voltada para a consolidação de transformações sociais. Desta perspectiva, a cristalização do marxismo em doutrina serve a um objetivo prático. Trata-se de uma relação entre teoria e prática que ocorre num contexto histórico-político no qual ela se manifesta realmente como separação.

Este tipo de divórcio faz da teoria um conjunto de princípios independentes e, por isso mesmo, faz da prática um empirismo sem princípios. Deixa de haver a relação dialética entre os princípios da prática e a prática dos princípios numa totalidade em devir que seria a experiência histórica, orientada por princípios e orientando a formulação deles. “O pensamento concreto deve nascer da praxis e voltar-se sobre ela para iluminá-la: não ao acaso e sem regras, mas – como em todas as ciências e todas as técnicas – em conformidade com princípios.”[2] Princípios e regras esclarecem a praxis na medida em que esta os põe em questão: assim não existem condições de elucidação da realidade histórica que não surjam das próprias condições históricas, o que provoca uma relação entre método e realidade que está sempre em devir ou em vias de se constituir, característica que deveria ser portanto a do conhecimento.

A explicação das circunstâncias em que teria ocorrido a cristalização do marxismo não se constitui numa justificativa do procedimento, até porque a universalização da doutrina e do método, tal como de fato se realizou, coloca-nos diante da ambigüidade que se desenha no fato de que o dogmatismo e o idealismo tornados violência poderem ser considerados tanto uma resposta à conjuntura adversa de hostilidade ao socialismo quanto um meio de controle político-burocrático da sociedade. Isso pelo menos nos mostra que mesmo uma recusa radical da possível equivocidade da experiência não anula de todo a reciprocidade entre teoria e prática.

O que nos interessa no entanto é o significado e o alcance da totalização que, repita-se, tem que (se) objetivar a (em) totalidade concreta. A função heurística e reguladora do conceito provém da dinâmica histórica que ele deve permitir conhecer. Ao contrário do que poderia parecer, não há circularidade entre conceito e realidade porque não se trata da relação entre categoria e fatos empíricos. Kant mostrou que a generalidade conceitual nunca poderia nascer da observação empírica porque não se pode passar da ampliação das constatações de fato ao conhecimento que se pretende logicamente universal.

Mas, precisamente, estamos aqui diante de uma perspectiva exclusivamente determinante e não heurística ou reguladora. Exatamente porque a ação histórica não é susceptível de uma determinação exata, estamos num plano em que a regularidade possível convive com a contingência. Neste sentido o conceito nunca opera exclusivamente a partir de uma instância formal produtora de determinação real, mas de modo imanente à configuração concreta da realidade histórica a ser elucidada. Sendo assim, necessita-se de uma mediação entre as possibilidades cognitivas do conceito e a realidade histórica considerada nos limites que configuram a sua singularidade. 

Essa mediação aparece no procedimento essencial do conhecimento histórico concreto: a análise de situação. Nela, o alcance da compreensão conceitual é medido pelos limites de uma situação histórica concretamente definida – uma realidade dada, da qual se trata de apreender o sentido, de tal modo que o conceito esclareça o conteúdo de realidade histórica daquela situação e ao mesmo tempo a situação real rebata no alcance cognitivo do instrumento. Pois seria idealismo pensar que a realidade reflete o conceito assim como seria mecanicismo pensar que o conceito reflete a situação.

É portanto a análise de situação que impede dois tipos de enrijecimento dos conceitos: a logicização da realidade a partir da matriz idealista do instrumental cognitivo; e mecanização do conhecimento a partir de uma visão diretamente reflexa do campo nocional. Mas é necessário notar que há um sentido de idealismo que recobre as duas possibilidades, pois em ambas o conceito está separado da realidade histórica: numa, porque já proveio da rigidez lógica do formalismo e do apriorismo; noutra, porque ganhou, a posteriori, uma rigidez que imobiliza a realidade que originalmente o inspirou. 

É dessa maneira que o marxismo pode fetichizar suas próprias noções, transformando-as “para falar como Kant” em “conceitos constitutivos da experiência.”[3] A historicidade do conhecimento deveria alertar contra a eternização do “saber passado”, mas a preservação do teor constitutivo do conceito estabelece a continuidade intemporal do “saber objetivo”. Ora, será que o drama humano que motivou o repúdio do espiritualismo idealista não terá sido suficiente para mostrar que a experiência histórica não cabe nos limites de qualquer saber constituído?

Elementos para uma compreensão mais ampla da questão talvez possam ser encontrados na problematização da relação materialismo/idealismo, feita por Marx na Tese 1 das Teses sobre Feuerbach. “A falha principal, até aqui, de todos os materialismos (incluindo o de Feuerbach) é que o objeto (Gegenstand), a realidade efetiva, a sensibilidade, só é percebido sob a forma do objeto (Objekt) ou da intuição; mas não como atividade sensivelmente humana, como prática, e não de maneira subjetiva.”[4] Não se trata apenas de opor a percepção do objeto entendido como realidade efetiva à forma do objeto apreendida na intuição.

Mais relevante seria talvez entender o que está implicado em cada uma das posições, ou o que significa abordar o objeto como realidade efetiva ou como forma pensada. Partimos, é claro, do princípio de que só o materialismo pode fornecer uma visão adequada do objeto: e Marx está criticando diretamente o materialismo de Feuerbach, a sua “falha principal”. 

Ora, se o materialismo é a posição correta, por que ele não consegue atingir o objeto? Por duas razões que no fundo são uma só: esse materialismo falhado não vê o objeto como “atividade sensivelmente humana” e não entende o processo de sua apreensão como essa mesma atividade. A diferença entre as palavras alemãs nos ajuda a compreender a falha: Gegenstand significa o objeto para o sujeito, e assim o termo aparece em Kant para denotar o objeto definido dentro dos limites do entendimento a partir das formas transcendentais. Objekt significa o objeto pensado em toda a sua generalidade, o que em Kant refere-se a um objeto fora dos limites da estrutura transcendental do entendimento, e que por isso não pode ser conhecido. Não é o caso de transplantar pura e simplesmente essa diferença para o contexto de Marx, mas podemos no entanto nos valer dela para entender o enunciado da diferença que Marx quer propriamente ressaltar.

Esta aparece na maneira pela qual o autor define objeto na sua primeira menção, como Gegenstand: “realidade efetiva, sensibilidade”. A primeira expressão traduz o termo Wirklichkeit utilizado por Hegel para se referir à realidade como processo, e assim escapar da significação platonizante, que privilegia o ser e não o vir-a-ser. O objeto é, pois, a realidade na sua efetivação, que, acrescenta Marx, se dá no contexto da “sensibilidade”. Este termo está oposto à “intuição”, como para indicar que a relação entre realidade efetiva e sensibilidade não é a mesma que se dá entre realidade e intuição no contexto da tradição, principalmente pré-hegeliana. Percebemos isto ao observar a maneira pela qual Marx reitera a expressão “atividade sensivelmente humana” explicitando-lhe o significado: “prática”.

A efetividade da realidade no seu processo de ser, ou de vir-a-ser, só pode ser apreendida pela atividade humana, já que o próprio processo, a própria efetivação, é em si mesmo uma atividade. Esta “atividade sensivelmente humana” define-se como “prática” primeiramente num sentido muito específico: ela não pode ser considerada subjetiva num sentido que atribuiria à subjetividade uma autonomia total em relação ao objeto. 

A desvinculação das duas instâncias faz perder o sentido tanto de sujeito quanto de objeto; por isso, quando falamos em atividade não podemos entende-la como simples prerrogativa de um sujeito isolado, mas como algo que só acontece numa relação. A expressão “sensivelmente humana”, aposta a “atividade”, configura este significado. E é por isso que também não se pode falar em atividade sem falar em subjetividade. Assim, o emprego de Gegenstand por Marx seria indicador dessa relação mediada pela atividade: o objeto, na sua realidade material efetiva só pode ser apreendido por uma atividade sensível efetiva – “humana” na acepção total, e não uma intuição determinada por alguma distinção de faculdades, como no caso da intuição sensível em sentido kantiano. É essa efetividade presente tanto na realidade quanto na sua apreensão que define o domínio da prática.

Sendo assim, não se pode desvincular essa dupla efetividade da subjetividade. É por isso que Marx aponta que Feuerbach não teria definido a apreensão do objeto como prática, ou “de maneira subjetiva”.

Esta “maneira” decorre da concepção da realidade como efetiva, e da concepção da percepção da realidade como ativa. Não significa de forma alguma que se deva conhecer o objeto apenas a partir do sujeito, no sentido de torná-lo constituinte da realidade, encerrando-a em si mesmo, de acordo com um sentido subjetivista de representação. O que transparece do texto é, pelo contrário, que tanto sujeito quanto objeto devem ser apreciados pelo viés da atividade que a ambos caracteriza. 

Atividade concreta de um sujeito histórico que se exerce em relação à efetividade concreta da realidade sensível e material. A realidade objetiva, muito simplesmente, não faz sentido fora da relação sujeito/objeto. E Marx considera a apreensão subjetiva como “prática” exatamente para mostrar que o sujeito, nessa relação, é ativo e não contemplativo. A relação é dialética porque supõe o “trabalho” nas duas instâncias: a realidade, por ser efetiva, age sobre o sujeito; este por ser atividade, age sobre a realidade e a transforma. Isto significa que não pode haver uma percepção objetiva do mundo que não implique a “maneira subjetiva” pela qual ela se dá.

A crítica de Marx a Feuerbach está bem expressa no comentário de Labica: “O subjetivo é o corolário do objetivo; ele leva diretamente à consideração do ‘aspecto ativo’. Sua desconsideração deixa qualquer materialismo desarmado diante do idealismo.”[5] A insuficiência do materialismo de Feuerbach mostra-se diante do recurso idealista de invocar uma atividade abstrata que distinguiria o sujeito do objeto. Quando o materialista ignora a atividade do sujeito na percepção do objeto, ele permite ao idealista argumentar com uma oposição simples: o objeto se define pela passividade e o sujeito pela atividade. A apreensão do mundo se constitui quando o sujeito ativo defronta-se com a realidade inerte. 

Ora, se a realidade não é efetiva, posso supor que ela está diante do sujeito simplesmente como objeto de intuição; para conhecê-la não é preciso interferir nela, não é preciso acompanhá-la no seu processo. Desaparece a necessidade da contraposição dialética de duas forças ativas. Daí o predomínio da postura teórica e a definição do conhecimento como atividade teórica, atividade do espírito, ou, finalmente, subjetividade abstrata.

Se o materialista não define a subjetividade como atividade prática, ele permanece prisioneiro da separação entre teoria e prática, como acontece com Feuerbach. “A visão prática é uma visão suja maculada de egoísmo, pois nela só me refiro a uma coisa em vista de mim mesmo.(…) A visão teórica, ao contrário, é alegre, feliz, satisfeita em si mesma, pois para ela seu objeto é objeto de amor e de admiração (…) a visão teórica é estética, a visão prática é inestética.”[6] Observe-se que, embora Feuerbach procure sair do idealismo, colocando-se diante da realidade sensível dos objetos, ele não a atinge concretamente por lhe faltar a visão concreta da relação sujeito/objeto pautada na efetividade do real e na atividade do objeto. “Feuerbach procurou objetos sensíveis – realmente distintos dos objetos pensados: porém não captou a própria atividade humana como atividade objetiva.”[7] 

A falha do materialismo de Feuerbach consistiu em não compreender todo o alcance do objeto na sua significação de Gegenstand, e de manter ainda a forma objetiva geral do Objekt e assim, mesmo entendendo-o como sensível e não apenas pensado, não logrou compreendê-lo como efetivamente sensível e sua percepção como também dotada da mesma efetividade. Neste sentido o materialismo feuerbachiano ainda padece de abstração, como será mostrado na Ideologia Alemã. O mundo não é constituído por coisas definitivamente estabelecidas: enquanto pensarmos assim, mesmo a certeza sensível terá algo de intemporal, ou pelo menos aparecerá como dependente de um conhecimento que só se completaria no plano da essência. 

O homem só conhece aquilo com que ele entra em relação, e esta supõe um trabalho, uma atividade que é inseparável do conhecimento. Feuerbach compreendeu que tudo está na realidade sensível, mas não entendeu a relação que a partir daí se estabelece entre sujeito e objeto, a dupla transformação inerente ao processo de realidade e ao processo de conhecimento. Como a compreensão desse duplo processo depende da aceitação do caráter prático da atividade subjetiva, coisa que não acontece em Feuerbach, ele manteve a separação e a hierarquia entre a teoria e a prática.

Existe portanto uma “chave” para perseguir a totalização e aproximar-se do sentido da atividade humana: é a própria atividade compreendida como correspondência entre efetividade do processo real e conduta ativa do sujeito. Não se trata de uma correspondência pré-estabelecida ou de uma harmonia a priori. É necessário construí-la em cada passo do duplo processo: nisto mesmo consiste a atividade de conhecer, nisto consiste a imanência do conhecimento à prática que se trata de elucidar. 

Assim, quando Marx afirma que Feuerbach “não captou a própria atividade humana como atividade objetiva”, devemos entender que esta atividade não teria sido concretamente considerada como relação em que tanto o objeto quanto o sujeito têm de ser vistos no interior da práxis, contexto em que as duas instâncias aparecem como diferenciadas e interdependentes, ou se quisermos, como diferenciação e interdependências contínuas. Podemos então, neste sentido, entender a afirmação de Sartre acerca da verdade devinda: “Para nós, a verdade torna-se, ela é e será devinda. É uma totalização que se totaliza sem cessar.”[8] Tornar-se, devir, são expressões nas quais se deve observar a inseparabilidade entre efetividade, atividade e verdade.

O conhecimento consiste em relacioná-las por via da inteligibilidade dialética, motivo pelo qual os meios de conhecimento de que o marxismo dispõe nunca poderão fixar-se num conjunto de padrões rígidos. Para conhecer a totalidade histórica,o conhecimento tem que “viver com ela”.[9]

Assim Sartre pode reivindicar para a sua perspectiva a célebre frase de Engels: “Não é, pois (a história), – como querem acreditar alguns por mera comodidade – um efeito automático da situação econômica, são ao contrário, os homens, eles próprios, que fazem a história; mas o fazem em um meio dado que os condiciona, sobre a base de condições reais anteriores, entre as quais as econômicas (…)”[10] Neste fazer a partir de condições anteriores, nesta relação, é que se deve procurar a atividade e a efetividade tais como aparecem no mundo histórico – e, segundo Sartre, a compreensão dialética, da realidade dessa relação supõe a articulação mediatizada dos seus termos.


 Fonte:
CONSCIENCIA:ORG
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