quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O EXISTENCIALISMO È UM HUMANISMO - Frankin Leopoldo e Silva- 06


Anotações de aula do curso sobre Sartre 
ministrado pelo professor
dr. Franklin Leopoldo e Silva 
na FFLCH-USP

Material Enviado por José de Medeiros Machado Jr.
    Aula 6
[SARTRE, J-P -
Questão de Método  
– Segundo capítulo]

A verdade metódica do marxismo, ou o seu modo de verificar a realidade para atingir a compreensão de sua produção histórica, é algo que precisa ser reposto no seu caráter regulador e heurístico, para afastar os obstáculos do dogmatismo e da abstração. Trata-se talvez menos de discordar dos marxistas do que de fazer com que eles entrem em acordo com eles mesmos, isto é, com o potencial e o alcance do materialismo histórico. Neste sentido o método deve ser posto em questão para ensejar uma reflexão crítica acerca da racionalidade materialista e seus procedimentos implícitos. 

Com isto é possível que se desfaça pelo menos um equívoco: a confusão entre os procedimentos que se valem de conceitos heurísticos e reguladores, e uma tábua categorial fixa universalmente aplicável a partir de sua forma. Vejamos alguns exemplos de verdades metódicas que o marxismo traz em si, mas que ele precisa no entanto reconhecer como meios de construir a relação entre o movimento da realidade e o movimento de idéias.

1 – “O marxismo forma hoje, de fato, o único sistema de coordenadas que permite situar e definir um pensamento em qualquer domínio que seja, da economia política à física, da história à moral.” (Garaudy) Sartre acrescenta: “estamos de acordo com ele. E o estaríamos da mesma maneira se ele tivesse estendido sua afirmação – mas não era seu tema – às ações dos indivíduos e das massas, às obras, ao modo de vida, de trabalho, aos sentimentos, à evolução particular de uma instituição ou de um caráter.”

2 – “Não é, pois – como querem acreditar alguns por mera comodidade – um efeito automático da situação econômica, são ao contrário, os homens, eles próprios, que fazem a história; mas o fazem em um meio dado que os condiciona, sobre a base de condições reais anteriores, entre as quais as econômicas (…)” (Engels)

3 – “O modo de produção da vida material domina em geral o desenvolvimento da vida social, política e intelectual.”
(Marx)[1]

Uma vez aceitas tais afirmações como parâmetros de compreensão materialista da realidade histórica, resta construir o conhecimento concreto. Isto significa que o teor verdadeiro destas direções metódicas implica que elas se constituem como meios para o conhecimento de verdades concretas e não que elas são verdades concretas. Isto que parece óbvio, porque aparentemente se trata da relação entre meios e fins, mostra-se no entanto muito complexo. O movimento histórico ocorre através de um processo de relacionamento constante entre todos os elementos que compõem a realidade. As relações históricas ocorrem em vários níveis porque tudo que é real é histórico ou possui significado histórico. 

Os níveis de realidade se organizam desde a particularidade mais concreta, individual e singular até os patamares mais gerais e universais de relações que consigamos alcançar. O movimento da realidade histórica inclui todos os níveis de relações, e a passagem de um a outro somente conservará a verdade do movimento se preservar a carga de especificidade concreta de cada um. A consideração da realidade como práxis histórica supõe que se leve em conta todos os momentos envolvidos na produção desta realidade. Esta produção é um engendramento do real que depende da ação humana e das condições objetivas em que ela acontece. 

Quando se trata de uma realidade conflituosa, a percepção de cada momento concreto é essencial para que as relações progressivamente estabelecidas permaneçam reais, isto é, lastreadas pelo concreto, por mais gerais que venham a se tornar. Caso contrário o conhecimento se desvincula de sua base prática e se faz abstrato. Tomar todos os momentos compreendidos na especificidade de cada um é proceder a uma totalização que jamais abandona o movimento da realidade que se trata de conhecer, e não ignora qualquer de seus níveis de constituição histórica. Em suma, as verdades metódicas devem ser entendidas como condições reguladoras para o estabelecimento, o mais completo possível, das mediações.

Esta é a preocupação fundamental de Sartre: a totalização somente resulta em conhecimento concreto da realidade histórica se cumprir a exigência das mediações. É preciso então, mesmo correndo o risco da redundância, insistir no significado de mediação.

Dissemos que o movimento da realidade é um processo que ocorre por via de relações pelas quais a história se vai constituindo. Observemos desde já que o caráter objetivo destas relações não deriva de que o conhecimento as estabelece, mas sim do conhecimento de como elas se estabelecem no movimento real da história. Assim, o conhecimento deve acompanhar o engendramento do real nos diversos níveis de múltiplas relações, porque cada um dos momentos é meio para que o seguinte venha a ser. 

Mas como não se trata de vínculo causal linear e direto, a passagem de um momento a outro é ao mesmo tempo a produção da diferença, cujo esquema básico foi estabelecido por Hegel como o trabalho do negativo, isto é, o engendramento dialético do movimento histórico, pelo qual o momento seguinte surge muito mais a partir da negação do anterior do que da afirmação causal do primeiro.

Cada momento é pois meio não apenas no sentido de elo transmissor do movimento, mas graças à atividade que lhe é peculiar, atividade que provoca a sua própria supressão, ou a sua superação que é ao mesmo tempo a sua conservação, integrado no momento posterior. É esta identificação entre meio e ação pela qual algo se faz meio para que outra coisa venha a surgir que se designa como mediação – a ação média ou o meio agente que é o motor de transformação, isto é, de mudança das formas de experiência histórica, que são decisivas para a compreensão do movimento do fazer histórico.

Como cada momento é sempre ação de produzir outro momento, conhecer o movimento consiste em apreender cada um na sua especificidade produtora, caso contrário perdemos o caráter concreto desta produção. A relação que um momento mantém com outro é sempre de ação, mesmo que esta ação seja reiteração. O problema está portanto em entender as ações mediadoras pelas quais a história acontece. Para Sartre isto significa compreender as relações a partir do nível da singularidade, pois é nele que ocorre a experiência histórica concreta, sob condições que a ultrapassam. Não se pode portanto, separar a experiência singular da sua superação no contexto das condições objetivas, pois a experiência concreta da ação histórica já é a experiência de como a história supera esta ação. Pois é na efetuação concreta do fazer histórico que tal superação acontece. 

Quando Marx e Engels estabelecem a relação entre a atividade dos sujeitos históricos e as condições da ação, o que estão dizendo é que qualquer diferença que se faça entre a ação e suas condições obrigatoriamente supõe, de modo inseparável, o sujeito agindo e as circunstâncias sob as quais age, e que fazem com que sua ação lhe escape. Caso contrário haveria, entre a ação e as condições de seu contexto, uma determinação causal linear e não uma relação dialética. Por isso não há como desprezar a ação particular e a singularidade de quem age.

Como a ação escapa ao sujeito agente, a mediação ocorre também na inseparabilidade entre a ação e o momento histórico em que ela se dá: o engendramento da história se faz assim por via de ações mediadoras que se referem tanto à singularidade da ação quanto ao momento histórico em que ela ocorre, isto é, a situação a partir da qual o sujeito compreende o presente e visa o futuro. Sem esse cuidado com a consideração das mediações, as condições metódicas podem se transformar em “verdades concretas”, caso em que os meios de conhecimento não se distinguem mais da finalidade.

“È que consideramos as afirmações de Engels e de Garaudy princípios diretores, indicações de tarefas, problemas e não verdades concretas; é que elas nos parecem insuficientemente determinadas e, como tais, susceptíveis de numerosas interpretações: numa palavra, é que elas nos aparecem como idéias reguladoras.”[2]

Por que estas condições metódicas, em si verdadeiras, comportam o risco do idealismo e mesmo da fetichização?

1– A afirmação de Garaudy acerca da definição de “um pensamento em qualquer domínio” como correspondente à maneira de situá-lo é uma indicação vaga exatamente porque não nos informa como passamos, por via das mediações, do conhecimento geral à compreensão situada. Quais são os elementos que devem ser considerados para que possamos estabelecer o sentido de uma ação singular como inserção do sujeito na situação vivida, o mais das vezes contraditoriamente?

2 – Como a “compreensão possível” deve articular a relação entre o sujeito agente e as condições da ação, de que fala Engels, e também articular a pluralidade das condições para estabelecer o fio condutor do conhecimento? Que agimos sob condições e que nossa ação nos escapa não são afirmações difíceis de aceitar; o problema é compreender de modo concreto o peso relativo da ação e das condições, bem como a posição relativa das diversas condições (por ex., o prevalecimento da condição econômica).

3 – Como a dimensão social, a política e a intelectual, além de outras, devem ser compreendidas a partir de uma razão materialista e dialética? Como se dá a dominância da vida material, numa determinada experiência histórica de sua produção, sobre os demais aspectos?

O marxismo corre o risco de transformar estas questões em conclusões, e portanto iniciar o conhecimento histórico já de posse dos resultados que deveria obter. Os exemplos que Sartre fornece no início do capítulo 2 de Questão de Método procuram mostrar esta confusão. Ela deriva principalmente, como já se havia visto, da identificação de procedimentos heurísticos com idéias constitutivas. Classe, interesse de classe, antagonismos, objetivos, burguesia, pequena burguesia, campesinato, conflitos, etc., deveriam ser entendidos como elementos de elucidação concreta de uma dada situação, e não como categorias que, uma vez postas em relação, produzem por si próprias conhecimento. Dessa maneira, a história se torna uma relação de forças desvinculadas dos indivíduos que as vivem e as encarnam. 

Não se trata de afirmar que os indivíduos, pela liberdade de agir, superam as forças das condições e das circunstâncias. É preciso considerar a relação dialética presente em cada momento histórico, e portanto o modo como o indivíduo reage a estas forças, pela interpretação da situação e pelo modo de agir decorrente. Se não considerarmos este nível singular de mediação, não compreenderemos a relação entre as ações concretas e o movimento histórico, e a tendência será então traduzir a relação num determinismo linear entre a universalidade e a singularidade. 

Nesse caso, os conceitos perdem de vista a experiência que deveriam esclarecer e que se refere sempre a episódios históricos concretos. Se há um sentido geral, ele só pode surgir do embate contingente entre os indivíduos e os fatos, na forma da dupla efetividade da realidade e da subjetividade. O conhecimento da prática efetiva nem sempre irá corroborar um saber antecipado acerca do interesse de classe, do antagonismo e dos objetivos perseguidos. O saber não está previamente constituído nas condições metódicas.

“É preciso simplesmente rejeitar o apriorismo: unicamente o exame sem preconceitos do objeto histórico poderá, em cada caso, determinar se a ação ou a obra reflete os móveis superestruturais de grupos ou de indivíduos formados por certos condicionamentos de base ou se só se pode explicá-los referindo-se imediatamente às contradições econômicas e aos conflitos de interesses materiais.”[3] 

Situar, preceito metódico indispensável para a análise de situação, pode vir a tornar-se de fato a aplicação de um esquema, precisamente aquele formado pela rede conceitual a priori das condições de conhecimento. Esta rede assegura a universalidade, sem dúvida; mas quando a utilizo simplesmente para capturar o objeto concreto, sua singularidade se dissolve na generalidade esquemática, porque o quadro conceitual que absorve aquele objeto poderia fazê-lo com qualquer outro. Tal homogeneidade forçada somente triunfa como conhecimento se o ponto de partida e o ponto de chegada forem as condições de inteligibilidade da experiência: a passagem pelo objeto particular, isto é, pela própria experiência, reduz-se apenas à designação de um exemplo, dentre muitos outros possíveis, de determinação geral.

Tomemos, o caso de Paul Valéry, hipótese de Sartre. Para compreendê-lo, podemos remeter o indivíduo ao grupo de que se origina, a pequena burguesia; estudaremos suas contradições, seus interesses e as condições materiais dos conflitos em que está envolvido; definiremos assim este grupo perante a sua classe e perante outros grupos, e deduziremos daí uma atitude social típica, que aplicaremos a Valéry.

Ora, isto não constitui um conhecimento compreensivo, pela simples razão de que tais procedimentos não nos fizeram ir mais longe do que o estabelecimento, ou a reiteração, das condições gerais de conhecimento. Falta a passagem à singularidade, mas esta se torna impossível se o ponto de partida já não tiver sido também o singular. Por isso Sartre diz que neste caso temos um “esqueleto de universalidade” que é a “verdade em seu nível de abstração”.[4] Podemos até falar aqui em uma dupla abstração: as condições de conhecimento consideradas em si mesmas redundam em generalidade abstrata; e o objeto singular que nelas é dissolvido torna-se a particularidade abstrata.

É importante assinalar que as condições de conceitualização ou de universalidade devem ser consideradas verdades, do ponto de vista metódico; mas como se trata de conhecer um objeto singular e não uma categoria universal, o método é parte integrante da produção de uma verdade que somente será encontrada numa relação dialética entre as condições de conhecimento e a consideração da singularidade do objeto. Se não, Valéry e sua obra serão diretamente explicados pela relação de subordinação entre o esquema conceitual e o objeto particular. Chama-se a isso determinar.

Ora, em que sentido devemos entender aqui a determinação? Não no sentido realista, que é o conhecimento do particular na sua particularidade, mas no sentido lógico ou ideal de subsumir, isto é, de trazer o particular para o nível de generalidade onde já possuo uma explicação para ele na medida em que esta já está pressuposta nas condições gerais de subsunção, para usar um termo kantiano. É neste sentido que Sartre conclui a análise do exemplo dizendo que Valéry “evaporou-se”, pois a única coisa que se pode concluir da análise é uma vinculação geral entre as condições materiais da pequena burguesia e o idealismo no qual ela expressa suas contradições. O que, aliás. é verdadeiro: o idealismo é o meio de expressão do grupo a que pertence Valéry; é ao mesmo tempo a sua afirmação e a sua defesa perante os outros grupos com os quais está em conflito. 

Mas se queremos conhecer concretamente o poeta Valéry não basta considera-lo como uma manifestação do idealismo pequeno burguês; temos de compreender o duplo processo pelo qual ele produziu o seu idealismo ao mesmo tempo em que o idealismo de sua classe o produzia. Temos de compreendê-lo como sujeito ativo, que elabora ou reelabora o modo de expressão idealista do mundo; esse modo de pensar e de exprimir que foi arma de ataque quando a burguesia era classe ascendente e que se torna arma de defesa quando ela se torna classe dominante.

Isto significa que o caráter conservador do idealismo é ele mesmo um produto histórico e não uma forma lógica. Analogamente, o idealismo em Valéry não é simplesmente a forma de expressão burguesa manifestando-se num indivíduo; é uma produção singular pela qual Valéry reinventa singularmente as aspirações de sua classe.

Em suma, as condições particulares que somente podem ser encontradas no sujeito particular são mediações indispensáveis para que possamos apreender realmente a inserção histórica do indivíduo e o seu modo singular de expressar a universalidade. A verdade de Valéry é a totalização sintética dos condicionamentos de classe e da experiência singular pela qual o indivíduo as viveu. Totalização que só pode ser atingida se o conhecimento for o resultado da aplicação heurística dos conceitos gerais à compreensão do trabalho singular de historialização do sujeito. Porque Valéry se faz histórico como Valéry e não como qualquer outro indivíduo. “Valéry é um intelectual pequeno-burguês; quanto a isto não há dúvida. Mas nem todo intelectual pequeno-burguês é Valéry. A insuficiência heurística do marxismo contemporâneo revela-se nestas duas frases.”[5]

Assim Sartre pretende recuperar o realismo imanente ao materialismo histórico pelo estabelecimento de relações mediadas entre o geral e o particular. Para isso é necessário explorar em todo o seu alcance e profundidade a noção de situação. Situar não é apenas relacionar o universal abstrato com o particular abstrato: dizer que o intelectual pequeno-burguês é idealista porque sua classe é idealista é quase uma tautologia, ou pelo menos é algo que já sabemos antes de conhecer qualquer intelectual pequeno-burguês.

Relacionar duas instâncias abstratas pode levar a uma causalidade lógica, mas não mostra como a subjetividade engendra sua singularidade a partir de condições gerais de modo mais complexo do que uma causalidade linear. “Este método não nos satisfaz: ele é a priori; não tira os seus conceitos da experiência – ou, pelo menos, não da experiência nova que ele procura decifrar -, ele já os tem formados, já está certo de sua verdade, emprestar-lhes-á o papel de esquemas constitutivos: seu único objetivo é fazer entrar os acontecimentos, as pessoas ou os atos considerados em moldes pré-fabricados.”[6]

É preciso ainda apontar a incongruência deste apriorismo na sobreposição da causalidade final à causalidade eficiente. Se a consciência individual, a ação e outras instâncias do particular são apenas reflexos das condições gerais que as determinam, então estas atuam à maneira de causas eficientes, produzindo imediatamente o efeito. Ao mesmo tempo, no entanto, como os efeitos são considerados conseqüências necessárias, eles devem estar de algum modo presentes nas causas não apenas como desdobramento produtivo mas também como finalidade implicada no desenvolvimento das causas. Pois a causa não age tanto no plano imanente da relação eficaz ou mecânica quanto na dimensão finalística do efeito a ser necessariamente produzido. 

É neste sentido que a totalidade pode ser dada a priori: os fins devem estar contidos no movimento inicial para que haja determinação completa. Dessa maneira joga-se com dois sentidos de determinação causal: a produção eficiente entendida como relação mecânica; e a necessidade do efeito a partir de uma ordem finalista.

Este procedimento apresenta pelo menos dois problemas. O primeiro deles consiste na dificuldade de se explicar como a finalidade pode estar contida na ação inicial e no encadeamento das ações posteriores já que é precisamente neste processo que as ações escapam aos agentes. Há que se supor uma força que encaminha o processo para o desfecho necessário, quaisquer que sejam as ações. Mas então como se pode dizer que os homens fazem a história?

O segundo problema consiste em supor que há uma relação entre condições iniciais e conseqüências finais concebida de forma direta e como desdobramento finalístico, o que torna supérfluo a consideração das mediações, já que afinal se pode totalizar sem elas, considerando-se a determinação apenas como relação formal entre causas e conseqüências, e esquecendo-se que há neste caso um movimento histórico que passa pela desordem e pela contradição dos projetos humanos. Em vez da produção histórica pela ação diferenciada – e até o ponto da contradição – temos a assimilação do resultado à ação inicial, como num esquema antecedente/conseqüente.

Ora, isto implica uma visão absoluta do processo histórico, a temporalidade desdobrada diante de um sujeito onisciente, a anulação da contingência, enfim, “o movimento perpétuo em direção à identificação.”[7] Se a expressão idealista do mundo, própria da burguesia, é uma em 1930 e outra em 1950, não importa: trata-se da expressão burguesa do mundo. Se ocorre neste romancista, naquele poeta ou naquele filósofo, também não importa. As diferenças têm que ser absorvidas pelas condições gerais. Não será este procedimento uma conservação da hierarquia característica do racionalismo tradicional, segundo o qual o particular concreto somente encontra seu sentido nas condições gerais de totalização formal?

Ora, Sartre cita uma carta de Marx a Lassalle, em que a pesquisa é definida como movimento que “se eleva do abstrato ao concreto”, isto é, em que a totalização respeita os elementos da situação concreta.[8] Isto significa que o conhecimento ganha amplitude compreensiva (“se eleva”) quando o abstrato for, quando muito, ponto de partida. Assim ao estudar a população inglesa em meados do XIX, Marx parte da “população” como referência geral de um objeto ainda abstrato. Terá de considerar as classes que a formam, as relações de trabalho, etc., para que a visão de conjunto ganhe articulação e pertinência e não permaneça como representação geral.

Nem por isso caímos no nominalismo; as representações gerais são os elementos condicionantes da situação e, por isso, o movimento histórico pode ser conhecido também através de estruturas gerais. O marxismo fornece uma armação conceitual para compreender estas estruturas: forças produtivas, relações de produção, capital, trabalho assalariado, mais-valia, etc. Tudo isso forma uma generalidade que comporta abstratamente o que há para saber.

O conhecimento “consiste em esclarecer as estruturas mais profundas pela originalidade do fato considerado, para poder determinar em compensação esta originalidade pelas estruturas fundamentais. Há um duplo movimento.”[9] 

Novamente Sartre insiste na relação dialética entre universalidade e singularidade, aqui nomeadas como estruturas e fatos. O fato se conhece pela estrutura e a estrutura pelo fato. Do ponto de vista analítico seria uma circularidade, e seria ainda um círculo vicioso, porque romperia a ordem hierárquica entre geral e particular. Mas se abandonamos a simples relação de subordinação lógica e consideramos as articulações reais, nada nos impede de compreender que a estrutura modifica o fato assim como o fato modifica a estrutura. Assim a burguesia comprometida com o movimento histórico do qual resultou a Revolução é também a burguesia que deseja frear o movimento histórico. 

Para compreendermos esta dualidade, temos que entender as relações entre ações e situação em cada caso, a ação revolucionária e a ação contra-revolucionária a partir das condições históricas (materiais, econômicas) que levam o indivíduo a modificar o seu contexto ao mesmo tempo em que é modificado por ele. O burguês revolucionário naturalmente não se reconhece como também contra-revolucionário, ele não quer deliberadamente parar a história, ele quer que uma determinada institucionalização política da Revolução a consolide e o consolide – e à sua classe – no poder, e neste sentido ele quer parar a história no mesmo momento em que pretende realizá-la. Ele está situado numa estrutura mais ampla que somente será elemento de explicação se compreendermos também como ele se situa neste contexto.

Se o indivíduo faz a história, ele não pode ser instrumento passivo, nem da história e nem de sua classe.

É neste sentido que Sartre critica Guérin quando este procura explicar certos episódios da Revolução, as controvérsias e os resultados, em termos de “operação da burguesia”, fazendo da noção um ente e caindo assim na confusão entre condições de inteligibilidade e fatos reais.

Esse propósito contínuo de evitar a singularidade talvez possa ser explicado por uma estranha inversão: como a estrutura condicionante é histórica, isto é, prática, somos levados a ver nela o elemento concreto de explicação e a diluir na generalidade da condição o singular, que em si mesmo nos aparece como abstrato, já que o seu sentido está a princípio nas relações que o definem no interior do contexto.

Mas esta visão não está de acordo com a produção histórica. É verdade que o indivíduo isolado na sua particularidade torna-se abstrato. Mas tal abstração não é a única maneira de considera-lo. Pois a sua singularidade é intrínseca ao processo histórico no qual ele se faz indivíduo singular, e a sua individualidade é histórica e concretamente produzida, ao mesmo tempo por ele e pelas condições de sua inserção na situação. Este duplo movimento produz sua diferença e o torna concreto. Por isto Valéry é idealista subjetivo à sua maneira, que é diferente de outro intelectual pequeno-burguês. 

Se esta relação ativa do indivíduo com a história, com a sua classe e com os demais não for considerada, se nos fixarmos numa visão unilateral de história, de classe, etc. corremos o risco de tornar a própria prática uma estrutura abstrata, ou um determinante lógico-causal.


 Fonte:
CONSCIENCIA:ORG
http://www.consciencia.org/cursosartrefranklin6.shtml
Material Enviado por José de Medeiros Machado Jr.
Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

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