RIO - A voz familiar ao telefone do hotel não economizou palavras.
Ele perguntou as horas, checou a resposta com a precisão dos ponteiros
do próprio relógio, descreveu o local do encontro e disse:
- Te vejo lá.
Entre
turistas e locais, Edward Joseph Snowden emergiu sozinho na hora
marcada, esticou a mão para um cumprimento e virou-se, indicando um
caminho. Em pouco tempo, guiou o visitante a um espaço seguro, longe dos
olhos do público. Durante as mais de 14 horas de entrevista, a primeira
concedida ao vivo desde que chegou a Moscou, em junho, Snowden não
abriu a cortina ou saiu. Apesar de a Rússia ter lhe concedido asilo
temporário até 1º de agosto, ele continua sendo alvo de enorme interesse
para serviços de Inteligência cujos segredos ele desvendou em escala
épica.
Seis
meses depois das primeiras revelações, Snowden concordou em refletir
sobre seu feito e a repercussão de suas escolhas. Ele estava relaxado e
animado em dois dias de conversas quase ininterruptas, movidas a
hambúrgueres, macarrão, sorvete e doces russos. Snowden permitiu
conhecer trechos de sua carreira na Inteligência e da vida recente como
um “gato trancado” na Rússia. Mas sempre leva a conversa de volta à
vigilância, à democracia e ao significado dos documentos que expôs.
-
Para mim, em termos de satisfação pessoal, a missão já está cumprida.
Eu já venci. A partir do momento em que os jornalistas puderam
trabalhar, tudo o que eu vinha tentando fazer foi validado. Porque,
lembre-se, eu não quis mudar a sociedade. Eu quis dar à sociedade a
chance de decidir se ela deveria mudar. Tudo o que eu quis foi que o
público pudesse dizer como quer ser governado.
Passamos desse marco há
muito tempo. Agora, todos estamos pensando nos objetivos complementares.
Snowden
pensa de forma ordenada, com a abordagem de um engenheiro para
resolução de problemas. E ele chegou à conclusão de que uma perigosa
máquina de vigilância em massa agia livremente. Os mecanismos de
fiscalização do Congresso e do Tribunal de Vigilância da Inteligência
Estrangeira eram os “túmulos do bom senso”, manipulados pela Agência de
Segurança Nacional (NSA), o órgão encarregado de de mantê-los
funcionais. Regras de sigilo e classificação haviam criado muros para
impedir o debate público.
- Você reconhece que está agindo no
escuro, que não há nenhum modelo - afirmou Snowden, admitindo não ter
como saber se teria apoio do público. - Mas quando você pesa que a outra
alternativa é não agir, percebe que algum debate é melhor que nenhum.
Porque mesmo que a sua análise revele-se errada, o mercado de ideias vai
trabalhar isso. Se olhar de uma perspectiva de engenharia, uma
perspectiva interativa, é claro que você tem que tentar alguma coisa em
vez de não fazer nada.
‘Meu computador está vazio’
Em
22 de junho, o Departamento de Justiça emitiu uma queixa criminal
contra Snowden por espionagem e roubo de propriedade do governo - onde é
visto como um sabotador imprudente. Diz-se que ele quebrou um juramento
de sigilo, expressão que incute uma sensação de traição. O diretor da
NSA, Keith Alexander, e o diretor de Inteligência Nacional, James
Clapper, entre outros, têm usado essa fórmula. Mas Snowden diz que o
Formulário Padrão 312, o acordo para não revelar informações secretas,
é, na verdade, um contrato civil. Ele o assinou, mas depositou sua
lealdade em outro lugar:
- O juramento de obediência não é um
juramento de sigilo. Esse é um juramento à Constituição. Esse é o
juramento que eu cumpri, mas que Keith Alexander e James Clapper, não.
As pessoas que o acusam de deslealdade, disse ele, confundem seu propósito.
-
Eu não estou tentando derrubar a NSA, estou trabalhando para melhorar a
NSA. Eu ainda estou trabalhando para a NSA agora. Eles são os únicos
que não percebem isso - afirmou.
Snowden garante que a maioria dos
funcionários da NSA acreditam em sua missão e confiam em como a agência
lida com os segredos coletados de cidadãos comuns. Mas a aceitação
dessas operações não era universal. E ele começou a testar essa hipótese
mais de um ano atrás, em conversas com colegas e superiores: em outubro
de 2012, ele levou suas angústias a dois supervisores do Diretório de
Tecnologia da NSA e a outros dois do Centro Regional de Operações contra
Ameaças, no Havaí. A eles e a outros 15 colegas, ele contou ter aberto o
programa BOUNDLESSINFORMANT, que usava mapas coloridos para mostrar o
volume de dados coletados pela NSA. Muitos ficaram desconcertados e
vários outros disseram que não queriam saber mais.
- Eles ficaram
chocados ao ver que estamos coletando mais dados sobre americanos nos
EUA do que sobre russos na Rússia - contou.
Antes de começar a
revelar os documentos, ele fez avaliação final dos riscos. E superou o
que, à época, chamou de “medo egoísta” das consequências para si
próprio:
- Eu te disse que o único medo que restava era a apatia; que as pessoas não ligassem, que não quisessem mudanças.
Os
documentos chamaram a atenção porque mostraram aos americanos uma
história que eles não sabiam que tinham. A revelação do projeto MUSCULAR
— que permitia acesso às redes de fibra ótica que conectam os
servidores de empresas como Google e Yahoo mundo afora — irritou e
galvanizou empresas americanas. Mas Snowden concentrou-se num ponto
desde o início: o estabelecimento de alvos individuais curaria a maior
parte do que ele acha errado na NSA.
uma vida de miojo e batatas fritas
Para Snowden, privacidade é um direito universal aplicável a todos, igualmente:
-
Eu não me importo se você é o Papa ou Osama bin Laden. Desde que haja
uma causa individual, articulável, provável para colocar essas pessoas
na mira da Inteligência estrangeira legítima, tudo bem. Eu não acho que
pedir um argumento provável seja impor um fardo ridículo. Porque, você
tem que entender, quando se tem acesso às ferramentas que a NSA tem, uma
causa provável cai das árvores.
Apesar de muitas alegações, nos
EUA, de que “todo mundo espiona”, quando se trata da espionagem de
aliados, a notícia principal para Snowden nem sempre é o alvo - como no
caso da vigilância das comunicações da chanceler federal alemã, Angela
Merkel.
- O que é revelada é a enganação do governo. O governo
americano disse: “Nós seguimos a lei alemã na Alemanha. Nunca atingimos
alvos alemães”. E aí a história vem à tona dessa forma: “Do que você
está falando? Você está espionando a chanceler federal. Vocês mentiram
para o país inteiro, diante do Congresso” - pontuou o ex-técnico da CIA e
da NSA.
Uma das grandes preocupações dos EUA é saber se China e
Rússia conseguiram acesso aos arquivos do computador de Snowden - o pior
dos cenários, mas uma hipótese que três altos funcionários da
Inteligência creem não ser possível. Numa missão anterior, Snowden havia
ensinado a fontes da Inteligência como operar em segurança em “um
ambiente digital de alto risco”, num cenário onde a maior ameaça era a
China. Ele recusou revelar onde estão os arquivos, mas se disse seguro
de que não os expôs à Inteligência chinesa quando esteve em Hong Kong. E
tampouco levou-os a Moscou.
- Não há nada aqui -disse ele, virando a tela do laptop para o repórter. -Meu disco rígido está completamente em branco.
A
outra grande questão é o número de documentos que Snowden copiou —
calculado pelo novo diretor da NSA, Rick Ledgett, em até 1,7 milhão. Há
quem diga que ele deixou um mecanismo de divulgação de todo o conteúdo
caso seja capturado. Ele não falou sobre isso. Mas, horas depois, mandou
uma mensagem criptografada: “Isso soa como uma ideia suicida. Não faria
nenhum sentido”.
Tanto pelo temperamento como pelas
circunstâncias, Snowden é um homem reticente, relutante em discutir
detalhes de sua vida pessoal. Durante esses dois dias, nunca baixou a
guarda, mas deixou uns poucos fragmentos emergirem. Ele disse ser
ascético. Vive comendo miojo e batatas fritas. Recebe visitantes, e
muitos deles lhe levam livros. As edições se acumulam numa pilha não
lida. A internet é uma biblioteca infinita e uma janela para o progresso
de sua causa.
- Sempre foi muito difícil me fazer sair de casa.
Eu simplesmente não tenho muitas necessidades... Ocasionalmente há
coisas para fazer, coisas para ver, pessoas para encontrar, tarefas para
cumprir. Mas realmente tem que ser algo com um objetivo, você sabe.
Caso contrário, contanto que eu possa sentar, pensar, escrever e falar
com alguém, isso para mim é mais importante que ir para fora olhar
paisagens — revelou.
Na esperança de manter o foco na NSA, ele tem ignorado os ataques pessoais.
- Deixe que digam o que quiserem. Isso não é sobre mim - insistiu Snowden.
Ex-diretores
da CIA e da NSA como Michael Hayden preveem que Snowden vá se acabar em
Moscou, alcoólatra, como outros desertores. Snowden dá de ombros: ele
não bebe. E nunca bebeu.
Mas ele sabe que sua simples presença é
munição fácil para os críticos. Ele não escolheu o refúgio em Moscou
como destino final. Segundo ele, não houve outra escolha desde que o
governo americano cassou seu passaporte quando ele tentava mudar de
avião rumo à América Latina. Seria estranho se as autoridades russas não
mantivessem um olho nele, mas ninguém foi visto nos arredores durante a
entrevista. Snowden tampouco tentou se comunicar furtivamente ou pediu
para que seu visitante o fizesse. Ele tem acesso contínuo à internet e
conversa diariamente com jornalistas e seus advogados, desde o primeiro
dia na área de trânsito do aeroporto moscovita Sheremetyevo.
- Não
há nenhuma prova de que eu tenha lealdades a Rússia, China ou a
qualquer outro país que não os EUA, como alegam. Eu não tenho nenhum
acordo com o governo russo. Não entrei em nenhum tipo de entendimento
com eles. Se eu desertei, eu desertei do governo para o povo — afirmou.