sexta-feira, 20 de maio de 2011

Goura Vrindavana


Enviado por em 15/08/2009

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Sejam felizes todos os seres.Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

TEMPO INTENSIVO - C.G.JUNG - André Dantas



ANDRÉ DANTAS 


            Mas a cisão neurótica que atinge  psicologia analítica, não se deve apenas ao seu aprisionamento no espaço extensivo, mas também ao conceito extensivo de tempo com o qual trabalha. Espaço e tempo não são separados um do outro. Desde os tempos mais remotos ambos estão relacionados e as primeiras medições temporais eram feitas com base no movimento espacial dos astros no céu. O tempo e espaço são considerados um continuum na física contemporânea.

            O arquétipo-em-si, unidade entre psique e matéria não está distante apenas espacialmente da consciência, no reino das essências, mas também temporalmente, na experiência dos ancestrais. Essa distância temporal  é a contraparte passada da unidade dos opostos que se realiza apenas num tempo futuro.

O tempo extensivo 
mantém o passado distante do presente 
e este distante do futuro. 

Assim Jung pode dizer que os arquétipos são sedimentos de vivências recorrentes do nosso passado primordial, e que surgem em nós na forma de possibilidades virtuais de experiência. O tempo extensivo desempenha então um papel similar ao do espaço, visto que Jung projeta o que está presente no passado e no futuro. 

            Em um dos seus escritos Jung critica a psicanálise freudiana por localizar as causas da neurose no passado, afirmando que elas devem ser procuradas na vida presente do paciente 176. Façamos o mesmo com a práxis junguiana, procuremos as causas do devir psicológico não no passado e nem no futuro, mas no presente absoluto. 

             Para curarmos essa cisão temporal é necessário dobrar o tempo extensivo em-si-mesmo, da mesma forma que foi feito com o espaço. Na leitura dialética da obra freudiana realizada pelo psicanalista francês Claude Le Guen, destaca-se o tratamento reservado aos conceito de apoio e a posteriori, que em Freud estão desvinculados um do outro.

Para Le Guen a psique funciona  dialeticamente, sendo habitada pela contradição e pela história, cujo movimento é caracterizado pela coniunctio oppositorum dos mecanismos de apoio e a posteriori 177.
O conceito de apoio explica o modo como a sexualidade se apropria das funções autoconservadoras. Um bebê que não se alimenta morre, mas quando o bebê substitui o mamilo ou o bico da mamadeira por um dedo é sinal de que algo além da sobrevivência está em jogo. 

A sexualidade nascente apoia-se sobre o instinto autoconservador de mamar, conservando a zona corporal onde ele ocorre, a boca, mas negando o caráter alimentício do objeto, que torna-se sexual, auto-erótico, pois serve ao propósito de descarga das tensões acumuladas. O seio perde as características físicas de lactação e ganha traços mentais ao ser integrado numa fantasia, funcionando como um objeto da pulsão em sua eterna busca de evitar o desprazer, e por isso servindo ao princípio de prazer que suprassume as funções autoconservadoras do organismo. 

Isso se repete em outras funções vitais criando toda uma série de representações psíquicas ligadas a uma zona corporal erogeinizada. Le Guen amplifica o conceito para o funcionamento temporal da psique como um todo.

A principal característica do apoio é que um antes indica um caminho a um depois. O posterior ocorre num campo de possibilidades delimitado pelo que ocorreu antes, excluindo desenvolvimentos que em tese poderiam ter acontecido 178.
 
Em um rio as águas correm seguindo a inclinação do leito, apoiando-se nele, mas o fluxo da correnteza ao depositar sedimentos trazidos pelas águas, erode as margens e o fundo alterando a posteriori o próprio leito que antes determinava a direção do fluxo. Do mesmo modo o tratamento analítico pode exercer um profundo impacto sobre o que aconteceu no passado, pois mesmo que não altere o fato literal que ocorreu, transforma a posteriori o sentido que esse fato tem na vida do paciente 179.

 Le Guen chama este devir de dialética psíquica. Esse é o fio condutor da análise permitindo que os objetos infantis sejam deslocados das posições em que ficaram coagulados. Se forem tomados isoladamente esses mecanismos não são contraditórios sendo apenas diferentes um do outro. Não é necessário recorrer à negação dialética para compreender que o passado possa determinar o sentido do presente nem que o atual possa alterar o sentido do passado. Para que o apoio-a posteriori seja considerado dialético é preciso ressaltar que não há primeiro um apoio e depois um a posteriori, mas uma conjunção onde um só é porque o outro é. 

Apoio e a posteriori não estão isolados um do outro, mas são momentos diferentes de um só e mesmo devir, que renova ao negar, conservar e ultrapassar o antigo. O que a posteriori ressignificou o passado, servirá por sua vez de apoio para uma nova ressignificação a posteriori, pois vida é história, renovação que nega o passado de forma absoluta ao conservá-lo como um momento do infinito devir.

O tempo psicológico não é linear, extensivo, pois não flui apenas num sentido, do passado para o presente e deste para o futuro, mas também flui do futuro para o presente e deste para o passado. Futuro, presente e passado se co-determinam e a psicologia lida com um passado que é presente e um presente que é passado, e com um futuro que é presente e um presente que é futuro, ou seja, com um presente absoluto, unidade autocontrária de passado e futuro. 

Se uma pessoa é intensamente religiosa e acredita que se não praticar boas ações irá para o inferno, essa perspectiva de futuro produz resultados bastante concretos no seu presente, podendo provocar muito sofrimento na medida em que ela se vê incapaz de ser somente uma boa pessoa. Os líderes dos grandes governos ocidentais pré-vendo futuros ataques terroristas, programaram uma série de ações com o objetivo de preveni-los, provocando uma série de transformações no presente cotidiano de bilhões de pessoas.

O presente não apenas determina e é determinado pelo passado, mas também determina e é determinado pelo futuro. Por ser unidade autocontraditória do passado e futuro, porta em si as sementes da sua própria negação, de um futuro ainda incerto que pressiona para nascer. 

O presente é o momento imanentemente negativo que desvanece assim que germina, tornando-se desde já passado e sendo sempre um futuro que estar por vir. Ele é uma flor que suprassumiu o botão de onde nasceu e carrega as sementes do fruto que a sucederá sendo assim uma trans-imanência, uma imanência que por conter o negativo em-si é devir que transcende a si-mesma.   

            Partindo desta concepção intensiva de tempo é possível refletir mais profundamente sobre duas questões de grande importância para psicologia, o inato e o originário. Os dois são na verdade uma só questão vista de dois ângulos diferentes.

Os recentes avanços na genética acirraram o antigo debate natureza vs cultura. Neste debate os culturalistas têm demonstrado uma posição mais unilateral ao defenderem que toda experiência humana é baseada apenas na interação com a cultura, e que antes da aquisição da linguagem não passamos de uma tábula rasa. Os naturalistas, descontando alguns exageros, defendem uma experiência bifacial, onde o humano é interação entre genética e cultura.

Se uma pessoa tem uma predisposição genética para o câncer isso não significa que ela irá desenvolver a doença, pois o que determinará o papel desempenhado pelos genes é a sua interação com a cultura, que pode ativá-los ou desativá-los. Se essa pessoa torna-se no decorrer da sua vida um fumante inveterado, terá nas mãos uma bomba relógio. 
 
A experiência humana como um todo é produção histórica que tem seu apoio na genética e seu a posteriori na vivência cultural, sendo assim um presente que é passado porque é determinado pelos genes advindos dos nossos ancestrais, e um passado que é presente porque a interação cultural filtra e determina a presentificação da genética no comportamento humano. Se não houvesse algo na genética humana que a predispusesse para a cultura seria possível ensinar um gato ou um cachorro a falar. 

Se não houvesse na natureza humana um instinto lingüístico, uma predisposição para aprender a linguagem, o trabalho de desnaturalização operado pela língua seria impossível. A natureza humana é contra naturam, porta em si mesma as sementes da sua negação absoluta que não apenas nega a natureza inata, mas a conserva elevando-a a um novo nível de complexidade ao torná-la parte de um movimento autocontrário de apoio-a posteriori e não mais uma natureza encerrada em si mesma, abstraída da cultura.

A psicologia analítica e a psicanálise têm concepções opostas, mas complementares em relação ao originário. Para a psicologia analítica o originário baseia-se na infância cultural do homem, sendo a infância pessoal determinada por ela. A vivência infantil é então abordada a partir de conceitos como matriarcado e patriarcado, oriundos do estudo da história da cultura como um todo. Para a psicanálise a infância pessoal determina a vivência cultural, mesmo à dos nossos antepassados. Representações culturais coletivas como a santa ceia, o mito do herói, o casamento sagrado entre céu e terra, seriam sublimações de vivências infantis. Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? 

A construção do conceito concreto de inconsciente infantil se deu a partir da personalização do que antes era visto como a vida mítica dos deuses e heróis. A experiência subjetiva individual tornou-se possível na atualidade graças à encarnação do mítico no humano. 

Foi necessário um depauperamento dos símbolos para que se descobrisse de novo os deuses como fatores psíquicos, ou seja, como arquétipos do inconsciente. (...) Desde que as estrelas caíram do céu e nossos símbolos mais altos empalideceram, uma vida secreta governa o inconsciente. É por isso que temos hoje uma psicologia, e falamos do inconsciente. Tudo isso seria supérfluo, e o é de fato, numa época e numa forma de cultura que possui símbolos180

Somente com a introjeção do mítico no humano é que tornou-se possível afirmar que o mítico era uma projeção do humano. Essa introjeção é a fonte da psicologia individual, que através da teoria de um espaço inconsciente intra-pessoal, reencontra as categorias suprapessoais que antes estavam presentes na natureza, no céu, no mundo inferior.
O termo “projeção” não é muito apropriado, pois nada foi arrojado fora da alma; o que ocorre é que a psique atingiu sua complexidade atual através de uma série de atos de introjeção. 

Essa complexidade tem aumentado proporcionalmente à desespiritualização da natureza. Uma entidade inquietante da floresta de outrora chama-se agora “fantasia erótica”, o que vem complicar penosamente nossa vida anímica 181.
Isso se deu graças a um processo de luto que ocorreu quando os avanços das ciências naturais permitiram constatar que não havia nada de divino na natureza, nenhum deus ou espírito que nela atuasse. Para Freud quando uma pessoa perde um ente querido os traços mnêmicos associados às experiências daquela pessoa retornam sobre o eu, que se identifica então com o ente perdido 182. Nesse caso o é luto vivido pelo anthropos, o homem universal, personificação do conceito concreto de humanidade dentro do qual vivemos 183. 

A humanidade 
perdeu seus pais míticos e os introjetou. 

Assim os viventes da cultura contemporânea ao olharem para dentro do seu espaço interior subjetivo encontram sedimentos míticos na forma de suas próprias experiências pessoais 184.
Esse reencontro não ocorre apenas através de uma atitude introspectiva, mas também quando se penetra na interioridade da ciência objetiva. 

É de uma peculiar ironia que a física, 
a mais materialista das ciências, reencontre 
em seu núcleo duro a mística oriental e tenha 
se tornado uma das principais fontes de inspiração 
do movimento espiritual da nova era.  
 
Também é possível afirmar que não se trata propriamente de uma introjeção, mas de um recolhimento da projeção, que estamos devolvendo a mitologia ao seu lugar de origem, a experiência subjetiva humana. Qual vem primeiro? Nenhum dos dois e os dois, pois todo saber contemporâneo apoia-se na experiência mítica ao mesmo tempo em que a ressignifica posteriormente. 

Estamos total e completamente enraizados no presente sendo impossível observar com neutralidade o passado que é fonte do próprio presente onde nos enraizamos. Olhamos para o passado a partir do que vivemos no presente e na medida em que alteramos o presente olhamos para o passado de forma diferente e descobrimos nele as causas para essa nova forma de ser presente. É o presente absoluto retornando infinitamente a si-mesmo.

            A psicoterapia, enquanto processo de reconstrução da história do paciente, é arqueologia do passado que transforma o modo de abordá-lo ao alterar o presente que é causado por este passado, e que por isso causa um novo olhar para o passado que é a causa desse novo presente. Presente e passado são causa e efeito um do outro, e nada existe na causa que não esteja no efeito, assim como não há nada no efeito que não esteja na causa. 

O que é efeito é uma causa com efeito próprio e o que é primeiro causa é em-si-mesma, efeito e tem uma causa adicional própria. Causa e efeito contém um ao outro sendo inseparáveis.  Ao produzir um efeito, a causa torna-se causa sendo por isso causa de si-mesma, logo efeito de si-mesma. O efeito é causa porque somente sua ocorrência faz com que a causa seja uma causa, pois o que define uma causa é a sua capacidade de gerar efeito, logo a causa é efeito porque se faz causa pelo seu efeito.

Quando a reciprocidade entre causa e efeito é desfeita o resultado é a má infinitude, a regressão infinita onde qualquer causa é efeito não do seu próprio efeito, mas de alguma outra causa e qualquer efeito é causa não da sua própria causa, mas de algum outro efeito. 

Explicar qualquer evento em-si-mesmo torna-se impossível, pois seus antecedentes causais regridem infinitamente 185. Jung escapou da má infinitude impossibilitando a cognição da causa, do arquétipo-em-si. 

A dialética é assim uma forma sofisticada de tautologia, uma lógica urobórica, autopoiética, onde o movimento de partida, a causa em que se apoia, e o movimento de chegada, o efeito posterior, retornam infinitamente um sobre o outro, interiorizando um ao outro no absoluto que é o alfa e o ômega de todo o movimento, porque ele é esse movimento que interioriza a si-mesmo. Trata-se de um pensamento nômade que não se movimenta no exílio do espaço extensivo, mas na própria terra prometida do absoluto, sendo assim movimento de eterno aprofundamento num único e mesmo conceito que está implícito em todo e qualquer conceito, e que por isso é o conceito absoluto, identidade da identidade e da diferença.

A explicação dialética é nada mais, mas nada menos, do que o desdobramento de tudo que está implicado nessa relação de exterioridade-interna. Ela é a totalidade consciente de si mesma, pois uma verdadeira totalidade não pode ter nada fora de si e por isso sua consciência não pode ser externa a si, já que isso seria uma contradição em termos. 

            A dialética é o saber absoluto, imanente a tudo no momento mesmo em que se torna um objeto de conhecimento. Por isso ela é virtualmente presente em todo e qualquer saber, inclusive naqueles cujo fundamento é oposto à circularidade que a fundamenta.

 
 Fonte:
PSICOLOGIA:ANALÍTICA OU DIALÉTICA?
http://www.robertexto.com/archivo1/psico_anal_dialetica.htm
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

ESPAÇO NÃO LOCAL- C.G.JUNG - André Dantas


ANDRÉ DANTAS 

O questionamento da natureza do próprio espaço iniciou-se a partir do debate entre os físicos Albert Einstein e Niels Bohr. Apesar da teoria quântica ter sido partejada a partir da teoria da relatividade, Einstein estava insatisfeito com os passos que sua cria bastarda andava tomando, principalmente com a idéia de acaso como elemento essencial da realidade objetiva. 

A escola de Copenhage, liderada pelo dinamarquês Bohr, fornecia a interpretação mais completa dos fenômenos atômicos nas primeiras décadas do século XX. A interpretação de Bohr, Werner Heisenberg e seus colaboradores, contrastava com o determinismo rígido da física clássica para qual em cada causa natural há um único e inevitável efeito correspondente. 

O mundo subatômico, ao contrário, parecia ser dominado pela incerteza sendo impossível prever com segurança a posição e velocidade das partículas, sem falar que os experimentos demonstravam a impossibilidade de demarcar precisamente fronteira entre os objetos observados e o aparato utilizado pelo observador. Mesmo os mais rigorosos e cuidadosos procedimentos experimentais condicionavam inevitavelmente o comportamento do fenômeno observado. 

Durante séculos o acaso e a interferência do observador permaneceram ocultos no estudo dos fenômenos macroscópicos, mas no nível subatômico eles saltavam aos olhos pondo em cheque todo o ideal abstrato da física como descrição objetiva da realidade, obrigando-a a rever o paradigma dentro do qual construía sua teoria e forçando-a a aceitar a parcialidade, a subjetividade e a incognoscibilidade como inerentes a qualquer descrição dos níveis profundos da matéria. 

Einstein não conseguia aceitar 
o indeterminismo da teoria quântica, 
ficando famosa a sua frase:
“Deus não joga dados”. 

Ao que Bohr retrucou:
 
“Como você sabe o que Deus está fazendo”  
 
Einstein e seus colaboradores Boris Podolsky e Nathan Rosen propuseram, num artigo escrito em  1935, um experimento lógico questionando a descrição da realidade feita pela teoria quântica. Esse experimento hipotético, que ficou conhecido como “Paradoxo de Eistein-Podolsky-Rosen” ou EPR, baseava-se na propriedade que as partículas subatômicas possuem de girar em torno dos seus próprios eixos, fenômeno esse chamado pelos físicos de spin. 

A quantidade de spin de um elétron é sempre igual, mas dado um eixo de rotação ele pode girar tanto no sentido horário como anti-horário. Em um sistema composto por dois elétrons que giram em sentido contrário o spin total constituído pela soma algébrica dos spins individuais é nulo, devendo permanecer assim a não ser que algum fator externo altere essa condição. Porém o elétron não possui apenas um eixo de rotação, há muitos possíveis, e aqui começa a discórdia, pois segundo a teoria quântica o observador é capaz de conhecer os eixos possíveis, mas não é capaz de determinar com precisão qual desses eixos será utilizado efetivamente pelo elétron em cada evento particular. 

A definição de um dentre os múltiplos eixos possíveis seria uma ocorrência puramente casual, sujeita à interferência do observador. Toda vez que o observador escolhe um dos eixos e organiza um experimento para medir o spin do elétron em relação a esse eixo, encontra o elétron girando ao redor dele. O próprio ato de medir parece definir o eixo de rotação 156.

            Para demonstrar a inconsistência física desse enfoque subjetivo-casual e reduzi-lo ao absurdo, Einstein, Podolsky e Rosen imaginaram uma situação onde dois elétrons de spins alinhados em sentido contrário estavam em interação, sendo então o spin total do par nulo. Através de um método que não afetasse seus spins, os elétrons eram distanciados um do outros e, quando a distância fosse astronomicamente grande, os spins eram medidos escolhendo-se arbitrariamente qualquer um dos múltiplos eixos possíveis. Como para a escola de Copenhage o próprio ato de medir define o eixo de rotação, o elétron passaria a girar ao redor desse eixo. 

Para que o spin total do par 
continuasse nulo seria preciso que o elétron 
astronomicamente distante passasse
a girar em torno do eixo escolhido.

Ao ser definido arbitrariamente um determinado eixo de rotação para a partícula A, o mesmo eixo era imposto a partícula B, independente do quão distante ela tivesse, e o alinhamento precisava ser simultâneo, pois nem mesmo por um momento o princípio da conservação do spin total poderia ser violado. 

Para que esse alinhamento ocorresse a comunicação entre as partículas precisava acontecer em uma velocidade infinita o que segundo Einstein era um absurdo uma vez que nenhum sinal físico podia viajar mais rápido do que a luz, pois se o fizesse transgrediria o eixo do tempo retornando ao passado, um postulado básico da teoria da relatividade que tinha sido amplamente demonstrado através de experimentos 157.

            Através desse engenhoso experimento lógico o trio pretendia pegar Bohr e seus companheiros de calças curtas provando que a casualidade introduzida no formalismo da teoria quântica não era imposta pela própria realidade física, mas devia-se a uma limitação da própria teoria, ignorante das variáveis ocultas que se fossem conhecidas explicariam de maneira definitiva o porquê do elétron ocupar esta e não aquela posição, ou girar ao redor deste e não daquele eixo, eliminando definitivamente do corpo da ciência o acaso e a interferência decisiva do observador no curso dos fenômenos 158.
 
Bohr reagiu ao argumento com uma indiferença surpreendente, limitando-se a responder que as duas partículas eram partes de um sistema indivisível e que o paradoxo decorria do fato de pensá-las como separadas. Essa afirmação era revolucionária, pois rompia com toda a concepção sobre os componentes da matéria herdados da física clássica. Ao invés de entes individuais e isolados, como tijolos empilhados para erguer uma parede, assemelhavam-se mais a recortes feitos pelo observador num todo inseparável. 

É como se resolvêssemos olhar para o céu limpo através de pequenos buracos feitos numa folha de papel,  vendo apenas pontos azuis contra o fundo branco da folha. A individualidade dos pontos é uma conseqüência do instrumento de observação, a folha, e não do objeto observado, o céu. O próprio Bohr parece não ter percebido o alcance da sua afirmação. Na década de trinta a física quântica colhia sucessos espetaculares na previsão dos fenômenos, atraindo um número crescente de adeptos. 

Se a natureza última da realidade estava sempre além da nossa capacidade cognitiva, por que perder tempo com especulações metafísicas? Bastava contentar-se com estimativas estatísticas sobre o curso dos eventos, consolidando assim o viés empirista da teoria 159.   
 
     A polêmica com Einstein produziu um intenso impacto em Bohr, pois o criador da teoria da relatividade tornou-se um interlocutor permanente num diálogo interno, desses com quem se debate mesmo quando se está sozinho. Abraham Pais, um físico amigo de ambos e biógrafo de Einstein, declarou que mesmo depois da morte do cientista judeu-alemão o dinamarquês Bohr continuava a debater com ele como se ainda estivesse vivo.

No entanto a questão do paradoxo EPR permaneceu mal respondida, visto que os dois grandes cientistas pareciam ter consumido toda a fantástica inspiração que dispunham para o tema e, prisioneiros das limitações dos seus próprios modelos, não conseguiram ir adiante. Coube ao físico americano David Bohm retomar o fio de Ariadne que levava à saída do labirinto ao assumir todas as conseqüências lógicas do paradoxo EPR 160.

            Sua penetração neste labirinto lógico começou a partir da década de quarenta, quando fazia doutorado na Universidade da Califórnia em Berkeley e pesquisava o quarto estado da matéria chamado plasma, um fluido onde os átomos não conseguem se configurar como estruturas estáveis, resultando numa alta concentração de íons positivos e elétrons livres. Bohm verificou que embora o movimento individual dos elétrons no plasma parecesse casual, enquanto coletividade eles produziam efeitos surpreendentemente organizados possuindo uma extraordinária capacidade de autoregulação semelhante a de uma criatura viva. 

Suas pesquisas posteriores na Universidade de Princenton confrontaram-no com situações experimentais em que não apenas um par de elétrons se comportava como se uma partícula soubesse instantaneamente o que a outra estivesse fazendo, mas em que trilhões de elétrons pareciam atuar dessa forma ao mesmo tempo. Durante essa época Bohm manteve uma série de longas conversações com Einstein, que também era pesquisador em Princenton. Tudo isso o conduziu a apresentar em  19 5 2 uma síntese das posições antagônicas de Einstein e Bohr 161.

A escola de Copenhague contentara-se com uma descrição estatística do comportamento dos fenômenos atômicos durante o processo de medida, por isso o questionamento sobre a existência real ou não de entes como os elétrons fora do contexto de observação era uma conjectura que não cabia no modelo explicativo. Bohm assumiu que estes eram entes reais e que o componente aparentemente casual do comportamento poderia ser explicado considerando que por trás das cenas, onde a Escola de Copenhague se recusava a olhar, atuava um nível mais profundo de realidade denominado potencial quântico. 

Este potencial teria uma estrutura de campo que preencheria todo o espaço, mas ao contrário do que ocorre com os campos gravitacional e eletromagnético, sua intensidade não diminuiria com a distância, mas seria constante 162.

Até aqui o modelo não era mais do que o desenvolvimento da hipótese das variáveis ocultas de Einstein. Porém à medida que foi sendo refinado ele se afastou do horizonte paradigmático cartesiano da ciência clássica onde o todo é concebido como um agrupamento das partes que o determina, e que interagem localmente, como trocas de energia entre elementos contíguos. 

Einstein que já em  1905 subvertera os conceitos clássicos de massa, energia, espaço e tempo, jamais conseguiu se libertar totalmente da camisa de força cartesiana. Suas variáveis ocultas tinham um caráter essencialmente local, extensivo, e assim ele entendia a comunicação entre os dois elétrons do EPR como um sinal que atravessava uma extensa seqüência de pontos contíguos do espaço-tempo para viajar de uma partícula a outra. A idéia de que constituiriam um sistema único era nesse modelo um absurdo 163.

Vítima da histeria anticomunista que se apossou dos Estados Unidos após a explosão da primeira bomba nuclear soviética em  19 49, Bohm foi intimado a depor devido a sua filiação ao Partido Comunista Americano. A Comissão de Atividades Antiamericanas o incluiu entre os suspeitos de terem fornecido uma fórmula decisiva para a construção da bomba ao dirigente comunista Steve Nelson, que por sua vez a repassou a embaixada soviética. 

Em  1943 Bohm havia se doutorado sob a orientação de Robert Oppenheimer, o pai da bomba atômica americana e sua tese jamais foi publicada por ser considerada segredo de estado. Logo ele era realmente detentor de informações sigilosas, mesmo assim a informação era descabida,  pois a confecção da bomba não depende de uma ou outra fórmula, mas da execução de um complexo programa que foi viabilizado pelos soviéticos graças a uma equipe de físicos de altíssimo nível 164.

Quando convocava alguém para depor a estratégia da Comissão era forçar a delação, o que gerava uma avalanche de denuncias e alimentava uma paranóia coletiva. Quando perguntaram a Bohm se ele era comunista e se conhecia Steve Nelson, ele invocou a Primeira Emenda da Constituição Americana que lhe assegurava o direito de permanecer em silêncio, garantindo-o não submeter outras pessoas a perseguições. Sua posição foi acolhida pela justiça, mas lhe custou o emprego de professor na Universidade de Princeton, e qualquer condição de continuar trabalhando em solo americano. 

Einstein usou sua influência para lhe conseguir um lugar na Universidade de São Paulo 165.
Chegando aqui o consulado americano tomou seu passaporte comunicando-lhe que só o devolveria se retornasse aos Estados Unidos e como ele não obedeceu cassou sua cidadania, o que o fez naturalizar-se brasileiro. Aqui Bohm conheceu o físico Mário Schenberg que lhe encaminhou para o estudo da filosofia hegeliana. O filósofo da totalidade exerceu um profundo impacto nas suas idéias e segundo seu ex-colaborador, amigo e biógrafo David Peat, ele nunca mais  deixou de carregar em suas viagens um exemplar da Lógica de Hegel 166. 
 
Quanto mais avançava na compreensão do potencial quântico mais Bohm se convencia de que os elétrons do EPR não apenas formavam uma unidade mas, junto com as demais partículas do universo, formavam uma totalidade indivisível num nível de realidade mais fundamental. Na instância em que esse todo operava, as distinções locais deixavam de existir, qualquer ponto no espaço extensivo era igual a todos os outros e já não se podia pensar em entes completamente separados. Assim eventos que à primeira vista pareciam aleatórios poderiam ser ordenados em um nível mais profundo de realidade denominado ordem implícita, por estar por baixo da realidade explícita cotidiana. 

Todas as formas do universo material resultariam de ininterruptos processos de dobramentos e desdobramentos da totalidade indivisível. Todas as partículas físicas seriam como pontas de um iceberg acima da superfície que constitui o limite usual da nossa capacidade de observação, sendo a  própria observação uma troca de energia entre sujeito e objeto que provoca a emersão do iceberg

O Big Bang, a súbita expansão do universo a partir de um ponto sem volume com densidade e temperatura infinita, seria um ponto privilegiado, um desdobramento fantástico da ordem implicada ocorrido há bilhões de anos atrás 167.
 
O universo seria então semelhante a um holograma. (Do grego holo, todo, e gram, escrever. O holograma é a escrita do todo).  Ao gravarmos uma imagem em um filme holográfico e dispararmos nele um laser,  essa imagem se explicitará tridimensionalmente. Se cortarmos esse filme no meio cada metade explicitará a mesma imagem que havia no filme inteiro só que com menos nitidez. Cortando o filme em inúmeros pedaços cada fragmento explicitará a mesma imagem, mas com um nível cada vez menor de nitidez.  

 Consciente que o holograma era uma metáfora por demais estática, Bohm cunhou o termo holomovimento na tentativa de expressar esta totalidade em permanente transformação 168. Toda a realidade extensiva seria como uma onda no oceano energético da realidade implicada.

O senso comum tende a hipostasiar o conceito de energia. Por isso um oceano de energia implícita sugere uma substância misteriosa, um éter subjacente a toda realidade, como antigamente imaginava-se o calor como uma substância dentro dos objetos, o calórico. Mas assim como o calor é o movimento do jogo de relações em interação a que chamamos de partículas, energia é devir, transformação, passagem de um estado anterior a um posterior, capacidade de realizar trabalho. 

Jung a definiu não como relação de substâncias, mas como relação de movimento. Energia é polaridade, tensão entre os contrários. Assim quando se diz que a realidade implícita é um oceano de energia, não é de uma substância incognoscível que se está falando, mas das relações de movimento que perpassam virtualmente todo o universo, entre elas as de dobramento-desdobramento, essência-aparência, implicitação-explicitação, virtual-atual. 

Em descontínua-continuidade 
uma reflete a outra, pois só é através da outra.
 
            Na alquimia existe uma operação chamada citrinitas, o amarelecimento da obra, onde o vaso no qual acontece a transformação da prima matéria não é mais imune aos efeitos do que ocorre em seu interior 169. 

Ele mergulha dentro de si-mesmo e sofre o mesmo destino daquilo que contém. Na alquimia quântica o espaço não é mais imune às partículas que nele se movem, mas mergulha dissolvendo-se nelas. Se imaginarmos o espaço como uma folha em branco, o caminho mais curto entre um ponto e outro da folha não é uma linha reta, mas o dobrar da folha de modo que os dois pontos sobreponham-se. É assim que as partículas subatômicas se comportam nos experimentos físicos, como se não estivessem num espaço extensivo, mas num espaço intensivo, sobrepostas. 

Assim o amarelecimento da psicologia não significa abandonar o interior da clínica e ir para o mundo externo, como pensa Hillman 170. Tal atitude envolve a troca de um objeto de estudo situado em um espaço, o interior subjetivo humano, por outro objeto situado neste mesmo espaço, o mundo externo. 

Como a imaginação ainda é dominante, o espaço extensivo não é transcendido e os dois objetos de estudo são vistos como alternativos, ou um ou o outro, enquanto que o objeto de estudo de uma verdadeira psicologia é a unidade da unidade e da diferença da subjetividade humana e da objetividade externa. Mas tal unidade não pode ser imaginada por não ser espacial, não ser psíquica, mas psicológica.

O problema é que a imaginação não consegue personificar o espaço por ele ser anterior a toda e qualquer personificação, visto que é a própria condição para a atividade de personificar, pois um ser personificado é um ser com propriedades espaciais, mesmo que metafóricas. O espaço é o plano onde se desenrola a imaginação, assim como o empirismo-positivista e o senso comum. Para Kant espaço e tempo são formas a priori da intuição, que pre-para os dados sensíveis para a ação do entendimento 171. 

Somente os fenômenos são espaço-temporais, enquanto que a coisa-em-si por não poder ser apreendida espaço-temporalmente escapa à intuição sendo por isso incognoscível para o entendimento 172. Mas quando o fenômeno é refletido em sua infinitude interna, o tecido espaço-temporal é dobrado em-si-mesmo e todo o universo reflete-se num grão de areia. 

Nesse espaço intensivo as interações não são locais, mas psicológicas, por isso os físicos que penetram nas profundezas da matéria descobrem a subjetividade refletida nos fenômenos, assim como Jung descobriu o mundo material ao penetrar nos recônditos da subjetividade, o que o levou a formular o conceito de sincronicidade.

Esse movimento dialético já era conhecido pelos budistas que ao mergulharem em-si-mesmos em suas meditações redescobriam o mundo como ele era em-si-mesmo.  

 Subjetividade interior e objetividade exterior 
são categorias reflexivas, 
se imergirmos em uma acabamos na outra.

            Jung acreditava que tanto sua psicologia como a nova física estavam trabalhando com a mesma realidade apenas de perspectivas opostas. Os físicos a partir do mundo objetivo da matéria enquanto os psicólogos a partir do mundo subjetivo da psique 173. Para ele na esfera do arquétipo-em-si matéria e psique eram uma só e mesma coisa. 

Quando os físicos adentraram no interior do átomo descobriram que as partículas que o compõe ocupam um espaço insignificante, sendo todo o resto vazio. Costumamos considerar o espaço vazio e a matéria sólida, mas na verdade não há essencialmente nada em toda e qualquer matéria, sendo ela total e completamente insubstancial. Gostamos de pensar o átomo como uma esfera dura, um ponto microscópico de matéria densa concentrada em um núcleo cercado por uma nuvem de elétrons, mas mesmo o núcleo aparece e desaparece com tanta facilidade quanto a nuvem probabilística de elétrons que o circunda.

O que de mais sólido se pode dizer dessa matéria insubstancial, é que ela se parece com um bit concentrado de informação, com um pensamento, uma idéia. Logo o que denominamos matéria seria melhor descrito como uma material-idealidade, ou ideal-materialidade, ou, em uma linguagem alquímica, uma pedra filosofal.

             O arquétipo-em-si que une matéria e subjetividade não está nos genes, no corpo biológico ou em qualquer espaço local, mas é pensamento, conceito, unidade da unidade e da diferença da materialidade e da subjetividade, cuja incognoscibilidade é na verdade o próprio fundamento da cognição.

O conceito de arquétipo-em-si foi uma forma de Jung se esquivar da questão metafísica da natureza de Deus, pois o permitia projetá-la no reino das essências incognoscíveis. Assim quando questionado acerca do fundamento da sua psicologia ele podia responder que era total e completamente incognoscível, e ele, como um empirista, evitava especulações metafísicas. 

O conceito de arquétipo-em-si psicóide era uma latrina onde Jung jogou todas as questões mais importantes da sua psicologia, inclusive aquela que lhe arrebatou na infância e o perseguiu durante toda a sua vida: seria Deus acessível apenas a fé e não a razão? Se olharmos sua construção conceitual fica claro que sim, e por mais que protestasse contra seu pai, seu tio, e contra todos aqueles que desprezavam a razão na relação com Deus ele, durante toda a sua vida, nada mais fez do que refinar essa posição. 

Afirmar que trabalha apenas com a imagem psíquica de Deus e não com Deus-em-si-mesmo, deixa a divindade intocada, imune a qualquer afirmação que se faça dela, por mais perspicaz que seja. No volume XI das Obras Completas Jung afirma:

Não espero que nenhum cristão crente
siga o curso destas idéias, 
que talvez lhe pareçam absurdas. 
Não me dirijo também aos beati possidentes 
(felizes donos) da fé, mas às numerosas pessoas 
para as quais a luz se apagou, 
o mistério submergiu e Deus morreu  

Aqui podemos ver uma mão trabalhando contra a outra, pois é exatamente ao crente que Jung está falando, para aquele que pode ficar seguro em sua posição habitual. Ele pode continuar ir à igreja aos domingos, rezar todas as noites e relacionar-se com Deus da mesma forma como se tem feito há dois mil anos, pois não é de Deus-em-si que Jung fala, mas da sua versão miniaturizada no interior psíquico, um Deus contido num espaço separado do resto do mundo que o circunda. 

Mas Jung também fala aos ateus, para aqueles que nunca acreditaram, que são contra a suposição de tal entidade ou que são completamente indiferentes a ela, não se importando com sua real natureza pois há coisas mais importantes para se preocupar. O que Jung faz é uma estratégia de indiferença frente a Deus, tanto faz se ele existe ou qual a sua real natureza, afinal tudo o que interessa é como ele é no interior da psique. Sua real natureza não pertence à esfera da psicologia, mas ao reino das essências incognoscíveis, exatamente o mesmo lugar do arquétipo-em-si e por isso ele é a repetição conceitual do mesmo argumento do seu pai e tio, uma formação do mesmo sintoma construída a partir da mesma cisão neurótica entre fé e razão. 

Fundamentar uma práxis num princípio que não pode ser discutido ou questionado por ser incognoscível é no mínimo uma grande trapaça. Posso fazer toda e qualquer afirmação e se questionado em que ela se fundamenta encerro a discussão dizendo que sigo apenas o que aparece na psique, pois a essência que fundamenta esse aparecer está além da razão e por isso não pode ser questionada.

            A principal base filosófica do conceito junguiano de arquétipo provém de Kant. Para Jung os arquétipos são pré-conscientes 175 por serem a pré-condição para o conhecimento, mas são também totais e completamente inconscientes, incognoscíveis para a cognição que fundamentam, deuses ex machina.

Assim não apenas a coisa-em-si era incognoscível, mas a cognição também o era, o que significa que a consciência psicológica não é reflexiva, não é autoconsciência, mas consciência que tem seu objeto fora de si e por isso está exilada de si mesma, do seu próprio fundamento. 

Cognição psicológica não é autocognição, mas cognição de uma psique que está lá fora, uma imagem que o sujeito cognoscente observa, significando que o logos cognoscente não é psíquico e que a psique não é lógica. A psicologia analítica longe de ser uma totalidade orgânica é, em seu próprio fundamento, um agregado de psique e logos. Mas se a psique tem seu outro-si-mesmo externo a si, então ela é imune a ele, indiferente a ele, e o mesmo vale para o logos, que ao ser um diferente externo, é indiferente a psique, analisa-a de fora, como um cientista que com os materiais higiênicos necessários disseca um animal vivo. 

Esse estilo de pensamento externo resulta em uma psique inconsciente de si-mesma, visto que não se diferencia internamente, e um logos igualmente inconsciente, mas com o agravante de que por ser o veículo de consciência da psique sua inconsciência é uma consciência que trabalha expulsando a psique para uma distância cada vez maior de si. 

Como vimos anteriormente ele faz isso literalizando a psique como uma entidade espacial, um container, que deve recolher constantemente seus conteúdos que estão lá fora, no mundo, sendo essa atividade de interiorização a total expulsão da psique para fora de si-mesma, pois seu estar em-si-mesma é estar imersa no mundo, o que é impossível de ser concebido espacialmente, apenas conceitualmente. Sem ter o logos interno a si, a psique torna-se externa de si-mesma, porque sua interioridade não é espacial, mas relacional.

A psicologia analítica não é ainda uma verdadeira psicologia, uma identidade-diferenciada de psique e logos, o que não significa que devemos abandoná-la, pois a cura está na ferida, na cisão interna entre psique e logos, entre imaginação e razão, entre sujeito e objeto. Somente penetrando sem reservas nesse abismo é que ele se tornará o útero partejante de uma real psicologia.

 
 Fonte:
PSICOLOGIA:ANALÍTICA OU DIALÉTICA?
http://www.robertexto.com/archivo1/psico_anal_dialetica.htm
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

PENSAMENTO ABSOLUTO - C.G.JUNG - André Dantas



ANDRÉ DANTAS 

Quando transgredimos a proibição kantiana de conhecer a coisa-em-si descobrimos que ela era a abstração de toda e qualquer determinação e que por isso longe de ser aquilo que fica de fora do conhecimento, ela é o fundamento do próprio processo de conhecer. 

Ao não pressupor nada de determinado, 
esse conhecimento é verdadeiramente crítico, 
capaz de por tudo em dúvida. 

Mas ao não pressupor nada, ele também está pressupondo tudo que pode vir a ser algo, que aparece ou pode vir a aparecer. Assim a coisa-em-si, esse nada que é tudo, não é inapreensível ao pensamento, mas é o pensamento em sua forma pura. 

A coisa-em-si, a coisa abstraída de todas as suas determinações, é idêntica ao pensamento puro, abstraído de todas as suas determinações, por isso o pensamento que tenta apreendê-la apreende na verdade a si-mesmo, ou seja, o pensamento ao tentar atingir o infinito, dobra sobre si interiorizando a si-mesmo, tornando-se pensamento puro, pensamento que tem por objeto ele mesmo.

O pensamento absoluto,
que pensa a coisa-em-si-mesma, é pensamento
que pensa a essência interna a toda e qualquer coisa,
que pensa toda e qualquer coisa como sendo 
em sua essência interna, puro pensamento. 

Pensamento absoluto é Deus 
que reflete a si-mesmo em todo e qualquer ser
-determinado, seja natural ou cultural. 

Esse pensamento não pode ser reduzido à função pensamento, pois essa função é apenas uma das suas múltiplas determinações, um momento do seu movimento. Mesmo a função sentimento possui a sua lógica interna, que é ser o não-ser da função pensamento. 

Enquanto a função pensamento ordena os conteúdos da consciência em conceitos, a função sentimento os ordena segundo seu valor. Uma sem a outra é unilateralmente neurótica. Na dialética o pensar absoluto busca a essência conceitual daqueles conteúdos que possuem um intenso valor para a consciência. Sem a função sentimento seria impossível avaliar a importância dos conteúdos, fazendo do pensar uma indiferença aos conteúdos estudados. Esse pensamento indiferente não é absoluto, mas o pensamento abstrato da lógica formal, que foi o que Jung definiu como função pensamento.  

O mesmo vale para função intuição e para função sensação. Sem a coesão imediata oferecida pela intuição, não haveria nenhuma totalidade sobre a qual pensar. É graças ao poder de combinar diversas percepções numa imagem total, que a psicologia torna-se possível. Como a intuição é o outro interno da sensação, sem a percepção dos detalhes que formam o todo apresentado pela intuição, teríamos nas mãos apenas uma totalidade abstrata, indiferente às partes que a compõe, que fazem dela o que ela é. Assim o pensamento absoluto é a quinta-essência das quatro funções 112, a lógica interna que faz de uma a diferença da outra. 

Esse pensamento também é interno a todo e qualquer sintoma, afeto e imagem 113. Todos eles são implicitamente pensamento, pois possuem uma essência que os determina como uma contradição interna à sua identidade. Assim como na geometria duas retas paralelas se unem no infinito, a unidade dos opostos só é possível no infinito se ele for abordado não como um infinito positivista, mas como um infinito lógico dialético, psicológico.

Nesse infinito o que uma coisa é em-si-mesma 
é o que o pensamento é em-si-mesmo. 

Ele é idêntico ao conceito enquanto identidade da identidade e da diferença, e por isso não é o pensar subjetivo, um conteúdo interno a consciência, mas é a consciência no próprio movimento que a constitui.

Esse pensamento capaz de por tudo em dúvida, que se inicia do duvidar de toda e qualquer verdade estabelecida é o pensamento interiorizado em-si-mesmo, pois pode duvidar de tudo menos de si, pois o ato de por em dúvida esse pensamento é outro pensamento, que ao duvidar de si é outro pensamento e assim ao infinito 114, ou seja, o infinito, em sua verdade, é o pensamento interiorizado em-si-mesmo. Mas se o infinito é o que uma coisa é em-si-mesma, a essência de toda e qualquer coisa, o que na linguagem mítico-religiosa recebe o nome de Deus, então Deus é pensamento que ao se interiorizar, descobre-se como sendo interno a toda e qualquer coisa.

            Agora podemos fazer uma interpretação forte do cogito cartesiano: “penso logo sou”. Esse pensamento duvida de tudo, mas não regride infinitamente buscando um fundamento do fundamento do fundamento, porque não procura um fundamento positivista-empírico, mas um fundamento absoluto que é o verdadeiro infinito, que é Deus, que é o pensamento, que é essência que se fundamenta na existência através do conceito 115.

 Qualquer busca empírica de Deus está fadada ao fracasso, pois o positivismo que fundamenta a atitude empírica só funciona se Deus estiver ausente desde o início. O positivismo é a expulsão de Deus para um além do mundo de forma que ele não atrapalhe o funcionamento da ciência. Se ela não consegue captar Deus através de algum instrumento tecnológico conclui não que ele está morto, mas que na verdade nunca existiu. 

Deus não possui uma existência 
literalmente empírica, mas existe enquanto conceito,
como algo que não pode ser visto ou imaginado 
apenas experenciado através do pensamento 
que é a sua autorevelação-criação . 

Mas esse tipo de existência é insatisfatória para o crente que busca um Deus onisciente, que tem todas as respostas para as dores e sofrimentos da sua vida, que quando encontrado trará paz e felicidade eterna. Se ele descobrir que Deus é no fundo inconsciente e que sua autoconsciência é um processo que acontece em nós provocando dor e sofrimento, pois nos força desidentificar-se com tudo aquilo que acreditávamos ser e a reconhecer que muito do que excluíamos de nós é psicologicamente interno ao ser que somos, ele ficará tão desapontado que clamará em alto e bom som que tudo isso não passa de um monte de palavras vazias, que Deus tudo sabe e estará no céu nos esperando de braços abertos quando morrermos. Tal Deus definitivamente não pertence a este mundo. 

Hás duas frases que são significativas no confronto com as posições do crente e do positivista acerca do ser divino. A primeira diz: 

Vocatus atque non vocatus, Deus aderit”. 

Era uma frase de Desiderius Erasmus que Jung mandou gravar na pedra por cima da entrada da sua casa, e afirmava que 

“convocado ou não, Deus está sempre presente”  

 A lógica positivista 
intrínseca ao empirismo está certa ao afirmar 
que Deus nunca existiu, pois ele nunca foi 
ou vai ser uma coisa literal. 
Não há uma entidade que primeiro existiu e
depois resolveu criar o céu e a terra, eu e você. 

O positivismo para por aí, esse é o seu horizonte lógico, a barreira que o impede de transgredir o seu empirismo e conhecer a coisa-em-si. Ultrapassar essa barreira exigiria a suprassunção da cisão sujeito-objeto, mas o positivismo como positivismo precisa observar seu objeto de fora, ser imune a ele. Dissolver essa distância seria dissolver a si-mesmo como positivismo.

 A observação externa é conditio sine qua non para neutralidade do conhecedor de modo que sua subjetividade não interfira no objeto de conhecimento. Mas essa neutralidade esconde uma vontade de poder, uma necessidade de se impor sobre o objeto, de controlá-lo, pois positivismo cinde seu processo de conhecer em dois momentos contrários. No primeiro momento o observador interfere o mínimo possível sobre o seu objeto, tanto um como o outro são imunizados um contra o outro. 

O segundo momento, usualmente considerado externo ao conhecer, é o controle total sobre o objeto que agora está a serviço do desejo por dinheiro, poder e status do conhecedor. Longe de ser externa ao processo de conhecimento positivista, a vontade de poder está lá desde o início, sendo sua motivação básica. No positivismo o saber neutro sobre o objeto anda de mãos dadas com a utilização desse objeto para fins de enriquecimento. Não há nenhum interesse no objeto por si mesmo, pois ele é objeto de interesse apenas se tiver alguma utilidade monetária. “O que eu posso ganhar com isso?” é a pergunta básica que o observador externo faz no processo de conhecer. 

Observar externamente e controlar o objeto observado não são duas atitudes independentes, mas pré-condições uma da outra. Só através da observação externa, que mantém o sujeito isolado, é possível submeter o observado a sua vontade e ele só pode utilizá-lo para os fins que deseja caso se mantenha a distância, se o observado for um outro totalmente abstraído do que o ele é. Ambas as atitudes são momentos do mesmo movimento autocontrário. 

Para esse tipo de lógica encontrar Deus é impossível, pois o encontro com o absoluto opera uma revolução da consciência 117, onde o que antes era o objeto buscado pelo sujeito do conhecimento torna-se, durante a busca, o sujeito do próprio conhecimento que busca conhecer a si-mesmo através de nós.

Deus não é o primeiro motor imóvel aristotélico, que rege o movimento do universo porque é em-si-mesmo pura imobilidade, visto que Deus para ser Deus precisa se fazer Deus através do constante movimento de suprassumir toda e qualquer negação, e como a negação jamais é eliminada por completo do processo de conhecer, a eternidade de Deus é o seu eterno movimento de fazer a si-mesmo. Por isso ele não é o movente imóvel, mas o automovente.

 Somente quando o infinito é sujeito e objeto do conhecimento, é que a síntese torna-se o processo de re-conhecimento da identidade profunda entre tese e antítese. O que olhado de fora parece conflito, por dentro é uma identidade não mais abstrata e ingênua, mas identidade absoluta, identidade da identidade e da diferença. Esse é o trabalho do conceito que suprassume toda e qualquer oposição ao revelar-criar a razão interna que a move, o infinito absoluto que se autodetermina nesse suprassumir. 

O movimento de buscar-criar o rizoma profundo que une os opostos eleva-nos a um nível maior de complexidade, pois ao aprofundarmos o saber acerca de um ser esse saber se complexifica. 

No mundo invertido do conceito
aprofundamento e elevação 
são duas faces da mesma moeda.

A segunda frase foi a resposta que Jung deu a pergunta do repórter da BBC John Freeman em uma entrevista no ano de  1959. Quando perguntado se acreditava em Deus, Jung respondeu: “Eu sei, não preciso acreditar”. O contato de Jung com a religião ocorreu na sua mais tenra infância através do seu pai, que era pastor protestante. Ele ministrou pessoalmente as aulas de religião quando o pequeno Jung se preparava para a crisma. Um tema particular fascinou o jovem Jung em seus estudos.

(...) meu pai ministrava-me pessoalmente aulas de religião, a fim de preparar-me para a crisma e isto me aborrecia. Certa vez, folheando o catecismo em busca de algo diferente das explanações sentimentais, incompreensíveis e desinteressantes acerca do “Senhor Jesus”, deparei com o parágrafo referente à trindade de Deus. Fiquei vivamente interessado: uma unidade que ao mesmo tempo é uma “trindade”! 

A contradição interna deste problema cativou-me. 

Esperei com impaciência o momento em que deveríamos abordar essa questão. Quando chegamos a ela, porém, meu pai disse: “Chegarmos agora à Trindade, mas vamos passar por alto este problema pois, para dizer a verdade, não a compreendo de modo algum.” Por um lado admirei sua sinceridade, mas por outro fiquei extremamente decepcionado e pensei: “ah, então é assim! Eles nada sabem disso e não refletem! Como poderei abordar esses temas?” 118

Ao estender suas perguntas a outros crentes, estes pareciam estupefatos, e sua pergunta  não encontrava qualquer eco de resposta. Jung comeu o pão que era o corpo de Cristo e o vinho que era o seu sangue, mas o desfecho foi de uma extrema decepção. 

Chegou então a minha vez. Comi o pão: era insípido, como esperava. Tomei um pequeno gole de vinho, ácido e não dos melhores. Depois, fizemos a prece final e todos saíram, nem oprimidos, nem alegres, e seus rostos pareciam dizer: “Ufa, acabou-se!” (...) Só pouco a pouco, durante os dias que se seguiram, emergiu a idéia: nada acontecera! Atingira, entretanto, o apogeu da iniciação religiosa, da qual esperava algo de inédito - sem saber ao certo o quê – mas nada acontecera! 119
Quando ia almoçar na casa do seu tio Samuel Gottlob o resultado não era diferente, pois mesmo que lá ocorressem diversas conversas intelectuais sobre questões teológicas elas sempre resultavam na discordância entre intelecto e crença. 

Todas as terças-feiras esperava-se que ele almoçasse à mesa de seu tio Samuel Gottlob, na elegante reitoria de Santo Albano. (...) No início o rapaz gostava desses almoços, porque os homens se envolviam em conversas intelectuais. Carl, que lamentava que essas conversas raramente ocorressem em sua própria casa, porque elas sempre resultavam em discordância entre intelecto versus crença, logo se deu conta de que seu tio e primos eram apenas versões mais agradáveis do seu próprio pai. A fé cega reinava na casa do reverendo Samuel Gottlob Preiswwerk do mesmo modo que na do reverendo Paul Jung. 

Do ponto de vista de Carl, os dois pastores usavam as empedernidas formalidades e os rituais do credo que compartilhavam como um tampão de resguardo contra qualquer possibilidade de encontrar as incertezas da experiência de Deus na vida própria de um indivíduo. Não importa o quanto Carl tentasse levar o discurso para casa, nas duas residências ele parava antes de se desviar da segurança do dogma aceito para o reino do questionamento religioso 120.

            Essa dúvida foi um poderoso combustível para Jung na construção da sua práxis psicológica. Para ele crer não era suficiente, saber Deus era o que importava. Na atualidade a dicotomia entre saber e fé continua viva e mesmo um dos mais poderosos argumentos contra a existência de um Deus criador da natureza, a teoria evolucionista de Darwin, possui sua versão teológica, o criacionismo, que explora as lacunas do conhecimento científico afirmando que ali está Deus.

            A posição de Jung nesse debate é curiosa. Seguindo os passos de Kant ele cindiu a dinvidade em um Deus interior ao homem, chamado por ele de si-mesmo, que é objeto de estudo da psicologia, e um Deus-em-si, deixado nas mãos da metafísica e da teologia. Em uma carta escrita no penúltimo ano da sua vida Jung afirma a Eugene Rolfe que o acesso a Deus mesmo é a questão definitiva 121. 

Mas não é de Deus propriamente dito que Jung parece ter se ocupado durante longos anos, mas sua versão psíquica. Mesmo que tenha mergulhado diretamente na palavra oficial de Deus, a Bíblia, e que tenha lido as mesmas fontes de diversos estudiosos que se ocupam diretamente do absoluto, Jung continuou a repetir o mesmo comportamento que tanto criticava, dicotomizando o objeto da fé e do saber. Por mais que mergulhasse em estudos religiosos, por mais que se questionasse existencialmente sobre a natureza de Deus, ela continuou inacessível para ele, oculta no reino em-si das essências. 

O problema reside na base filosófica kantiana, cuja cisão entre nôumeno e fenômeno entra na psicologia através da oposição entre o arquétipo-em-si incognoscível e imagem arquetípica que o personifica para a consciência. Para Kant qualquer julgamento,qualquer pensamento dividia-se em dois tipos básicos: analítico e sintético. Nos julgamentos analíticos o predicado explicita aquilo que já estava implícito no conceito, enquanto nos juízos sintéticos os predicados acrescentam um informação nova, além daquilo que estava implicado no conceito. “Todos os corpos são extensos”, é um pensamento analítico, pois é impossível conceber um corpo que não possua extensão, que não seja tridimensional. Mas se afirmo que “alguns corpos são pesados”, acrescento uma informação nova que vai além daquilo que está implicado na noção de corpo, visto que há corpos com pouco ou nenhum peso, como os corpos geométricos 122.

            Esses dois tipos de pensamento por sua vez se dividem em a priori e a posteriori, constituindo assim todas as possibilidades do pensar. Uma afirmação possui um caráter a priori quando o que é pensado possui um estatuto de necessidade de tal forma que nega-lo seria uma contradição em termos. Os conhecimentos a priori não são empíricos, independem das impressões sensoriais. Já os julgamentos a posteriori consistem em descrições empíricas, baseadas em descrições particulares ou impressões sensoriais.

O resultado são três formas de pensamento:
analítico a priori, sintético a priori
e sintético a posteriori. 

Pensamentos analíticos a posteriori são impossíveis para Kant, pois o pensamento analítico é autoreferencial, tautológico sendo por isso incompatível com afirmações a posteriori que baseiam-se não na lógica mas na experiência 123.
 
Na epistemologia crítica kantiana os pensamentos sintéticos a priori representavam um papel de destaque, pois não dependiam apenas da percepção, mas combinavam pressupostos aperceptivos com os dados sensoriais, fornecendo as categorias necessárias para qualquer forma de julgamento empírico. Kant desafiava assim o empirismo cético de Hume, que afirmava que tudo que se conhece provém dos sentidos. Quando se afirma que “toda mudança possui uma causa”, o predicado “causa” não se origina do mundo-em-si, que de acordo com Kant é incognoscível, mas do sujeito do conhecimento, pois a categoria de causalidade tem sua origem no entendimento 124. 

Quando Jung referia-se a sua teoria dos arquétipos como o equivalente imaginativo das categorias lógica kantianas, eram os julgamentos sintéticos a priori que ele tinha em mente.

Mas não se deve confundir fantasias mitológicas com idéias hereditárias. Não se trata disso, mas sim de possibilidades inatas de idéias, condições a priori de produzir fantasias, comparáveis talvez à categorias de KANT. As condições não geram conteúdos mas conferem determinadas configurações aos conteúdos adquiridos. Essas condições universais decorrentes da estrutura hereditária do cérebro são a causa da semelhança dos símbolos e dos motivos mitológicos – ao surgirem – em toda parte do mundo 125.

            Para tal concepção a posição dialética soa um total absurdo, pois qualquer forma de conhecimento é limitado pelos dados a priori do pensamento sintético, aquela espécie de pensar que acrescenta dados subjetivos que não pertencem a experiência. Para Jung a imaginação sintética a priori, os arquétipos, é incognoscível em-si-mesma, aparecendo a consciência somente através de uma imagem que combina os elementos a priori com dados sensoriais, ou seja, esses elementos a priori são projetados num outro que não ele mesmo. 

Não são as tempestades, não são os trovões e os relâmpagos, nem a chuva e as nuvens que se fixam como imagens na alma, mas as fantasias causadas pelos afetos. (...) As condições psicológicas do meio ambiente naturalmente deixam traços míticos semelhantes atrás de si. Situações perigosas, sejam elas perigos para o corpo ou ameaças para a alma, provocam fantasias carregadas de afetos, e na medida em que tais situações se repetem de forma típica, dão origem a arquétipos, nome que eu dei aos temas míticos similares em geral 126.

 É a partir dessa perspectiva que Jung
critica Hegel por ousar conhecer a coisa-em-si.

A vitória de Hegel sobre Kant significava uma gravíssima ameaça para a razão e o futuro desenvolvimento espiritual sobretudo do povo alemão, sobretudo se levarmos em conta que Hegel era um psicólogo camuflado e projetava as grandes verdades da esfera do sujeito sobre um cosmo por ele próprio criado. (...) Para mim é mais do que óbvio que aquelas afirmações da Filosofia que transcendem as fronteiras da razão são antropomórficas e não possuem nenhuma outra validez além daquelas que competem às afirmações psiquicamente condicionadas. 

Uma filosofia como a de Hegel é uma auto-revelação de fatores psíquicos situados nas camadas profundas do homem, e, filosoficamente falando, uma presunção. Psicologicamente, ela equivale a uma irrupção do inconsciente. 

A linguagem singular e empolada de Hegel coincide com esta concepção. Ela nos faz lembrar a “linguagem de poder” dos esquizofrênicos, que usam palavras encantatórias vigorosas para submeter o transcendente a uma forma subjetiva ou conferir à banalidade o encanto da novidade ou fazer passar insignificâncias por sabedoria profunda. Uma terminologia assim afetada é sintoma de fraqueza, de inépcia e de falta de substância 127.

É curioso que Oskar Psifter em uma carta escrita a Freud em  19 2 2 faça uma crítica semelhante a psicologia de Jung com suas “interpretações pretensiosas que tentam introduzir sorrateiramente um pequeno Apolo ou Cristo em cada pequena mente reprimida” 128.  

Jung parece não ter reconhecido na linguagem singular e empolada de Hegel, elementos análogos a sua própria forma de escrever. Em suas memórias Jung afirma que a sexualidade era numinosa para Freud, mas a terminologia concretístico-positivista que utilizava nos seus escritos não conseguia transmitir o numinoso subjacente a sua idéia, ficando ele restringido a emocionalidade que o possuía quando falava sobre o assunto. A escrita racionalístico-concretista não oferecia um abrigo adequado para manifestação da numinosidade interna à sexualidade, e por isso ela retornava de sua repressão através de uma intensidade oral evidente para aqueles que tinham contato direto com Freud. 

A intensidade numinosa, 
circunscrita aos afetos subjetivos,
impunha dogmaticamente sua abordagem 
aos seus discípulos. 

Um escrito psicológico não deve ter medo da intensidade característica das grandes palavras, como amor, vida, morte, Deus e as muitas outras que movem por dentro a experiência humana, e por isso não pode excluir a numinosidade das idéias que se apossam da subjetividade do escritor.

            Mas Jung não reconheceu nos escritos hegelianos a contraparte filosófica da sua psicologia porque jamais leu qualquer um deles. Em uma carta escrita em  27.0 4.19 59 a Joseph L. Rychlak, Jung confessa jamais ter tido qualquer contato direto com a filosofia hegeliana. 

O ponto do vista arsitotélico nunca exerceu grande influência sobre mim; nem Hegel que, na minha opinião bem incompetente, não é propriamente um filósofo, mas um psicólogo camuflado. (...) No mundo intelectual em que cresci, o pensamento de Hegel não teve importância; pelo contrário, foi Kant e sua epistemologia, por um lado, e um crasso materialismo, por outro, que desempenharam algum papel. 

Nunca partilhei das idéias materialistas, pois conhecia muito bem sua ridícula mitologia. Se me conheço bem, posso dizer que a dialética de Hegel não exerceu influência nenhuma sobre mim. (...) Nunca estudei propriamente Hegel, isto é, suas obras originais. Há que se excluir uma dependência direta, mas, como já disse, a confissão de Hegel contém (alguns dos) conteúdos muito importantes do inconsciente e por isso pode ser chamado de “un psychologue raté”. Naturalmente há uma coincidência notável entre certos pontos da filosofia de Hegel e minhas descobertas sobre o inconsciente coletivo 129.

Logo a projeção de que ele acusa Hegel é executada por ele próprio. Por não ter a menor idéia de que a razão absoluta é análoga ao antigo logos grego, uma potência cósmica de criação e ordenação, ele a reduz a sua concepção de razão subjetiva individual.
 Em um escrito de  19 3 4, Jung critica a psicanálise freudiana por pensar neuroticamente.

O que vem ao encontro do doente na dissociação neurótica é uma parte estranha e não reconhecida da sua própria personalidade. Ela tenta forçar seu reconhecimento com os mesmos meios que utilizaria uma parte do corpo, teimosamente recusada, para marcar presença. Se alguém tivesse resolvido negar a existência da mão esquerda, deveria enredar-se numa fantástica linha de explicações “nada mais do que”; é exatamente isto que acontece com o neurótico e que a “psicanálise” elevou a teoria  130.

Para Jung a psicanálise é uma continuação, sob forma de teoria, do próprio sintoma neurótico. Mas a crítica de Jung a psicanálise freudiana pode ser aplicada a sua própria psicologia. 

Com uma mão ele afirma que não conhecemos o mundo em-si, pois tudo que se pode conhecer do mundo é a priori dado por arquétipos incognoscíveis em-si-mesmos, com a outra supõe fenômenos acausais, onde, graças à atuação do arquétipo, interno e externo sincronizam-se de forma surpreendente. 

Com uma mão afirma que os alquimistas projetam conteúdos psíquicos desconhecidos na matéria por ela ainda ser desconhecida para eles, com a outra afirma que, no nível arquetípico, matéria e psique são duas manifestações de uma só e mesma coisa.

Com uma mão afirma que a psicologia não possui um ponto de Arquimedes só podendo traduzir o psíquico em outro psíquico, com a outra afirma a necessidade de um ponto de apoio arquimediano, não-psíquico.

Com uma mão afirma que o acesso a Deus mesmo é a questão definitiva, com a outra afirma que não se refere a Deus mesmo, mas à sua imagem interna na psique.

Com uma mão critica aqueles que não se permitem abordar Deus através do conhecimento, com a outra critica aqueles que, como Hegel, mergulharam no conhecimento direto do mundo-em-si, da essência, de Deus. 

Com uma mão critica Freud pela linguagem redutivista, com a outra reduz a filosofia hegeliana, uma das que mais profundamente penetrou na natureza de Deus, a questões subjetivas. 

Com uma mão critica Hegel por projetar o subjetivo no objetivo, com a outra faz críticas ácidas sem ter o mínimo conhecimento objetivo do sistema filosófico hegeliano, projetando nele suas próprias concepções subjetivas. Sem perceber Jung opera uma variante da falácia reducionista freudiana que tanto critica: isto “nada mais é” do que projeção. Afirmar isso sem mergulhar na complexidade interna do conceito dialético é reducionismo psíquico, um psicologismo grosseiro.

Jung foi um fenômeno complexo, cujas várias facetas nem sempre agiam de comum acordo, ocorrendo frequentemente que uma afirmasse uma coisa que tornava impossível o que outra havia dito em outro momento. O Jung que durante toda a vida foi fascinado por fenômenos sobrenaturais e o Jung médico-empirista faziam constantemente afirmações incompatíveis. O Jung que possuía uma excepcional atração pelos fenômenos parapsicológicos foi o que não teve medo de formular o conceito de sincronicidade, aquele para quem a teoria dos arquétipos era o fundo comum tanto do mundo material quanto do psíquico. 

O Jung médico-empírico era o que descrevia fatos, para quem os arquétipos projetavam na matéria, para quem Deus-em-si era uma projeção arquetípica da psique. Quando os dois tentavam atuar em conjunto o resultado era a astrologia associada à estatística como instrumento clínico de investigação da sincronicidade, ou seja, uma total confusão.

Mas para Jung deveríamos ser gratos à neurose, pois ela pode ser a ponte para uma nova complexidade psíquica. “Não se deveria procurar saber como liquidar uma neurose, mas informar-se sobre o que ela significa, o que ela ensina, qual sua finalidade e sentido. (...) Não é ela que é curada, mas é ela que nos cura” 131.   

A ferida neurótica e sua cura são uma unidade autocontraditória. Assim a cisão neurótica imanente à sintaxe junguiana é a porta de entrada para os fundamentos da própria práxis, pois só aprofundando-se nela e enfrentando suas contradições internas, é que torna-se possível eleva-la a uma forma mais complexa de reflexão. 

Uma das mais intensas contradições a serem enfrentadas é a que existe entre os arquétipos sintéticos a priori vs arquétipos como unidade psique-matéria. Para suprassumi-la é necessário um exame do conceito de projeção.

 
 Fonte:
PSICOLOGIA:ANALÍTICA OU DIALÉTICA?
http://www.robertexto.com/archivo1/psico_anal_dialetica.htm
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.