ANDRÉ DANTAS
O questionamento da natureza do próprio espaço iniciou-se a partir do debate entre os físicos Albert Einstein e Niels Bohr. Apesar da teoria quântica ter sido partejada a partir da teoria da relatividade, Einstein estava insatisfeito com os passos que sua cria bastarda andava tomando, principalmente com a idéia de acaso como elemento essencial da realidade objetiva.
A escola de Copenhage, liderada pelo dinamarquês Bohr, fornecia a interpretação mais completa dos fenômenos atômicos nas primeiras décadas do século XX. A interpretação de Bohr, Werner Heisenberg e seus colaboradores, contrastava com o determinismo rígido da física clássica para qual em cada causa natural há um único e inevitável efeito correspondente.
O mundo subatômico, ao contrário, parecia ser dominado pela incerteza sendo impossível prever com segurança a posição e velocidade das partículas, sem falar que os experimentos demonstravam a impossibilidade de demarcar precisamente fronteira entre os objetos observados e o aparato utilizado pelo observador. Mesmo os mais rigorosos e cuidadosos procedimentos experimentais condicionavam inevitavelmente o comportamento do fenômeno observado.
Durante séculos o acaso e a interferência do observador permaneceram ocultos no estudo dos fenômenos macroscópicos, mas no nível subatômico eles saltavam aos olhos pondo em cheque todo o ideal abstrato da física como descrição objetiva da realidade, obrigando-a a rever o paradigma dentro do qual construía sua teoria e forçando-a a aceitar a parcialidade, a subjetividade e a incognoscibilidade como inerentes a qualquer descrição dos níveis profundos da matéria.
Einstein não conseguia aceitar
o indeterminismo da teoria quântica,
ficando famosa a sua frase:
“Deus não joga dados”.
Ao que Bohr retrucou:
“Como você sabe o que Deus está fazendo”
Einstein e seus colaboradores Boris Podolsky e Nathan Rosen propuseram, num artigo escrito em 1935, um experimento lógico questionando a descrição da realidade feita pela teoria quântica. Esse experimento hipotético, que ficou conhecido como “Paradoxo de Eistein-Podolsky-Rosen” ou EPR, baseava-se na propriedade que as partículas subatômicas possuem de girar em torno dos seus próprios eixos, fenômeno esse chamado pelos físicos de spin.
A quantidade de spin de um elétron é sempre igual, mas dado um eixo de rotação ele pode girar tanto no sentido horário como anti-horário. Em um sistema composto por dois elétrons que giram em sentido contrário o spin total constituído pela soma algébrica dos spins individuais é nulo, devendo permanecer assim a não ser que algum fator externo altere essa condição. Porém o elétron não possui apenas um eixo de rotação, há muitos possíveis, e aqui começa a discórdia, pois segundo a teoria quântica o observador é capaz de conhecer os eixos possíveis, mas não é capaz de determinar com precisão qual desses eixos será utilizado efetivamente pelo elétron em cada evento particular.
A definição de um dentre os múltiplos eixos possíveis seria uma ocorrência puramente casual, sujeita à interferência do observador. Toda vez que o observador escolhe um dos eixos e organiza um experimento para medir o spin do elétron em relação a esse eixo, encontra o elétron girando ao redor dele. O próprio ato de medir parece definir o eixo de rotação 156.
Para demonstrar a inconsistência física desse enfoque subjetivo-casual e reduzi-lo ao absurdo, Einstein, Podolsky e Rosen imaginaram uma situação onde dois elétrons de spins alinhados em sentido contrário estavam em interação, sendo então o spin total do par nulo. Através de um método que não afetasse seus spins, os elétrons eram distanciados um do outros e, quando a distância fosse astronomicamente grande, os spins eram medidos escolhendo-se arbitrariamente qualquer um dos múltiplos eixos possíveis. Como para a escola de Copenhage o próprio ato de medir define o eixo de rotação, o elétron passaria a girar ao redor desse eixo.
Para que o spin total do par
continuasse nulo seria preciso que o elétron
astronomicamente distante passasse
a girar em torno do eixo escolhido.
Ao ser definido arbitrariamente um determinado eixo de rotação para a partícula A, o mesmo eixo era imposto a partícula B, independente do quão distante ela tivesse, e o alinhamento precisava ser simultâneo, pois nem mesmo por um momento o princípio da conservação do spin total poderia ser violado.
Para que esse alinhamento ocorresse a comunicação entre as partículas precisava acontecer em uma velocidade infinita o que segundo Einstein era um absurdo uma vez que nenhum sinal físico podia viajar mais rápido do que a luz, pois se o fizesse transgrediria o eixo do tempo retornando ao passado, um postulado básico da teoria da relatividade que tinha sido amplamente demonstrado através de experimentos 157.
Através desse engenhoso experimento lógico o trio pretendia pegar Bohr e seus companheiros de calças curtas provando que a casualidade introduzida no formalismo da teoria quântica não era imposta pela própria realidade física, mas devia-se a uma limitação da própria teoria, ignorante das variáveis ocultas que se fossem conhecidas explicariam de maneira definitiva o porquê do elétron ocupar esta e não aquela posição, ou girar ao redor deste e não daquele eixo, eliminando definitivamente do corpo da ciência o acaso e a interferência decisiva do observador no curso dos fenômenos 158.
Bohr reagiu ao argumento com uma indiferença surpreendente, limitando-se a responder que as duas partículas eram partes de um sistema indivisível e que o paradoxo decorria do fato de pensá-las como separadas. Essa afirmação era revolucionária, pois rompia com toda a concepção sobre os componentes da matéria herdados da física clássica. Ao invés de entes individuais e isolados, como tijolos empilhados para erguer uma parede, assemelhavam-se mais a recortes feitos pelo observador num todo inseparável.
É como se resolvêssemos olhar para o céu limpo através de pequenos buracos feitos numa folha de papel, vendo apenas pontos azuis contra o fundo branco da folha. A individualidade dos pontos é uma conseqüência do instrumento de observação, a folha, e não do objeto observado, o céu. O próprio Bohr parece não ter percebido o alcance da sua afirmação. Na década de trinta a física quântica colhia sucessos espetaculares na previsão dos fenômenos, atraindo um número crescente de adeptos.
Se a natureza última da realidade estava sempre além da nossa capacidade cognitiva, por que perder tempo com especulações metafísicas? Bastava contentar-se com estimativas estatísticas sobre o curso dos eventos, consolidando assim o viés empirista da teoria 159.
A polêmica com Einstein produziu um intenso impacto em Bohr, pois o criador da teoria da relatividade tornou-se um interlocutor permanente num diálogo interno, desses com quem se debate mesmo quando se está sozinho. Abraham Pais, um físico amigo de ambos e biógrafo de Einstein, declarou que mesmo depois da morte do cientista judeu-alemão o dinamarquês Bohr continuava a debater com ele como se ainda estivesse vivo.
No entanto a questão do paradoxo EPR permaneceu mal respondida, visto que os dois grandes cientistas pareciam ter consumido toda a fantástica inspiração que dispunham para o tema e, prisioneiros das limitações dos seus próprios modelos, não conseguiram ir adiante. Coube ao físico americano David Bohm retomar o fio de Ariadne que levava à saída do labirinto ao assumir todas as conseqüências lógicas do paradoxo EPR 160.
Sua penetração neste labirinto lógico começou a partir da década de quarenta, quando fazia doutorado na Universidade da Califórnia em Berkeley e pesquisava o quarto estado da matéria chamado plasma, um fluido onde os átomos não conseguem se configurar como estruturas estáveis, resultando numa alta concentração de íons positivos e elétrons livres. Bohm verificou que embora o movimento individual dos elétrons no plasma parecesse casual, enquanto coletividade eles produziam efeitos surpreendentemente organizados possuindo uma extraordinária capacidade de autoregulação semelhante a de uma criatura viva.
Suas pesquisas posteriores na Universidade de Princenton confrontaram-no com situações experimentais em que não apenas um par de elétrons se comportava como se uma partícula soubesse instantaneamente o que a outra estivesse fazendo, mas em que trilhões de elétrons pareciam atuar dessa forma ao mesmo tempo. Durante essa época Bohm manteve uma série de longas conversações com Einstein, que também era pesquisador em Princenton. Tudo isso o conduziu a apresentar em 19 5 2 uma síntese das posições antagônicas de Einstein e Bohr 161.
A escola de Copenhague contentara-se com uma descrição estatística do comportamento dos fenômenos atômicos durante o processo de medida, por isso o questionamento sobre a existência real ou não de entes como os elétrons fora do contexto de observação era uma conjectura que não cabia no modelo explicativo. Bohm assumiu que estes eram entes reais e que o componente aparentemente casual do comportamento poderia ser explicado considerando que por trás das cenas, onde a Escola de Copenhague se recusava a olhar, atuava um nível mais profundo de realidade denominado potencial quântico.
Este potencial teria uma estrutura de campo que preencheria todo o espaço, mas ao contrário do que ocorre com os campos gravitacional e eletromagnético, sua intensidade não diminuiria com a distância, mas seria constante 162.
Até aqui o modelo não era mais do que o desenvolvimento da hipótese das variáveis ocultas de Einstein. Porém à medida que foi sendo refinado ele se afastou do horizonte paradigmático cartesiano da ciência clássica onde o todo é concebido como um agrupamento das partes que o determina, e que interagem localmente, como trocas de energia entre elementos contíguos.
Einstein que já em 1905 subvertera os conceitos clássicos de massa, energia, espaço e tempo, jamais conseguiu se libertar totalmente da camisa de força cartesiana. Suas variáveis ocultas tinham um caráter essencialmente local, extensivo, e assim ele entendia a comunicação entre os dois elétrons do EPR como um sinal que atravessava uma extensa seqüência de pontos contíguos do espaço-tempo para viajar de uma partícula a outra. A idéia de que constituiriam um sistema único era nesse modelo um absurdo 163.
Vítima da histeria anticomunista que se apossou dos Estados Unidos após a explosão da primeira bomba nuclear soviética em 19 49, Bohm foi intimado a depor devido a sua filiação ao Partido Comunista Americano. A Comissão de Atividades Antiamericanas o incluiu entre os suspeitos de terem fornecido uma fórmula decisiva para a construção da bomba ao dirigente comunista Steve Nelson, que por sua vez a repassou a embaixada soviética.
Em 1943 Bohm havia se doutorado sob a orientação de Robert Oppenheimer, o pai da bomba atômica americana e sua tese jamais foi publicada por ser considerada segredo de estado. Logo ele era realmente detentor de informações sigilosas, mesmo assim a informação era descabida, pois a confecção da bomba não depende de uma ou outra fórmula, mas da execução de um complexo programa que foi viabilizado pelos soviéticos graças a uma equipe de físicos de altíssimo nível 164.
Quando convocava alguém para depor a estratégia da Comissão era forçar a delação, o que gerava uma avalanche de denuncias e alimentava uma paranóia coletiva. Quando perguntaram a Bohm se ele era comunista e se conhecia Steve Nelson, ele invocou a Primeira Emenda da Constituição Americana que lhe assegurava o direito de permanecer em silêncio, garantindo-o não submeter outras pessoas a perseguições. Sua posição foi acolhida pela justiça, mas lhe custou o emprego de professor na Universidade de Princeton, e qualquer condição de continuar trabalhando em solo americano.
Einstein usou sua influência para lhe conseguir um lugar na Universidade de São Paulo 165.
Chegando aqui o consulado americano tomou seu passaporte comunicando-lhe que só o devolveria se retornasse aos Estados Unidos e como ele não obedeceu cassou sua cidadania, o que o fez naturalizar-se brasileiro. Aqui Bohm conheceu o físico Mário Schenberg que lhe encaminhou para o estudo da filosofia hegeliana. O filósofo da totalidade exerceu um profundo impacto nas suas idéias e segundo seu ex-colaborador, amigo e biógrafo David Peat, ele nunca mais deixou de carregar em suas viagens um exemplar da Lógica de Hegel 166.
Quanto mais avançava na compreensão do potencial quântico mais Bohm se convencia de que os elétrons do EPR não apenas formavam uma unidade mas, junto com as demais partículas do universo, formavam uma totalidade indivisível num nível de realidade mais fundamental. Na instância em que esse todo operava, as distinções locais deixavam de existir, qualquer ponto no espaço extensivo era igual a todos os outros e já não se podia pensar em entes completamente separados. Assim eventos que à primeira vista pareciam aleatórios poderiam ser ordenados em um nível mais profundo de realidade denominado ordem implícita, por estar por baixo da realidade explícita cotidiana.
Todas as formas do universo material resultariam de ininterruptos processos de dobramentos e desdobramentos da totalidade indivisível. Todas as partículas físicas seriam como pontas de um iceberg acima da superfície que constitui o limite usual da nossa capacidade de observação, sendo a própria observação uma troca de energia entre sujeito e objeto que provoca a emersão do iceberg.
O Big Bang, a súbita expansão do universo a partir de um ponto sem volume com densidade e temperatura infinita, seria um ponto privilegiado, um desdobramento fantástico da ordem implicada ocorrido há bilhões de anos atrás 167.
O universo seria então semelhante a um holograma. (Do grego holo, todo, e gram, escrever. O holograma é a escrita do todo). Ao gravarmos uma imagem em um filme holográfico e dispararmos nele um laser, essa imagem se explicitará tridimensionalmente. Se cortarmos esse filme no meio cada metade explicitará a mesma imagem que havia no filme inteiro só que com menos nitidez. Cortando o filme em inúmeros pedaços cada fragmento explicitará a mesma imagem, mas com um nível cada vez menor de nitidez.
Consciente que o holograma era uma metáfora por demais estática, Bohm cunhou o termo holomovimento na tentativa de expressar esta totalidade em permanente transformação 168. Toda a realidade extensiva seria como uma onda no oceano energético da realidade implicada.
O senso comum tende a hipostasiar o conceito de energia. Por isso um oceano de energia implícita sugere uma substância misteriosa, um éter subjacente a toda realidade, como antigamente imaginava-se o calor como uma substância dentro dos objetos, o calórico. Mas assim como o calor é o movimento do jogo de relações em interação a que chamamos de partículas, energia é devir, transformação, passagem de um estado anterior a um posterior, capacidade de realizar trabalho.
Jung a definiu não como relação de substâncias, mas como relação de movimento. Energia é polaridade, tensão entre os contrários. Assim quando se diz que a realidade implícita é um oceano de energia, não é de uma substância incognoscível que se está falando, mas das relações de movimento que perpassam virtualmente todo o universo, entre elas as de dobramento-desdobramento, essência-aparência, implicitação-explicitação, virtual-atual.
Em descontínua-continuidade
uma reflete a outra, pois só é através da outra.
Na alquimia existe uma operação chamada citrinitas, o amarelecimento da obra, onde o vaso no qual acontece a transformação da prima matéria não é mais imune aos efeitos do que ocorre em seu interior 169.
Ele mergulha dentro de si-mesmo e sofre o mesmo destino daquilo que contém. Na alquimia quântica o espaço não é mais imune às partículas que nele se movem, mas mergulha dissolvendo-se nelas. Se imaginarmos o espaço como uma folha em branco, o caminho mais curto entre um ponto e outro da folha não é uma linha reta, mas o dobrar da folha de modo que os dois pontos sobreponham-se. É assim que as partículas subatômicas se comportam nos experimentos físicos, como se não estivessem num espaço extensivo, mas num espaço intensivo, sobrepostas.
Assim o amarelecimento da psicologia não significa abandonar o interior da clínica e ir para o mundo externo, como pensa Hillman 170. Tal atitude envolve a troca de um objeto de estudo situado em um espaço, o interior subjetivo humano, por outro objeto situado neste mesmo espaço, o mundo externo.
Como a imaginação ainda é dominante, o espaço extensivo não é transcendido e os dois objetos de estudo são vistos como alternativos, ou um ou o outro, enquanto que o objeto de estudo de uma verdadeira psicologia é a unidade da unidade e da diferença da subjetividade humana e da objetividade externa. Mas tal unidade não pode ser imaginada por não ser espacial, não ser psíquica, mas psicológica.
O problema é que a imaginação não consegue personificar o espaço por ele ser anterior a toda e qualquer personificação, visto que é a própria condição para a atividade de personificar, pois um ser personificado é um ser com propriedades espaciais, mesmo que metafóricas. O espaço é o plano onde se desenrola a imaginação, assim como o empirismo-positivista e o senso comum. Para Kant espaço e tempo são formas a priori da intuição, que pre-para os dados sensíveis para a ação do entendimento 171.
Somente os fenômenos são espaço-temporais, enquanto que a coisa-em-si por não poder ser apreendida espaço-temporalmente escapa à intuição sendo por isso incognoscível para o entendimento 172. Mas quando o fenômeno é refletido em sua infinitude interna, o tecido espaço-temporal é dobrado em-si-mesmo e todo o universo reflete-se num grão de areia.
Nesse espaço intensivo as interações não são locais, mas psicológicas, por isso os físicos que penetram nas profundezas da matéria descobrem a subjetividade refletida nos fenômenos, assim como Jung descobriu o mundo material ao penetrar nos recônditos da subjetividade, o que o levou a formular o conceito de sincronicidade.
Esse movimento dialético já era conhecido pelos budistas que ao mergulharem em-si-mesmos em suas meditações redescobriam o mundo como ele era em-si-mesmo.
Subjetividade interior e objetividade exterior
são categorias reflexivas,
se imergirmos em uma acabamos na outra.
Jung acreditava que tanto sua psicologia como a nova física estavam trabalhando com a mesma realidade apenas de perspectivas opostas. Os físicos a partir do mundo objetivo da matéria enquanto os psicólogos a partir do mundo subjetivo da psique 173. Para ele na esfera do arquétipo-em-si matéria e psique eram uma só e mesma coisa.
Quando os físicos adentraram no interior do átomo descobriram que as partículas que o compõe ocupam um espaço insignificante, sendo todo o resto vazio. Costumamos considerar o espaço vazio e a matéria sólida, mas na verdade não há essencialmente nada em toda e qualquer matéria, sendo ela total e completamente insubstancial. Gostamos de pensar o átomo como uma esfera dura, um ponto microscópico de matéria densa concentrada em um núcleo cercado por uma nuvem de elétrons, mas mesmo o núcleo aparece e desaparece com tanta facilidade quanto a nuvem probabilística de elétrons que o circunda.
O que de mais sólido se pode dizer dessa matéria insubstancial, é que ela se parece com um bit concentrado de informação, com um pensamento, uma idéia. Logo o que denominamos matéria seria melhor descrito como uma material-idealidade, ou ideal-materialidade, ou, em uma linguagem alquímica, uma pedra filosofal.
O arquétipo-em-si que une matéria e subjetividade não está nos genes, no corpo biológico ou em qualquer espaço local, mas é pensamento, conceito, unidade da unidade e da diferença da materialidade e da subjetividade, cuja incognoscibilidade é na verdade o próprio fundamento da cognição.
O conceito de arquétipo-em-si foi uma forma de Jung se esquivar da questão metafísica da natureza de Deus, pois o permitia projetá-la no reino das essências incognoscíveis. Assim quando questionado acerca do fundamento da sua psicologia ele podia responder que era total e completamente incognoscível, e ele, como um empirista, evitava especulações metafísicas.
O conceito de arquétipo-em-si psicóide era uma latrina onde Jung jogou todas as questões mais importantes da sua psicologia, inclusive aquela que lhe arrebatou na infância e o perseguiu durante toda a sua vida: seria Deus acessível apenas a fé e não a razão? Se olharmos sua construção conceitual fica claro que sim, e por mais que protestasse contra seu pai, seu tio, e contra todos aqueles que desprezavam a razão na relação com Deus ele, durante toda a sua vida, nada mais fez do que refinar essa posição.
Afirmar que trabalha apenas com a imagem psíquica de Deus e não com Deus-em-si-mesmo, deixa a divindade intocada, imune a qualquer afirmação que se faça dela, por mais perspicaz que seja. No volume XI das Obras Completas Jung afirma:
Não espero que nenhum cristão crente
siga o curso destas idéias,
que talvez lhe pareçam absurdas.
Não me dirijo também aos beati possidentes
(felizes donos) da fé, mas às numerosas pessoas
para as quais a luz se apagou,
o mistério submergiu e Deus morreu
Aqui podemos ver uma mão trabalhando contra a outra, pois é exatamente ao crente que Jung está falando, para aquele que pode ficar seguro em sua posição habitual. Ele pode continuar ir à igreja aos domingos, rezar todas as noites e relacionar-se com Deus da mesma forma como se tem feito há dois mil anos, pois não é de Deus-em-si que Jung fala, mas da sua versão miniaturizada no interior psíquico, um Deus contido num espaço separado do resto do mundo que o circunda.
Mas Jung também fala aos ateus, para aqueles que nunca acreditaram, que são contra a suposição de tal entidade ou que são completamente indiferentes a ela, não se importando com sua real natureza pois há coisas mais importantes para se preocupar. O que Jung faz é uma estratégia de indiferença frente a Deus, tanto faz se ele existe ou qual a sua real natureza, afinal tudo o que interessa é como ele é no interior da psique. Sua real natureza não pertence à esfera da psicologia, mas ao reino das essências incognoscíveis, exatamente o mesmo lugar do arquétipo-em-si e por isso ele é a repetição conceitual do mesmo argumento do seu pai e tio, uma formação do mesmo sintoma construída a partir da mesma cisão neurótica entre fé e razão.
Fundamentar uma práxis num princípio que não pode ser discutido ou questionado por ser incognoscível é no mínimo uma grande trapaça. Posso fazer toda e qualquer afirmação e se questionado em que ela se fundamenta encerro a discussão dizendo que sigo apenas o que aparece na psique, pois a essência que fundamenta esse aparecer está além da razão e por isso não pode ser questionada.
A principal base filosófica do conceito junguiano de arquétipo provém de Kant. Para Jung os arquétipos são pré-conscientes 175 por serem a pré-condição para o conhecimento, mas são também totais e completamente inconscientes, incognoscíveis para a cognição que fundamentam, deuses ex machina.
Assim não apenas a coisa-em-si era incognoscível, mas a cognição também o era, o que significa que a consciência psicológica não é reflexiva, não é autoconsciência, mas consciência que tem seu objeto fora de si e por isso está exilada de si mesma, do seu próprio fundamento.
Cognição psicológica não é autocognição, mas cognição de uma psique que está lá fora, uma imagem que o sujeito cognoscente observa, significando que o logos cognoscente não é psíquico e que a psique não é lógica. A psicologia analítica longe de ser uma totalidade orgânica é, em seu próprio fundamento, um agregado de psique e logos. Mas se a psique tem seu outro-si-mesmo externo a si, então ela é imune a ele, indiferente a ele, e o mesmo vale para o logos, que ao ser um diferente externo, é indiferente a psique, analisa-a de fora, como um cientista que com os materiais higiênicos necessários disseca um animal vivo.
Esse estilo de pensamento externo resulta em uma psique inconsciente de si-mesma, visto que não se diferencia internamente, e um logos igualmente inconsciente, mas com o agravante de que por ser o veículo de consciência da psique sua inconsciência é uma consciência que trabalha expulsando a psique para uma distância cada vez maior de si.
Como vimos anteriormente ele faz isso literalizando a psique como uma entidade espacial, um container, que deve recolher constantemente seus conteúdos que estão lá fora, no mundo, sendo essa atividade de interiorização a total expulsão da psique para fora de si-mesma, pois seu estar em-si-mesma é estar imersa no mundo, o que é impossível de ser concebido espacialmente, apenas conceitualmente. Sem ter o logos interno a si, a psique torna-se externa de si-mesma, porque sua interioridade não é espacial, mas relacional.
A psicologia analítica não é ainda uma verdadeira psicologia, uma identidade-diferenciada de psique e logos, o que não significa que devemos abandoná-la, pois a cura está na ferida, na cisão interna entre psique e logos, entre imaginação e razão, entre sujeito e objeto. Somente penetrando sem reservas nesse abismo é que ele se tornará o útero partejante de uma real psicologia.
Fonte:
PSICOLOGIA:ANALÍTICA OU DIALÉTICA?
http://www.robertexto.com/archivo1/psico_anal_dialetica.htm
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.
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