quinta-feira, 19 de maio de 2011

TEMPO INTENSIVO - C.G.JUNG - André Dantas



ANDRÉ DANTAS 


            Mas a cisão neurótica que atinge  psicologia analítica, não se deve apenas ao seu aprisionamento no espaço extensivo, mas também ao conceito extensivo de tempo com o qual trabalha. Espaço e tempo não são separados um do outro. Desde os tempos mais remotos ambos estão relacionados e as primeiras medições temporais eram feitas com base no movimento espacial dos astros no céu. O tempo e espaço são considerados um continuum na física contemporânea.

            O arquétipo-em-si, unidade entre psique e matéria não está distante apenas espacialmente da consciência, no reino das essências, mas também temporalmente, na experiência dos ancestrais. Essa distância temporal  é a contraparte passada da unidade dos opostos que se realiza apenas num tempo futuro.

O tempo extensivo 
mantém o passado distante do presente 
e este distante do futuro. 

Assim Jung pode dizer que os arquétipos são sedimentos de vivências recorrentes do nosso passado primordial, e que surgem em nós na forma de possibilidades virtuais de experiência. O tempo extensivo desempenha então um papel similar ao do espaço, visto que Jung projeta o que está presente no passado e no futuro. 

            Em um dos seus escritos Jung critica a psicanálise freudiana por localizar as causas da neurose no passado, afirmando que elas devem ser procuradas na vida presente do paciente 176. Façamos o mesmo com a práxis junguiana, procuremos as causas do devir psicológico não no passado e nem no futuro, mas no presente absoluto. 

             Para curarmos essa cisão temporal é necessário dobrar o tempo extensivo em-si-mesmo, da mesma forma que foi feito com o espaço. Na leitura dialética da obra freudiana realizada pelo psicanalista francês Claude Le Guen, destaca-se o tratamento reservado aos conceito de apoio e a posteriori, que em Freud estão desvinculados um do outro.

Para Le Guen a psique funciona  dialeticamente, sendo habitada pela contradição e pela história, cujo movimento é caracterizado pela coniunctio oppositorum dos mecanismos de apoio e a posteriori 177.
O conceito de apoio explica o modo como a sexualidade se apropria das funções autoconservadoras. Um bebê que não se alimenta morre, mas quando o bebê substitui o mamilo ou o bico da mamadeira por um dedo é sinal de que algo além da sobrevivência está em jogo. 

A sexualidade nascente apoia-se sobre o instinto autoconservador de mamar, conservando a zona corporal onde ele ocorre, a boca, mas negando o caráter alimentício do objeto, que torna-se sexual, auto-erótico, pois serve ao propósito de descarga das tensões acumuladas. O seio perde as características físicas de lactação e ganha traços mentais ao ser integrado numa fantasia, funcionando como um objeto da pulsão em sua eterna busca de evitar o desprazer, e por isso servindo ao princípio de prazer que suprassume as funções autoconservadoras do organismo. 

Isso se repete em outras funções vitais criando toda uma série de representações psíquicas ligadas a uma zona corporal erogeinizada. Le Guen amplifica o conceito para o funcionamento temporal da psique como um todo.

A principal característica do apoio é que um antes indica um caminho a um depois. O posterior ocorre num campo de possibilidades delimitado pelo que ocorreu antes, excluindo desenvolvimentos que em tese poderiam ter acontecido 178.
 
Em um rio as águas correm seguindo a inclinação do leito, apoiando-se nele, mas o fluxo da correnteza ao depositar sedimentos trazidos pelas águas, erode as margens e o fundo alterando a posteriori o próprio leito que antes determinava a direção do fluxo. Do mesmo modo o tratamento analítico pode exercer um profundo impacto sobre o que aconteceu no passado, pois mesmo que não altere o fato literal que ocorreu, transforma a posteriori o sentido que esse fato tem na vida do paciente 179.

 Le Guen chama este devir de dialética psíquica. Esse é o fio condutor da análise permitindo que os objetos infantis sejam deslocados das posições em que ficaram coagulados. Se forem tomados isoladamente esses mecanismos não são contraditórios sendo apenas diferentes um do outro. Não é necessário recorrer à negação dialética para compreender que o passado possa determinar o sentido do presente nem que o atual possa alterar o sentido do passado. Para que o apoio-a posteriori seja considerado dialético é preciso ressaltar que não há primeiro um apoio e depois um a posteriori, mas uma conjunção onde um só é porque o outro é. 

Apoio e a posteriori não estão isolados um do outro, mas são momentos diferentes de um só e mesmo devir, que renova ao negar, conservar e ultrapassar o antigo. O que a posteriori ressignificou o passado, servirá por sua vez de apoio para uma nova ressignificação a posteriori, pois vida é história, renovação que nega o passado de forma absoluta ao conservá-lo como um momento do infinito devir.

O tempo psicológico não é linear, extensivo, pois não flui apenas num sentido, do passado para o presente e deste para o futuro, mas também flui do futuro para o presente e deste para o passado. Futuro, presente e passado se co-determinam e a psicologia lida com um passado que é presente e um presente que é passado, e com um futuro que é presente e um presente que é futuro, ou seja, com um presente absoluto, unidade autocontrária de passado e futuro. 

Se uma pessoa é intensamente religiosa e acredita que se não praticar boas ações irá para o inferno, essa perspectiva de futuro produz resultados bastante concretos no seu presente, podendo provocar muito sofrimento na medida em que ela se vê incapaz de ser somente uma boa pessoa. Os líderes dos grandes governos ocidentais pré-vendo futuros ataques terroristas, programaram uma série de ações com o objetivo de preveni-los, provocando uma série de transformações no presente cotidiano de bilhões de pessoas.

O presente não apenas determina e é determinado pelo passado, mas também determina e é determinado pelo futuro. Por ser unidade autocontraditória do passado e futuro, porta em si as sementes da sua própria negação, de um futuro ainda incerto que pressiona para nascer. 

O presente é o momento imanentemente negativo que desvanece assim que germina, tornando-se desde já passado e sendo sempre um futuro que estar por vir. Ele é uma flor que suprassumiu o botão de onde nasceu e carrega as sementes do fruto que a sucederá sendo assim uma trans-imanência, uma imanência que por conter o negativo em-si é devir que transcende a si-mesma.   

            Partindo desta concepção intensiva de tempo é possível refletir mais profundamente sobre duas questões de grande importância para psicologia, o inato e o originário. Os dois são na verdade uma só questão vista de dois ângulos diferentes.

Os recentes avanços na genética acirraram o antigo debate natureza vs cultura. Neste debate os culturalistas têm demonstrado uma posição mais unilateral ao defenderem que toda experiência humana é baseada apenas na interação com a cultura, e que antes da aquisição da linguagem não passamos de uma tábula rasa. Os naturalistas, descontando alguns exageros, defendem uma experiência bifacial, onde o humano é interação entre genética e cultura.

Se uma pessoa tem uma predisposição genética para o câncer isso não significa que ela irá desenvolver a doença, pois o que determinará o papel desempenhado pelos genes é a sua interação com a cultura, que pode ativá-los ou desativá-los. Se essa pessoa torna-se no decorrer da sua vida um fumante inveterado, terá nas mãos uma bomba relógio. 
 
A experiência humana como um todo é produção histórica que tem seu apoio na genética e seu a posteriori na vivência cultural, sendo assim um presente que é passado porque é determinado pelos genes advindos dos nossos ancestrais, e um passado que é presente porque a interação cultural filtra e determina a presentificação da genética no comportamento humano. Se não houvesse algo na genética humana que a predispusesse para a cultura seria possível ensinar um gato ou um cachorro a falar. 

Se não houvesse na natureza humana um instinto lingüístico, uma predisposição para aprender a linguagem, o trabalho de desnaturalização operado pela língua seria impossível. A natureza humana é contra naturam, porta em si mesma as sementes da sua negação absoluta que não apenas nega a natureza inata, mas a conserva elevando-a a um novo nível de complexidade ao torná-la parte de um movimento autocontrário de apoio-a posteriori e não mais uma natureza encerrada em si mesma, abstraída da cultura.

A psicologia analítica e a psicanálise têm concepções opostas, mas complementares em relação ao originário. Para a psicologia analítica o originário baseia-se na infância cultural do homem, sendo a infância pessoal determinada por ela. A vivência infantil é então abordada a partir de conceitos como matriarcado e patriarcado, oriundos do estudo da história da cultura como um todo. Para a psicanálise a infância pessoal determina a vivência cultural, mesmo à dos nossos antepassados. Representações culturais coletivas como a santa ceia, o mito do herói, o casamento sagrado entre céu e terra, seriam sublimações de vivências infantis. Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? 

A construção do conceito concreto de inconsciente infantil se deu a partir da personalização do que antes era visto como a vida mítica dos deuses e heróis. A experiência subjetiva individual tornou-se possível na atualidade graças à encarnação do mítico no humano. 

Foi necessário um depauperamento dos símbolos para que se descobrisse de novo os deuses como fatores psíquicos, ou seja, como arquétipos do inconsciente. (...) Desde que as estrelas caíram do céu e nossos símbolos mais altos empalideceram, uma vida secreta governa o inconsciente. É por isso que temos hoje uma psicologia, e falamos do inconsciente. Tudo isso seria supérfluo, e o é de fato, numa época e numa forma de cultura que possui símbolos180

Somente com a introjeção do mítico no humano é que tornou-se possível afirmar que o mítico era uma projeção do humano. Essa introjeção é a fonte da psicologia individual, que através da teoria de um espaço inconsciente intra-pessoal, reencontra as categorias suprapessoais que antes estavam presentes na natureza, no céu, no mundo inferior.
O termo “projeção” não é muito apropriado, pois nada foi arrojado fora da alma; o que ocorre é que a psique atingiu sua complexidade atual através de uma série de atos de introjeção. 

Essa complexidade tem aumentado proporcionalmente à desespiritualização da natureza. Uma entidade inquietante da floresta de outrora chama-se agora “fantasia erótica”, o que vem complicar penosamente nossa vida anímica 181.
Isso se deu graças a um processo de luto que ocorreu quando os avanços das ciências naturais permitiram constatar que não havia nada de divino na natureza, nenhum deus ou espírito que nela atuasse. Para Freud quando uma pessoa perde um ente querido os traços mnêmicos associados às experiências daquela pessoa retornam sobre o eu, que se identifica então com o ente perdido 182. Nesse caso o é luto vivido pelo anthropos, o homem universal, personificação do conceito concreto de humanidade dentro do qual vivemos 183. 

A humanidade 
perdeu seus pais míticos e os introjetou. 

Assim os viventes da cultura contemporânea ao olharem para dentro do seu espaço interior subjetivo encontram sedimentos míticos na forma de suas próprias experiências pessoais 184.
Esse reencontro não ocorre apenas através de uma atitude introspectiva, mas também quando se penetra na interioridade da ciência objetiva. 

É de uma peculiar ironia que a física, 
a mais materialista das ciências, reencontre 
em seu núcleo duro a mística oriental e tenha 
se tornado uma das principais fontes de inspiração 
do movimento espiritual da nova era.  
 
Também é possível afirmar que não se trata propriamente de uma introjeção, mas de um recolhimento da projeção, que estamos devolvendo a mitologia ao seu lugar de origem, a experiência subjetiva humana. Qual vem primeiro? Nenhum dos dois e os dois, pois todo saber contemporâneo apoia-se na experiência mítica ao mesmo tempo em que a ressignifica posteriormente. 

Estamos total e completamente enraizados no presente sendo impossível observar com neutralidade o passado que é fonte do próprio presente onde nos enraizamos. Olhamos para o passado a partir do que vivemos no presente e na medida em que alteramos o presente olhamos para o passado de forma diferente e descobrimos nele as causas para essa nova forma de ser presente. É o presente absoluto retornando infinitamente a si-mesmo.

            A psicoterapia, enquanto processo de reconstrução da história do paciente, é arqueologia do passado que transforma o modo de abordá-lo ao alterar o presente que é causado por este passado, e que por isso causa um novo olhar para o passado que é a causa desse novo presente. Presente e passado são causa e efeito um do outro, e nada existe na causa que não esteja no efeito, assim como não há nada no efeito que não esteja na causa. 

O que é efeito é uma causa com efeito próprio e o que é primeiro causa é em-si-mesma, efeito e tem uma causa adicional própria. Causa e efeito contém um ao outro sendo inseparáveis.  Ao produzir um efeito, a causa torna-se causa sendo por isso causa de si-mesma, logo efeito de si-mesma. O efeito é causa porque somente sua ocorrência faz com que a causa seja uma causa, pois o que define uma causa é a sua capacidade de gerar efeito, logo a causa é efeito porque se faz causa pelo seu efeito.

Quando a reciprocidade entre causa e efeito é desfeita o resultado é a má infinitude, a regressão infinita onde qualquer causa é efeito não do seu próprio efeito, mas de alguma outra causa e qualquer efeito é causa não da sua própria causa, mas de algum outro efeito. 

Explicar qualquer evento em-si-mesmo torna-se impossível, pois seus antecedentes causais regridem infinitamente 185. Jung escapou da má infinitude impossibilitando a cognição da causa, do arquétipo-em-si. 

A dialética é assim uma forma sofisticada de tautologia, uma lógica urobórica, autopoiética, onde o movimento de partida, a causa em que se apoia, e o movimento de chegada, o efeito posterior, retornam infinitamente um sobre o outro, interiorizando um ao outro no absoluto que é o alfa e o ômega de todo o movimento, porque ele é esse movimento que interioriza a si-mesmo. Trata-se de um pensamento nômade que não se movimenta no exílio do espaço extensivo, mas na própria terra prometida do absoluto, sendo assim movimento de eterno aprofundamento num único e mesmo conceito que está implícito em todo e qualquer conceito, e que por isso é o conceito absoluto, identidade da identidade e da diferença.

A explicação dialética é nada mais, mas nada menos, do que o desdobramento de tudo que está implicado nessa relação de exterioridade-interna. Ela é a totalidade consciente de si mesma, pois uma verdadeira totalidade não pode ter nada fora de si e por isso sua consciência não pode ser externa a si, já que isso seria uma contradição em termos. 

            A dialética é o saber absoluto, imanente a tudo no momento mesmo em que se torna um objeto de conhecimento. Por isso ela é virtualmente presente em todo e qualquer saber, inclusive naqueles cujo fundamento é oposto à circularidade que a fundamenta.

 
 Fonte:
PSICOLOGIA:ANALÍTICA OU DIALÉTICA?
http://www.robertexto.com/archivo1/psico_anal_dialetica.htm
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

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