sábado, 14 de maio de 2011

REFLEXÕES FILOSÓFICAS - Benedictus Spinoza

Benedictus de Spinoza
Reflexões Filosóficas
 
Rodolfo Domenico Pizzinga
7 Grau do Faraó


Quando a experiência me ensinou que os acontecimentos ordinários da vida são fúteis e vãos, e quando também me apercebi de que tudo que era para mim causa ou objeto de receio não tendo em si mesmo nada de bom ou de mau, a não ser na medida da comoção que excita na Alma, resolvi, finalmente, indagar se existia um Bem Verdadeiro e suscetível de se comunicar, qualquer coisa, enfim, cuja descoberta e posse me trouxessem, para sempre, um júbilo contínuo e soberano...

O que nos ocupa mais freqüentemente na vida e que os homens, como se pode concluir dos seus atos, consideram ser o Bem Supremo pode se reduzir a três coisas: riqueza, fama e prazer dos sentidos. Ora, cada um deles distrai o Espírito de tal modo que Ele mal pode pensar em outro bem...

Pelo prazer sensual, a Alma se detém como se repousasse em um bem verdadeiro, o que a impede, em absoluto, de pensar em outra coisa; após o prazer vem a extrema tristeza, que, se não suspende o pensamento, perturba e embota. A busca da fama e a busca da riqueza não absorvem menos o Espírito, sobretudo quando a riqueza é desejada por si mesma, conferindo-lhe, então, a categoria de Bem Supremo. Mas a fama absorve o Espírito de maneira muito mais exclusiva ainda, porque sempre é considerada como bem em si mesma e como fim derradeiro para a qual tudo converge.
Além disso, a fama e a riqueza não contêm em si próprias o castigo como o prazer; ao contrário, quanto mais se tem uma ou outra, mais cresce a alegria experimentada, de onde a conseqüência de sermos cada vez mais incitados a acrescentá-las. Se, pelo contrário, em alguma ocasião somos iludidos na nossa esperança, ficamos profundamente tristes.
A fama, por derradeiro, é ainda um grande estorvo, porque para a alcançar temos de orientar necessariamente a vida em conformidade com a maneira de ver e de viver dos homens, quer dizer, evitar o que eles comumente evitam e buscar o que eles usualmente buscam...

Limitar-me-ei a dizer aqui brevemente o que entendo por um verdadeiro Bem e também o que é o Bem Supremo. Para o entender com retidão, devemos notar que bom e mau se dizem em um sentido puramente relativo, a ponto de uma só e mesma coisa ser tida por boa ou por má, segundo os aspectos que consideramos; o mesmo sucede com o perfeito e o imperfeito.
Coisa alguma, efetivamente, pode ser dita de natureza perfeita ou imperfeita, sobretudo quando se perceba que tudo quanto acontece se produz de acordo com uma Ordem Eterna e com Leis determinadas da Natureza... (Grifo meu).

Entretanto, como o homem, na sua fraqueza, não abarca esta Ordem pelo pensamento e concebe alguma natureza humana muito superior à sua, e, ao mesmo tempo, não vê impedimento na aquisição de uma semelhante, é levado a procurar meios que o conduzam a essa perfeição: tudo o que servir de meio a lá chegar é denominado verdadeiro bem.
E o Supremo Bem consiste em chegar a fruir, com outros indivíduos se possível, dessa Natureza Superior. E o que é essa Natureza? É o conhecimento da união do Espírito com a Natureza inteira.
Tal é, pois, o fim a que tendo: alcançar essa Natureza Superior e fazer quanto puder para que outros a alcancem comigo, porque é ainda uma parte da minha felicidade trabalhar para que muitos conheçam claramente o que é claro para mim, de maneira que o seu entendimento e o seu desejo se harmonizem plenamente com o meu próprio entendimento e o meu próprio desejo.
Para lograr esse fim, é necessário ter da Natureza um conhecimento que baste à aquisição dessa tal natureza humana e, também, formar uma sociedade apropriada a que o maior número possível de homens alcancem o fim tão fácil e seguramente quanto puder ser.

Tratado da Reforma e do Entendimento
Benedictus de Spinoza (1632 – 1677)


Rodolfo Domenico Pizzinga



Breve Biografia

Benedictus de Spinoza (Amsterdã, 24 de novembro de 1632 – Haia, 20 de fevereiro de 1677), forma latinizada de Baruch de Spinoza, também conhecido por Bento de Espinosa (português europeu) ou Benedito de Espinosa (português brasileiro) foi um dos grandes racionalistas do século XVII no âmbito da chamada Filosofia Moderna, juntamente com René Descartes e Gottfried Leibniz.
Nasceu nos Países Baixos em uma família judaica portuguesa e é considerado o fundador do criticismo bíblico moderno.

Spinoza nasceu em Amsterdã no seio de uma família judaica de portugueses foragidos da perseguição pela Inquisição. Foi profundo estudioso da Bíblia, do Talmude e de obras de pensadores judeus, como Maimônides, Ben Gherson, Ibn Reza, Hasdai Crescas, Ibn Gebirol, Moisés de Córdoba e outros.
Também se dedicou ao estudo de Sócrates, de Platão, de Aristóteles, de Demócrito, de Epicuro, de Lucrécio e de Giordano Bruno. Ganhou fama e foi perseguido pelas suas posições monísticas e panteísticas (pois considerava todos os objetos e elementos da Natureza redutíveis à Unidade Oniabarcante de um Princípio Divino, isto é, Deus como Natureza Naturante), e ainda devido ao fato da sua Ética ter sido escrita sob a forma de postulados e de definições, como se fosse um tratado de Geometria.

No verão de 1656, foi excomungado na Sinagoga Portuguesa de Amsterdã pelos seus postulados a respeito de Deus em sua obra, pois defendia que Deus é o mecanismo imanente da Natureza e do Universo, e a Bíblia uma obra tão-somente metafórico-alegórica que não pede leitura racional e que não exprime a verdade sobre Deus.
Conforme explica Will Durant, sua excomunhão pelos judeus de Amsterdã, tal como ocorrera com as atitudes que levaram à retração e ao posterior suicídio de Uriel da Costa, em 1647, fora como que um gesto de gratidão por parte dos judeus com o povo holandês. Embora os pensamentos de Spinoza e da Costa não fossem totalmente estranhos ao Judaísmo, vinham contra os pilares da crença cristã.
Os judeus, na época perseguidos por toda Europa, haviam recebido abrigo, proteção e tolerância dos protestantes dos Países Baixos, e, assim, não poderiam permitir no seio de sua comunidade um pensador tido como herege.
Após a sua excomunhão, Spinoza adotou o nome Benedictus como seu primeiro nome.

Spinoza defendeu que Deus e Natureza eram dois nomes para a mesma realidade, a saber, a única Substância em que consiste o Universo e do qual todas as entidades menores constituem modalidades ou modificações.
Ele afirmou que Deus era um Ser de infinitos atributos, entre os quais a extensão (sob o conceito atual de matéria) e o pensamento eram apenas dois conhecidos por nós.

A sua visão da natureza da realidade, então, fez tratar os mundos físicos e mentais como dois mundos diferentes ou submundos paralelos que nem se sobrepõem nem interagem, mas que coexistem em uma coisa só – que é a Substância.
Esta formulação é uma solução pampsíquica (a matéria possui uma essência espiritual ou anímica, isto é, um fundamento psíquico inextenso subjacente aos atributos espaciais ou tridimensionais) relacionada à particular concepção panteísta de Spinoza.

Enfim, entre tantos outros, foram influenciados pelo pensamento de Spinoza Leibniz, Diderot, Kant, Schelling, Fichte, Hegel, Goethe, Karl Marx, Schopenhauer, Nietzsche, Walter Benjamin, Bergson, Albert Einstein, Deleuze e Antonio Negri.
Particularmente, Nietzsche escreveu:
Quando eu penso em minha genealogia filosófica, sinto-me em comunhão com o movimento antiteleológico1 de nosso tempo, isto é, spinoziano, mas, com a diferença de que eu também tomo 'a finalidade' e 'a vontade' em nós por uma ilusão; do mesmo modo com o movimento mecanicista (recondução de todo problema moral e estético ao fisiológico, de todo fisiológico ao químico, de todo químico ao mecânico), mas, com a diferença que eu não acredito na 'matéria', e tenho Boscovich por um grande ponto de virada, como Copérnico; que eu tenho por infrutífero todo auto-espelhamento do Espírito e que sem o fio condutor do corpo eu não acredito em nenhuma boa investigação.
Não uma Filosofia como dogma, mas como antecipação regulativa da investigação. Mas, Ludwig Feuerbach, por outro lado, não agasalhou o pensamento spinoziano, dizendo:
O mundo de Spinoza é uma transparência incolor da Divindade, ao passo que o mundo de Leibniz é um cristal que reflete a sua Luz em uma riqueza infinita de cores.

Por último, conforme ponderam Giovanni Reale e Dario Antiseri na obra História da Filosofia (volume II), na realização do ideal moral que brota das premissas metafísicas e gnosiológicas spinozianas quatro etapas principais tornam-se evidentes:
1ª) reinterpretação despreconceituosa e lúcida das paixões humanas;
2ª) esvaziamento dos conceitos de perfeição/imperfeição, valor/desvalor e bem/mal dos seus tradicionais significados;
3ª) redução da progressão da vida moral à progressão do conhecimento; e 4ª) identificação na visão intelectiva da realidade (o Ideal Supremo do homem), e, nessa dimensão, é enfatizado o amor a Deus.

Spinoza morreu em um domingo, 20 de fevereiro de 1677, aos quarenta e quatro anos, vitimado pela tuberculose.
Objetivo do Estudo

Como muito bem explica Matheus Boni Bittencourt, a Ética de Spinoza é um tratado de moral escrito em estilo euclidiano, o que significa que o autor parte de alguns axiomas e de algumas definições dos quais deduz proposições cada vez mais complexas, e que contêm, além da Ética, uma Filosofia da Natureza, uma Filosofia da mente humana e algumas passagens de outros assuntos que são desenvolvidos por Spinoza em outras obras em maiores pormenores, como a Filosofia da Religião, a Filosofia Política e a Teoria do Conhecimento.

O próprio Spinoza explicou como construiu seu pensamento filosófico: Tendo-me ensinado a experiência que os fatos comuns da vida corrente são vãos e fúteis, e tendo visto que todos os objetos de meu desejo e de meu temor não tinham neles mesmos nada de bom nem de mal, salvo na medida em que afetavam o Espírito, decidi, finalmente, investigar se não existia alguma coisa verdadeiramente boa e comunicável ao homem, pelo que, somente seu Espírito, com exclusão de todo o resto, possa ser afetado, e se existia alguma coisa por cujo descobrimento e por cuja aquisição eu pudesse gozar para sempre de um bem-estar contínuo e perfeito.


Resumidamente, para Spinoza a Substância não possui causa-fora-de-si; ela é uma causa não-causada, ou seja, uma causa-em-si. Ela é singular a ponto de não poder ser concebida por outra coisa que não ela mesma.
Por não ser causada por nada, a Substância é totalmente independente, livre de qualquer outra coisa, pois sua existência basta-se em si-mesma.
Ou seja: a Substância, para que o entendimento possa formar seu conceito, não precisa do conceito de outra coisa.
A Substância é absolutamente ilimitada, pois se não o fosse, precisaria ser limitada por outra Substância da mesma natureza.
Assim, sendo da natureza da Substância um absoluto e ilimitado existir e não podendo ser dividida, ela é única, ou seja, só há uma única Substância absolutamente ilimitada ou Deus.
Disto, entendeu Spinoza: a Substância e os atributos constituem a Natura Naturans.
Da Natura Naturans (Deus) procede o mundo das coisas, isto é, os modos.
Eles são modificações dos atributos, e Spinoza chamou-os natura naturata (o mundo).
Os modos distinguem-se em primitivos e derivados. Os modos primitivos representam as determinações mais imediatas e universais dos atributos e são eternos e infinitos: por exemplo, o intellectus infinitus é um modo primitivo do atributo do pensamento, e o motus infinitus é um modo primitivo do atributo extensão.
 
Enfim, este despretensioso estudo – apresentado sob a forma de fragmentos editados – é, basicamente, um breve resumo de diversos artigos filosóficos disponibilizados na Internet sobre o pensamento ético-filosófico de Spinoza, direcionado mais para pessoas de boa vontade e espiritualistas em geral, servindo muito pouco para filósofos e estudantes de Filosofia. Todas as Páginas da Internet consultadas estão listadas ao final.

Reflexões Spinozianas

Tenho me esforçado por não rir das ações humanas, por não deplorá-las nem odiá-las, mas por entendê-las.

Quem quer vingar suas ofensas com um ódio recíproco vive seguramente miserável. Quem, ao contrário, procura combater vitoriosamente o ódio com o amor combate, decerto, na alegria e na segurança...

Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias, decidir pelo seguro ou se a fortuna lhes mostrasse sempre favorável, jamais seriam vítimas da superstição.


Quanto menos liberdade de opinião se concede aos homens, mais nos afastamos do Estado... e mais violento é o poder.

Quanto mais as ações de um corpo só dependem dele mesmo e quanto menos outros corpos concorrem com ele nessas ações, tanto mais a sua mente se torna adequada a conhecer distintamente.

Por causa de si ('Causa Sui') entendo aquilo cuja essência envolve a existência. Ou isto: aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente.

A Substância é 'Causa Sui' – aquilo que é em-si e é concebida por-si-mesma.

Por Substância entendo aquilo que existe em-si e por-si é concebido. Isto é: aquilo cujo conceito não tem necessidade do conceito de outra coisa do qual deva ser formado.

Por atributo entendo o que o intelecto percebe da Substância como constituindo a essência dela.

Por modo entendo as afecções ('affectiones') da Substância, isto é, o que existe noutra coisa ('in alio') pela qual é também concebido.

Se tiver todos os fatos, o seu juízo será correto; se não tiver todos os fatos, seu juízo não poderá ser correto.

Não chore; não se revolte. Compreenda.

Todos têm direito de se enganar nas suas opiniões. Mas ninguém tem o direito de se enganar nos fatos.

A felicidade é a compreensão lógica do mundo e da vida.2

A felicidade não é a recompensa da virtude, mas a própria virtude. Não nos deliciamos com a felicidade pelo fato de refrearmos nossos apetites sensuais, mas, pelo contrário, por nos deliciarmos com ela, somos capazes de refreá-los.

Sendo todas as coisas iguais, o desejo que nasce da alegria é mais forte do que o desejo que nasce da tristeza.

Sentimos e experimentamos que somos eternos.

Nenhuma razão me compele a sustentar que o corpo só morre quando se transforma em um cadáver.

Todo ser é potência, e a potencialidade de cada um se desenvolve na relação.

Se houvesse outro objeto da Alma ademais de um corpo, dado que nada existe de que não se siga um efeito, deveria haver, necessariamente, em nossa Alma uma idéia deste efeito. Todavia, não há idéia alguma dele. Por conseguinte, o objeto de nossa Alma é um corpo existente, e não outra coisa.

É livre a pessoa se pode avançar abertamente sem ter de utilizar artimanhas.


O esforço mais elevado da mente e a sua maior virtude é compreender coisas por intuição.


Quem vive dirigido pela razão, se esforça, tanto quanto pode, por compensar pelo amor e pela generosidade o ódio e o desprezo que outrem tem por ele.

O ódio é a tristeza acompanhada da idéia de uma causa exterior.

Não é uma ação que vence uma paixão. É uma paixão mais forte que vence outra mais fraca.

A paz não é a ausência de guerra; é um estado da mente – uma disposição para a benevolência, para a confiança e para a justiça.

As coisas nos parecem absurdas ou más porque delas temos um conhecimento parcial, e somos completamente ignorantes quanto à ordem e à coerência da natureza como um todo.
 Não sabemos com certeza que alguma coisa é boa ou má senão enquanto leva realmente ao conhecimento ou pode impedir o nosso conhecimento.


Clarifica tuas idéias que deixarás de ser escravo das paixões.

Saber as coisas em Deus é saber a si-mesmo em Deus.

O Amor Intelectual da Mente de Deus é o próprio Amor de Deus, com o qual Deus ama a Si-mesmo, não enquanto Infinito, mas enquanto pode ser explicado através da essência da mente humana, considerado sob a espécie da eternidade. Em outras palavras: o Amor Intelectual da Mente de Deus é uma parte do Amor Infinito com o qual Deus ama a Si-mesmo.

Vontade e intelecto são uma só e a mesma coisa.

Ser é conservar-se: o esforço para se conservar a si mesmo é o primeiro e único fundamento da virtude.

As coisas notáveis são tão raras quanto difíceis.

Os homens pensam que são livres porque têm consciência de suas volições e de seus desejos, mas ignoram as causas pelas quais são levados a querer ou a desejar.

Se a Alma, quando imagina como presentes coisas que não existem soubesse, ao mesmo tempo, que essas coisas não existem na realidade, atribuiria, certamente, esse poder de imaginar a uma virtude de sua natureza, e não a um vício, sobretudo se essa faculdade de imaginar dependesse apenas de sua natureza.

Todas as coisas, quanto delas depende, esforçam-se em persistir em suas próprias naturezas; e o esforço com o qual uma coisa procura persistir em seu próprio ser nada mais é do que a verdadeira essência daquela coisa.

As decisões da mente são apenas desejos que variam conforme as disposições.

Diz-se livre o que existe exclusivamente pela necessidade da sua natureza e por si só é determinado a agir.

As coisas são de natureza contrária, isto é, não podem coexistir no mesmo sujeito, na medida em que uma pode destruir a outra.

Na mente não existe uma vontade absoluta ou livre; a mente é levada a querer isto ou aquilo por uma causa, que, por sua vez, é determinada por outra causa, e esta por outra e assim por diante, até o infinito.

Na solidão, ninguém é forte bastante para se defender e obter todas as coisas necessárias à vida.(DISCORDO **)

Ser o que somos e vir-a-ser o que somos capazes de ser são os únicos objetivos da vida.

A tranqüilidade interior é, na realidade, o Bem Supremo que podemos almejar.

O caráter inconstante da multidão... é governado unicamente pelas emoções, não pela razão.

A Filosofia é um caminho árduo e difícil, mas pode ser percorrido por todos, se desejarem a liberdade e a felicidade.

É precisamente aquele verdadeiro que interessa mais do que qualquer outro à vida humana; aquele verdadeiro que se busca para dele desfrutar e em cujo desfrute se realiza o cumprimento e a perfeição da existência, e, portanto, a felicidade.

O Espírito, quando desfruta do prazer, fica de tal modo tomado que nele mergulha inteiramente, não podendo mais se ocupar de outras coisas.

Na verdade, as coisas perseguidas pelo vulgo não contribuem em nada para a conservação do nosso ser, mas, ao contrário, são nocivas, tanto que, freqüentemente, ocasionam a morte daqueles que a possuem, se assim se pode dizer, e, ademais, sempre levam à morte daqueles que por elas são possuídos... Toda felicidade ou infelicidade depende somente da natureza do objeto ao qual nos apegamos com nosso amor... O amor por aquilo que é eterno e infinito enche o Espírito de pura alegria, ... o que se constitui em um bem a desejar e buscar com todas as nossas forças.

A busca do dinheiro, o amor pelos prazeres e o desejo de glória só constituem obstáculos quando alguém os busca por si mesmos e não como meio para outras coisas. No entanto, buscados como meio, são passíveis de medida, não constituindo mais obstáculos; ao contrário, podem ser de grande utilidade para o fim pelo qual são buscados.

Aquele que pretende igualdade entre desiguais pretende uma coisa absurda.3

A eterna Sabedoria de Deus... mostrou-se em todas as coisas, mas particularmente na mente do homem e principalmente em Jesus Cristo... Cristo foi enviado para ensinar não só aos judeus, mas a toda a raça humana.

Quem ama a Deus não pode se esforçar para que Ele o ame em troca.

A idéia de finalidade e a idéia de liberdade aplicadas a Deus constituem um absurdo, pois se Deus atua com vistas a um fim, tal significa, necessariamente, que Ele deseja qualquer coisa que não possui. Logo, se assim fosse, Ele não seria um Ser Perfeito...

Quanto mais compreendermos as coisas singulares, mais compreenderemos Deus...

Deus ['Causa Sui'] é necessidade absoluta de ser.

Uns partem das coisas criadas, outros do Espírito humano. Eu parto de Deus.

Está na natureza mesma das coisas que o bem produza o bem.

Nada é dado em a Natureza além da Substância e de suas sensações.

É aos escravos e não aos homens livres que se dá um prêmio para os recompensar por se terem comportado bem.

Toda Substância é necessariamente infinita... e, afora Deus, não pode ser dada nem concebida nenhuma Substância.

Tudo aquilo que existe, existe em Deus; nada pode existir nem ser concebido sem Deus.4

Em Deus, dá-se necessariamente a idéia tanto da Sua Essência quanto de todas as coisas que procedem necessariamente da Sua Essência.

Toda idéia que é absoluta em nós, ou seja, que é adequada e perfeita, é verdadeira.

A mente humana é uma parte do Intelecto Infinito de Deus. Portanto, quando dizemos que a mente humana percebe esta ou aquela coisa, outra coisa não estamos dizendo senão que Deus, não mais enquanto infinito, mas enquanto manifestado através da mente humana, isto é, enquanto constitui a Essência da mente humana, tem esta ou aquela idéia.

As coisas singulares não podem ser concebidas sem Deus.(?)

É próprio da natureza da razão considerar as coisas como necessárias e não como contingentes... Mas esta necessidade... é a mesma necessidade da Natureza Eterna de Deus.


Admiro-me, com freqüência, de que pessoas que se ufanam de professar a religião cristã – ou seja, a religião do amor, da alegria, da paz, da temperança e da caridade para com todos os homens briguem tão rancorosamente e manifestem um ódio tão amargo umas para com as outras. Esquecem que isso, mais do que as virtudes que professam, oferece um critério decisivo para o julgamento de sua fé.

Cristo derramou as coisas de modo verdadeiramente adequado, porque não foi tanto um profeta, mas, muito mais, a própria Boca de Deus.

A Título de Conclusão

Para Spinoza, Deus existe, é único, onipresente e detém o direito e o domínio supremo de tudo. Mas, apesar de fatalmente o homem cair no pecado, Deus perdoa as violações de quem sinceramente se arrepende. A certeza do perdão, no pensamento spinoziano, está alicerçada no fato de que Deus é ilimitadamente misericordioso.

A prevalecer este pensamento, mais religioso-teológico do que místico-filosófico, não há há transgressão, por pior de seja, que não possa ser perdoada, se o arrependimento for vero e sincero, ainda que o próprio arrependimento dependa de uma compreensão oposta àquela que gerou a transgressão.

Ora bem, considerando que isto presumidamente seja assim, apenas para produzir um ligeiro raciocínio, a excomunhão católica, por exemplo, tal qual está definida no Direito Canônico é, no mínimo, bolorenta, ignorante e absurda. Isto é muito simples de ser entendido: se agimos e reagimos de acordo com o entendimento relativo (temporal, provisório e com ou sem malícia) que temos do fato, cometem um absurdo, bolorento e ignorante tanto o transgressor passível de ser teologicamente excomungado (segundo o Direito Canônico) como quem inquisitorialmente e purpuradamente excomunga, pois, sem qualquer justificativa plausível, o purpurado excomungador se coloca na posição de Deus (que se existe da forma como pensou Spinoza, não pune, já que, ao cabo de contas, é ilimitadamente misericordioso).

Misticamente, atos que supostamente sejam excomungáveis acabam por ser sopesados igualmente à própria desfraterna excomunhão. Possíveis atos que recomendem autoritárias e truculentas excomunhões são derivados tão-somente da ignorância absurda e bolorenta das Leis Universais, e a ignorância absurda e bolorenta das Leis Universais não merece ser punida, mas deve ser educada. Agora, quem pode afirmar com segurança e exatidão o que possa ser exatamente ignorância absurda e bolorenta? Mas que a excomunhão católica, tal qual está definida no Direito Canônico é, no mínimo, bolorenta, ignorante e absurda, isto ela é.

Enfim, se eu tivesse que escolher o mais interessante fragmento que garimpei nos trabalhos que examinei, escolheria este: A idéia de finalidade e a idéia de liberdade aplicadas a Deus constituem um absurdo, pois se Deus atua com vistas a um fim, tal significa, necessariamente, que Ele deseja qualquer coisa que não possui. Logo, se assim fosse, Ele não seria um Ser Perfeito...

Seja como for, não devemos nos esquecer jamais de que todas as categorias, adjetivos e qualidades que imaginamos e deferimos a Deus, nada mais são do que categorias, adjetivos e qualidades humanas que antropomorficamente imaginamos e deferimos a Deus. Este entendimento vale igualmente para íncubos, súcubos, anjos, arcanjos etc.

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Notas:
1. A Teleologia é doutrina que identifica a presença de metas, fins ou objetivos últimos guiando a Natureza e a Humanidade, considerando a finalidade como o princípio explicativo fundamental na organização e nas transformações de todos os seres da realidade. No hegelianismo, é explicável como um trajeto em direção a uma finalidade que é a realização plena e exeqüível do Espírito humano.
Já no aristotelismo e nos seus desdobramentos, fundamenta a idéia de que tanto os múltiplos seres existentes quanto o Universo como um todo se direcionam, em última instância, a uma finalidade que, por transcender a realidade material, é inalcançável de maneira plena ou permanente.
O termo originou-se na Grécia Antiga. Foi lá que Aristóteles caracterizou as quatro classes de causas existentes: Causa Material – aquilo que compõe o objeto Causa Formal – aquilo que dá o ser a um objeto Causa Eficiente – aquilo que produziu o objeto Causa Final – aquilo para o quê existe o objeto. Tanto para Aristóteles quanto para outros escritores antigos, a Causa Final era a mais importante no que diz respeito à Filosofia prática, ainda que todas as quatro causas sejam igualmente necessárias para a explicação completa do Universo.
Depois de o Concílio de Nicea (século IV) ter estruturado o Cristianismo tal como o conhecemos hoje, a explicação por Causas Finais passou a ser considerada a única explicação conveniente para os mistérios divinos. Isso resultou da introdução da Filosofia clássica nos contextos filosóficos e teológicos (praticamente indistintos naquele período), principalmente a introdução de Platão e, posteriormente, de Aristóteles.
Este movimento de inserção da Filosofia clássica no pensamento medieval é o que hoje se conhece por Escolástica, que procurava compreender a revelação divina mediante o uso dos conceitos herdados daquele período anterior. Na Idade Moderna, verificou-se uma mudança de tendências: considerava-se que a explicação teleológica era antropomórfica, pois o fato de o ser humano atribuir Causas Finais ao Universo não significa que o Universo, de fato, possua alguma Causa Final. Essa mudança fez com que surgisse um movimento chamado Mecanicismo, que tentará explicar o mundo por meio de Causas Eficientes, e não mais por meio de Causas Finais. Este movimento é que possibilitará o nascimento da ciência moderna.
2. Sedulo curavi humanas actiones non ridere, non lugere, neque detestari, sed intellegere. (Procurei cuidadosamente não ridicularizar as coisas humanas, nem lamentá-las, nem desprezá-las, mas compreendê-las). Espinoza, Tractatus Politicus I.
3. Em conhecida reflexão de 1920, Rui Barbosa (1849-1923) escreveu: A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade... Tratar com desigualdade a iguais, ou desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. ... atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem ... [é] blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a humanidade, é a filosofia da miséria, proclamada em nome dos direitos do Trabalho; e executada, não faria senão inaugurar, em vez da supremacia do Trabalho, a organização da miséria. Mas, se a sociedade não pode igualar os que a natureza criou desiguais, cada um, nos limites da sua energia moral, pode reagir sobre as suas desigualdades nativas, pela educação, atividade e perseverança. Tal a missão do Trabalho. (BARBOSA, Rui. Oração aos moços. Ed. popular anotada por Adriano da Gama Kury, 2ª ed. rev. Rio de Janeiro: FCRB, 1985, p. 21.)
4. Spinoza denominou Deus de Natura Naturans e o mundo de natura naturata. A Natura Naturans é a causa, ao passo que a natura naturata é o efeito daquela causa, que, porém, não está fora da causa, mas é tal que mantém a causa dentro de si. Pode-se dizer que, no pensamento spinoziano, a causa é imanente ao objeto e também, vice-versa, que o objeto é imanente à sua causa, com base no princípio de que tudo está em Deus.

Páginas da Internet consultadas:
 Da postagem original:http://paxprofundis.org/livros/baruch/spinoza.htm
Fundo musical:
Love Is a Many-Splendored Thing
Compositores: Alfred Newman & Sammy Fain


 ** -  "Artista, a tua força está na solidão!"
  Leonardo da Vinci
Fonte:
Pax Profundis
http://paxprofundis.org/livros/baruch/spinoza.htm
Sejam felizes todos os seres  Vivam em paz todos os seres
Sejam abençoados todos os seres

sexta-feira, 13 de maio de 2011

FÊZ-SE VINGANÇA,NÃO JUSTIÇA - Leonardo Boff

Fêz-se vingança, não justiça


Autor: 
Leonardo Boff - 




 
Alguém precisa ser inimigo de si mesmo e contrário aos valores humanitários mínimos se aprovasse o nefasto crime do terrorismo da Al Qaeda do 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque.

Mas é por todos os títulos inaceitável que um Estado, militarmente o mais poderoso do mundo, para responder ao terrorismo se tenha transformado ele mesmo num Estado terrorista.

Foi o que fez Bush, limitando a democracia e suspendendo a vigência incondicional de alguns direitos, que eram apanágio do pais. 

Fez mais, conduziu duas guerras, contra o Afeganistão e contra o Iraque, onde devastou uma das culturas mais antigas da humanidade nas qual foram mortos mais de cem mil pessoas e mais de um milhão de deslocados.


Cabe renovar a pergunta 
que quase a ninguém interessa colocar: 
por que se produziram tais atos terroristas? 

O bispo Robert Bowman de Melbourne Beach da Flórida que fora anteriormente piloto de caças militares durante a guerra do Vietnã respondeu, claramente, no National Catholic Reporter, numa carta aberta ao Presidente:

”Somos alvo de terroristas porque, 
em boa parte no mundo, 
nosso Governo defende a ditadura, 
a escravidão e a exploração humana.
Somos alvos de terroristas porque nos odeiam.
E nos odeiam porque
nosso Governo faz coisas odiosas”.

    PazBem      
Radeir
Fonte:
 Leonardo Boff
Autor: Leonardo Boff - http://leonardoboff.wordpress.com
Editora: Rayssa Gon (dica do Pedro Almeida)
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

A VERDADE COMO REGRA DAS AÇÕES - Farias Brito








Farias Brito (1862-1917)
 
- Uma antologia organizada por
Gina Magnavita Galeffi. 
GRD-INL/MEC (1979)

ENSAIO DE FILOSOFIA MORAL COMO INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO

Esta obra publicada em 1905 em Belém do Pará é considerada pelo próprio autor "um ensaio de filosofia moral como introdução ao estudo do direito" e "complemento prático" de sua maia ampla obra, a Finalidade do Mundo.
Nela notamos a preocupação do professor e do bacharel em Direito que quer apresentar a seus alunos os assuntos que irá desenvolver ao longo do curso. Durante alguns anos Farias Brito foi de fato professor contratado da Faculdade de Direito para ensinar como lente substituto.

Logo no Prefácio o leitor fica conhecendo o propósito do autor e sua firme convicção de estar construindo um sistema coerente de pensamento. "Trata-se, no fundo" ele escreve "de deduzir um critério da conduta sendo que, a meu ver, é a filosofia moral que deve servir como introdução necessária ao estudo do direito". Declara em seguida: "Eu vou neste ensaio explicar que é também a verdade que se impõe como regra de nossas açôes".

Apresenta então os pontos do programa que irá desenvolver, 40 ao todo. Na realidade não desenvolveu senão 13 que constituem o Livro I e o II desta publicação.

A moral para ele é ciência da ação e ideal de conduta. Este ideal consiste em viver moralmente, isto é, segundo a razão. As normas de conduta são pois impostas pela própria consciência.
Considerando as relações entre direito e moral afirma que os dois coincidem substancialmente, só que no direito a lei que não pode, pelo menos em princípio, estar contra a moral é tutelada ooatiavmente pelo poder público.
A moral, em suma, é um todo do qual o direito é uma parte.

Viver segundo a moral 
é viver segundo a razão 
e portanto conforme a verdade.

Esta regra tem o valor de um axioma e duas são as formulações que se podem dar ao imperativo da conduta: Age de maneira a não te afastar da verdade; Age de maneira ao que pensas ser a verdade, isto é, em conformidade com tuas íntimas convicções.

Depois de ter examinado e interpretado à sua maneira os conceitos de moral, direito e dever, Farias Brito passa, na segunda parte do livro, a expor as principais tentativas de sistematização da consciência jurídica contemporânea e interrompe, por razões várias, o plano traçado.


LIVRO I
O IDEAL DA CONDUTA PONTO DE VISTA FUNDAMENTAL
Capítulo I(¹)

FUNÇÃO TEÓRICA E FUNÇÃO PRÁTICA DA FILOSOFIA,

CIÊNCIA E RELIGIÃO:RIQUEZA E MORALIDADE

A ciência é o conhecimento organizado e verificado; a filosofia é o conhecimento em via de formação. Em outros termos: a filosofia é a organização do conhecimento científico; é a investigação do desconhecido; é a atividade mesma do espírito, elaborando o conhecimento e produzindo a ciência. Como tal, é uma atividade permanente, compreendendo-se assim a expressão de Leibniz: perennis philosophia; o que exatamente quer dizer que se trata aí de uma atividade permanente do espírito humano.

A filosofia vem, pois, em primeiro lugar, como princípio de atividade; só depois aparece a ciência como produto dessa mesma atividade; podendo-se dizer, para explicar o fato por uma imagem, — a filosofia é como uma árvore de que resulta como fruto a ciência.

É uma ideia que está em antagonismo radical cem a opinião comum que dá a filosofia como um produto das ciências, e só a admite como uma sistematização geral do conhecimento científico. É a intuição positivista, ou a chamada filosofia científica.
(1) pp. 17-21

Mas esta ideia se justifica
1.°) Pela significação etimológica da palavra;

2.°) Pelo exame crítico da inteligência; 3.°) Pela história mesma do pensamento.

Examinemos em rápidas linhas esta justificação.
1.°) Justificação pela significação da palavra. A palavra filosofia vem do grego philos e sophos e significa assim originariamente amor da ciência. Ora, se se trata de amor, é evidente que se trata de uma força mesma do espírito. A filosofia não é, pois, um produto, mas uma atividade espiritual. A ciência sim, é que é um produto dessa atividade. Depois, o amor é a força geradora, o princípio criador, portanto. E neste caso se a filosofia é o amor da ciência, logo por aí se vê que é o princípio gerador, a força criadora da ciência.

2.°) Justificação pelo exame crítico da inteligência. A filosofia é a investigação do desconhecido. Esta investigação resulta de uma necessidade fundamental de nosso espírito: a necessidade de saber, que se manifesta como uma sede que nunca se esgota. Ora, a necessidade é força que nos leva a agir, é mesmo a causa originária na determinação das ações. Vê-se, pois, evidentemente, que a filosofia se nos apresenta como um princípio de atividade: ela é, de fato, a atividade mesma do espírito; é o espírito mesmo elaborando o conhecimento; é o espírito investigando, analisando, estudando e, era consequência desta investigação, desta análise, deste estudo, produzindo a ciência.

3.°) Justificação pela história mesma do pensamento. Mas o que demonstra a verdade desta ideia, por modo mais rigoroso e positivo, é a história mesma do pensamento. Não é preciso ir muito longe, basta remontar até à história dos gregos. Ninguém desconhece que o conhecimento científico começou por um todo informe? e foi só sucessivamente que deste todo informe se foram, com períodos mais ou menos longos, destacando as diferentes disciplinas científicas. Destacou-se do conjunto filosófico, como ciência independente, em primeiro lugar, a matemática; depois a astronomia; depois a física, a química, a biologia, etc.

É assim que com razão diz Roberto Ardigo:

"A filosofia é a concepção do problema científico; 
a ciência é a sua solução". 

É por isto que as ciências particulares foram precedidas pela filosofia. Mas conquanto as ciências sucedam à filosofia, não se segue daí que façam com que a filosofia desapareça; ao contrário, desenvolvendo-se, as ciências ao mesmo tempo se tornam causa que logo suscita novos problemas. A ciência particular é o conhecimento determinado (il distinto mentaíe), precedido por um conhecimento indeterminado (un indistinto) que forma o objeto da filosofia. Existe, pois entre a ciência e a filosofia uma relação de consequente e antecedente.

Ardigo chama ainda a filosofia "a nebulosa primordial das noções problemáticas que dá pouco a pouco nascimento a um corpo de conhecimento"; é "a matriz eterna da ciência, do mesmo modo que a natureza é a matriz eterna das diversas formas que nela se encontram…

A filosofia, o estado caótico (l’indistinto) do pensamento,
é um infinito que produz a série sem fim 
das disciplinas científicas determinadas".

Em conclusão: a filosofia é uma atividade que tem por função própria produzir a ciência. É o que se pode chamar a função teórica da filosofia.
Mas ao lado dessa função teórica, acontece que a filosofia tem também uma função prática. Quer dizer: investigando o desconhecido, a filosofia não só vai sucessivamente constituindo as diferentes disciplinas científicas, com ao mesmo tempo tende necessariamente a abraçar o todo universal, alargando-se cada vez mais na esfera de sua atividade, e lançando as bases para uma concepção do mundo.

Nisto a filosofia se transforma em metafísica e deduz as leis da conduta, explicando ao homem:

1.°) qual a significação racional da natureza;

2.°) qual o papel que representamos no mundo;

3.°) como devemos proceder nas múltiplas relações da vida. É o que se pode chamar a função prática da filosofia. Por onde se vê que da filosofia resultam duas coisas: teoricamente, o conhecimento científico; praticamente, a dedução das leis e a ordem moral da sociedade.

O homem tem sobre todos os outros seres este privilégio excepcional: que é ele próprio quem formula as leis a que deve obedecer. Ora, é justo dizer: quem formula as leis a que deve obedecer, tem consciência de si mesmo. É a propriedade da natureza humana. Nisto precisamente consiste a liberdade que, na sua significação real e mais profunda, não é senão a consciência da açao. É a superioridade do homem. 

E como esta consciência da ação é, em cada um, naturalmente tanto maior, quanto maiores são os seus conhecimentos, quanto mais clara se faz a sua percepção das coisas, daí se segue que a liberdade, por sua vez, é uma conquista do espírito, que é um princípio, uma força que tanto mais cresce, quanto mais se aprofunda o homem em seus conhecimentos. E não basta que o homem se conheça a si mesmo como princípio de atividade; é preciso que conheça também a natureza; teatro em que esta atividade se exerce. De modo que é da noção do conhecimento que resulta o conceito da liberdade, sendo que é pelo conhecimento que o homem se torna livre. 

E sendo, como vimos, a filosofia, o princípio gerador do conhecimento, logo por aí se compreende que é também da filosofia que nasce a liberdade, e com esta o direito que não é senão o organismo objetivo da liberdade, no dizer de Rudolf von Ihering.

A filosofia não é, pois, 
somente conhecimento abstrato; 
é também força social, força viva, 
capaz de exercer influência sobre a sociedade; 
e esta influência é real e decisiva, 
pois é da filosofia que nasce o sentimento moral.

Resta acrescentar que, assim compreendida, a filosofia se confunde com a religião. A religião de fato é a filosofia mesma, considerada em sua função prática. Isto facilmente se compreende, considerando que toda a religião é uma comunidade de princípios, uma comunhão de ideias. Diversos indivíduos que se sentem unificados por uma convicção comum, são naturalmente levados a formar uma agremiação, sentindo-se bem, pela formação desse corpo harmónico, na unidade da mesma crença e do mesmo ideal: é o que se chama.religião. Quer dizer: a religião é a filosofia mesma passando do mundo das abstrações para o mundo da realidade, do pensamento para a vida; é a filosofia deduzindo as leis da conduta e organizando, espontaneamente e sem coação a sociedade, só pelo acordo das convicções; 

numa palavra:
a religião é a moral organizada .

É o que claramente se vê considerando a filosofia de um só golpe, em sua dupla função teórica e prática. Resultam daí, por um lado, as ciências; por outro lado, a ordem moral. Mas as ciências, por sua vez, podem ser consideradas de dois modos: como ciências puras e como ciências aplicadas. 

Quer dizer: as ciências podem ser consideradas como disciplinas destinadas a organizar, consolidar e sistematizar o nosso conhecimento; e podem também ser consideradas como disciplinas tendentes a dirigir a nossa atividade produtora, tendentes a impulsionar, organizar o trabalho. É assim que nascem: das ciências naturais, a medicina e a farmácia; das ciências jurídicas, a jurisprudência e a prática dos tribunais; das ciências sociais e económicas, a arte dos economistas e financeiros; das ciências físicas e matemáticas, a arte dos engenheiros e mecânicos.
É a distinção que vai da anatomia para a fisiologia,
do órgão para a função. 
As ciências se tornam então 
o princípio ativo das indústrias, 
a força produtora da riqueza.

Do mesmo modo, considerando-se a filosofia em sua função prática, há também a distinguir duas coisas:

l.a) que ela formula uma concepção do mundo, elevando-se à consideração da ordem da natureza e à contemplação da verdade abstrata;

2.a) que deduz daí, pela compreensão de nosso destino, as leis da conduta. Ora, desde que deduz leis, tende a organizar. É a génese da religião. É, ainda aqui, a mesma distinção que vai da anatomia para a fisiologia, do órgão para a função.
Capítulo II (¹)

A MORAL COMO CIÊNCIA DA AÇÃO. A MORAL COMO IDEAL DA CONDUTA. O DIREITO COMO COMPLEMENTO DA MORAL. DISTINÇÃO ENTRE A MORAL E O DIREITO.

Dá-se o nome de ação, no sentido ético, a tudo o que o homem faz no exercício de sua atividade, a toda a deliberação seguida de execução. Mas sempre que o homem faz qualquer coisa, que delibera e da deliberação passa à execução, acontece que realiza certas operações, que se move e ao mesmo tempo põe em movimento outras coisas de que se serve como instrumentos. Isto quer na esfera da consciência individual, quer na esfera da consciência coletiva; quer se considere o indivíduo, quer se considere a sociedade, isto é, qualquer corporação ou coletividade.

Assim é uma ação qualquer movimento do homem em execução de alguma deliberação sobre qualquer negócio ou incidente; e é também uma ação, por exemplo, o movimento de um exército que se põe em marcha para ir ao encontro do inimigo. Por onde se vê que toda a ação é sempre um movimento, ou mais precisamente, um complexo de movimentos. Mas neste caso, em que se distingue o movimento em que se resolvem as ações dos homens, dos outros movimentos que observamos na natureza? Em outros termos: em que se distinguem as nossas ações do movimento realizado pelos corpos no espaço.
 
Esta distinção é claríssima e consiste nisto: que o movimento dos corpos se realiza inconscientemente, ao passo que as nossas ações são feitas com consciência. Sempre que qualquer corpo se move, sofre a ação de uma força exterior, quer dizer, é determinado por uma causa, — de onde a lei: não há efeito sem causa. Sempre que o homem realiza qualquer coisa, pratica um ato de vontade, quer dizer, é determinado por ação de uma ideia, por um pensamento ou um sentimento, e tende a realização de um fim; de onde a lei: não há ação sem fim. É assim que, passando da esfera da natureza para a esfera da atividade humana, a lei de causalidade se transforma em lei de finalidade.

Deste modo podemos dizer, em conclusão: na natuerza, isto é, nos fatos puramente mecânicos, domina a lei de causalidade; nas ações do homem domina a lei de finalidade. O movimento e a ação são, pois, dois fatos essencialmente distintos: o primeiro, fato puramente mecânico; o segundo, fato ao mesmo tempo mecânico e psíquico; um, somente exterior, objetivo; outro, ao mesmo tempo objetivo e .subjetivo, exterior e interno. 

Ora, há uma ciência especial para o movimento; é a mecânica, ou em sentido mais amplo a dinâmica, compreendendo esta: o estudo do movimento em suas manifestações gerais e abstraías, é a mecânica propriamente dita; e o "estudo do movimento em suas manifestações especiais e concretas, — são a física, a química, a astronomia, a geologia, etc. E se há assim uma ciência ou um conjunto de ciências para o movimento, não deverá também existir uma ciência ou um conjunto de ciências para a ação? Esta ciência ou este conjunto de ciências existe de fato: é a moral. Pode-se, pois. dizer, 

em síntese: 
a dinâmica é a ciência do movimento: 
a moral é a ciência da ação.
(D pp. 22-27

Assim considerada, a moral é o que se chama ordinariamente a moral especulativa, ou a moral teórica. Não é isto, porém, o que nos interessa por enquanto. O que particularmente nos interessa, e o que temos em vista aqui, é a moral deduzindo leis e regulando os atos do homem; numa palavra, a moral prática, ou mais precisamente, a moral como ideal da conduta.
Viver conforme a moral é viver conforme a razão, isto é, conforme os princípios que a razão estabelece. São precisamente estes princípios que constituem o ideal da conduta. Eles se resolvem em regras de ação e são as leis da ordem moral que se objetivam nos costumes e são transmitidas de geração em geração, sob a forma de preceitos e máximas, de prescrições que devem ser observadas em todas as relações da vida. 

A antiguidade os imaginava revelados pela própria Divindade. A civilização hebraica os consolidou no Decálogo; e os gregos e romanos, aproximando-se mais da verdade hoje confirmada pela observação e estudo dos fatos, os fizeram dependentes da cogitação dos filósofos, mas, em todo o caso, ainda os faziam derivar da voz dos oráculos, manifestação da vontade dos deuses. Mas é a nossa consciência mesma que os inspira e deduz, sendo que a moral, como o direito, como a religião, como as indústrias, as artes e todas as outras manifestações da cultura humana, que são o fundamento e base da civilização, são produtos da inteligência.

E se os grandes legisladores acreditam receber a lei, por inspiração da Divindade, como sucedeu a Moisés, como sucedia ainda a Numa Pompílio, a isto se pode chamar a vertigem da consciência mesma.
De toda a forma pode-se definir a moral nestes termos: é a norma de conduta imposta pela própria consciência.
É o que se chama a lei moral, a Lex eterna: é o imperativo categórico de Kant.

Esta lei nos impõe deveres, e estes podem ser reduzidos a duas fórmulas fundamentais: 
1.°) fazer o bem; 

2.°) não fazer o mal.

Se os homens fossem todos bem intencionados e bons, a lei moral, por si só, seria suficiente para assegurar a ordem social. A paz se faria pela concórdia das consciências, pela harmonia das vontades. Mas assim não sucede. Pelo contrário, a tendência natural do homem é para o mal. Cada um quer dominar sobre todos e sobre tudo; cada um quer ter o seu maior quinhão nos bens que a natureza distribui.

Daí as divergências, os antagonismos e a luta contínua que se observa entre os homens, refletindo-se na comunhão social o mesmo combate pela vida que constitui o fundo da natureza animal. Ora, para ter valor, para ser verdadeiramente eficaz, a lei precisa de uma sanção. 

A sanção consiste unicamente 
na condenação da própria consciência 
e na execração da consciência dos outros. 

Se o homem pratica o mal, 
em face da própria consciência se rebaixa, 
ao mesmo tempo que o condena a consciência pública. 
É a sanção moral.

Esta, porém, não basta, porque a maior parte dos homens nem se aterrorizam com o rebaixamento em face da própria consciência, nem deixarão de praticar o mal por saber que hão de ser condenados e execrados pelos outros homens. É preciso, pois, que venha em auxílio da lei uma sanção material: é a significação do direito.

Nasce desta necessidade o poder público que organiza o estado e assegura, pelo emprego da força, o cumprimento das leis cuja violação põe em perigo a ordem social.

Pode-se, pois, definir o direito nestes termos: é a norma de conduta estabelecida pelo poder público e assegurada coativamente por uma sanção material.

Há, pois, uma norma de conduta consagrada pela própria consciência: é a moral. E há uma norma de conduta estabelecida pelo poder público: é o direito. São dois sistemas diferentes de leis? Não, porque a lei que o direito estabelece é a mesma lei moral.

Mas então em que se distingue a lei moral da lei jurídica? 
Em outros termos: 
qual é a distinção essencial entre o direito e a moral?
 
Esta distinção é dupla. Em primeiro lugar o direito acrescenta à lei moral um elemento externo: a força No direito a lei moral é assegurada coativamente pelo emprego da força. É neste sentido que se pode dizer: o direito é força. Há então da moral para o direito a mesma distinção que vai da ideia para o corpo.

A moral é a idéia; o direito é esta mesma ideia, manifestando-se exteriormente e reagindo como força, contra a violação da lei. Depois nem toda a lei moral precisa de ser reduzida a direito; mas somente aquelas cuja violação põe em perigo a ordem social. É, pois, somente uma parte das leis morais que devem constituir o direito; por onde se vê que o direito, sob este aspecto, está para a moral como a parte para o todo.

A moral, como vimos, impõe duas ordens de deveres: fazer o bem — é a fórmula aceita por Schopenhauer e reproduzida por Ernst Marcus: omnes, quantum potes, adjuva; e não fazer o mal — é a fórmula atribuída por Giuseppe Carie aos epicuristas e também aceita igualmente por Schopenhauer e Ernst Marcus: neminem laedere. São somente os deveres referentes a esta última fórmula que devem ser reduzidos a direito, isto é, que devem ser assegurados coativamente. 

Se o homem, podendo, deixa de fazer o bem, 
a si mesmo se rebaixa, nega a crdem moral 
e a si mesmo se nega; 
mas nao põe em perigo a ordem social. 

Por isto não pode, ou não deve o direito aí intervir. Mas se ele faz o mal, se ele ofende a seus semelhantes, já na vida, já na honra, já na propriedade, seguramente perturba a ordem social, e portanto tem o poder público a obrigação de intervir, contendo-o nos limites da lei. De maneira que o Estado ou o poder público que o representa, não tem o direito de obrigar o homem a fazer o bem, mas tem o dever de impedi-lo de fazer o mal.

O direito é, pois, a própria lei moral, com esta diferença: que no direito a lei moral é assegurada coativamente pelo poder público. Assim a moral é o todo de que o direito é apenas uma parte, nem outra coisa se poderia imaginar, sendo que o direito nascido da política, que é uma concepção da sociedade, não poderia deixar de estar subordinado à moral, nascida da filosofia, que é uma concepção do mundo. O direito é apenas aquela parte das leis morais de que o poder público constitui a ordem jurídica, reduzindo-as a leis positivas. Em outros termos: 

é a lei moral que constitui a atmosfera
em que gira o direito, 
do mesmo medo que é a religião 
que constitui a atmosfera em que gira a moral.

Há de um lado o poder público, o parlamento, os tribunais, o governo, numa palavra, as corporações políticas, e nisto consiste a ordem jurídica. Há, de outro lado, o livro, a propaganda, o ensino, além das corporações filantrópicas e daquelas que fazem da educação e do ensino o princípio e essência da virtude, e nisto consiste a ordem moral. De uma e outra coisa nasce a lei: da ordem política, a lei jurídica, da ordem filosófica, ou mais precisamente, da ordem religiosa, a lei moral. E digo ordem religiosa, porque, em verdade, filosofia, educação e ensino, como filantropia e caridade, tudo isto é religião.
Uma lei está subordinada a outra, bem se vê, porque a lei suprema é a lei moral. Vem primeiro como necessidade fundamental a lei moral; vem depois como complemento o direito.

São duas leis da mesma essência e que exercem a sua ação conjuntamente: todavia não se confundem; há entre elas uma distinção claramente acentuada.
Eis aqui em síntese esta distinção:
O homem, como parte da humanidade, deve, só por força das imposições da consciência, obedecer aos preceitos da moral, criados pela filosofia e julgados pela história que é o tribunal universal. Eis o domínio da moral.

O homem ainda por força daquele mesmo princípio, e como membro da nação, deve obediência ao governo e às leis, procedendo sempre de conformidade com a ordem política criada pela nação e sancionada pelo Estado que, se ele por ventura se torna rebelde, o contém por meio da força. Eis o domínio do direito.

Capítulo V (¹)

AS LEIS MORAIS E JURÍDICAS. SUA SIGNIFICAÇÃO PRÓPRIA: A LEI COMO CONVICÇÃO COMUM, A LEI COMO CONVICÇÃO DA CONSCIÊNCIA COLETIVA.

Ficou estabelecido que devemos proceder sempre e em todas as relações da vida de conformidade com a verdade. É a forma objetiva do critério da verdade. Mas a verdade, sabem todcs, é, até certo ponto, um ideal inatingível; erramos a todo o instante sobre as coisas mais simples; não conhecemos a natureza; não conhecemos a sociedade de que fazemos parte; não conhecemos a nós mesmos. Como aplicar, pois, o princípio?

Torna-se necessário modificá-lo, adotando uma fórmula mais acessível às nossas forças, mais prática, mais eficaz e, sobretudo, aplicável a todas as modalidades da ação. Eis aqui: é nosso dever proceder sempre e em todas as relações da vida de conformidade com o que pensamos ser a verdade, isto é, de conformidade com as nossas convicções. É o critério subjetivo da verdade. O primeiro, sendo observado rigorosamente, daria em resultado uma moralidade absoluta; mas esta existe apenas como ideal; deve ser a nossa aspiração suprema; mas não pode ser atingida. 

O segundo dará em resultado uma moralidade relativa. É ainda deficiente, incompleta; mas é a única compatível com as condições da nossa existência social. A perfeição existe somente quando as nossas convicções são verdadeiras, isto é, quando o critério subjetivo coincide com o critério objetivo. 

É o ideal a que todos devemos aspirar, 
de onde resulta que a busca da verdade
é o primeiro dos nossos deveres.
(1) pp. 45-59

É a doutrina de que já dei uma ideia em outra parte quando disse: de dois modos pode o homem proceder na sociedade: de conformidade com as suas convicções ou de conformidade com os seus interesses, paixões, etc. Nem se compreende que possa proceder de outro modo, a menos que não se ache em seu estado normal, que obedeça a uma necessidade orgânica irresistível, que obre como louco, sem consciência do resultado de suas ações, ou que seja impelido por uma força exterior superior à sua vontade. 

Pode-se assim estabelecer que o grau de moralidade está na razão inversa do sacrifício das convicções a conveniências; e, adotada esta regra, pode-se afirmar que aquele que nunca sacrifica as suas convicções a conveniências é um homem perfeito. E para conseguir esta perfeição, cumpre notar, é necessário que o homem se esforce. Às vezes acontece que as nessas convicções coincidem com as nossas conveniências. Neste caso o homem é feliz, mas não tem grande mérito; falta aquilo que constitui o verdadeiro merecimento: o sacrifício, a luta, o esforço individual.

Pode acontecer que uma ação seja subjetivamente boa e objetivamente má. Isto se dá quando o homem procede em obediência a uma falsa convicção: a ação deve então ser condenada, mas o agente não merece censura, uma vez que foi sincero. E pode suceder o contrário, isto é, que o homem seja levado a agir por determinação de uma intenção má, estando convencido de que a verdade e o dever são exatamente o contrário, e, entretanto, acerte por erro. Neste caso a ação deve ser aprovada, mas o agente praticou um ato imoral: o bem não é então obra sua, mas do acaso.

A sinceridade vem a ser, pois, uma grande virtude, 
de onde resulta ao mesmo tempo que a hipocrisia
é o mais hediondo dos vícios. 

A hipocrisia é, de fato, 
a personificação consciente da mentira,
a negação absoluta da moral.

É a significação profunda da criação genial de Molière. Tartufo é uma grande figura moral, é o ideal negativo da moralidade.

Temos, pois, um princípio: deve o homem obedecer sempre à inspiração de sua consciência, deve o homem proceder sempre de conformidade com as suas convicções. O contrário disto seria negar o que a consciência afirma, seria negar-se a si mesmo. Mas resulta daí uma grave dificuldade: é que as nossas convicções são variáveis e incertas, sendo certo que não só variam de indivíduo a indivíduo, como, no mesmo indivíduo, a todo o instante podem mudar. 

Quantas vezes não acontece que num grupo de indivíduos, sobre o mesmo assunto, cada um pensa de modo diferente, isto não somente se tratando de questões de alta complicação, porém mesmo se tratando de questões da mais fácil compreensão? É muito comum. E, considerando-se o mesmo indivíduo, quantas vezes não nos sucede verificar que o que imaginávamos ontem ser a verdade, hoje reconhecemos ser um erro grosseiro, evidente; e vice-versa? 

 Ora, sendo assim, como obter a regularidade, como obter a uniformidade e a fixidez nas ações? Vê-se que se as nossas convicções são a única regra de conduta, o resultado não pode ser senão a anarquia. É aqui que se apresenta a necessidade imperiosa da lei.

Mas o que é a lei?

É o que passamos a examinar. O homem não é um ser isolado. É ao mesmo tempo um todo e uma parte; um todo como indivíduo completo que é; e uma parte como membro da comunhão social. Deste modo não é somente às suas convicções pessoais que deve obedecer, mas também às convicções da coletividade; e caso esteja a sua convicção individual em contradição com a convicção comum, é esta última que deve prevalecer: .esta é que é a lei.

Eis aqui, pois, segundo o meu ponto de vista a verdadeira significação da lei: é a convicção comum, é a convicção da consciência coletiva; já tendo por si somente a autoridade da razão, e neste caso é a lei moral; já, tendo por si também a autoridade do poder público, e neste caso é a lei jurídica.
E porque devemos ceder em face da convicção comum, por maneira que esta se nos imponha como lei? Por três razões:

1.°) porque a parte necessariamente deve ceder em face do todo;

2.°) porque isto é uma das condições da ordem social;

3.°) porque há era favor da consciência comum a presunção de verdade. É assim que ao critério objetivo da verdade, sucede o critério subjetivo da convicção, e a este, o critério da lei que é, por assim dizer, uma transação entre os dois.

Obediência à lei — eis, pois, a primeira condição, a condição suprema da ordem moral. E devemos a ela obediência, quando mesmo seja contrária às nossas convicções. De sorte que não devemos ceder nas nossas convicções, em face de qualquer interesse, em face de qualquer conveniência, em face de qualquer perigo; mas devemos ceder em face da lei. Foi fato de que nos deixou um exemplo grandioso, sublime, o memorável Sócrates, morrendo por obediência à lei, estando, entretanto, convencido, certo de que a lei pela qual morria, naquele momento, não representava a verdade.

Fica, pois, positivamente acentuada a nossa definição. A lei é a convicção comum, a convicção da consciência coletiva traduzida em regras de conduta.
E seja como for, a obediência a lei é a primeira condição da vida moral. Mas é preciso nunca" perder de vista o seguinte: que para ser verdadeiramente respeitável, para que deva ser por todos acatada como coisa que nem de leve pode ser ferida, como coisa sagrada, é preciso que a lei represente, de fato, a convicção comum, a convicção da consciência coletiva, sendo que toda a vez que o poder público nos impõe uma lei contrária às nossas convicções, isto é, contrária ao pensamento geral, exerce uma opressão. Já não é a lei, mas a força, que governa. 

E neste caso é legítima a revolução, sendo necessário acentuar que se a opressão chega a tomar proporções exageradas e não é possível vencê-la pela discussão, pela propaganda, pela persuasão, em uma palavra, pela luta das ideias; neste caso, já não é somente um direito, mas um dever moral reagir, empregando a força contra a força. É a força da razão que degenera em inconsciência da força: é uma autoridade que cai por perder a consciência de sua missão, e é uma consciência nova que se forma: é um poder que extravasa e se abate, degenerando na inconsciência feroz da brutalidade; e é um poder novo que nasce, fundado na inspiração de um novo ideal.

A história está cheia de exemplos dessas lutas grandiosas 
que são o processo mesmo de seu desenvolvimento,
e ao mesmo tempo a comprovação desse fato 
que é também a afirmação de uma verdade suprema: 
é a consciência que move o mundo.

LIVRO II

O PROBLEMA DO DIREITO EM PARTICULAR: 

EXPOSIÇÃO E CRÍTICA DOS SISTEMAS

INTRODUÇÃO (1)
É pois, da filosofia que deriva imediatamente 
a intuição do dever. 
É o que eu chamo a função prática da filosofia.

Mas a filosofia é uma coisa a se fazer sempre, nunca definitivamente feita. É, como já tive ocasião de dizer, um monumento que a cada instante se renova, uma esfera que indefinidamente se alarga. E cada esforço individual, cada construção particular, por mais que se afigure a seus autores como obra completa e definitiva, não é senão material, apenas uma pedra para a obra comum da humanidade. E se esta pedra é de forte consciência, resiste, entra como elemento para a obra comum, aumenta o tesouro dos conhecimentos humanos, e perdura; mas se é uma fraca pedra, uma construção arbitrária e fantástica, tem de ser destruída, é pedra que se desfaz, e volta fatalmente ao pó de onde saiu. Isto se explica: é que a filosofia é o espírito mesmo investigando o desconhecido, elaborando o conhecimento.

Ora, tudo o que existe, interessa ao conhecimento e se deve explicar com devendo ser objeto do conhecimento; e como a existência é infinita, nem tem limites assinaláveis no espaço e no tempo, daí resulta que também não há limites assinaláveis para a investigação do desconhecido, sendo certo que a elaboração do conhecimento jamais poderá esgotar a existência. Todo o conhecimento elaborado é ciência. Aí descansa o espirito na posse da verdade. Mas toda a ciência é apenas um ponto determinado no seio do desconhecido, o que equivale a dizer, no seio do infinito; e partindo desse ponto e em torno desse ponto para todos os lados se estende o desconhecido em proporções infinitas. 

De maneira que jamais poderá o conhecimento elaborado ou a ciência esgotar a esfera do desconhecido; e pelo contrário com o desenvolvimento das ciências parece que o desconhecido cresce; circunstância que tem a sua explicação neste fato: que o espírito galgando uma posição mais eminente descortina horizontes • mais largos e deste modo descobre novas e estranhas perspectivas. É por isto que toda a vez que o espírito descansa na posse de uma verdade, chega ao ponto terminal numa série de investigações; mas este ponto terminal é apenas o ponto de partida para uma nova série.
(1) pp. 74-80

O trabalho do espírito é,
pois, permanente, contínuo. 

Mas o que é mais importante é que a filosofia, elaborando o conhecimento, não somente vai fundando as ciências, o que quer dizer, alargando e consolidando o conhecimento científico (função teórica), como ao mesmo tempo abrange, por disposição natural, o conjunto da universal existência, e deste modo vai sempre fornecendo os elementos necessários para uma concepção do mundo. Deste modo não somente continuamente se esforça por dar uma explicação da verdadeira significação racional da existência, como ao mesmo tempo procura definir a posição do homem no seio do Universo.

É debaixo deste último ponto de vista que a filosofia nos habilita a fazer a dedução das normas da nossa conduta, pela compreensão que fornece ao mesmo tempo do nosso destino e do destino universal. É assim precisamente da filosofia que se origina a lei, base da ordem moral e princípio orgânico das sociedades. Mas também é exatamente, sendo considerada sobre este aspecto, que a filosofia é uma obra a se fazer sempre, jamais definitivamente feita, como afirmei em começo. 

É que a filosofia, sendo uma concepção do mundo, está sempre sujeita a ser renovada, modificada em seus fundamentos, à proporção que se forem desenvolvendo os conhecimentos humanes. É, pois, uma coisa que está sob a dependência do grau de desenvolvimento do espírito; e como o espírito se desenvolve sempre, daí resulta que a filosofia é como uma esfera que indefinidamente se alarga, sendo certo, por exemplo, que um selvagem não pode ter a mesma compreensão da natureza que um homem de alta cultura mental. 

Neste sentido pode-se dizer que a filosofia é uma obra d’arte, na qual a imaginação entra em contribuição com a experiência e a ciência para a construção do monumento. Não se trata, pois, de uma obra fixa e imutável; mas de uma construção que vai crescendo sempre, espécie de poema no qual a majestade do cosmo se reflete, poema vivo e real que por si mesmo se desenvolve e ao mesmo tempo continuamente se renova, como se fosse uma luz que vai sempre subindo e que, à proporção que sobe, vê mais ao longe os confins da existência.

Pois bem: é exatamente nesse fato que está a razão da incerteza e variação que se nota entre os diferentes autores e, mesmo se poderá dizer, entre os diferentes indivíduos quanto à intuição do direito.

Efetivamente: é da filosofia
que nos vem a noção do dever e, 
por conseguinte, a intuição do direito
como regra das ações.

Ora, a filosofia varia, é uma força em desenvolvimento contínuo, é uma atividade que continuamente se modifica e renova. Por conseguinte o direito como um produto dessa força, como uma repercussão, na ordem prática, dessa mesma atividade, está também necessariamente sujeito a variar, pois tem que acompanhar inevitavelmente as evoluções do pensamento filosófico, e deste modo é igualmente uma força em desenvolvimento continuo, um princípio que continuamente se modifica e renova.

Que a filosofia influi sobre o direito e que a noção do direito resulta como uma consequência necessária da intuição filosófica, é uma verdade que se impõe de modo irresistível.

Neste sentido pode-se dizer: 
dize-me como compreendes a natureza 
e eu te direi qual a noção que tens do teu dever. 

Cada um deduz, pois, o direito conforme a intuição que tem de si mesmo e do mundo, e esse direito assim deduzido não é propriamente um conceito, na verdadeira significação da palavra, mas um fato de ordem psíquica que exerce ação real sobre a vida, que se objetiva no costume e na lei e vai agir como força na comunhão social. 

Deste modo as definições do direito não são propriamente determinações de um conceito, mas apenas descrições de um fato. São definições sistemáticas que cada um apresenta conforme o prisma de suas ideias. E como na ordem moral é difícil, senão impossível, distinguir a ideia do fato, exatamente por isto, porque as ideias na ordem moral são fatos, sendo que são as ideias que aí dominam como forças, disto resulta que, o mais das vezes, quando se pretende determinar um conceito, apenas se dá expressão a uma intuição particular, variável e relativa, limitada às condições de uma época e dentro do círculo estreito do desenvolvimento mental de um indivíduo ou de um povo.

Para determinar o conceito do direito, é necessário apresentar dele não uma definição sistemática, mas uma definição geral que deva ser aceita por todos: só assim a ideia adquire o que se chama valor objetivo, isto é, se torna uma só e a mesma para todos; condição sem a qual o conceito jamais ficará devidamente determinado. Isto é difícil porque o homem não se pode libertar do jugo das suas ideias, especialmente na ordem moral. Ê a razão (por exemplo) por que o remorso tortura o criminoso que tem consciência de haver praticado um ato mau que o degrada. Ele violou a lei, desobedecendo à inspiração da sua consciência, mas a autoridade da razão, que é em que se resolve o que chamamos

domínio das ideias, continua a dominá-lo, condenando a sua conduta como um tribunal inflexível. Assim se eu compreendo o mundo de um certo modo, necessariamente compreendo também o meu dever de certo modo, em correspondência com a minha intuição da existência. O mesmo se dá com o direito que é apenas a lei a que devo obedecer, para proceder de conformidade com o meu dever. E neste caso, tratando de fazer a determinação do conceito do direito, não posso fazer abstração da minha própria intuição, de maneira a conceber não o direito tal como penso que ele é, mas o direito em geral, de modo a ficar compreendido no conceito todas as manifestações e todas as modalidades da ideia.

Eu defino, por exemplo, o direito nestes termos: é a norma de conduta imposta por autoridade do poder público. É a minha definição própria. Mas quem nos garantirá que o poder público não venha a desaparecer um dia, sendo possível imaginar que a harmonia social se estabeleça por livre acordo das vontades? Quem nos pode garantir de que um dia não virá a se realizar o ideal anarquista; e neste caso, desaparecido o estado, eliminado o poder público, como se poderá compreender o direito como norma de convivência social, como a regra de ação imposta por autoridade do poder público?

Ninguém se pode libertar do jugo de suas ideias.
Por conseguinte ninguém poderá definir 
o direito senão na conformidade do prisma 
da sua concepção do Universo.

Eu me proponho, não obstante, neste livro a fazer o estudo da ideia do direito. Mas com isto, é preciso acentuar, não quero dizer que pretenda fixar definitiva e positivamente o conceito do direito. Neste caso ficaria encerrado o ciclo do desenvolvimento do direito; mas o direito como a filosofia, de que é um produto necessário, é também uma obra a se fazer sempre, nunca definitivamente feita; e por conseguinte, não é propriamente um conceito, ideia fixa e imóvel; mas uma das forças vivas da história. Assim, o que eu pretendo é não determinar o conceito do direito, mas precisamente estudar as principais manifestações da consciência jurídica contemporânea.

A teoria do direito natural, a filosofia do direito e a sociologia — tais são as três grandes manifestações da consciência jurídica contemporânea. A cada uma destas grandes doutrinas será dedicada uma seção especial neste livro.

Fonte:
CONSCIÊNCIA:.ORG
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