gravado em 23 de maio de 2014.
narcisismo e depressão,
com teresa pinheiro – confira o vídeo na íntegra
Narcisismo e depressão: “O olhar do outro define quem eu sou”
Em um período de perda da
subjetividade, selfies e Big Brother são exemplos de que é preciso
“provar” o tempo todo a própria existência, afirma a psicanalista Teresa
Pinheiro durante o Café Filosófico CPFL
No mundo atual, não basta estar vivo: é preciso reafirmar a existência. “É como se precisássemos de provas de que existimos. Essas provas podem ser desde malhar cinco horas e chegar morrendo de dor para saber exatamente onde terminam os nossos músculos, como podem ser os ‘selfies’”, afirmou a psicanalista e pesquisadora da UFRJ Teresa Pinheiro durante o Café Filosófico CPFL que aconteceu no dia 23 de maio. (vídeo na íntegra abaixo)
“O selfie é uma forma de alimentar o olhar do outro e fazer com que o outro saiba que você visitou Estocolmo ou que você abraçou o Mickey. Como eu só existo pelo olhar do outro, eu preciso que o outro me veja o tempo todo e diga: “a foto com o Mickey ficou legal”, disse a especialista na palestra sobre “Narcisismo e depressão”, parte do módulo “O sofrimento humano nos tempos atuais”, sob curadoria da psicanalista e professora da UFRJ Regina Herzog.
Em sua apresentação, Pinheiro definiu o “ser narcísico” como alguém com “pele de criança e garra de gavião”. “Ele pode ser agressivo, mas é hipersensível. Quanto mais sofre mais arrogante fica. Até que ele não aguenta o sofrimento.” A partir de sua experiência com jovens depressivos, a palestrante relatou haver uma característica comum entre eles: tinham poucas lembranças do passado e pouca projeção do futuro.
“Para eles só existia o presente.
E uma narrativa muito imagética desse
presente.”
A ausência dessa narrativa contínua, analisou, coincide com um período de perda da subjetividade do individuo, resultado das transformações sociais acumuladas nos últimos anos e da dissolução de referências. Sem essa narrativa, explica, o adolescente passa a relacionar a imagem do “homem de sucesso” como um produto do acaso. “Para alguns pacientes, a fonte de angústia e da depressão é que tudo está fora deles, e tudo passava pelo olhar, pela imagem. Que imagem eu tenho? Como o outro me vê? O que eu posso suscitar no outro? É algo que não sei o que é, mas que me é fundamental. O que esse outro vê, como ele me vê e o que eu suscito nele é o que eu sou. Isso é o avesso da interioridade.”
Confira os principais trechos da palestra:
Mudanças e perda de referências
O mundo mudou de forma radical e numa velocidade sem precedentes, sobretudo a partir do surgimento da pílula anticoncepcional, que desarticulou a sexualidade da ideia de procriação. Isso revolucionou a relação do sujeito com a sexualidade, principalmente as mulheres. A partir de então o movimento feminista passou a lutar para que as mulheres tivessem liberdade, mas não foi inventado um novo homem. Ele é acusado machista, mas não se sabe qual homem seria o modelo ideal da contemporaneidade. Os homens, por sua vez, não foram à luta para inventar este modelo.
Antes as referências externas eram muito estáveis. O sujeito entrava na firma como boy, ficava lá por 35 anos, subia, e a história dele era a história desse trabalho. Minha avó, por sua vez, sabia o que era ser uma boa mãe, uma boa esposa, uma boa filha, mesmo que ela não fosse. Esses conceitos eram muito fechados. Num determinado momento, isso se perdeu, porque esses conceitos estavam amarrados a um tipo de relação com o tempo, de família e produção, que mudou. E as referências passaram a ser internas. O que é certo e o que é errado se tornou uma questão individual. Com isso, a ideia do coletivo se esfacela, e isso não é culpa da internet. A internet democratizou muita coisa. A informação deixou de ser algo pertencente a uma elite X, Y e Z. Todo mundo tem direito. A relação com o tempo é a consequência da relação com o tempo que mudou. A ideia de saudade e de reencontro mudou. Você encontra pessoas que você não via há um tempão pelo Facebook. Você não perde as pessoas de vista. Ao mesmo tempo, não é preciso mais ter memória. Essa ideia do intelectual que acumula saber não existe mais. A ideia de acumulação do saber desapareceu. Pra que decorar conhecimento? Não é preciso, desde que tenha um bom smartphone.
Transtornos da contemporaneidade
Os transtornos são uma reação a um tempo, como era a histeria em um tempo da repressão ao sexo. Hoje é uma reação à pressão pela espontaneidade. A depressão, a inibição, as fobias sociais são uma reação a isso. Os sintomas dessa época são os sintomas da oposição a essa exigência da sociedade.
Jovens sem dimensão do futuro
O adolescente acha que a imagem do homem de sucesso vai cair do céu. Para ele, é algo que simplesmente acontece, e só depende de sorte, ou se ele é bonitinho ou se está bem arrumado. E, como o futuro não acontece no dia seguinte, ele se deprime. Para ele o tempo é algo intervalado. É uma sucessão de fatos. E acontecem independentemente deles. Ele não é o agente da própria vida, do próprio destino. É só alguma coisa que pode dar certo ou pode dar errado. (…) Quando voltei da Europa, comecei a atender jovens e percebi que eles eram levados por uma grande angústia. Tinham uma crise de ansiedade ou estavam muito deprimidos. Me chamava a atenção o fato de que, para eles, não havia dimensão de futuro. Do passado eles se lembravam pouco. Tinham uma ideia aqui, uma imagem ali, mas nada muito valorizado. Existia o presente e uma narrativa muito imagética desse presente. E me perguntava se a psicanalise serviria para essas pessoas. O modelo de histeria não servia.
Nosso bebê, nosso herói
Era preciso pensar em uma alternativa. Foi quando recorri a um texto de Freud, de 1914, chamado Introdução ao Narcisismo. No fim do texto, ele fala sobre Sua Majestade, o Bebê. Segundo ele, o bebê é investido de figuras parentais. É ele quem vai indenizar os pais. “Ela vai ser a princesa, ele vai ser um heroi”. E vão cumprir um projeto dos pais, vão passar pelas dificuldades incólumes, como eles não passaram. Isso cria uma onipotência narcísica, um bebê que cresce achando que pode tudo, e que é falado o tempo todo pelos pais, não só sobre o que vai ser no futuro, mas terá atributos: tem a testa do tio, o mau humor da vó. Vai ser, enfim, um bebê falado. Mas ele é um bebe que não fala. Vão dizer coisas dele que ninguém sabe se ele são verdades. Ele é, portanto, um bebê inventado. Freud afirma, assim, que a subjetividade humana é inventada pelos adultos. Inventa-se a possibilidade de se projetar no futuro, como alguém que se desenvolve, como um personagem de Shakespeare. Mas e quando isso não acontece? Será que no mundo de hoje a gente consegue idealizar TANTO uma criança? Ou já fomos tão marcados pela limitação do prazer que a gente sabe que essa projeção é impossível? E o que isso acarreta de diferença daquele bebê que ia ser um heroi? O heroi representa algo para nós? Tem algum valor? A princesa não tem nenhum…
Corpo e exterioridade
Quando Freud fala dessa criança onipotente, ele diz: os pais vão ter de cortar as asas delas em algum momento. Se a criança tentar pular da janela, vão aparecer 30 pessoas para dizer: “você vai morrer”. Pronto: acabou a onipotência. E a criança percebe que ela é mortal. Essa consciência, nessa hora que a gente se percebe mortal, faz a gente entrar na roda do tempo. É a hora que a gente se dá conta de que a gente tem uma vida. Quando usei a ideia de narcisismo, a hipótese é que este saber eu só suporto se for transitório. Para poder lidar com isso, vamos criar uma série de mecanismos. E vou pensar: lá na frente eu vou ser o que eu quero. Vou morrer, ok, mas vou conseguir isso, construir aquilo. E vou pensar que, tempos atrás, eu fui uma criança que teve uma porção de coisas. Mas, nos pacientes, percebi duas coisas distintas. Para parte deles, essa construção narcísica não foi feita. Então o sujeito não tem esse bebê onipotente a quem possa recorrer na hora de desespero. Ele nunca foi inflacionado (de perspectivas adultas).
O segundo caso é a ideia da depressão de “alguma coisa que eu perdi daquilo que eu fui e que eu não sei onde eu perdi que eu não sou mais”. É a ideia do sujeito do “eu fui uma criança espontânea, feliz, eu tinha um brilho que eu perdi. E eu não sei aonde eu perdi e quando eu perdi”. Quando voltamos a essas questões narcísicas atuais, percebemos que falta uma narrativa sobre as próprias emoções. Há uma dúvida sobre o que é amar, o que é paixão, o que é tristeza, o que é ansiedade. A maior parte vai parar no cardiologista. Acha que o que sente é o coração, que vai ter um infarto. Esse corpo não pertence a ele. Ao mesmo tempo, essas pessoas só falavam do corpo, da doença, do músculo que doía, do coração apertado. É um corpo estranho a eles, separado da mente. Eles falam sobre este corpo com a maior exterioridade.
Eu, projeção do outro
A fonte de angústia e da depressão, para alguns pacientes, é que tudo estava fora, e tudo passava pelo olhar, pela imagem. Que imagem eu tenho? Como o outro me vê? O que eu posso suscitar no outro? É algo que não sei o que é, mas que me é fundamental. O que esse outro vê, como ele me vê e o que eu suscito nele é o que eu sou. Isso é o avesso da interioridade do personagem shakespeariano. Esse eu passou a estar fora de mim. É alguém que afirma quem eu sou que passa a deter toda a verdade daquilo que eu sou. E eu não tenho eco interno pra rebater isso.
Esse personagem shakespeariano, preocupado com o que ele é, passa a ser o personagem preocupado com a imagem que ele tem.
Antidepressivos e o medo de sofrer
Em 2011, a Organização Mundial da Saúde publicou um relatório em que previa que até 2020 a depressão seria a segunda maior causa de incapacidade no mundo. Só perderia para a isquemia cardíaca. Dos deprimidos, de 15 a 20% cometeriam suicídio. São dados catastróficos. Esse relatório não é exagerado. A medicação é um recurso, mas há uma procura abusiva. A gente vive uma época de remédios. Toma-se zinco, vitamina D…não é preciso nem ver o Sol. Os antidepressivos passaram a servir para tudo, até pra emagrecer e para curar dor muscular. Todas as tristezas são chamadas de depressão. É feio ficar triste. (…) Tem alguma coisa que é excessiva, ninguém quer sentir mais nada. Tem quem busca tratamento para superar a dor do pai que morreu aos 80 anos. É natural que ele fique triste, mas se der pra passar batido pela dor das perdas…que passe.
Alteridade ou barbárie
Em algum ponto da virada dos anos 70 e dos 80 pra cá se perdeu a ideia de bem comum. Só podemos pensar em pertencimento se pensarmos na ideia de bem comum. Só vamos nos colocar no lugar do outro quando imaginarmos o outro no nosso lugar. Quando rompo com a ideia de alteridade, entro na barbárie. Eu posso matar uma barata porque ela não tem subjetividade. O gato de casa tem subjetividade. Ele sente, sofre, se alegra, fica triste. Eu empresto toda a minha subjetividade a ele. Quando eu não empresto, eu posso matar. E posso fazer coisas horrorosas. O regime escravocrata foi montado nisso, na ideia de que o negro não tinha alma. Na Segunda Guerra Mundial foi a mesma coisa: os inimigos não são meus iguais, são diferentes.
Selfie
A gente passa por um período em que é preciso reafirmar a existência. É como se a gente precisasse de provas de que a gente existe. Essas provas podem ser: malhar cinco horas e chegar morrendo de dor porque eu sei exatamente onde terminam todos os meus músculos e eu existo. E podem ser os selfies. O selfie pode ser alimentar o olhar do outro. Com ele o outro vai saber que você visitou Estocolmo, que você abraçou o Mickey. É como se, com o outro sabendo, eu realmente tivesse feito. É uma segurança de que eu sou eu. Eu existo mesmo, não sou uma miragem.
E só existo pelo olhar do outro, e preciso que o outro me veja o tempo todo e diga: “a foto com o Mickey ficou legal”.
Big Brother
Uma vez me chamaram para falar sobre Big Brother, e isso me levou a assistir ao programa pela primeira vez. Por sorte, era uma final, ou semifinal, e eu fiquei impressionada com o quanto aquelas pessoas choravam. Tinha um quê de teatralidade naquilo: era preciso chorar muito para que os outros vissem que eles tinham emoção. Então, todos choram. Mas o que mais me impressionou foi que botaram uns eletrodos nos sujeitos para o (Pedro) Bial falar: “seu batimento está em 126. Sua emoção é muito grande”. Eu fiquei petrificada com aquilo. É como se a emoção, que não tem nome, tivesse um batimento cardíaco. É o que vai dizer que aquele sujeito sente alguma coisa. No fim, fiquei me perguntando se de uma maneira desajeitada o Big Brother não teria a função de dar nome a essas coisas. “Para você acreditar, eu mostro o batimento cardíaco pra mostrar que você definitivamente é uma pessoa que sente coisas. Não é ficção: isso está medido milimetricamente. Pode ter certeza de que você é um sujeito de emoções”. E aquelas pessoas, ao precisarem mostrar as suas emoções, nos faz pensam que elas não têm. São pessoas que têm a expectativa de sair de lá como pessoas de emoção, que sentem raiva, ciúmes, que ficam ofendidas, que são raivosas, capazes de se vingar. Coisas que, a principio, seriam banais.
Solidão e arrogância
É um sofrimento avassalador imaginar que você só pode contar com você. E que, se você pedir ajuda, você vai fracassar. Isso é de uma solidão…e é o grande termômetro dessa época. Podemos combater isso ensinando que a convivência com os outros pode ser prazerosa. Assim a ideia de solidão diminui. Todo mundo quer ser gostado, mas é como se as pessoas tivessem se esquecido disso. Uma pessoa que não estabelece contato, que não imagina que o outro pode ser parecido com ela, que está montada na solidão, se torna uma pessoa solitária e arrogante. E o sujeito arrogante é muito desagradável. O retorno é que as pessoas não vão gostar disso. Isso leva o sujeito a agir com agressividade. Esse ser narcísico é um ser com garras de gavião e pele de criança. Se você disser “isso”, ele desmonta. É um hipersensível. E isso faz com que ele esteja fadado a um grande sofrimento. Quando ele cai, ele volta geralmente mais arrogante. Até que, chega uma hora, ele não aguenta mais.
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Fonte:
CPFL- Café Filosófico
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