quarta-feira, 30 de março de 2011

TRATADO DO BELO - Introdução - EVALDO PAULI



Apresentacao - Cap. 1

ENCICLOPÉDIA SIMPOZIO

TRATADO DO BELO.

      INTRODUÇÃO AO TRATADO DO BELO.
0764y005.


Evaldo Pauli


      6.   
"O belo desfila todos os dias diante de nós.
            Ele nos seduz nas colinas quando coroadas pelo sol matutino.
            Está nos trêfegos regatos a descer das encostas.


            Habita nas flores.
            Brilha nas pedras preciosas.
            Ornamenta as porcelanas.
            Aviva as vestes festivas.


            O belo vive também 
na mocidade elegante 
que sai a passeio 
e ingressa nos salões.


            Este desfilar das coisas belas 
nos diz que também a vida é bela."


Evaldo Pauli .

    7. O filósofo e o cientista experimental estendem e aprofundam sistematicamente a contemplação do belo. Não somente se limitam a observar e apreciar o belo, mas ainda se aplicam a esclarecer o que ele é. Dilata-se, então, o significado do belo para noções progressivamente mais amplas, até ao espaço imponderável da metafísica, onde muito se expande o saber, ainda que pouca seja a segurança de vôo nesses espaços imponderáveis aos quais nos aventuramos.

    Que seria o belo em si mesmo? Uma tentativa metafísica (ou seja, uma das hipóteses), reza o seguinte: o belo é o ser enquanto se destaca como perfeição.

     Equivale, em outras palavras a dizer: o belo é a perfeição em destaque.

     Ou, com alguma nuance: o belo é o esplendor da forma.

     Então a palavra forma equivale à essência, e já dizemos: o belo é o esplendor da essência da coisa.

ART. 1-o. OBJETO OU TEMA DO TRATADO DO BELO.

    9. Método. Mas, antes de estender e aprofundar tão extraordinariamente a contemplação sobre o belo, importa determinar como se fazem a extensão e o aprofundamento. Importa, antes de tratar da coisa em si mesma, cuidar de uma preliminar meramente formal, com uma introdução à ciência que há a fazer.

    Esta consideração meramente formal, antes de passar à investigação em si mesma, se destina precisamente a informar sobre o próprio investigar.

    Então se garante a sistematicidade da referida contemplação do belo. Este cuidado prévio com a lógica da investigação se denomina Introdução ao Tratado do belo, olhando-o como que primeiramente a partir de fora.
    
    Na introdução se antecipam todas as questões, principalmente sobre o objeto estudado, para bem entendê-las, sem ainda decidir sobre elas.

    Para cada ciência há uma introdução, e todas são feitas pela lógica, de que o método é uma parte importante.

    A lógica é a ciência das ciências, porque as ordena internamente, definindo o objeto de que trata, orientando suas divisões e classificações, mostrando como se prova.

    Paradoxalmente, pois, a introdução não pertence à ciência à que introduz; diz simplesmente o que à ciência, em que introduz, cabe fazer e como há de fazer este fazer. Trata, pois, de qualquer ciência, todavia só de maneira meramente formal.

    10. A Introdução nos leva de pronto a uma terminologia sofisticada, que, por meio de abstrações sucessivas distingue entre objeto material (ou concreto) e objeto formal (ou ponto de vista abstrato, colhido para ser examinado como objeto específico de uma ciência).

    Há, por exemplo, a coisa concreta bela, ou seja o belo concretizado e individualizado (aqui se trata do objeto material). Este objeto material ainda não está desvestido de nada, que a abstração lhe retire. É o belo como desfila todos os dias diante de nós: o belo das flores dos jardins, o belo das aves do céu, o belo da juventude que passeia.
    
    Uma primeira abstração chamada total, separa o belo de suas individuações, passando do individual ao universal; temos então o belo enquanto tal (ou o belo em geral), porque a abstração total o separou da totalidade dos seus indivíduos. Podemos dizer que nesta primeira abstração, - a total, - o belo já deixou de ser concreto.

    Contudo, depois desta primeira abstração (chamada total), continuamos ainda no plano do objeto material, embora já com o título de objeto geral; neste sentido se diz que a ciência cuida do universal, por exemplo, da planta em geral, e não desta ou daquela planta. Portanto, o Tratado do belo trata do belo universal.
    
    Uma segunda modalidade de abstração, denominada formal (ou essencial), subdivide o objeto universal em perspectivas internas ao mesmo universal, podendo cada perspectiva ser objeto formal de distinta ciência.

    Dividir internamente um objeto, pela abstração formal, significa redividir a forma universal (que já está sem sujeito). Separando umas formas de outras, resultam diferentes perspectivas. As mais gerais se denominam objetos de ciências específicas, e as menos gerais constituem partes destas ciências.

    Nosso objetivo agora é determinar sob que perspectiva específica se pergunta pelo belo, como tema abordado pela metafísica, enquanto distinto das perspectivas que outras ciências buscam no mesmo belo. A pergunta da metafísica do belo não é, por exemplo, a mesma da psicologia do belo.

    11. Ciências do belo. Observando as belezas concretas, as ciências ampliam, portanto, a visão, desvinculando-se primeiramente das individuações (pela abstração total) e a seguir, detalhando o seu exame (por meio da abstração formal), indagam separadamente todos os aspectos específicos que o objeto belo apresenta:

    - metafísico (Tratado metafísico, ou gnosiologia e ontologia do belo);

    - psicológico (Tratado psicológico do belo ou Estética psicológica do belo

    - moral (Tratado moral do belo);

    - educacional (Tratado educacional do belo);

    - cultural (Tratado cultural do belo);

    - social (Tratado social do belo);

    - sociológico (Tratado sociológico do belo);

    - artístico (Tratado artístico do belo, ou o belo na arte);

    - técnico (Tratado técnico do belo);

    - industrial (Tratado industrial do belo)

    E outros mais aspectos, como o belo no folclore, na moda, no arranjo pessoal, inclusive salão de beleza, com os respectivos Tratados. Como depois se insistirá, a metafísica do belo trata do belo como um aspecto entitativo do ser, e não apenas como algo cujo efeito é ser agradável.

    Convertidas a filosofia, a ciência experimental e a técnica em instrumentos de clarificação do belo, nos seus mais variados aspectos, tornam-se belas a própria filosofia, ciência e técnica.


    12. Uma disciplina de saber. O estudo do belo não é um tratado no sentido de ciência autônoma. Ele é parte integrante de uma ciência maior, ou de várias ciências maiores, da qual ou das quais é recortado, em virtude da importância do tema. Então se torna uma disciplina de saber, em vista de se dar um desenvolvimento maior, com uma organização didática particular. O mesmo acontece com outros temas da filosofia e ciência, os quais, pela sua importância se desenvolvem didaticamente como disciplina.

    Estudado o belo do ponto de vista meramente metafísico, a respectiva disciplina se diz adequadamente Metafísica do belo. Dividida a metafísica em gnosiologia e ontologia, vale também dizer Gnosiologia e ontologia do belo.

    13. Por ênfase, chamamos sobretudo à metafísica do belo, pela expressão Tratado do belo. A rigor, também as outras disciplinas sobre o belo são denomináveis Tratados do belo. Mas dentre todas assume particular destaque a Metafísica do belo, que por isso é enfaticamente O tratado do belo.

    Eventualmente, no texto presente cuidamos, mas somente de trânsito, também da psicologia do belo, ou seja, do belo enquanto se apresenta como esteticidade. Mais amplamente a Estética psicológica (vd 1965y000) trata de todo e qualquer sentimento estético, de que o do belo não é senão um detalhe.

    A esteticidade do belo não é um elemento da essência do belo, todavia uma sua propriedade muito peculiar. A unidade ocorre apenas através do mesmo objeto material, - o belo, - e não do ponto de vista, que, num caso é metafísico, noutro é psicológico.

    Pelo visto, da sistematizada contemplação do belo resulta um desdobramento abstrativo, que deixa à cada ciência específica o seu ponto de vista. Neste caso ocorre um único objeto material, todavia uma pluralidade de objetos formais, ou seja essencialmente específicos.

    Há um único ponto de partida concreto, denominado o objeto material, - que não é senão aquele belo que desfila todos os dias diante de nós como realidade nas mais diversas coisas. Mas os objetos formais são muitos, de acordo com a perspectiva específica de cada ciência a se ocupar com o belo. O objeto do qual queremos particularmente nos ocupar neste Tratado do Belo, é metafísico (dito também ontológico).

    14. O ser do belo. Em principio, a metafísica trata do aspecto de ser das coisas. Não há metafísica sem ser. Portanto, perguntamos, que é o belo como ser? Seria um elemento de essência do ser, ou seria apenas um propriedade, ainda que intrínseca?

    A pergunta está na mesma direção de quem indaga, que é o bem? que é a verdade? que é ser uno? que é existir? Portanto, a Metafísica do belo tem como objeto a natureza do belo simplesmente como sendo aquela coisa que assim se apresenta e nos desperta a pergunta.

    15. Acaso existe um ser das coisas, para que a metafísica pergunte por ele e por suas propriedades?

    Eis o problema que divide racionalistas e empiristas.
 
    O ser, ainda que seja alcançado pela experiência empírica, não o é diretamente como ser, - dizem uns. Outros, - Aristóteles, por exemplo, - asseveram que a própria experiência alcança o ser, ainda que seja apenas o ser do sensível, a partir do qual a inteligência toma o caminho para o ser em geral, ainda que a este apenas. Enfim, os racionalistas mais radicais, - Platão, Agostinho, Descartes, - querem ter alcançado diretamente o ser em geral. Como provar, esta ou aquela posição?

    É a metafísica a única ciência que deve provar seu próprio objeto. Por isso a metafísica principia pela gnosiologia. Somente depois, de acordo com o que tiver provado na gnosiologia, poderá a metafísica continuar, fazendo uma ontologia.

    Pelo visto, a tarefa do Tratado do belo passa por momentos dramáticos, nos quais importa muita capacidade dos filosofantes. A gnosiologia decide sobre a ontologia e ao mesmo tempo sobre a metafísica do belo.

    16. O tema gnosiológico, em que apenas nos introduzimos, constitui o eixo central do primeiro capítulo do presente Tratado do belo. Para lá também transferimos vários elementos meramente introdutórios à gnosiologia do belo.

    Atentos de imediato à redivisão da metafísica em gnosiologia e ontologia, primeiramente há a justificar as condições gnosiológicas do belo como objeto de conhecimento; depois de realizado este suporte gnosiológico do acesso ao ser, inclusive do ser do belo, poderemos seguir em frente, situando-nos no ponto de vista do ser em si mesmo, e portanto do belo em si mesmo. Portanto, como parte da metafísica (ou ontologia), o Tratado do Belo é cativo da metafísica em que o tratadista se situa.

    Segundo Kant, mas que tudo não passe de apriorismos mentais, importa estudar a estes, para entender como se dá toda esta parafernália dos procedimentos mentais. Quer as coisas do belo existam na coisa real em si, quer seja apenas um apriorismo, em qualquer dos casos ele pertence à condição humana.

ART 2-o UM POUCO DE HISTÓRIA DO TRATADO DO BELO.



    18. Desde a antiguidade grega muito e sempre se escreveu sobre todos os aspectos do belo, mas principalmente sobre as propriedades do belo, como proporção e harmonia, bem como de sua ação estética.

    O objetivo prático evidentemente prevalecia, no sentido do fazer belas as coisas, quer as simplesmente úteis, quer as de expressão artística, o que equivalia dar-lhes correta proporção e harmonia.

    A metafísica do belo foi tema apreciado dos grandes filósofos clássicos, e assim também dos grandes nomes da filosofia moderna.

    A bem da verdade, os tratados do belo poderiam ser mais breves, se não houvessem ocorrido tantos acidentes de percurso. Assim sendo, o tratado do belo ficou sendo uma espécie de tratado de exercício de coisas intrincadas. A história apresenta quais foram estes acidentes de percurso.

    19. Platão (427-347 a.C.) ocupou-se com a arte e o belo nos diálogos menores Ion e Fedro; nos maiores, em algumas passagens de República e Leis.

    Situou Platão o belo no ser metafísico, concebido por ele sobretudo como idéias reais arquétipas. O mais era sombra. Tornou-se famosa a sua invectiva contra a arte. Interpretando-a como expressão sensível, achava dever preteri-la em favor da contemplação das idéias reais transcendentes. Aliás por razões análogas, no futuro, Hegel fará da arte apenas um estágio da dialética do Espírito, a ser superado por um momento superior seguinte.

    Quanto ao belo em si mesmo, a doutrina de Platão sobre os arquétipos contém em embrião a essência de todos os sistemas de metafísica do belo. Inclusive Kant, apesar do seu apriorismo sem objeto real, fez do belo uma noção que se diz das coisas em relativo, enquanto estas se dizem perfeitas em função a um tipo arquétipo ideal ao qual em seu ser se ajustam.

    20. Aristóteles (384-322 a.C.), criou uma metafísica racionalista moderada favorável ao desenvolvimento de uma consistente filosofia do belo. Todavia não se ocupou muito com a questão. Havendo introduzido a distinção entre predicação unívoca (de estratos entre si isolados, como nas categorias do ser) e predicação analógica (observada em ser, uno, verdade, bom, belo), introduziu ordem sistemática na classificações dos conceitos.

    Com este trabalho abriu caminho para caracterizar futuramente com mais detalhes o belo, uma das noções transcendentais derivada das transcendentais fundamentais.

    Ainda que Aristóteles, contra Platão, negue o realismo dos arquétipos platônicos, conserva contudo um fundamento ontológico dos universais nas coisas individuais. Somente as coisas singulares são reais, todavia obedientes à universais nelas mesmas fundadas, como leis que lhes são imanentes. Para Aristóteles há, pois, essências, ou leis, sem que estejam fora das coisas.

    Tais doutrinas as enunciou nos tratados conhecidos depois por Órganon e Metafísica.

    Sobre a arte foi Aristóteles mais específico em Retórica e em Poética, onde discute noções sobre o belo e seus efeitos estéticos. Finalmente em Ética a Nicômaco estudou a felicidade que resulta do saber, o que constitui aproximação com a estética, a qual não é senão o prazer ocasionado pela expressão da arte.

    21. No período helênico-romano desenvolveu-se o estudo da estética literária, juntamente com a gramática. São apreciáveis os escritos teóricos de Cícero (106-43 a. C.), Horácio (65- 8 a.C.), autor de uma Poética, ou Epistola aos pisões

    Quintiliano (35-96) é um notável autor antigo de uma Instituição oratória, que entretanto passou a ter influência sobretudo a partir da redescoberta deste escrito em 1415.

    Plotino (205-270), já adentrado no período helênico-romano, é um eminente metafísico neoplatônico, havendo escrito um Tratado do Belo (arrolado nas Enneadas I, 6). Em sua visão monista coloca no alto o Uno supremo, partir do qual emanam o logos, a alma do mundo, as almas individuais, finalmente a matéria, prevalecendo o exemplarismo do superior sobre o inferior.

    Longino (213-273) escreveu um Tratado do sublime (traduzido ao francês por Boileau).

    22.Os primeiros filósofos cristãos, até o final do século 12, se imbuem das idéias platônicas e neoplatônicas, consequentemente de alguns de seus conceitos sobre o belo.

    Agostinho de Hipona (364-430), primeiramente um retórico, fez ponderações apreciáveis sobre o belo.

    Dionisio (o Pseudo Dionisio Agreopagita) (sec. 6-o), autor consagrado de Sobre os nomes divinos (original em grego), contribuiu para o mesmo fim.
    
    23. Na Idade Média o desenvolvimento da metafísica ensejou o clima próprio para o estudo do belo, ainda que não o tenha exaurido (Cf. Edgard de Bruyne, Études d'Esthétique médiévale, Bruge, 1946, ed. esp. Gedos, Madrid, 1958). Este clima se estabeleceu, porque então se deu particular importância à classificação e estudo das noções transcendentais, constituídas pelo ente e suas propriedades mais fundamentais.

    Felipe o Chanceler (Philipus Chancelarius) (c. 1170-1236) arrolou a primeira vez uma lista de quatro transcendentais: ens, unum, verum, bonum. O que em Aristóteles já fora tratado dispersivamente, ganhou agora organicidade.

    O belo como transcendental encontrou um dos seus principais pontos de partida em Guilherme de Auxerre. Este, por volta de 1220, escreveu: idem est in substantia eius bonitas et eius pulchritudo (Summa Aurea II,9,4).

    De Alberto Magno (1206-1289) cita-se importante opúsculo: De pulchro et bono. Nele trata do belo em si mesmo e de seus "oito modos".

    Tomás de Aquino (1225-1274), em seu De veritate (I,1) criou uma sistemática das noções transcendentais, as quais, segundo ele, seriam: ens, res, unum, aliquid, verum, bonum.

    Oportunamente deveremos voltar a esta questão, porque nela se inserta a questão do belo. Embora Tomás de Aquino se refira em variadas ocasiões, ainda não insistiu em sua natureza, senão ligeiramente. Sua posição inteletualista e que, em última instância faz reduzir o belo ao verum se encontra na frase em que assevera que "o bem diz respeito apropriadamente ao apetite... O belo, porém, à potência cognoscitiva" (Suma Theologica I; q. 5, a. 4., ad 1).


    24. No fim da Idade Média e Renascença aconteceu o desenvolvimento das artes e estudo das línguas clássicas, além das modernas, ao mesmo tempo que o surgimento do classicismo. Avolumou-se a literatura que trata do estético artístico e do belo em si mesmo. Continua, entretanto, o acento na direção do belo artístico e não do belo simplesmente.

    O classicismo do final da Idade Média, da Renascença e dos primeiros séculos modernos (cartesianos) produziu uma estética, que teve por ideal o tipo da espécie e não o indivíduo, ainda que se trate de tipos humanos.

    Tais são as Poéticas de Scalígero (1484-1558), Castelvetro (1505-1571), Patrizzi (1529-1597), que inspiraram o classicismo italiano.

    Sobremaneira se destacou o poeta Nicolas Boileau (1636-1711), que ao mesmo tempo foi o teórico do classicismo francês, através de sua Arte poética (1674).

    25. Os primeiros modernos a versarem de um modo novo os temas do belo são os moralistas ingleses.

    Citam-se Shaftesbuy (1661-1713), autor dos Characteristics (5-a ed. 1732); Hutcheson (1694-1746); Hogart (1697-1764), autor de Philosophical inquiry into the origin of our ideas on the sublime and beautiful (1756), traduzido por Lessing ao alemão em 1773.

    De uma parte, não cedendo embora às tendências empiristas, e de outra não aderindo aos excessos racionalistas, mantém-se numa linha de centro, de acordo com uma velha tradição platônica medieval, resistindo mesmo ao aristotelismo tomista. Abrem caminho pelo que denominam de bom senso (ou senso comum), quer para garantir e explicar a moral, quer para esclarecer sobre a natureza do belo.

    Distinguem geralmente entre o belo e o sublime, colocando a este último acima do primeiro. Influirão sobre a estética alemã.

    26. Com a expansão da filosofia alemã no século 18, surgem também inovações para a filosofia do belo e da arte, inspirando todo o período romântico.

    Primeiramente se fez notar Alexandre Baumgarten (1614-1762), marcando uma nova orientação em filosofia, ao interpretar o belo como sensível. Aliás, foi neste contexto do sensível, que Baumgarten inventou o nome Estética. Publicou Meditationes philosophi de nonnullis ad poema pertinentibus (1735) e Aesthetica sive theoria iberalium artium (1750-58). Foi esta última republicada em fac-símile (1961, Hildesheim).

    Emanuel Kant (1724-1804), depois de haver publicado a Crítica da razão pura (1781) e a Crítica da razão prática (1788), veio ainda com uma Crítica do juízo (1790), visando tratar dos juízos que enunciam algo sobre os objetos vistos como um todo, entre os quais situa os juízos estéticos. Mantido o caráter fundamentalmente sensível do belo (como em Baumgarten), discute o valor dos arquétipos, em função dos quais verdadeiramente algo se diz belo.

    Hegel (1770-1831) mais uma vez introduz novidades no estudo do belo, com sua volumosa Estética (póstuma). Mas agora se ocupa especialmente da arte, quando em Kant o centro fora o belo.

    27. Ora cá, ora lá, continuam as especulações metafísicas dos modernos sobre o belo, acrescidas ainda das experimentais e histórias da arte.

    A tendência positivista do final do século 19 reteve-se nos aspectos empíricos do belo, como os efeitos de satisfação por ele criado. Então o belo já não é determinado como sendo tal, senão pelos seus efeitos. Os conteúdos metafísicos do belo são refutados como sem sentido. Com o afastamento da metafísica dos meios positivistas, ou neopositivistas, ficou lugar apenas para a estética psicológica do belo (compreendida a psicológica experimental) e a estética do artístico (de novo a experimental).

    Em princípio, a psicologia experimental é por si mesma um saber válido, independentemente de se admitir ou não a psicologia especulativa e a metafísica.

    28. Mas, enquanto o empirismo criou seu campo de praticantes, também se mantiveram firmes as demais correntes filosóficas, sejam as do tipo intuicionista, filosofia dos valores, filosofias fenomenológicas e existencialistas, sejam as do velho modelo ontológico aristotélico e platônico, ou escolástico renovado.

    O contemporâneo é sempre muito movediço (veja-se Raymond Bayer, L'Ésthétique mondiale au XX-e siècle, PUF, Paris 1961).

ART. 3-o. VALOR DO TRATADO DO BELO. 


    30. Conhecer e estudar sistematicamente o belo resulta em vantagens, e que se situam em vários planos.

    Primeiramente, vale o princípio geral que todo o conhecimento é em si mesmo valioso, enquanto nos agrada o conhecer. Agrada-nos sobremodo conhecer os objetos mais significativos e valiosos. Neste caso se encontra o belo, por ser qualidade aperfeiçoativa. Como já advertiu Aristóteles, o belo é o preferido. Em decorrência direta destaca-se o valor do Tratado do Belo, pois atenta para o belo e alarga o conhecimento sobre o mesmo.

    Ainda que o belo não fosse valioso em si mesmo, bastaria, para determinar sua importância, a atração que exerce. A curiosidade pelas coisas belas e a afetividade estética produzida induzem a fazer dele uma indagação.

    Enfim, todo o saber vale por si mesmo. É bom saber. E por isso é bom saber algo sobre o belo. É mesmo bom conhecer o seu contrário, o feio, porquanto destaca, pelo contraste, ao belo.

    31. O belo pré-artístico. Antes que surgisse a arte, o belo já existia. Muito antes de aparecer o homem sobre a face da terra para produzir a arte, já resplandecia o belo na luz dos astros, no colorido das auroras, no azul da abóbada celeste, nas noites estreladas, nas nuvens vagando no espaço, nas montanhas sinuosas, nas florestas verdejantes, nas flores coloridas, no zumbido dos insetos e canto dos pássaros, nos brutos das campinas, no rolar das ondas do mar. Imenso sempre foi o número das coisas belas, antes que a primeira obra de arte surgisse.

    Mesmo na arte, o som já pode ser belo, harmonioso, agradável antes de se transformar em música expressiva. Por isso, há na música muito do belo pré-artístico, antes da expressão musical propriamente dita.

    O mesmo pode acontecer com os materiais da arquitetura e da escultura, sempre capazes de serem belos em si mesmos, independentemente da expressão que passam a assumir. Sobretudo as cores são belas, mesmo quando nada expressam.

    A arte literária, sobretudo a poesia, também explora o belo da cadência dos sons e das rimas.

    Portanto, por toda a parte reina o belo nas coisas, mesmo antes que a arte as transforme em novas maravilhas.

    32. O belo como tema preferido da arte. Cresceu o belo da natureza ao surgir a arte. É a arte um esforço de expressão, em que umas coisas se tornam a representação de outras. E esta representação busca ser perfeita, ao mesmo tempo que prefere os temas perfeitos, isto é belos. É por si mesmo evidente, que a expressão artística busque ser perfeita e que prefira expressar o temas perfeitos, ainda que as circunstâncias à obriguem à universalidade dos temas.

    Sem ser ela mesma o belo, foi a arte sempre amiga do belo: tanto ela busca o belo na função do expressar com perfeição, como também o busca nos temas belos.

    Por causa desta dupla possibilidade de beleza da arte, acontece que o mais degradante dos temas, ainda que como tema possa não ser o belo, passa contudo a ter uma expressão bela, porque ao menos perfeita como expressão.


    33. Importa ainda conhecer o belo como um dos ideais de construção do homem, seja do homem como belo corpo, seja do homem como bela pessoa.

    Neste contexto surge o belo como um dos objetivos gerais da educação. A filosofia da educação, ao tratar dos objetivos gerais da educação, advertirá sobre este aspecto.

    Quando se toma alguma beleza em separado, esquecidas as outras, pode eventualmente acontecer que o belo, sobretudo na arte, por vezes conduz ao mau caminho. Então já não se trata da beleza artística por ser artística, e sim do tema que foi mau, e foi introduzido pela palavra, ou pela música, ou pelas artes visuais. Se entretanto abstrairmos do tema, aquela expressão poderá ter sido artisticamente perfeita. Se porém o próprio tema for bom, teremos a aliança do belo temático com o belo artístico. Se dentre os bons temas o próprio tema belo, a aliança havida será de beleza com beleza, isto é, do belo expressar e do tema belo.

    A tendência do artista não é apenas o expressar belamente, mas expressar um bom tema. E este poderá ser um tema instrutivo, um tema capaz de divertir, um tema curioso pela sua originalidade, enfim poderá ser um tema belo. Acontecerá então uma seletividade temática, desde os mais úteis até os mais belos. Ainda que o artista se preocupe em funcionalmente expressar-se belamente, o que verdadeiramente lhe importa é o tema.

    34. A arte pela arte é uma situação abstrata. Ninguém fala simplesmente para falar; fala-se para dizer algo de interesse temático. A arte pela arte, como simples virtuosismo funcional do bem expressar, é apenas um momento abstrato, tomado a um todo maior; cuida somente da arte pela arte o apreciador que faz a ciência da arte, a crítica da arte, a história da arte, porquanto cada ciência toma em conta um ponto de vista a parte.

    Pode a arte pela arte ser uma preferência de quem a aprecia; mas nunca é toda a arte. Aparentemente o cientista da arte, o seu crítico e historiador parecem conduzidos à indiferença moral; todavia, o estado deles é apenas o da abstração, porque na verdade simplesmente por definição não lhes cabe diretamente cuidar do conteúdo simplesmente em si mesmo; este já pertence a um outro setor, o da filosofia moral da arte.

    Conclui-se que, apesar da distinção entre o belo e a arte, é na arte, que,- ao mesmo tempo que busca ser bela, - muito se valoriza o belo.

    35. Quando se trata do belo e da arte como valiosos à educação, importa primeiramente o conteúdo belo e o conteúdo expresso pela arte; surge então o belo como a perfeição em destaque e a expressão artística como mensagem direta do tema. Não obstante, a expressão enquanto bela expressão também educa, porquanto excita o sentimento estético, em si mesmo apreciável e elevado.

    Schiller aborda a questão do belo como fator de educação, em sua 10-a carta Sobre a educação estética da humanidade (1795). Merece ser lido:

    "É verdade que já ouvimos, até o cansaço, a afirmação de que o sentimento educado da beleza refina os costumes, de modo que parecem desnecessárias novas provas.

    O apoio é dado pela experiência cotidiana, que mostra o bom gosto quase sempre acompanhado por clareza do entendimento, vivacidade no sentir, liberalismo, mesmo dignidade, enquanto o gosto inculto se apresenta de ordinário ligado a qualidades opostas.

    O apelo é feito, com toda a segurança, à mais educada das noções da antiguidade, na qual o sentimento da beleza alcançava sua evolução mais alta, e é feito, por outro lado, ao exemplo oposto, dos povos selvagens ou bárbaros, que pagam sua insensibilidade para o belo com seu caráter rude ou austero.

    Ainda assim, boas cabeças por vezes se lembram de negar o fato ou de questionar a justeza das conclusões tiradas. Não pensam tanto mal da selvageria de que se acusa os povos incultos, nem tanto bem do refinamento louvado nos cultos. Já na antiguidade havia homens que nada viam menos benéfico do que a bela cultura, inclinados, por isto, a vedar as artes imaginativas o acesso à República" (Schiller, Cartas, 10, p. 61, trad. R. Schwartz, ed. Herder 1963).

    Não desconhece Schiller o problema que se levanta por causa distinção entre o gozo pela beleza da forma e o conteúdo expresso:

    "Existem vozes dignas de atenção que se declaram contra os efeitos da beleza, armadas de atenção que se declaram contra os efeitos da beleza, armadas pela experiência terrível.

    É inegável, dizem elas, que os encantos da beleza, em boas mãos podem servir a fins louváveis; não lhes contradiz a essência, entretanto, quando, em mãos danosas, fizeram justamente o inverso, utilizando sua fascinação sobre as almas em favor do engano e da injustiça.

    O gosto atenta apenas na forma e nunca no conteúdo, e por isso conduz a ama ao perigoso pendor de negligenciar a realidade em geral e de sacrificar a verdade e a moralidade em favor de um vestimenta encantadora" (Ibidem, p. 62).

    36. Nem ignora Schiller a objeção do fato de que o florescimento das mais belas artes ocorreu por vezes em períodos de decadência.

    "Não temos um exemplo que seja de coexistência amistosa em um mesmo povo entre o alto grau de cultura estética generalizada e a liberdade política ou virtude cívica, entre os belos e bons costumes, entre a polidez do comportamento e sua sinceridade... O nosso olhar, onde quer que perscrute o mundo passado, verá sempre que gosto e liberdade se evitam e que a beleza funda seu domínio somente no crepúsculo das virtudes heróicas" (Ibidem, p. 63).

    Mas conclui otimista: "E ainda assim, esta energia de caráter, com cujo empenho se obtém a cultura estética, é justamente a mola com cujo empenho se obtém a cultura estética, é justamente a mola maior de tudo, quanto é grande e excelente no homem, cuja falta nenhuma outra virtude, por grande que fosse, poderia suprir" (Ibidem, p. 63-64).

ART. 4-o. OS NOMES DO BELO E DO TRATADO DO BELO. 0764y040.

    
    40. Um nome antecipa noções. Se ele ao menos aponta para o objeto, dele será um nome próprio, diferenciando-o das coisas denominadas por outro nome.
    
    O que ordinariamente leva a criar um nome para determinada coisa é uma característica ligada a ela e que a descreve.
    
    Advertiu-o já Aristóteles: "na maior parte dos casos, e mesmo quase sempre, o nome das coisas qualificadas é derivado da qualidade" (Categorias 10a 30).
    
    Por isso, conhecer um nome representa um início de informação. Tentemos, pois, acessar a noção do belo pela via de seus nomes.
   

      §1-o. Nomes do belo. 0764y041.

    
    41. O belo tem muitos nomes. Conhecer a todos abre um leque de sugestões sobre sua natureza.
    
    Mas o fato mesmo de ter o belo muitos nomes nos adverte, que ele é um fenômeno de caráter bastante genérico. Efetivamente o belo participa de outras e outras noções. Tanto importa conhecer estas relações, quanto não confundi-lo com elas.
    
    Além disto, importa não perder de vista a advertência de Aristóteles, de que os nomes costumam derivar de qualidades ou propriedades mais evidentes, e não do que é essencial ao objeto denominado; por isso, ao colhermos a informação vinda através do nome, não devemos logo identificá-la simplesmente com o essencial da coisa denominada.
    
    O belo, não obstante à costumeira superficialidade dos nomes, costuma ter contudo bons nomes. Essencialmente o belo é perfeição em realce; ora este caráter é quase sempre sugerido em seus nomes.
    
    42. Pulcher, -chra, -chrum é o adjetivo usual do latim para significar o que é belo. O substantivo é pulchritas, -atis, e também pulchritudo, -inis.
    
    Apresenta uma origem visual, portanto fácil para a transformação semântica. Deriva de perk-, raiz indo-européia com o sentido genérico de salpicado.
    
    No latim o vocábulo tomou a direção de belo, passando pelas formas perkros e perkr-, resultou em pulcher (= belo).
    
    No grego a radical indo-européia per- rumou para perkos = salpicado de preto), no alemão para Farbe (= cor, tinta), no russo para (krasotá) (= belo, beleza).
    
    De origem visual, portanto teorética, o termo latino pulcher se distancia bastante do de bellus (vd 43), derivado de um nome que significa relação estética de bem.
    
    43. No latim também ocorre bellus. Em outros tempos pouco usado, este nome passou contudo a ser o preferido nos idiomas neolatinos. Similar é o nome bonito.
    
    Belo e bonito, para significarem beleza, tiveram sua origem, na esteticidade afetiva e não na teoreticidade falante do belo. De dwenos saiu o latino bonus (= bom). Através de dwenollos chegou-se a bellus (= belo), menos usado que pulcher. Em português formou-se bonito, através de bom. O processo, em virtude do qual bonito saiu de bom, apresenta-se paralelo àquele em que bellus derivou de dwenollos e este de dwenos.
    
    Termo latino de obscura origem, faz com que estas denominações belo e bonito, tão frequentes na área dos povos latinos, não representem contudo valor semântico no restante vasto mundo cultural indo-europeu. Sem equivalentes na mesma linha etimológica, belo e bonito não possibilitam tradução espiritual perfeita aos idiomas fora da área das línguas neolatinas.
    
    O Esperanto aproveitou a raiz latina, para formar o adjetivo bela (= belo, bela) Dada a flexibilidade gramatical do Esperanto, o termo se tornou de uso eficiente para todos os fins da área em que deve oferecer significado, quer como adjetivo, quer como substantivo, quer como verbo e advérbio.
    
    No latim vulgar, derivando da mesma raiz, se formou bellitia, nas neolatinas belleza (italiano), belleza (antigo provençal), beleza (português).
    
    O curioso desta evolução semântica a partir de dwenos, dwenollos, bonus, belus, bellitia, é seu ponto de partida estético e mais do que isto, de um sentimento genérico, como é o de bom. Interpretamos o belo como um bem teorético da inteligência, enquanto a vontade assim o aprecia em favor daquela faculdade. Ora, sendo um bem, importava sob este pondo de vista denominá-lo a partir do mesmo vocábulo. Diante disto, a semântica nos está a sugerir que o belo, em virtude do mesmo nome, é um bem... E como se trata de um bem muito especial, passou a ter um nome distinto, - belo.
    
    Diante disto ainda, o belo se traduz, aproximativamente, por estético; pois dizemos estético aquele específico sentimento que o apetite exerce diante de um objeto que a vontade aprecia como um bem da inteligência. Entretanto, estético se apresenta mais universal, porque se diz tanto do estético-artístico, como do estético-especulativo, segundo o qual todo o conhecimento agrada, sobretudo do belo. Na verdade, o belo, do qual agora cuidamos, é o perfeito em destaque, nesta condição mais agradando que os demais objetos.
    


    44. São ainda nomes do belo, com nuances: decoro, decoração, ornamento, Ornato, enfeite. Todos indicam o belo de maneira peculiar e conhecida.
    
    Os nomes até aqui citados , - belo e similares, - têm o sentido semântico definitivamente firmado; ainda que originariamente possam sugerir outras qualidades, significam hoje o que diretamente entendemos por beleza.
    
    45. Outros vocábulos latinos indicam o belo apenas de modo genérico, cabendo ao contexto fixar a acepção exata. Referimo-nos às denominações como: elegância, brilho, esplendor, perfeição, fulgor, claridade, clareza, distinção, nitidez, evidência, integridade, perfeição, as vezes até inteligibilidade.
    
    Algumas das qualificações mencionadas se dizem também do conhecimento, que pode ser claro, evidente, distinto, nítido, esplêndido, brilhante. Sobre a análise etimológica destes qualificativos veja-se um tratado de gnosiologia (nosso Que é pensar? n. 105 ss).
    
    Há nomes que dizem belo só dentro de uma determinada área. Por exemplo, artístico para coisas bem feitas.
    
    46. Perfeição por si só não indica o belo. Está, todavia, como que na posição de gênero para a sua espécie. O sentido etimológico de perfeito (do latim per-fectum), derivado de perfazer, encontra-se ainda evidente. Sugere o acabamento, cuja feitura foi conduzida até ao fim, até a integridade. Lembra portanto a verdade ontológica, a idéia exemplar, portanto ao modelo arquétipo em função ao qual uma realização completa se subordina.
    
    A evolução semântica do termo, admite hoje que o perfeito não somente se diga da obra que se faz, ou se cria, mas também de um ser que se realiza dentro de um conceito absoluto. Neste sentido, o perfeito também se diz de Deus.
    
    O belo não diz respeito diretamente à noção do fazer. Por isso, o que já existe, embora não tenha sido feito, pode ser belo independentemente da noção do fazer.
    
    O belo é a perfeição enquanto se destaca do que é menos perfeito. Há, pois, uma distinção entre o perfeito e o belo.
    
    47. Elegância é um termo que realça precisamente a elevação do perfeito por entre o que o é menos. Diz respeito particularmente ao modo de portar-se das pessoas, de sua maneira de andar, de fazer gestos e da índole peculiar de se exprimir.
    
    O termo elegância toma origem na radical grega e latina leg-, com o sentido fundamental de colher, escolher, palavras estas que se formaram com a mesma raiz.
    
    A partir do mencionado leg- se forma o importante verbo grego 8 X ( T , e que exerce dois sentidos, primeiramente o de juntar e escolher, depois o de dizer. Dali procede 8 ` ( @ l (= palavra), que progride em direção inteletual, como logiké (= lógica). Neste mesmo contexto de leg- (= escolher) se insere o latim legere (= ler). Evoluiu a velha raiz para o sentido de interpretar e selecionar, como na latim legio (= escolha, legião) e elegans (= elegante).
    
    Dai resultou que elegância exerce o sentido fundamental de escolha, seleção, superioridade, perfeição. Combina-se, portanto, com muita propriedade com a noção de beleza. Elegância e beleza andam pois de mãos dadas.
    
    A evolução semântica do termo elegância na direção da beleza se encontra muito mas avançada que a de perfeição; mais depressa identificamos o belo e a elegância como sendo um o outro, do que o belo e a perfeição. Há, entretanto, para a elegância uma certa linha de incidência restringida ao comportamento humano, ao passo que a perfeição se pode dizer de qualquer ser universalmente.
    
    48. Íntegro, - enquanto indica a qualidade de um ser como estando de posse de quanto lhe pertence, com a negação expressa de haver sido tocado, - constitui termo bastante próximo do de beleza.
    
    Quase como um gênero, como já sucedia com a perfeição, integridade assume o significado equivalente ao de beleza, quando um especificativo o faz exercer a intocabilidade precisamente como um realce de sua perfeição. A integridade diz posse efetiva das partes; o ser mutilado não é íntegro, e sob este ponto de vista não se realça como perfeito; mas o ser íntegro, frente ao mutilado, se exerce com realce, portanto com beleza.
    
    No original latino, tag- significa tocar; a partir desta raiz se formam palavras como tato, tangível, contingente, acontecer. Na forma negativa formularam-se integer (= íntegro), através de -in-tagros, e intactus (= intacto).
    
    A evolução semântica levou o sentido de integridade para o de completo em suas partes enquanto que o significado primigênio é o de intocável; este sentido originário se aproxima certamente muito mais do de beleza.
    
    49. Indicam também a perfeição com realce, e por conseguinte o belo a seu modo, os termos fulgor e fulgurante, esplendor e claridade, nitidez e distinção, evidência e inteligibilidade.
    
    Aliam os mencionados termos uma circunstância subjetiva, fazendo denominar o objeto em função ao seu revelar-se ao indivíduo.
    
    O fulgurante é fúlgido em si mesmo, ao mesmo tempo que o é para a vista. É frequente a expressão "fugor da forma"; indica a forma perfeita em si mesma, e ao mesmo tempo fulgindo diante de quem a contempla.
    
    O mesmo ocorre com esplendor; sugere a perfeição objetiva, simultaneamente
    sua manifestação.
    
    Nitidez, distinção, evidência e inteligibilidade resultam sempre da constituição perfeita da coisa; o belo, em virtude de sua ordem interna, se caracteriza pela inteligibilidade; aliás o belo tem como uma de suas propriedades eminentes a teoreticidade. Em assim sendo, qualquer expressão ligada ao conhecimento o poderá sugerir; tais são todos os vocábulos referidos antes: fugor e fulgurante, esplendor e claridade, nitidez e distinção, evidência e inteligibilidade.
    
    50. Para os gregos, o belo se anuncia como J Î 6 " 8 ` < (tò kalón).
    
    Em grego 6 " 8 ` < é o termo dominante para indicar o belo. O termo é usado em Homero para a indicação de belezas físicas (Ilíada, 3, 392; Odisséia 6, 237). Autores gregos mais recentes usam também o vocábulo para a beleza moral da virtude.
    
    A raiz só existe no círculo helênico e significa fundamentalmente belo, nobre, vigoroso. Contudo, do grego o vocábulo passou à denominações eruditas e técnicas, como em kaleidoscópio, caligrafia, ou em nomes próprios, como em Calixto (= muito belo).
    
    51. Para os alemães belo se diz Das Schoene. O termo deriva do indo-europeu kew-, com o sentido fundamental de prestar atenção e tomar cuidado, havendo evoluído para duas direções epistemológicas, - uma para o ouvido, outra para a vista. Dali as formas alemãs hoeren (= ouvir), schauen (= olhar), e finalmente schoen (= belo).
    
    Fundamentalmente, portanto, o belo em Schoene significa o chamar a atenção, particularmente da vista.
    
    No grego anotamos a modalidade • 6 @ b T (= ouvir), de onde, através já do latim, se formou acústica; trata-se de um prestar a atenção por meio do ouvido.
    
    Diante do exposto, Schoene possui origem teorética, ao contrário de belo, de proveniência estética. Enquanto o termo germânico recorda a visão e a contemplação, o vocábulo latino sugere a afetividade do belo como um bem em que nos aquietamos. Isto nos pode sugerir o temperamento mais sentimental dos latinos, a tendência contemplativa dos germanos.
   
      §2-o. Nomes do Tratado do belo.

    52. Importaria também uma investigação sobre os nomes do tratado do belo? Nós o usamos aqui no sentido o mais amplo possível, como equivalente de metafísica do belo.
    
    Multiplicam-se os nomes do tratado do belo, pelo uso do mesmo nome fundamental, pela própria multiplicação dos diferentes pontos de vista abordados. Então resultam as denominações: tratado metafísico do belo, tratado psicológico do belo, tratado sociológico do belo, tratado do belo na arte, tratado do embelezamento, e assim por diante.
    
    53. Estética do belo, eis uma denominação com a qual nos devemos acautelar. Ela poderá significar esteticidade do belo, no sentido de que o belo agrada.
    
    Quando Baumgarten introduziu o nome Estética não quis apenas o adjetivo. O termo devia também significar uma ciência.
    
    Plotino tratou do belo sem dar um nome específico para seu pequeno tratado, o qual é denominado simplesmente Peri tou kalou (= Sobre o belo) (Eneadas I,6). Diderot se limitou ao título Tratado do belo, ao tempo em que Baumgarten usou o de Estética.
    
    
    54. Filosofia da arte é nome que tem a vantagem de definir o campo ao qual se restringe, - a expressão em obra sensível. Não envolve filosofia da arte diretamente o belo. Ainda que o belo possa ser um dos objetivos da arte, ele ocorre também fora do campo da arte; por sua vez, a arte tem um objetivo essencial que não se confunde com o belo.
    
    Comparando estética e filosofia da arte, importa dizer que o campo da estética é mais amplo por incluir mais vastamente o belo não artístico, por exemplo, o belo da natureza. Tão só por um arranjo semântico um nome poderá ser tomado pelo outro, conforme sucede em alguns autores. O mesmo acontece com o uso da palavra belo, que alguns, por exemplo Baumgarten e Hegel, definem de maneira muito particular.
    
    
    55. Os nomes Estética de conteúdo e Estética psicológica apresentam a vantagem de distinguir nitidamente dois campos: a de conteúdo examina o objeto capaz de agradar (entre eles o belo e o artístico), a psicológica examina o sentimento estético em si mesmo. Com referência ao conteúdo que pode agradar, diferenciam-se muito nitidamente o conteúdo belo e o conteúdo artístico. Agrada o belo simplesmente por ser belo; agrada o conteúdo artístico, porque havendo na expressão artística uma informação, esta agrada, na acepção de que agrada saber algo.
    
    Combinado com o nome de arte, sobretudo em suas espécies, o contexto da palavra estética sempre se torna mais ou menos claro, de que se trata de uma arte; por exemplo, estética literária, estética musical, estética das cores (ou da pintura), estética das formas (ou da escultura).
    
    Mas se se tratar da estética conjunta de todas as artes, mais claras ficam as expressões: filosofia geral da arte, ciência geral da arte, inspiração artística, gêneros artísticos, estilos da arte.

      ART. 5-o. DIVISÃO DO TRATADO DO BELO.

    58. O belo metafísico, sobre o qual estamos concluindo o ponto de vista meramente lógico, é abordável, no que se refere ao conteúdo, pela seguinte ordem, em capítulos:
    
    1-o. Como se conhece o belo. Ou o belo como objeto que se dá a conhecer. Adequadamente a abordagem gnosiológica do belo se faz primeiramente pela sua mesma manifestação de ser ao nosso conhecimento.
    
    Neste particular o presente primeiro capitulo é uma gnosiologia do belo; mais exatamente, uma gnosiologia fundamental do belo, porque nos retemos sobretudo no que é do início; outros detalhes gnosiológicos são possíveis de se determinar, como por exemplo se o belo é real ou apenas fenomênico (vd cap. 5-o).
    
    Mas é ainda fundamental o detalhe,- anterior a questão do realismo e idealismo, - a pergunta se a manifestação do belo ao nosso conhecimento é teorético (lógica), ou se é alógica. Assim decidindo, a estética se institui como logicista e não como alogicista.
    
    2-o. 0 belo essencialmente como esplendor da forma (ou, o que o belo fundamentalmente é. Ou ainda, o que o belo formalmente é).
    
    Definir e provar o belo como esplendor da forma equivale a dizer, como depois se esclarecerá e se tratará de provar, que o belo é a verdade ontológica eminente das coisas.
    
    Ou ainda: o belo como qualidade, perfeição e realce dos seres. Como qualidade, o belo é determinação de um objeto; como determinação, o belo se diz em função a um arquétipo; enfim, como esplendor, ou eminência, ou realce, esta qualidade se apresenta conduzida ao máximo, de sorte a superar as coisas que não são dotadas de beleza.
    
    Anote-se que o belo passou a ser estudado como algo em si e já não em função a nós, como na teoreticidade. Em contraste com o primeiro capitulo (Gnosiologia do belo), o presente é uma Ontologia do Belo, mais exatamente, uma ontologia fundamental do belo, porque não tratamos logo de todos os detalhes. Todavia incluímos ainda no capitulo as generalidades sobre as propriedades do belo, como sen parágrafo final: 0 belo e seu contrário (o feio) e ainda seus graus e similares. Situado o belo como uma qualidade, apresenta, enquanto qualidade, um seu contrário (o feio), graus de intensidade e semelhantes.
    
    3-o Como o belo está nas coisas (ou, o belo materialmente, para dizer que coisas são belas, quais são as categorias de ser e belo).
    
    4-o A Esteticidade do belo. Este é um capitulo da Estética psicológica, e que acrescentamos ao Tratado metafísico do belo, em virtude de sua (intima ligação com alguns dos seus temas; a inteligência e a vontade, embora Faculdades distintas, são também complementares. 0 tema contudo é tratado apenas em termos de psicologia e não de metafísica; por sua vez mais no piano da psicologia racional, que da psicologia experimental.
    
    5-o. 0 belo na ordem real. Aqui se retoma uma detalhe do aspecto gnosiológico do belo. Decide-se sobre o que o belo é e não é do ponto de vista da existência. Conduz-se ao fim a querela de idealistas e realistas, de positivistas e racionalistas.
    
    6-o. 0 que o belo não é. Este capitulo, um tanto repetitiva, é um arrastão de vários pontos de vista, que achamos não constituírem o belo, mas que poderão ter sido a opinião de autores de renome. 0 ponto de vista é o da essência.
    
    59. Uma fenomenologia. Na visão introdutória oferecida sobre o tratado do belo, todos os capítulos a serem desdobrados se mantém constantemente na visão explicita dos dados que se mostram. A investigação se mantém continuamente na área das evidências explicitas.
    
    Não ha um caminhar do explicito para o implícito e virtual, como acontece na teoria.
    
    Anda-se de abstração em abstração, sem nunca sair do piano meramente fenomenológico. É, pois, o Tratado do Belo um ensaio de fenomenologia do belo, e não uma teoria do belo.
   
 
 Fonte:
ENCICLOPÉDIA    SIMPOZIO
 
 (Versão em Português do original em Esperanto)
© Copyright 1997
http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/megaestetica/TratBelo/0764y005.htm#Top_of_page

O QUE O BELO NÃO É



Evaldo Pauli

TRATADO DO BELO.
 CAP. 6-o

 O QUE O BELO NÃO É.
0764y345.

 
    346.  O espírito singularmente polêmico do homem leva-o também a determinar a natureza de um objeto, a partir da eliminação daquilo que ele não é.
    
    Quando o pensamento parte do que é, para o que não é, torna-se crítico. No pensamento crítico, a evidência clara (não obscura) se encaminha para a evidência distinta (não confusa). Numa eliminação constante, num cerco cada vez mais fechado, a noção verdadeira vai sendo caçada e finalmente colocada como única verdadeira.
     Para obter a noção do belo, Platão já adotava o expediente da pergunta pelo que não é. Em Hípias maior  inicia pela pergunta, se o belo é o ouro, se a donzela, se a divindade. Apertando o cerco, se aproxima finalmente de sua essência.
    
    Em princípio, o processo eliminatório não se mantém na pura eliminação. Algo deve já ser conhecido, para estabelecer comparações. Quem pergunta, já sabe algo.  Importa conhecer pelo menos um dado concreto, por exemplo, algo que é dito belo com um fato fenomenologicamente constatado. O próprio dado fenomenológico também importa em ser suficientemente examinado no instante do é. Este comportamento, aliás, importa desde o início de qualquer Tratado do belo. Apenas acentuamos agora a pergunta pelo o que o belo não é.
    
    Posições históricas sobre o belo hão de ser examinadas, porque apresentam muito de contrárias entre si, ao mesmo tempo que de próximas. Não podemos ir ao exame de todas as opiniões, quando numerosas e complexas. Todavia, devemos  alargar-nos bastante nesta tarefa.
    
    Posições fundamentais são principalmente as de Platão, Aristóteles, Plotino, Diderot, Baumgarten, Kant, Schiller, Hegel.
    
    Alguns, como Kant, trataram mais do belo, que do artístico; outros, como Croce, mais do artístico, que do belo. Ainda que devamos conhecer bem as posições históricas, o que mesmo importa aqui é discutir teses. A repetitividade, já peculiar à didática, evidentemente irá acontecer, ao se discutir o que o belo não é. De outra parte, esta repetividade concorre para a precisão de diferentes aspectos oferecidos na rediscussão.
    
    
     347. Que seria, pois, o que o belo não é? Importa uma certa ordem no trabalho eliminatório. Primeiramente destacamos que o belo não é nenhuma das categorias, por ser, ao em vez,  um transcendental do ser (Art. 1-o).
    
    Depois advertimos que o belo não se limita somente ao sensível (Art.2-o), mas propriedade de todo o ser, também espiritual, como a bela ação, o belo pensamento.
    
    Finalmente, fazemos considerações variadas sobre peculiaridades de algumas estéticas, como as de Kant, Hegel e outras (Art. 3-o), não tanto por causa daquelas estéticas, mas insistindo no que o belo é, pelo que não é.
    
    

Art. 1-o. O BELO NÃO É NENHUMA DAS CATEGORIAS PREDICAMENTAIS DO SER.  0764y348.

    
    349. Enquanto o belo se configura como qualidade aperfeiçoativa transcendental  (a nível de modo geral do ente), exclui implicitamente todas as modalidades meramente predicamentais (categoriais, a nível de modo especial do ser).
    
    Então o belo não é a substância, como o ouro, a donzela, a deusa (exemplos dados por Platão). Não é nem quantidade, qualidade predicamental, relação, tempo, lugar, posição, ação, paixão, posse. Nem é qualquer das espécies em que se redividem estas categorias mais genéricas citadas. Portanto, o belo não é a ordem, a proporção... Nesta área predicamental, que faz o belo ser um dos predicamentos (categorias), situa-se um dos personagens de Hípias maior de Platão, e que modernamente em parte se repete em Denis Diderot (1713-1784).
    
    Ocorrem aquelas posições que, embora ninguém as defenda e que aparecem apenas como perguntas de simples problematização, contudo se prestam para estabelecer enfaticamente certas perspectivas de uma noção tomada por certa. Apenas o vulgo e filósofos superficiais poderiam estabelecer aquelas posições contundentemente falsas, que todavia vão servir aos poetas e à representações simbólicas, inclusive míticas.
    
    Nesta situação se encontram as doutrinas, peculiares do vulgo, que, de diferentes maneiras, definem o belo com noções predicamentais (categoriais), em vez de transcendentais.
    
     Para os gregos clássicos, que amavam a beleza física, obviamente tinha algum sentido perguntar, se acaso o belo seria a mulher jovem, a donzela, a virgem, a deusa. Amavam também o belo animal de montaria, bem como estimavam a música, especialmente a lira, com que acompanhavam a declamação poética.
    
    Dali veio que, ao estabelecer Platão a discussão sobre o belo, Hípias indagasse de maneira peculiarmente contundente, - "se o belo é uma mulher jovem, ou uma égua, ou uma lira".
    
    350. Se o belo é a substância. Comecemos por aquelas concepções que fariam do belo uma substância, O conceito de substância, como gênero supremo, ou categoria (predicamento) reúne, como sendo seus inferiores os gêneros subalternos de substância corpórea e espiritual, corpórea vegetal, corpórea animal. Enfim, aflorando quase para a região do concreto, ocorre a noção de espécie, como homem (animal racional). Sob espécie se arrolam os indivíduos concretos, como Pedro, João, Paulo... Também as outras substâncias apresentam espécies, como ouro, prata, cobre, lira, planta, cavalo...
    
    Acaso se poderia cogitar que o belo se reduz à substância? Ou a alguma das substâncias mais representativas na escala dos valores? Isto somente é possível materialmente. Então a substância seria o suporte material do belo. Assim, determinada substância, poderá ser bela. Materialmente se incorre, então, em dizer que dita substância é o  belo. O ouro usualmente é belo; por conseguinte, materialmente falando, o belo é o ouro.
     Com a mesma direção de pensar, - porém pela inversa, - dizem-se feia a coisa nociva. Então,  o feio é o macaco, feia é a cobra.
    
    Também se denominam feias e até vergonhosas, inclusive desonestas as coisas em que o vício é praticado, ainda que em si mesmas tais coisas sejam indiferentes, ou até belas.
    
    A flor, como eflorescência sexual colorida das plantas, é considerada bela, ao passo que a mesma coisa bela na pessoa humana costuma ser dita feia. Então, a flor é o belo; o penis é o feio e vergonhoso.
    A origem psicológica da materialização do conceito do belo se encontra na circunstância antropológica de que principiamos por conhecer as essências absolutas a começar do conhecimento das coisas concretas.
    
    Primeiramente o belo se apresenta nas coisas singulares, como na flor, nas plantas, nas pedras preciosas, no brilho da luz, na harmonia dos sons, etc.
    
    Ato contínuo, a mente descobre como considerar em abstrato as propriedades do belo: sua teoreticidade, que o apropria particularmente para contemplação do inteleto; e sua capacidade despertar um sentimento estético, distinto daquele outro sentimento comum em que a vontade se aquieta ao realizar o bem na ordem real. Depois desta fixação das propriedades do belo, seguimos para o interior de seu recinto e descobrimos sua essência e descobrimos sua essência como perfeição que se realça (esplendor da forma).
    
    
    351. A não substancialização do belo se prova mostrando o equívoco que a ela conduzira.
    
    O método da prova já se encontra em Platão. Hípias, com o desembaraço de sofista, declarara:
    
    "O que vem a ser o belo, hei de lhe responder, e não arrisco jamais de ser contestado. Com efeito, se é preciso falar com franqueza, uma virgem, saiba-o bem, Sócrates, eis o que é o belo" (Hípias Maior, 287 e).
     Contestando a afirmação, o autor do diálogo põe Sócrates a conduzir a noção do belo a um elemento que não coincide com o objeto materialmente, comparando a beleza na virgem, no jumento, na lira, na panela.
    
    "Sócrates: diz-se, então, que uma bela marmita é também uma bela coisa?
    
    Hípias: creio que sim... quando é um belo trabalho. De maneira geral, porém, não pode ser julgada uma bela coisa, quando comparada com um jumento, ou uma virgem, nem a tudo o que se pode chamar belo.
    
    Sócrates: a quem assim responde, se deve retorquir: desconhece a verdade dessa afirmação de Heráclito, que o mais belo dos macacos é feio se se o compara com a espécie humana; e assim, essa comparação de Hípias, que a mais bela das marmitas é feia, se se a compara com a espécie virginal.... A espécie virginal comparada com a espécie divina, não estaria ela no mesmo caso, que a espécie marmita comparada com a espécie virgem? Uma tal comparação não tornaria feia a mais bela virgem?" (288 e -189 a).
     Conclui então Platão para o conceito de que o belo se configuraria como modalidade do ser das coisas, mas não com a mesma coisa substancialmente; o belo ainda se mostraria como qualificativo ornamental, por conseguinte, como uma qualidade, que reveste o ser de uma perfeição.
    
     "Já estás agora de acordo que o belo, quando não é senão o belo, graças ao qual todas as outras coisas recebem seu enfeite e manifestam sua beleza ao se lhes ajuntar esta propriedade, seja uma virgem, um jumento, uma lira?
    
    Hípias: Nada é mais fácil responder, do que o que é a beleza, graças à qual todo o restante recebe seu enfeite e por cujo acréscimo se torna belo" (289 d).
    
    
    353. Seria o belo a ordem, proporção, simetria?  Nem se pode definir,- como queriam os estóicos, - o belo pelas qualidades que digam ordem, proporção, simitria ou qualquer outra qualificação que relaciona os seres entre si.
    
    A tese dos estóicos está, por exemplo em Cícero (Tusculanas, 4,3), autor latino.  A tese foi contestada por Plotino, que embora escrevesse em grego, lecionou em Roma (Enéada \, 6 Do belo I, 20-22).
     Volta a doutrina dos estóicos com o enciclopedista Denis Diderot (1713-1784), e os positivistas em geral.
    
    Para Diderot o belo se constitui de relações, particularmente de ordem e proporção. Em tais condições, o belo está sendo identificado com uma das categorias predicamentais do ser; ora estas se predicam apenas do seu estrato estanque, portanto univocamente. Mas, o diretor da Enciclopédia Francesa não atendeu a estes detalhes, visto que parecia desconhecer a questão sob tal perspectiva.
    
    De uma parte, todavia, fez bem Diderot ao deslocar a noção do belo na direção das relações, afastando-a da de substância, ou de qualquer uma de suas espécies; mas ao chegar às relações, para explicar o que entende com elas, não chegou a fazer a nova distinção entre relações predicamentais (categoriais) e relações transcendentais, que se predicam analogicamente.
    
    "Belo é um termo que aplicamos a uma infinidade de seres; mas seja qual for a diferença entre esses seres, por força que, ou fazemos uma falsa aplicação do termo belo, ou em todos esses seres existe uma qualidade de que o termo belo é o sinal.  Essa qualidade não pode pertencer ao número daquelas que constituem a diferença específica de tais seres; porque então não haveria mais do que um ser belo, ou quando muito uma única espécie bela de artes" (Tratado do belo, em Enciclopédia Francesa, II vol.).
    
    Na verdade, a consequência ocorreria para uma única espécie de ser belo. Aquilo que faz as diferenças específicas se situa no plano substância. Ora, as substâncias têm em si o seu sujeito; em tal condição, se isolam. Se o belo fosse algo assim como uma espécie de verniz, tal como verniz, se destacaria, sem nunca verdadeiramente se confundir com as demais coisas. Se fosse como ouro, não serviria senão para ornar à maneira de aplicações, que se manteriam como camadas distintas. Não chegaria nunca a ser uma qualidade transcendental.
    
    Percebe Diderot que o belo se funde mais intimamente com os seres. Transita, então, para as qualidades que dizem relação. Efetivamente, qualquer entidade de caráter acidental, mesmo quando se trata de determinações necessitantes, chamadas propriedades, não se isola com sujeito próprio, à maneira de substância; então sempre "em outro", no qual encontram o seu sujeito. Não é possível isolar inteiramente a quantidade, a qualidade, a relação, o tempo, o lugar, a posição, a ação, a paixão, a posse, e nem qualquer de suas variedades específicas subalternas (pelas quais cada categoria suprema coordena as noções em forma de árvore porfiriana). Por isso, nem a relação, nem as qualidades ditas em função à relação, como a ordem e a proporção se isolam. Estão sempre em outro, de sorte a se diluírem, exatamente como pretende Diderot, ao observar que o belo não poderia ser algo como uma espécie de substância a se isolar como única espécie entre outras.
    
    Diz mais Diderot sobre as relações que envolve o conceito de belo:
    
    "Chamo belo fora de mim tudo o que contém em si a capacidade de despertar em meu entendimento a idéia de relação; e belo com relação a mim, tudo o que desperta essa idéia...".
    
    "A percepção de relação é o fundamento do belo... ".
    
    "Um ser é belo pelas relações que percebemos nele"...
    
    "O belo resultante da percepção de uma única relação é menos comum, que o belo resultante da percepção de várias relações... ".
    
    "A beleza consiste sempre nas relações...". "O belo é o que consiste na percepção das relações... ".
    
    "Mas, dentre as qualidades comuns a todos os seres que chamamos belos, qual delas escolheremos para aplicar às coisas de que o termo belo é o sinal? Afigura-se-me evidente não poder deixar de ser aquela cuja presença os faz a todos belos; cuja frequência ou raridade, os faz mais ou menos belos; cuja ausência lhes retira a faculdade de serem belos; que não pode mudar de natureza sem fazer mudar de espécie o belo, e cuja qualidade contrária tornaria os mais belos desagradáveis e feios; numa palavra, aquela pela qual a beleza começa, aumenta, varia ao infinito, declina e desaparece. Ora, capaz destes efeitos, só a noção de relações. Chamo portanto belo fora de mim a tudo o que contém em si a possibilidade despertar no meu entendimento a idéia de relações; o belo em relação a mim tudo o que desperta essa idéia" (Ibidem).
    
    As relações de que fala Diderot são as "noções de ordem, de proporção, de ligação, de arranjo, de simetria", que o homem perceberia à medida de sua evolução e da alteração das condições sociais. Afiança ainda: "O belo que resulta da percepção de uma única relação é ordinariamente menor do que aquele que resulta da percepção de várias relações".
    
    Atento à diversidade dos juízos, alega, aliás, que uma das fontes está no número de relações percebidas. "Entre as relações pode-se distinguir uma infinidade de espécies: há as que se fortificam, se enfraquecem e se temperam mutuamente. Que diferença, a cerca do que se pense da beleza de um objeto, consoante se apreendam todas ao apenas uma parte". Há relações que têm mais valor e outras menos. E há ainda as que se acentuam com os interesses, paixões, ignorância, governos, etc..
    O que mais importa, neste instante, é julgar da natureza do belo, como a estabeleceu Diderot e que repercutia no positivismo em geral.
    
    As relações, e todas as qualidades em que podem resultar, se destacam integralmente como extratos inconfundíveis. Em tal condição, que é a de todas as categorias, as relações são elementos constitutivos do objeto. Para a construção das camadas do objeto, contribuem, à seu modo, a substância, a quantidade, a qualidade, a relação, o tempo, o lugar, a posição, a ação, a paixão, a posse. Cada uma destas determinações se comporta como estanque. Somente a qualidade é aperfeiçoativa . Em tal condição, aliás, a ordem e a proporção se exercem como aperfeiçoativas.
    
    O belo, porém, incute uma determinação aperfeiçoativa transcendental nos seres, que não é da mesma índole da que fornecem as determinações estratificadas estanques da qualidade predicamental. Aperfeiçoa o  belo aos seres, tomando-os como um todo, atingindo de algum modo a qualquer de suas partes. Diferentemente, as qualidades  predicamentais se isolam em camadas, visto que são noções unívocas. Se o belo fosse algo como relações de ordem e proporção, isolar-se-ia o belo como determinação estratificada, à maneira de um predicamento (categoria) e não gozaria da maneira ampla de envolver o objeto de todas as maneiras, como se exerce o transcendental.
    
    O belo, como noção em relativo e a alcançar o objeto como um todo (conforme insistirá com razão Kant) (vd 367), não se pode reduzir a uma qualidade predicamental.
    
    

ART. 2-o. O BELO  NÃO É DITO SÓ DO SENSÍVEL. 0764y355.

    
     355. Quanto à matéria (em que o belo ocorre), não acontece apenas no sensível. Achamos que a beleza é atributo universal, próprio de todo o ser, quer espiritual, quer sensível. Portanto, implicitamente, a tese assim verificada, exclui as doutrinas que restringem o belo ao sensível, como fez Baumgarten, e em alguns aspectos também fizeram Kant, Schiller, Hegel.
    
    Não importa que falem da perfeição do sensível, como sendo o belo. Não parecem ter razão ao limitarem o belo ao sensível. Semelhante, na área das restrições, é a doutrina que cerca a área da beleza em torno de valores e projeções sentimentais.
    
    
    356. A propósito de Baumgarten. O cartesianismo racionalista do século 18, na Alemanha, criou uma interpretação peculiar do belo, como objeto formal dos sentidos e não da inteligência. Havia o inteletualismo de Descartes reduzido as sensações à idéias confusas.
    
    Agora o alemão Alexandre Godofredo Baumgarten (1714-1767) diz que o belo  é o conhecimento sensível perfeito, como a verdade é dita do pensamento perfeito, claro e distinto. Assim como pensamento se ocupa com a verdade, os sentidos com a beleza. Esta filosofia têm seu precedente, como se advertiu, na interpretação cartesiana da sensação como idéia confusa. Mas tem seu móvel imediato em Leibniz e depois teve novos desenvolvimentos em Kant.
    
    
    357. A participação de Leibniz. A tendência de localizar o belo no sensível começou a ocorrer com Leibniz (1646-1714), o fundador do racionalismo alemão. Admite que o belo é algo que tanto se manifesta ao espírito, como às faculdades inferiores.
    
    Capazes de alcançar os mesmos objetos, estes se revelam claramente no intelecto e de maneira confusa nos sentidos. O intelecto, ao conhecer distintamente se comportaria como Deus que percebe cada ruído singular do oceano; os sentidos escutam vagamente o mesmo rumor, portanto, alguma qualidade do objeto, sem entretanto discernir as singularidades.
    
    Ainda o mesmo dizia dos sentimentos: "Os prazeres dos sentidos se reduzem a prazeres intelectuais, confusamente conhecidos" (Leibniz, Princípios na natureza, nr. 7).
    
    Em assim sendo, a música fala ao intelecto em forma de número e aos ouvidos de maneira confusa; e igualmente sua perfeição se manifesta diferencialmente ao intelecto o aos ouvidos. "A música nos encanta, se bem que sua beleza só consistia no acordo dos números e na conta que não advertimos, porém que a alma não cessa de fazer, dos latidos ou vibrações dos corpos sonoros que se encontram a intervalos determinados. Os deleites que a vista sente se constituem da mesma natureza, e os que causam os demais sentidos se reduzirão a algo semelhante, ainda que não possamos explicá-lo tão distintamente" (Leibniz, Princípios da natureza, r. 7, ano 1714).
    
    Tivesse Leibniz, em profunda perspiciência, notado que os sentidos nada manifestam que indique o conhecimento da perfeição ou do belo, não lançaria a hipótese de que o conhecimento sensível pudesse constituir-se como um conhecimento sensível do belo. Nada ocorre nos sentidos que admita a confusa e longínqua percepção da beleza.
    
    358. Baumgarten ao mesmo tempo que publicava obras de filosofia obedientes ao racionalismo cartesiano de Leibniz e Wolff, dedicou-se a investigar a região da idéia confusa, como interpretava o conhecimento sensível. Em 1735 publicava o opúsculo Meditationes Philosophi de nonnullis ad poema pertinentibus e em 1750-58 os dois volumes de Aesthetica.
    
    Principiou Baumgarten seu famoso livro, denominado Estética,  com a definição
    do mesmo título:
    
     "Estética, teoria das artes liberais, gnosiologia inferior, arte de pensar belamente, arte da razão análoga) é a ciência do conhecimento sensível. (No texto latino "Aesthetica (theoria liberalium artium, gnoseologia inferior, ar pulchre cogitandi, ars analogi rationis) est scientia cognitionis sensitivae" (Aesthetica §1).
     No contexto baumgarteniano logo se vê, que a Estética reúne o conhecimento sensível e a arte. As aproximações efetivamente ocorrem, porque a arte opera mediante expressão. Efetivamente o livro de Baumgarten não faz senão uma filosofia da arte. Trata de apreender o belo na arte, como perfeita maneira de expressar os temas e perfeitamente maneira de fazer uma obra.
    
     Insiste Baumgarten que a beleza do conhecimento sensível é universal (§ 18). Não ocorre dificuldade, porque "podem as coisas torpes ser pensadas de maneira bela, como tais, e as coisas belas, feiamente" (Possunt turpia pulchre cogitari, ut talia, et puchriora turpiter" (§ 18).
    
    Para Baumgarten o belo se diz do sensível, quando este é perfeito: "O fim da estética é a perfeição, enquanto tal. Ora, esta é beleza" (§ 14).
    
     Que dizer do belo interpretado como o mundo do sensível? Ainda que não pareça poder-se isolar o belo no sensível, é um campo em que ele se encontra muito presente.  Mas este fato por si só não lhe dá a exclusividade.
    
    
    359. A natureza sempre sensível da arte concorre para a opinião de que o belo também o seja. Mas o instrumento da arte também inclui a capacidade da inteligência como intérprete da expressão artística; assim também o belo, que, embora exista também no sensível, importa em algo superior.
    
    Hegel foi notável pela sua insistência  de que a arte se constitui em manifestação do Espírito. As obras de arte, - ainda que construídas em cor, forma, som, - falam à mente. A arte, embora sempre sensível, não é apenas um processo sensível, porquanto portador de mensagem de nível supra sensível.
    
     Por isso a ave não distingue entre o falso ovo e o verdadeiro, e o peixe se deixa atrair também pela falsa isca, quando esta em tudo equivale à natural. Pessoas obtusas pouco apreciam o belo, exatamente porque ele implica na capacidade mental de diferenciar entre o que se realça e o que não atinge graus de mais valor.
    
     "Na doutrina de Baumgarten, a primeira em que a Estética se plasma como ciência a parte, aparece o conceito de belo sujeitado ao conceito de perfeito. Toda beleza é perfeição, ainda que uma perfeição que não se reconhece no conceito puro, senão que só se capta indiretamente em imagens perceptíveis pela intuição dos sentidos. Toda a filosofia alemã ao uso é dominada, na época a que nos referimos, por este critério desenvolvido mais tarde e erigido sobre uma base metafísica geral por Mendelsohn. Critério que transcende do campo puramente filosófico para influir nos círculos da criação artística. Todavia Os artistas de Schiller representam quase exclusivamente a transcrição e o desenvolvimento poético das idéias baumgartenianas" (Cassirer, Kant, sua vida e doutrina, VI,4. P,. 380, ed. F.C.E.).
    

ART. 3-o. PECULIARIDADES DE ALGUMAS ESTÉTICAS. 0764y361.

    
    
     § 1. Acertos e desacertos da estética de Kant. 0764y363.
    
    
     364. A estética de Kant assume aspecto confuso, porque ingressa em importantes distinções metafísicas, que já ocorrem em Sócrates, Platão e Aristóteles, mas que ele agora assevera serem meras formas a priori do juízo estético. Seu tratado Crítica do juízo o escreveu e publicou somente depois da Crítica da razão pura  (1781) e Crítica da razão prática (1788).
    
    Sem conhecer com profundidade a filosofia de seus antecessores clássicos, Kant muitas vezes agiu como se estivesse a tratar assunto inteiramente novo, de sorte a parecer instituir um tratado metafísico do belo inteiramente novo e de certo modo em conflito com o passado, o que efetivamente só acontecia em tudo. Para um pensador platônico e mesmo aristotélico, muitos aspectos são conciliáveis e se ilustram mutuamente. Para conceituar o belo não importa no primeiro instante a questão da realidade dos objetos e dos arquétipos ideais a que se ajustam para serem ditos perfeitos e belos. A questão da realidade ou idealidade do belo também há de ser tratada, sendo todavia logicamente posterior (vd...).
    
    Retém Kant os conceitos e princípios universais da metafísica; não os reduz à generalizações, como faz o nominalismo empirista, ou positivista. Apenas nega o valor ontológico dos mesmos, reduzindo-os ora a meras análises, ora a sínteses a priori.
    
     Sobre as afinidades da estética de Kant e a dos clássicos, especialmente no que diz respeito às questões relativas ao eidos, ao arquétipo, à essência absoluta, às noções que se dizem em relativo, ao fim formal, a que obedecem os seres concretos,  tratou especialmente Ernst Cassirer (Kant, Vida e Doutrina, 6, 2, ano 1918).
     Para colocar uma sequência didática na exposição da estética de Kant importa considerar primeiramente seu condicionamento a uma nova teoria das faculdades, as quais ele multiplicou, de sorte a dar um situamento novo ao belo e à arte, bem como ao sentimento estético.
    
    A seguir importam considerações especiais sobre conceitos específicos de Kant sobre a essência do belo e da esteticidade, onde ele se conserva um tanto ligado ao modo clássico de entender estas questões.
    
    
    I - A estética kantiana no quadro novo de faculdades.  764y365.
    
    
    365. Kant começa por descobrir a diferença que vai entre dois modos de predicar, o unívoco das categorias e o dos transcendentais". Em vez de seguir por ordem, adianta assuntos isoladamente com o belo. Ao mesmo tempo que distingue entre si as predicações categoriais e as predicações transcendentais, subdistingue as transcendentais.
    
    Sem conhecer a totalidade dos transcendentais, veio Kant a tratar do belo como qualquer coisa isolada, quando na verdade pertence a uma família ampla de noções.
    
    Advertimos que em geral usamos os termos "Categoria" e "transcendental" no sentido técnico clássico.
    
     A nova "família" de noções que Kant descobriu, mas que não viu em toda a sua amplidão, como os escolásticos expunham as transcendentais em número de seis, foi por ele isolada como objeto tratado por uma faculdade especifica, a Faculdade do juízo (Urtheilskraft).
    
     Com facilidade Kant multiplicava, como se vê mais uma vez aqui, as faculdades. Em criando nova faculdade, distanciou-se dos clássicos, que põem as noções de qualquer índole, numa só faculdade. Todavia esta circunstância é secundária; o  importante é que Kant houvesse percebido que as noções categoriais não eram idênticas àquelas ditas transcendentais.
    
     As vezes denomina a "Faculdade do Juízo" com letra maiúscula, para garantir a diferença com o juízo determinante, da "faculdade do entendimento"; este anuncia apenas afirmações em termos categoriais e tem a vantagem de sempre estar conhecido o universal, sob o qual com facilidade se vê subsumado o particular, a diversidade dos fenômenos sensíveis. O juízo da Faculdade de juízo é reflectante, porque reúne o particular sob o universal, marchando em geral com dificuldade, em termos como os explicados, isto é, como os transcendentais.
    
     A restrição do nome "Faculdade do juízo" para certos juízos apenas, como os de comparação com um arquétipo, data do mesmo século e se atribui a iniciativa a Meier, discípulo de Baumgarten. Agora Kant empresta importância ao tecnicismo, de sorte que ficam de um lado os juízos especulativos para a faculdade do entendimento (construtora do objeto) e de outro os juízos de enjuizamento (ou comparação) para a Faculdade do Juízo (Urtheilskraft).
    
    
    366. Visto como um todo, o sistema estético de Kant faz do belo algo sensível, ainda que o belo não seja o sensível expressamente como sensível.
    
     É que para Kant, o núcleo inicial de todos os conteúdos, que a forma reveste, é o fenômeno sensível. As primeiras formas a fazer revestimentos são as de espaço e tempo, seguindo-se as doze do "Entendimento". Por último, os objetos assim criados, são comparados com "arquétipos"; o perfeito ajustamento destes objetos com os modelos ideais arquétipicos, faz deles objetos belos.
    
     O sistema estético Kantiano apresenta visíveis semelhanças com o platônico e o aristotélico, em virtude da noção que faz do belo uma referência aperfeiçoativa frente ao arquétipo. Todavia, os objetos de Kant se retêm consideravelmente reduzidos ao plano sensível, de sorte a se tratar de uma estética evocando Baumgarten, apesar das diferenças.
    
     Para Kant, por conseguinte, um objeto sensível (intuição) é belo quando se coloca de acordo com o arquétipo; a este chama de "fim formal". Perceber tal coincidência é função de uma faculdade especial, que recebeu o nome de "Faculdade do Juízo"; esta enuncia os juízos estéticos. A capacidade de emitir os juízos estéticos também se denomina "gosto".
    
    Diferentemente, os juízos do entendimento se pronunciam apenas sobre a estrutura dos objetos, colocando os componentes categoriais com que se estruturam.
    
    O prazer estético resulta dos juízos pronunciados sobre o objeto, quando como um todo, é comparado com  sua finalidade formal. Os juízos do entendimento, pronunciados sobre a estrutura do objeto, ou seja sobre o que Kant chama de conceitos de que se constrói o objeto, não resultam em prazer estético. Mas apenas em prazer prático, chamados o agradável e o bom.
     Aprecie-se agora um texto kantiano, em que a doutrina supra vem resumida. Atenda-se aos tecnicismos: Intuição (= objeto sensível); conceito (= estrutura do objeto); juízo reflexivo (= comparação do objeto como um todo, com o seu arquétipo); finalidade subjetiva e formal do objeto (= arquétipo).
     "Quando o prazer é proporcionado mediante a simples apreensão (aprehensio) da forma de um objeto dirigido para um conhecimento determinado, a representação não fica relacionada com o objeto, mas unicamente com o sujeito; e o prazer não pode exprimir outra coisa senão o  acordo do objeto com a faculdade cognoscitiva que está em jogo no juízo reflexivo e enquanto o está, ou seja unicamente por ser uma finalidade subjetiva e formal do objeto.
    
    Semelhante juízo é um juízo estético sobre a finalidade do objeto, que não se funda sobre  nenhum seu conceito atual nem por si mesmo o cria. A forma de tal objeto embora não a matéria de sua representação como sensação é julgada por simples reflexão (sem o escopo de obter um conceito de objeto), como fundamento de um prazer derivado da representação de tal objeto, julgando-se que a representação esteja necessariamente unida ao prazer, e consequentemente que o prazer não existe somente para o sujeito que aprecia a forma, mas para todos os que em geral a julgam.
    
    De tal objeto se diz então que é belo, e a faculdade de emitir juízos segundo o prazer proporcionado por ele ( também com valor universal) chama-se gosto" (Cr. do juízo, Intr. VII).
     Schiller tomará as duas noções de matéria e forma, retendo-as no plano sensível, e assim mais uma vez, o belo se mostrará sempre algo sensível.
    
    Por último, em Hegel (mas no seu contexto idealista), o belo artístico  consistirá de novo em algo essencialmente sensível; a forma, na arte, é o espírito visto em seu momento dialético sensível.
    
     Postos estes aspectos gerais da estética kantiana, seguimos para detalhes visando principalmente aqueles que mais interessam ao plano de um Tratado do Belo.
    
    
    368. Que é que Kant admitia como dado? Importa estas pergunta, antes de qualquer explicação mais profunda e de que resulta um sistema estético. Ao mesmo tempo que escrevera a Crítica da Razão Pura e a Crítica da Razão Prática supunha que o dado estético fosse apenas empírico. Invectivou mesmo a Baumgarten por haver pretendido estabelecer leis universais para o gosto estético.
    
     Descobriu depois, que o dado estético se prende a uma situação especial. Esta situação especial produziria um sentimento peculiar e que seria o estético. Ora, parece que Kant não atendeu à exata situação em que tal sentimento ocorria. E foi onde Herder (1744-1803) se lhe opôs.
    
    Acreditamos que Kant descreve com relativa exatidão o que seja o belo - o ajuste de um objeto (tomado como um todo) com o seu fim formal (arquétipo ou gênero ideal). O que entretanto não parece verdadeiro é ter reduzido o sentimento estético apenas a este objeto, isto é , quando o juízo percebe o objeto como belo. Excluía do estético o sentimento que poderia produzir o conhecimento da estrutura interna de um objeto.
    
    Determinou Kant as propriedades do belo; ainda que não usasse os mesmos termos, estas propriedades eram a teoreticidade (o belo é assunto que se conhece) e a esteticidade (o belo agrada). Estes são dados.
    
    Pretendeu todavia Kant, que certos objetos, os do "entendimento", ao apresentarem a estrutura das coisas, não produzem sentimento; mas somente produziriam este agrado peculiar quando vistos em função a um arquétipo, em relação ao qual se dizem belos.
    
    Na verdade, o belo se diz em função a um arquétipo e em tais condições agrada eminentemente; o dado é incontestável. Contudo, o dado não se limita a esta região, apesar de o haver declarado assim Kant.
    
    
    370. O belo se apresenta, ainda para Kant, como propriedade teorética. Não usa este vocábulo, mas é o que efetivamente estabelece. A faculdade do Juízo, que vê o belo, contempla o objeto e o julga em função a um arquétipo, ou "causa final formal", em função do qual se diz belo. E assim o belo se constitui evidentemente num plano teorético, nitidamente contemplativo.
    
    Enquanto o juízo estético se ocupa em definir em função ao gênero ideal, esquece o interesse existencial e real dos objetos, não tratando por conseguinte do bonum.
    
     Acreditou Kant, - sempre tendente a multiplicar o número de faculdades, - que o juízo que trata do verum em função ao arquétipo, é mesmo produzido por uma faculdade específica, distinta das faculdades da razão (pura e prática, Reinen e praktischen Vernunft).
    
    Quanto aos sentimentos, haveria sentimentos na faculdade do sentimento, que está em função à faculdade do juízo; nesta, portanto, se situariam os sentimentos estéticos. E haveria situações afetivas na faculdade de desejar (a vontade) que estaria em função aos elementos constitutivos das coisas, portanto, daquelas coisas que dizem respeito ao interesse, à existência, à realidade.
     Eis um texto kantiano, que frisa o caráter contemplativo ou teorético do juízo estético, distanciando-o da região do agradável e do bom, referentes à faculdade de desejar (ou vontade).
    
    "O bom e o agradável se referem à faculdade de desejar, e produzem, o primeiro, uma satisfação patologicamente condicionada (mediante excitações, stimulus) e o segundo um prazer prático puro. Esse prazer se determina não só pela representação do objeto, como ao mesmo tempo pelo enlace do sujeito com o próprio objeto existente. Não é apenas o objeto que agrada, mas também a sua existência. Por isso, o juízo de gosto é puramente contemplativo, ou seja, um juízo que indiferente ao relativo à existência do objeto, associa a constituição deste a sentimentos de prazer e desgosto.
    
     Mas esta contemplação não se dirige tampouco a conceitos, uma vez que o juízo de gosto não é um juízo de conhecimento (nem teórico, nem prático) e por conseguinte não se baseia em conceito, nem os tem por finalidade.
    
    O agradável, o belo e o bom indicam três relações diferentes das representações com o sentimento de prazer e desgosto, referidos aos quais nós distinguimos os objetos uns dos outros, ou os seus modos de representação. Também as expressões adequadas com que se designam nos três casos os sentimentos de agrado não são as mesmas. Ao que deleita, se chama agradável; ao que simplesmente apraz, se chama belo; o que é apreciado se diz bom.  É bom o aprovado, isto é , aquilo a que se empresta valor objetivo.
    
     O agradável vale também para os animais irracionais; mas o belo somente para os homens, não só pela sua qualidade de serem animais, mas por o serem racionais, ainda que não só por isso (como também o seriam por exemplo, os espíritos) mas pelo fato mesmo de serem ao mesmo tempo animais e racionais. Porém o bom é considerado bom, mediante a simples condição de que o ser razoavelmente seja ser. Estas proposição só mais adiante poderá receber sua completa justificação e esclarecimento. Pode-se enfim dizer que das três maneiras apresentadas como capazes de gerar satisfação, a relativa à apreciação da beleza é a única desinteressada e livre, pois não há nenhum interesse capaz de arrancar-lhe aplauso, quer seja interesse dos sentidos, quer do entendimento" (Cr. do Juízo., § 5, trad. W. Gola).
    
    O caráter livre e desinteressante do juízo estético, fez ser comparado com o jogo, característica explorada depois amplamente por Schiller.
    
    
    371. O belo, em Kant, ainda apresenta a propriedade estética, ou seja a de produzir um prazer que não é o prazer comum.  É o prazer estético de ordem muito especial, diferente da satisfação comum fundada apenas no interesse.
    
    Que pensar do desinteresse como caráter do sentimento despertado pelo belo?  De maneira geral não se pode negar haver ali uma verificação direta na ordem mesma dos fatos, onde o teorético do belo está sempre evidente. Não se aprecia o belo com os mesmos sentimentos egoístas que certo gênero de objetos ditos apenas úteis. Compreende-se isto mui depressa se considerarmos que o belo está no plano do verum ontológico; portanto, participa do caráter das noções de ordem contemplativa, especulativa. Não sucede o mesmo com as noções que referem assuntos do plano do útil, ou seja do bonum.
     Uma vez que o dado é incontestável, não podia passar por despercebido pelos filósofos em geral, que o sentimento estético, em torno de um tema contemplativo, tivesse uma índole peculiar, e que consiste em seu relacionamento com o teorético.  A contemplação das coisas foi descrita por Platão como algo eminentemente nobre.
    
     Neste mesmo sentido ponderou o neokantiano Ernst Cassirer:
    
    "O conceito de complacência desinteressada pelo que há de belo na natureza e na arte não representa de um posto de vista puramente intrínseco, uma tendência perfeitamente nova no desenvolvimento da Estética. Aparece já elaborado em Plotino e foi desenvolvido substantivamente nos tempos modernos por Shaftesbury, Moses Mendelson e Karl Philipp Moritz, este em sua obra Sobre a imitação plástica do belo. Não obstante, só poderia chegar a adquirir sua verdadeira importância mediante a posição sistemática que este conceito ocupa na teoria de Kant; só assim sobre a essência e a origem do espiritual, frente à filosofia e à preceptiva literária da época da ilustração" (Ernst Cassirer, Kant, vida e doutrina VI, 4, p. 381, ed. F.C. E. ).
    
     Insistiu Kant notoriamente na parte negativa desta propriedade, mostrando mais o que ela não é, do que efetivamente é em si mesma. Revela como a satisfação comum se processa com interesse, ao passo que o belo produz agrado sem interesse.
    Que significa "sem interesse"?
    
    O que ingressa como elemento constitutivo de algo, como aspectos de que se compõe, "interessa" a este objeto; por isso, é bom para ele; a vontade deseja tal coisa em favor deste objeto; procura criar o que falta, pondo-o na ordem da existência efetiva e real. Conseguir algo neste plano, produz "satisfação", de uma espécie que se pode denominar "satisfação comum", ou prazer da faculdade do desejar, a vontade. O mesmo ocorre quando a vontade aprecia os alimentos como bem do corpo humano, o remédio como meio de recuperação da saúde, o dinheiro como instrumento da aquisição; em todos estes casos, em última instância se trata do aspecto estrutural dos seres. Procurar com interesse, significa pois apreciar a constituição de um objeto e querer sua realização objetiva.
     Não ocorre exatamente o mesmo a propósito do belo, diz Kant.
    
     Este seu ponto de vista é próximo ao da filosofia clássica, quando esta reduz o belo a uma noção transcendental. O belo diz ajuste da coisa com um modelo arquétipo; simplesmente sob este ponto de vista, que é da ordem do verum, a beleza somente poderia influenciar a inteligência. Sendo o verum noção de ordem intelectual, é então natural que sirva como objeto apropriado da contemplação intelectual. A vontade, que aprecia as coisas apenas sob um ponto de vista de bonum, se apraz em apreciando o belo em favor da inteligência; eis onde se forma o prazer estético muito diferente do prazer comum. Entretanto, não explicou Kant o prazer estético com este detalhe que o liga à inteligência; ocupou-se simplesmente em mostrar o aspecto negativo: o prazer estético não é o prazer brotado do aspecto negativo: o prazer estético não é como o prazer brotado do interesse; o prazer estético resulta do belo, concebido como ajuste da coisa com o seu arquétipo, sendo este prazer localizado em uma faculdade específica, denominada "faculdade do sentimento"
    
     Faltou a Kant perspiciência para ajuntar o prazer estético e o prazer comum, embora estados distintos, em uma só faculdade; não viu como apesar de tudo, o prazer estético surge, na própria vontade que se emociona enquanto aprecia o belo como um bem da inteligência, apesar de não ser objeto como os demais que entram na constituição das coisas.
    
    Uma distinção material de objetos não diferencia as faculdades. O aspecto formal repousante do deleite não depende só da diferença material da objetos.  Do ponto de vista meramente psicológico, esta questão deverá ser aprofundada ainda (vd Estética psicológica. 1963y000).
    
    
    372.  A leitura atenta dos vários textos kantianos que aludem ao prazer estético, nos convence de que nenhuma vez Kant analisou profundamente a constituição intrínseca do prazer estético, ocupando-se apenas em distingui-lo exteriormente da satisfação resultante do interesse.
    
     Eis um texto em que se distinguem os dois tipos de sentimento, o estético e o prazer comum:
    
    "O agradável e o bom tem ambos uma relação com a faculdade de desejar e, enquanto a tem, levam consigo aquela satisfação patológico-condicionada (mediante estímulos) e este uma satisfação pura prática. Esta satisfação se determina não só pela representação do objeto, senão, ao mesmo tempo, pelo enlace representado pelo sujeito com a existência daquele.  Não só o objeto apraz, senão também sua existência.
    
     Em troca o Juízo do gosto é meramente contemplativo, isto é, um juízo que, indiferente ao que toca à existência de um objeto, enlaça a constituição deste com o sentimento de prazer e dor. Não vai, porém, esta contemplação mesma tão pouco dirigida a conceitos, pois o Juízo do gosto não é um juízo de conhecimento (nem teórico, nem prático) e portanto, nem fundado em conceitos, nem que os tenha como fim" (Crítica do Juízo, 5).
    
    Subentendendo-se o "conceito" como "fim objetivo", isto é, fim objetivado pela vontade. Este fim objetivo apenas produz a satisfação do interesse.
    
     "A obtenção de um fim formal é acompanhada de um sentimento de prazer" (Crítica do Juízo, Intr. VI).
    
    Pouco depois: "Em realidade, se na coincidência das percepções com as leis, segundo conceitos gerais da natureza ( as categorias), não encontramos, nem podemos encontrar, o menor efeito sobre o sentimento do prazer em nós, porque o entendimento, nisto, procede sem intenção alguma necessariamente, segundo sua natureza, por outra parte, em troca, a possibilidade descoberta de unir duas ou mais leis empíricas e heterogêneas da natureza sob um princípio, que as compreende a ambas, é o fundamento de um prazer muito notável, a miúdo até de uma admiração, inclusive de uma tal admiração, que não cessa, ainda que já se esteja bastante familiarizado com o objeto da mesma" (Crítica da Juízo, Intr.VI).
    
    "Chama-se interesse uma satisfação que unimos com a representação da existência de um objeto. Semelhante interesse está, portanto, sempre em relação com a faculdade de desejar, seja como fundamento de determinação da mesma. Pois bem, quando se trata de si algo é belo, não se quer saber se importa a existência da coisa ou somente se pode importar algo a nós ou a algum outro, senão de como a julgamos na mera contemplação (intuição ou reflexão)" (Crítica do Juízo, 2).
    
    A seguir dá o exemplo concreto dos que apreciavam em Paris as coisas apenas pelo lado do interesse e por nada se impressionavam:
    
    "Se alguém me pergunta, se acho formoso o palácio que tenho ante meus olhos, posso contestar: Não me agradam as coisas que são feitas apenas para admira-las de boca aberta. Ou responder como aquele iroquês, que nada em Paris lhe agradava senão as pastelarias".
     Os exemplos de Kant não progridem na explicação; equivalem aos mitos de Platão, porque simplesmente exemplificam e nada mais. A contemplação especulativa do belo, produz o prazer. Mas não chegou Kant a perceber que este prazer pode ser exercido pela vontade enquanto aprecia o belo com objeto adequado da mente. Admitiu simplesmente o prazer estético, como propriedade do belo, sem maior explicação sobre a natureza da próprio prazer estético. Uma perspiciência mais profunda manda reunir sob um denominador comum ambos os prazeres, diferenciando-os apenas pelo objeto. Kant viu a diferença dos objetos, mas não o denominador comum que aproxima os dois prazeres. Talvez por isso adotou a desnecessária divisão das duas faculdades emotivas, a do prazer da vontade e a do sentimento.
    
     374.  Em Kant também a arte é produtora de sentimento estético. O motivo se encontra na circunstância de se enquadrar a objeto artístico no esquema da finalidade formal, como já acontece no belo.
    
    Revestem-se as obras de arte indubitavelmente de uma "finalidade formal", plasmando-se de acordo com um idéia exemplar.
    
    Refere-se também Kant aos organismos dos seres vivos, em que a finalidade interna se evidencia mui claramente.
    
    Organismos e obras de arte se manifestam muito mais depressa enquadrados dentro da intencionalidade, visto que se comportam como  totalidades, em que as partes exercem funções.
    
    Achamos, entretanto que a arte não só agrada como obra eventualmente perfeita; a arte exerc e também uma função teorética, porque como expressão fala ao entendimento. Ser expressão, eis o que o apetite pode apreciar como um bem, passando dali a ser algo apreciável, ou seja, estético. Enquanto o intelecto atende à mensagem de expressão, exerce um conhecimento, alcança o objeto como verum. A vontade, em apreciando dito bem da inteligência, goza de um sentimento, que se distingue dos sentimentos comuns; tal sentimento, resultante de um objeto do círculo mental, produz um sentimento específico, que chamamos estético-artístico.
    
     375. Pretendeu Kant que nos objetos do "entendimento" não encontramos e nem podemos encontrar o menor efeito sobre o sentimento do prazer em nós.
    
     Sobre esta assertiva há duas contestações a fazer.
    
     A primeira é a de que tais objetos também produzem sentimento estético, apesar da alegação de Kant.
    
    E a segunda de que o próprio belo pressupõe tais conhecimentos, de sorte a exigir uma certa representação constitutiva dos objetos oferecidos pelo "entendimento".
    
     Tais objetos, obtidos pela faculdade do entendimento, ainda que falem apenas da estrutura das coisas, isto é do "interesse", contêm contudo aspecto informativo e por isso também produzem sentimento estético.
    
    O que efetivamente produz o agrado estético não está substancialmente naquilo que se conhece; não importa então, que o objeto conhecido nos fale do belo ou do feio, das comparações com o arquétipo ou dos elementos constitutivos de interesse. O saber, simplesmente pelo saber, nos agrada; não importa que este saber seja de "interesse", ou "sem interesse"; em ambos os casos este saber atualiza uma faculdade de conhecimento. Ainda que o conteúdo do conhecimento nos possa desagradar, o simples saber agrada.
    
     Sentimentos comuns e sentimentos estéticos andam de mãos dadas. A diferença que ocorre, no poeta que contempla as flores e na florista que as pretende levar ao  mercado, não está em que haja sentimentos estéticos no poeta e sentimentos de interesse na florista; o que ocorre é que um atende à visão simplesmente e a outra as restantes preocupações; mas também a florista, ao mesmo tempo que exerce sentimentos de interesse, possui afetividade estética. O concuspiscível se desdobra em muitos leques, de direções, associáveis.
    
    Não é por ser belo, mas por ser teorético que o belo provoca o sentimento estético, mas por ser belo, poderá um objeto constituir-se como eminentemente teorético, como objeto o mais apreciado; teríamos, então o sentimento estético-belo.  Quanto à expressão artística, em virtude de sua poderosa maneira teorética de falar ao intelecto, produz, por isso mesmo, forte sentimento estético, mas por ser teorético; no caso teríamos um sentimento estético-artístico. Assim também com qualquer outro conhecimento teríamos um sentimento estético; não resultaria da circunstância de ser uma noção algébrica, ou química, ou filosófica, mas em virtude da teoreticidade. Desde que o intelecto possa conhecer algo, obteve como seu objetivo o verum; a vontade aprecia tal bem em benefício do intelecto, e se aquieta num sentimento estético.
    
    Em assim sendo, não nos parece aceitável o ponto de vista kantiano de que não produzam sentimento estético os conceitos formados pelo "entendimento": Unidade, pluralidade, totalidade, realidade, negação, limitação, substância e acidente, causa e efeito, ação e paixão, possibilidade e impossibilidade, existência e não existência, necessidade e contingência. Também tais coisas nos oferecem um prazer muito especial ao serem conhecidas.
    
     377. A outra observação a fazer é a de que o próprio belo pressupõe as representações constitutivas de objeto, de que se ocupa o entendimento. Ainda que o belo seja um conceito em função a um arquétipo, materialmente aquilo que é posto em função ao arquétipo tem de ser algo em si, quer seja finito, quer infinito. Sobretudo as coisas finitas são muitas, e todas poderão ser belas. Não fossem as coisas belas algo em si, não poderiam diferir entre si.
    
    Quando as coisas nos agradam, ocorrem duas perspectivas, que se fazem conhecer: o conhecimento da coisa em si, cuja representação constitutiva há de ser conhecida previamente,  e o conhecimento de sua perfeição em realce.
     Herder, Ziehen, Volkelt, Kainz insistem na representação constitutiva como elemento participante do belo.
    
    "A estética kantiana padece do vício fundamental de não atender no campo do puramente estético às representações de significado. Kant passa por alto, ao proceder assim, um fato tão simples como o de que, para poder sentir complacência estética por uma coisa, é necessário, antes de tudo, saber algo a seu respeito (isto é ter uma representação de seu significado): a concepção de todo objeto pressupõe o conhecimento dele. Ademais a argumentação kantiana peca de inconsequente. Se um cavalo, para agradar-nos, tem necessariamente de aparecer vinculado à representação de significado correspondente; tampouco um pássaro exótico ou um caracol podem exercer uma impressão estética em nós, se prescindirmos do que eles são, ao contemplarmos este objetos. Kant se deixou induzir ao erro de que para que uma flor nos agrade, não necessitamos de ter o conceito científico dela, concluindo dali que ante objetos como flor, o colibri e o caracol poderiam considerar- se também supérfluos e até prejudiciais a simples representações do significado. Herder (Kalligone, c. 1, parte IV), o contraditor de Kant, via com mais clareza este ponto. Segundo ele, para poder apreciar a beleza peculiar dos seres e da vida, das forças e qualidades das diferentes espécies vegetais e animais, necessitamos ter uma certa representação deles. No que a estética metafísica chamava as idéias das coisas vai incluída a representação de seu significado" (F. Kainz, Estética, p. 62, ed. Esp. , 1952).
    
     E seria verdade que as noções que se dizem em relativo, nada contêm de constitutivo
    
     Também as determinações relativas, como verdade e beleza, bondade e valor em geral são determinações com algum fundamento; a diferença essencial entre as noções transcendentais e categoriais é a de que as primeiras transcendem as fronteiras das categoriais, ao passo que as categoriais simplesmente se fecham em seu espaço.
    
    Além disto, algumas delas, - ser, algo, coisa, - se dizem simplesmente em absoluto; em relativo estão outras, - verdade, bem, belo, - e que não são todas, e supõem as anteriores.
    
    
    II - Essência do belo em Kant. 0764y379.
    
    
     380. Para Kant o belo, em última instância, lembra perfeição, - conforme já advertido. O belo é o objeto sob a perspectiva da situado dentro do "fim formal", ou gênero ideal a que pertence.
    
     Enquanto o belo assim se estabelece, não se reduz a um "conceito", que diz algo do objeto em si mesmo quando visto em seus componentes. Mas refere uma noção que situa o objeto em função a um termo exterior.
    
    Kant, expondo esta doutrina dentro de um contexto peculiar, se torna meticuloso e original.
     A circunstância de distinguir entre duas faculdades, a do Entendimento e a do Juízo traz para dentro da discussão tecnicismos, que podem confundir no primeiro instante, mas depois conduzem às vantagens que sempre são própria das denominações restritas às áreas específicas.
    
     O entendimento reúne os dados singulares sob um gênero universal. Mas, no entendimento ocorre a síntese do singular sob o universal, como no conceito que buscava Sócrates, quando inquiria pela essência. No juízo da Faculdade do juízo, segundo Kant, o universal funciona à maneira de arquétipo, como a idéia de Platão, que paira como modelo para os muitos indivíduos do gênero. Em Aristóteles, a idéia de Platão é o ato a que toda potência aspira.
    
    Tomás de Aquino funde o exemplarismo de Platão no aristotelismo. O logos dos estóicos e de Plotino, mais uma vez comportam-se como gêneros ideais.
    
     Em Kant permanece, à seu modo, o velho exemplarismo, em modelos ideais, em função dos quais a Faculdade do juízo julga os objetos; depois de empiricamente conhecidos pelos sentidos e construídos pelos doze estratos das categorias do Entendimento, sobra ainda à Faculdade do juízo julgá-los, como um todo, em função ao "fim formal" exterior.
     As doutrinas de Kant tiveram continuidade. Goethe, com suas concepções de caráter biológico sobre a ordem do mundo, não pretendeu referir-se senão à mesma idéia universal imanente e diretora. Schiller aumenta a importância do formal. Enfim, Hegel o faz ser o Espírito Absoluto.
     Hegel refere-se com entusiasmo à Estética de Kant e viu, na subordinação dos objetos ao arquétipos, uma conciliação entre a natureza e o espírito. Adiantemos que para Hegel as coisas materiais são belas quando vistas como uma das fases da dialética; em sendo toda a realidade uma só grande idéia, que se pensa a si mesma em fases progressivas, ela tem um momento que é o sensível ( a natureza ) e que quando se vê como idéia tornada sensível, se diz bela. E assim, o belo e a arte são a conciliação entre o espírito e a matéria.
    
    Ponderou Hegel sobre Kant:
    
     "Do ponto de vista histórico, só se começou a conhecer e apreciar a arte, a partir do momento em que ela foi considerada como nós o fazemos... só quando a filosofia transpôs definitivamente a oposição, pôde este apreender o conceito próprio e o da natureza.... Vou eu esboçar com brevidade a história destas evolução.... Para,  logo de início, darmos uma definição muito geral, dizer-la-emos formada pela concepção que vê na arte um meio onde se opera a conciliação do espírito abstrato, descasado em si mesmo, com a natureza" (Hegel, Estética, I, Intr. C. 3, 1, trad. O. Vitorino).
    
    
    382. O ato que a potência aspira, ou o modelo a que o individual se subordina, assume o caráter de fim, ou seja, de "fim formal". Isto quer dizer, assume o caráter de forma, ou segundo a qual se plasma o indivíduo, ou segundo a qual a potência se atualiza.
    
    É a forma interior que orienta o plasmamento da obra que se realiza. Como um Logos a animar a ação do movimento, a forma dirige o crescimento da planta e do animal. Assim também o arquétipo, de modo geral, é o fim formal que plasma todos os seres.
    
     O termo "julgar" se aplica, portanto, de dois modos; no simples conceito, julgamos afirmando o conceito de um sujeito; na idéia arquétipa, julgamos definindo se um indivíduo concreto se ajusta ao arquétipo. Semelhantemente, o químico diz de como se constituem os elementos (primeiro juízo, em conceitos); o magistrado julga o réu, enquadrando-o fora ou dentro da lei (segundo juízo, em função ao arquétipo).
     Citamos Kant: "Como o conceito de um objeto, enquanto encerra ao mesmo tempo a base da realidade deste objeto, se chama o fim, e como a concordância de uma coisa, com aquela qualidade das coisas que só é possível segundo fins, se chama a finalidade da forma das coisas mas, resulta assim que o princípio do juízo, com ralação à forma das coisas da natureza sob leis empíricas em geral, é a finalidade da natureza em sua diversidade. Isto é, a natureza é representada mediante este conceito, como se um entendimento encerrasse a base da unidade do diverso e suas leis empíricas... Este conceito é também completamente distinto da finalidade prática (da arte humana, ou também dos costumes) embora seja pensado em analogia com a mesma" (Crítica do Juízo, Intr. IV).
     Dali resulta uma "lei de especificação da natureza" porque põe certos esquemas a que os dados empíricos devem obedecer, dentro dos quais se organizam em espécie e gêneros.
    
    "O juízo tem pois também um princípio a priori para a possibilidade da natureza, porém só em relação subjetiva, em si, por meio do qual prescreve uma lei, não à natureza (como autonomia) senão a si mesmo (como heautonomia) para a reflexão sobre aquela e pode chamar-se lei da especificação da natureza em consideração de suas leis empíricas e esta lei não a conhece ela a priori na natureza, senão que a admite para uma ordenação da mesma, cognoscível para o nosso entendimento, na divisão que ela faz de suas leis gerais, querendo subordinar a estas uma diversidade do particular" (Crítica do Juízo, Intr. IV).
    
    
    383. Reencontramos, portanto, em Emanoel Kant o conceito clássico da forma como finalidade. Todos os seres potenciais, quer seja a potência na ordem da essência (como a matéria) quer seja a potência na ordem do ser (como a essência diante da existência) tem como fim a realização plena do ato: a matéria realizando a forma, a essência atualizando-se na existência.
    
    Neste particular, o platonismo e o aristotelismo eventualmente coincidem nos fundamentos. Os esquemas de um essência absoluta, de um forma a realizar, de uma estrutura universalmente validada, atravessam da antiguidade, através da idade média, alcançando os tempos modernos, até chegarem a Kant. Reencontramos, pois em Kant o conceito clássico de forma como normatividade das coisas singulares e contingentes.
    
     Apenas o valor do conteúdo, este é que muda. Os esquemas absolutos permanecem válidos apenas para o plano transcendental, só no círculo das faculdades. Por isso sempre afirmamos, que a estética de Kant, no que diz respeito ao conteúdo, é nova como toda a sua filosofia, mas permanece na linha da tradição em tudo quanto se refere à essência. Aliás, a preocupação de Kant, nunca foi a da essência das afirmações mentais, porém da realidade do seu conteúdo. Antes de tudo faz a crítica do juízo, não a análise do que o juízo assevera como essência.
    
    " Sempre que, na metafísica anterior a Kant, se tratava o problema da forma individual do real, se lhe associava a idéia de um entendimento absolutamente ajustado a um fim, que havia sabido plasmar no ser uma forma originalmente interior, da que a realizada por nós em nossos conceitos não era mais que uma tradução e um reflexo...Kant leva a cabo também aqui essa transformação característica de todo o novo rumo do seu idealismo: A idéia converte-se, de uma potência objetivo- criadora existente nas coisas, em princípio e regra geral de cognoscibilidade das coisas como objetos de experiência" (Cassirer, Kant, 6, 3).
    
    
    384. Como já se observa, vai finalmente Kant descendo de suas transcendentes alturas platônicas, para o reino das coisas concretas dos dados empíricos.
    
    Kant valorizou muito mais o empírico do que Platão; este se desliga da matéria, influenciado pelo orfismo catártico dos pitagóricos e que retransmitiu para todo o neoplatonismo sempre caracterizadamente ascético.
    
    Situou-se Kant na origem do movimento romântico alemão. Apesar de sua extravagância e seu modo abstrato de escrever, sem imagens e até sem organização, ocupa-se de coisas como os gêneros e as espécies que enquadram os fenômenos empíricos.
     Embora tardiamente, observou que o quadro do mundo ainda não se havia completado com os apriorismos do entendimentos. Não bastava como ali se fazia pensar as coisas em termos de possibilidade e impossibilidade, realidade e irrealidade, substância e acidente, causa e efeito, etc, etc.
    
     Grande era a seriação das dozes categorias , entretanto se fechava num certo setor de determinações que não abarcava a ordem que ainda se observava no mundo dos dados empíricos a obedecer arquétipos, gêneros e espécies, leis e finalismos em geral.
    
     Não determinavam as categorias porque algo devesse se subordinar a tal ou tal gênero ou espécie, seguir tais ou tais normas de perfeição a realizar. Não explicavam as categorias porque   a devesse ser   b   ou   c. É uma questão que se denominou de ordem qualitativa, própria do juízo, diferente da quantitativa e estrutural, que as categorias do entendimento determinavam.
    
     Enquanto os conceitos da faculdade do entendimento só formulavam princípios supremos com que se construíam os objetos, ainda restava por se fazer a coordenação da multitude heterogênea dos fenômenos concretos, em jerarquias crescentes, para enfim pô-las em todos absolutos, tal como Platão via as coisas particulares dentro de um todo, a essência, o conceito metafísico. Em tudo Kant coloca-se no esquema clássico das essências gerais e absolutas, com a diferença de que elas se constituem apenas (sob o ponto de vista do conteúdo criteriológico) como formas aprioristicamente afirmadas, sem ressonância no plano real ou ontológico.
    
    
    385. É possível atender ao andar da doutrina dos transcendentais, mostrando como Kant adere à mesma, ora bem, ora mal, ora omisso.
    
     Primeiramente importa atender a distinção entre o modo de se processar a predicação nos transcendentais transcendental e o modo de se processar a predicação nas categorias.  Constata-se aqui, como Kant se aproximou da noção escolástica da predicação transcendental; mas não conheceu a totalidade da esquema das transcendentais. Num segundo tempo, passando a atender à distinção entre os muitos transcendentais, verifica-se que Kant se preocupou em distinguir entre o belo e o bonum; mas que se preocupou menos em distinguir entre o belo e a verdade ontológica.
    
    Num terceiro momento é interessante apreciar como Kant apreciou a doutrina do arquétipo, a " finalidade formal",  necessária a fim de que ocorram as noções transcendentais de verdade e beleza. Sobretudo aqui importa comparar coincidências de Kant com a doutrina dos clássicos.
    
    Num quarto momento, há a insistir contra Kant, que as noções transcendentais, embora não determinem o objeto do mesmo modo como as categorias, o determinam contudo também ab intríseco, como noções formalmente contidas, embora implicitamente, em todo ser.
     Com este plano se pode proceder a uma análise da doutrina do belo de Kant, sem se deixar dirigir por ele mesmo, para não se deixar isolar em considerações extemporâneas ao tema.

    Kant próximo à noção aristotélica e escolástica do transcendental. 0764y387.
    
    
    388. Aquilo que Kant sempre descreve como "sem interesse" e que se diz coisa tomada como um todo, é nada mais do que uma exposição confusa da doutrina aristotélica dos transcendentais.
    
    Já explicamos diversas vezes o que significa "sem interesse", para diferenciar esta família de noções de uma outra. O objeto construído pelo "entendimento", assume as peculiaridades nítidas da predicação "categorial", em que cada elemento distingue-se do outro realmente e nenhum inclui, portanto ao outro diretamente; as categorias são camadas estanques, que constróem o edifício da realidade, como tijolos que se sobrepõem.
    
    Mas observa Kant a ocorrência de noções que não se dizem do objeto com a mesma ordem de predicação; envereda então pela predicação transcendental no sentido clássico.
    
     Uma destas noções que aponta é a da beleza. Já temos explicado muitas vezes, como Kant mantém a noção clássica do belo, que se diz de algo enquanto se ajusta ao arquétipo. Agora, já não visamos diretamente a noção do belo enquanto belo, mas sua índole transcendental.
    
     É evidente que uma qualidade que se predica de uma coisa, enquanto estas se ajusta a um arquétipo, não é simplesmente categorial. A nova determinação assume as características dos modos transcendentais. Está mesmo prevista na relação clássica destes modos. Evidencia-se, portanto, uma aproximação de Kant com a noção aristotélica e escolástica dos transcendentais.
    
    
     389. Mas, ao se aproximar Kant da noção dos transcendentais, conservou-se  numa posição notoriamente incoativa, como a de Platão. Aborda o assunto sem atingir a totalidade. A doutrina dos transcendentais depois de Platão ingressou num desenvolvimento nítido com Aristóteles e sobretudo com Tomás de Aquino.
    
    Este lança a questão primeiro simplesmente, portanto sempre em absoluto, em que ocorre uma primeira noção transcendental, que é a da próprio ser considerado como tal (ens ut sic) .
    
    Depois o ser é considerado segundo um certo ponto de vista (secundum quid). Agora a consideração passa a ocorrer em absoluto, e então afirmando, temos o ser considerado como res (coisa ou essência) e negando temos o ser considerado como unum (unidade indivisa em si). Ocorrendo a consideração em sentido relativo, temos novamente o ser considerado, ao afirmar, como verum e bonum; ao negar, como aliquid (o contrário do nada, como existência).
    Todas estas noções se apresentam inegavelmente como transcendentais; de nenhuma sorte se reduzem às categorias, porque consideram o objeto sempre como um todo constituído.
    
    Ora, Kant, ao considerar o objeto como um todo, como pretendeu, não devia limitar-se a noções isoladas, como por exemplo a do belo. Um desenvolvimento sistemático tem de considerar não apenas as "finalidades formais", o que é situar-se no círculo do verum apenas, mas a todas as noções desta índole.
    
    Nada mais completo do que o quadro de Santo Tomás, em que o objeto, considerado como um todo, ora é considerado simplesmente, ora secundum quid; este ora em absoluto, ora relativamente; o absoluto ora afirmando, , ora negando; o relativo, também ora afirmando, ora negando. As instâncias estão completas; o esquema, portanto, se fecha como integralizado.
    
    
    390. Dentro, porém, da noção isolada do belo, Kant desenvolve esta noção com nítida consciência de que se trata de um transcendental. É o que sempre fica muito claro quando afirma que o juízo estético opina sobre o objeto tomado como um todo; sem afirmar dele qualquer determinação categorial, o julga em função a um arquétipo e pelas propriedades que dali decorrem, como a esteticidade.
    
    Desenvolvendo esta doutrina inteiramente isolada das concepções históricas e ainda influenciado por notório vezo pelos tecnicismos, Kant contribuiu também para uma linguagem que não deixa de apresentar um relativo valor. Quando um clássico se exprime em predicação categorial e transcendental, Emanoel Kant nos fala do mesmo assunto nas expressões que dizem julgar um objeto "como um todo" (predicação transcendental) e julgá-lo "como conceito" (predicação categorial).
    
    O que o belo não é para Kant? Em sua terminologia técnica, se pode dizer:
    
    - O belo não é conceito; porque conceito é uma forma constitutiva do objeto.
    
    - O belo não é natureza; porque a natureza é o objeto construído pelas doze categorias.
    
    -  O belo não é objeto; porque o objeto se diz antes de tudo das partes que constróem o todo categorial.
    
    -  O belo não é representação; porque representação é a projeção conceptual que o entendimento lança diante de si quando envolve os dados sensíveis com as formas apriorísticas chamados conceitos.
    
    - O belo não é idéia, porque a idéia somente nasce do produto da razão, quando raciocina e obtém conclusões sem realidade.
    
    -  Enfim, o belo como afirmação não é um juízo lógico, porque a afirmação lógica é a que afirma partes constitutivas e estruturais do objeto, como o faz o entendimento.
    
    
    391. Leiamos um texto típico de Kant, em que tanto se observa um tecnicismo evidente, como a ocorrência de sua noção do belo como transcendental:
    
    " Para decidir se alguma coisa é bela, ou não, referimos a representação, não pela compreensão do objeto de cognição mas pela imaginação (talvez em conjunção com o entendimento) do indivíduo e a sua sensação se prazer e dor. O juízo de gosto não é , pois um juízo de conhecimento; portanto, não é lógico, senão estético, entendendo por isto aquele cuja base determinante não pode ser mais que subjetiva. Toda a relação das representações, inclusive às das sensações, pode porém, ser objetiva (e ela significa então o real de uma representação empírica) mas não a relação com o sentimento do prazer e dor, mediante a qual nada é designado no objeto, senão que nela o sujeito sente de que modo é afetado pela representação " (Kant, Crítica do juízo, § 1).
    
    "Para encontrar que algo é bom tenho que saber sempre que classe de coisa deva ser o objeto, isto é, ter um conceito do mesmo: para encontrar nele beleza não tenho necessidade disso" (Ibidem). E agora um texto de Cassirer, da escola neokantiana da Magdeburgo, e interpretando Kant:
    
    "Aqui não se desintegra o fenômeno em suas condições, mas como se apresenta diretamente, não penetramos em suas causas ou em seus efeitos conceptuais, mas nos detemos no conceito mesmo, para nos entregarmos exclusivamente à impressão que a sua simples contemplação desperta em nós. Em vez de desintegrar e isolar as partes e descobrir suas relações de supraordenação com vistas a uma classificação conceptual, trata-se de captá-las a todas em conjunto e de agrupá-las dentro de uma visão total dentro de nossa imaginação... destacamos nelas sobretudo seu valor puro de presente, tal como se revela à intuição mesma" (Cassirer, Kant, 6, 4).
    
    
    392. Reportando-se engenhosamente aos quatros grupos de categorias, afastando das mesmas as noções do belo, definiu Kant por 4 vezes o belo; ao mesmo tempo o distingue às vezes do bonum, enunciando diretamente a essência do belo enquanto referência a um arquétipo; outras vezes aponta diretamente para a sua propriedade estética. E assim ora alegando aspectos negativos, ora positivos, ora os efeitos, as definições de Kant, vão conduzindo confusamente à noção do belo.
    
    Eis as definições que ele expôs ao fim dos parágrafos em que as defendia:
    
    
    a) "Definição do belo deduzida do primeiro momento (a qualidade). O gosto é a faculdade de julgar um objeto ou uma representação mediante uma satisfação ou um descontentamento, sem interesse algum. O objeto de semelhante satisfação chama- se belo" (Crítica do juízo).
    
    b) "definição do belo deduzida do segundo momento (a quantidade). Belo é o que, sem conceito, apraz universalmente" (9).
    
    c) "definição do belo, extraída deste terceiro momento (a relação). Beleza é a forma da finalidade de um objeto enquanto é percebida nele sem a representação de um fim" (19).
    
    d) "definição do belo deduzida do quarto momento. Belo é o que sem conceito, é conhecido como objeto de uma necessária satisfação" (22).
    
    
    394. Na primeira definição (a partir da qualidade) define Kant o belo alegando sua propriedade estética; o sentimento estético é um sentimento diverso daquele que resulta de um interesse. Está certo , como definição que indica a essência a partir da propriedade, mas não é a mesma essência. Não foi, portanto, Kant à essência do belo, aqui.
    
    Como método, na verdade o caminho que nos conduz à essência é a propriedade. Tem o belo como propriedade um sentimento, sem interesse. Quando na segunda definição sob o ponto de vista da quantidade, atribui ao belo a índole da aprazer universalmente, pretende afiançar que o juízo de interesse poderá não ser universal. Dever-se-ia, pois, dizer que "o vinho das Canárias me é agradável" e não simplesmente "o vinho das Canárias é agradável". Depois afirma: "com o belo ocorre algo mui diferente. Seria (exatamente ao revés) ridículo que alguém, que se julgasse possuir algum gosto, adiantasse estas palavras: este objeto (o edifício, o traje, o concerto, que ouvimos, a poesia) é belo para mim" (Crítica do juízo, 7).
    
    A observação de que o juízo do interesse poderá não ser universal, não é aduzida com acerto. Enquanto interesse, a noção se reduz ao bonum; o interesse como tal é também universal. Quanto aos casos particulares, em que o bonum se aplica estes certamente poderão oscilar. Também o belo nos casos particulares, admite a mesma restrição. O vinho das Canárias, simpliciter é sempre bom... E assim, uma flor simpliciter é sempre bela... Se entretanto cabe dizer o vinho é bom para mim, este "para mim" é próprio do falar a respeito do bonum; a noção do bonum, exatamente por ser interesse, se firma como interesse para alguém; no caso singular apontado, o interesse era em meu favor. Para individualizar a flor, usamos a expressão esta flor. Poderá esta flor não ser contudo bela, apesar de a flor simpliciter, como noção, sempre associar a noção de beleza. Portanto, também o interesse ou  bonum, é um transcendental.
    

    III - Kant e as distinções entre o belo e o bonum. 0764y395.
    
    
    396. Ao mesmo tempo que Kant distingue o belo, como algo "sem interesse" e os elementos indicados pelas categorias como algo "com interesse", distingue enter o belo e o bonum ontológico. Se reduzirmos o belo ao círculo do verum ontológico, temos a dizer que separou entre verum e bonum. Por que? Kant não esclarece , mas resulta nisto. E é  onde sua interpretação do belo vai notoriamente com a dos clássicos. Estes fixam o bonum como aquilo que convém; o verum como aquilo que se ajusta ao arquétipo, reduzido enfim o belo ao verum e não ao bonum.
    
    Que significa exatamente o "com interesse"? Bonum é a determinação em que incorre um ser enquanto convém a si mesmo; por servir para ser o que é; por ser do seu interesse. Neste sentido tudo o que constrói as estruturas de um ser, lhe serve como bom, portanto com interesse. As dez categorias de Aristóteles, enquanto controem o ser à maneira do aristotelismo, e assim também as doze categorias de Kant, enquanto estruturam o objeto à maneira do kantismo, são do "interesse" da coisa construída.
    
    Kant não parece ter examinado inteiramente em separado o "interesse" como noção transcendental, equivalente ao bonum do aristotelismo; era a mesma coisa.  Afirmava que as categorias como um todo, eram do interesse do objeto, mas não observava que o interesse em  si mesmo ocorria ao mesmo tempo como uma determinação qualificadora. Viu esta situação a propósito do belo; diz o belo algo do objeto, tomado como um todo diante do arquétipo. Assim o mesmo objeto, constituído como um todo, era algo de interesse diante de si mesmo.  E por isso o objeto apresentava-se como um bonum; também as categorias que o constituíam, cada uma, enquanto era um interesse para este todo, se determinava como um bonum, ou seja como um interesse.
    
    Também a noção do verum ontológico, que subrepticiamente aparece na sua definição do belo, não chegou ao desenvolvimento que poderia ter alcançado. O belo, como ajuste a uma finalidade formal, não é senão o próprio verum ontológico. Assim como as coisas convém à si e por isso se conformam ao seu arquétipo ideal e se dizem verdadeiras. O belo precisa uma nota ainda mais específica, para então se definir como verdade ontológica em realce.
    
    
    IV - Kant e os arquétipos do belo e da verdade ontológica. 0764y397
    
    
    398. O belo e o verum envolvem a questão do arquétipo. Distinguindo-se por este lado em comum do bonum. Prosseguiremos a exposição mostrando como Kant apresenta a questão do arquétipo. Aqui não nos interessa ainda o conteúdo meramente apriorístico, que pretendeu dar a esta noção, mas simplesmente a noção enquanto exprime uma essência; sob esta ponto de vista apenas, ocorre uma notável aproximação com as posições clássicas.
    
    Observou Kant ser difícil e penoso encontrar os arquétipos, leis gerais da natureza, os gêneros, enfim os princípios formais. A mesma dificuldade não ocorre no plano categorial; os conceitos se mostram prontamente, sendo logo enunciado o particular sob universal; o juízo determinante do "entendimento" subsume espontaneamente os dados empíricos sob o universal. "O juízo em geral, é a faculdade de pensar o particular como contido no universal. Se o universal ( a regra, o princípio, a lei) é dado, o juízo que subsume nele o particular (inclusive quando como juízo transcendental põe a priori as condições dentro das quais somente pode subsumir-se no geral) é determinante" (crítica do juízo, Intr. IV).
    
    No plano das noções transcendentais do belo e do verum, apresentam-se os dados empíricos, como as flores, as pedras , os animais, sem que prontamente tenhamos a noção exata do modelo arquétipo a que devam subordinar-se e em função do qual se dizem perfeitas e belas. A pesquisa da ciência e da filosofia dispende largos esforços par enfim alcançar um suposto arquétipo ideal, a essência metafísica, a finalidade formal, o gênero e a espécie.
    
    Kant apontou para este problema, ao mesmo tempo que indicava o ocorrência de tal família de noções: "Porém se só o particular é dado sob o qual ele deve encontrar o universal, então o juízo é somente reflexionante. O juízo determinante sob leis universais transcendentais que dá o entendimento não faz mais que subsumir; a lei lhe é apresentada a priori e não tem necessidade, portanto de pensar por si mesmo em sua lei, com o fim de poder subordinar o particular na natureza ao universal. Há porém formas da natureza tão diversas, e por assim dizer, tantas modificações dos conceitos gerais transcendentais da natureza, modificações que aquelas leis dadas pelo entendimento puro a priori deixam indeterminadas porque estas leis dizem respeito, em geral à possibilidade de um natureza (como objeto dos sentidos), que tem que haver, portanto, para determiná-las, também leis que se bem possam ser empíricas, contingentes para a apreciação do nosso entendimento, terão, contudo, se há que chama-las leis, (como o exige assim o conceito de uma natureza) que ser consideradas também como necessárias para um principio da unidade do diverso, ainda que este princípio nos seja desconhecido" (Crítica do juízo, Intr. IV).
    
    
    400. A finalidade seria o exato princípio a impor a unidade absoluta aos dados empíricos dispersos. Dali resultaria que os indivíduos devessem realizar-se dentro de certas normas de essência fixas; estas coincidiriam, em parte, com outras, fazendo em conjunto o gênero.  Cada essência estabelece-se com algumas propriedades que lhe são absolutas, nascem com isso, as leis, que se descobrem empiricamente, mas que são absolutos.
    
    Entendida a finalidade como certa norma absoluta a ser realizada pelos indivíduos, vê-se logo que em Kant a noção de finalidade conserva aquele sentido amplo que exerce nos clássicos. Neste sentido lembramos que Aristóteles dividira a constituição dos seres em quatro causas fundamentais; duas eram constitutivas intrínsecos do ser (causa material e formal) duas constitutivas extrínsecos (causa eficiente e final).
    
    Ora, no sentido corrente e normal, até na classificação aristotélica, a causa final seria sempre extrínseca; ambas as partes distanciar-se-iam e movimentar-se-iam como que mecanicamente para uma aproximação. Semelhante é o sentido em que se dizem finalidades apenas os objetivos a serem alcançados pela operação da vontade. Assim, o alimento é um fim buscado em benefício do corpo; é também deste plano, o chamado "fim último" do homem. A crítica da razão prática ocupa-se de tais fins; a eles os denominou Kant fins objetivos.
    
    As formas são fins, porque na verdade servem de ponto de chegada para a potência, cuja determinação vem da forma. E ainda reduzem-se a tais fins subjetivos, aos fins objetivos, porque a potência não pode por si buscá-los; uma causa exterior ao que é potencial, deve intervir para fazer passar a potência ao seu ato. Por isso, a um tempo, a potência busca a forma como fim formal, a causa eficiente a procura como seu objetivo.
    
    A doutrina aristotélica das causas apresenta-se como um sistema nervoso complexo, a reagir em todas as direções, como transmissões diversificadas, porém com a mesma origem inicial singela, que tudo reduz às quatro causas constitutivas. Em Kant se salvou alguma coisa do esquema, visto que também manipula com causas formais que ora são apenas formas, ora, finalidades formais.
    
    
    401. Usando linguagem eminentemente  técnica e só válida no contexto kantiano, afirma o filósofo de Koenigsberg que o "o juízo do gosto é completamente independente do conceito de perfeição". Para Kant, o belo, interpretado como ajuste à finalidade formal ou subjetiva, somente poderá envolver o predicado da perfeição se diz somente a propósito da finalidade objetiva, como é visada pela vontade quando busca os fins em favor de algo. Este algo é, então, concebido à maneira de conceito ( do entendimento) para ser anteposto à faculdade volitiva, que o busca como seu bem; se busca é exterior, o objeto se diz utilidade, se interior, uma perfeição.
    
    "A finalidade objetiva é: ou externa, isto é, a utilidade, ou interna, isto é, a perfeição do objeto. Que satisfação em um objeto, que por ela chamamos belo, não pode descansar na representação de sua utilidade, se colige suficientemente dos dois anteriores capítulos, pois então não seria uma satisfação imediata no objeto, e este último é a condição essencial do juízo sobre a beleza. Porém, uma finalidade objetiva interna, isto é, a perfeição, aproxima-se mais ao predicado da beleza, e por isso notáveis a tem tomado por idêntica à beleza, ainda que acrescentando: quando é pensada confusamente. É da maior importância, decidir, em uma crítica do gosto, se a beleza deixa-se efetivamente resolver no conceito de perfeição" (Crítica do juízo, 15). Ocorre aqui uma alusão também à estética de Baumgarten.
    
    Depois de comparar fim objetivo e fim subjetivo, vai concluindo Kant: "representar-se uma finalidade formal objetiva, porém sem fim, isto é, a mera forma de uma perfeição - sem matéria alguma nem conceito com que concordar-se, ainda que fosse somente a idéia de uma conformidade a leis, em geral - é uma verdadeira contradição". "Assim, mediante a beleza, como finalidade formal subjetiva, não é pensado de modo algum uma perfeição do objeto como finalidade suposta formal, porém sem embargo, objetiva; e vã é aquela distinção enter o conceito do belo e do bem que considera a ambos como distintos somente pela forma lógica, e segundo a qual, o primeiro seria um conceito confuso, o segundo um conceito claro da perfeição, idênticos, além disto, em seu conteúdo e origem, pois, então entre eles não haveria diferença específica alguma, senão que o juízo de gosto seria um juízo de conhecimento, igualmente que o juízo mediante o qual uma coisa é declarada boa".
    
    
    V - Kant e a índole constitutiva dos modos transcendentais.  0764y403.
    
     404.  Seria verdadeira a afirmação kantiana de que a noção do belo nada diz da estrutura ou constituição do objeto? Não convence a afirmação de que o belo é "sem conceito". Se de uma parte tem Kant muita razão em apontar o modo diferenciado com que o belo se predica das coisas, modo este que não se identifica com a maneira de se predicarem as categorias, não tem contudo razão ao dizer simplesmente que o belo nada diz do objeto constitutivamente. Os transcendentais também afirmam algo de intrínseco ao objeto, embora de outra maneira. Na conceituação aristotélica e escolástica, a doutrina mui subtil dos transcendentais adquiriu feições bastante definidas, de sorte a ser possível a discussão clara e com uma terminologia técnica inconfundível. O mesmo não ocorre no kantismo; assume a discussão o aspecto penoso de um inquirição às vezes impenetrável.
    
    Na filosofia clássica as noções transcendentais não se distinguem realmente entre si, como ocorre com as categorias, como as de substância, qualidade, quantidade, etc. mantém-se intimamente associadas e se coordenam de sorte a terem no ápice o ente e em seu conteúdo implícito as restantes cinco, res, unum, aliquid, verum, bonum.
    
    Dizem elas algo do objeto? Muitíssimo. Nada diz tanto quanto o ser. Considerando o ser, como o contrário do nada, digo-o como aliquid, portanto como algo que existe; ora, também isto quer exprimir algo de muito explicativo. Se digo, unum, considero algo em que o ser se determina, como indiviso. E assim também exprimo determinações do ser quando o considero como verdade e bem. Do mesmo modo, muito digo quando declaro o ser como belo.
    
    
    405. A circunstância de havermos tomado o objeto como um todo não resulta em que não tenhamos dito nada de constitutivo; ocorre exatamente o inverso, porque afirmamos uma constituição total.
    
    Quando se diz ser, dizemos tudo... continuamos a desdobrar o ser, ao explicitarmos as suas restantes determinações, como o "contrário do nada", como "indivisão", como "verdade", como "bem", como "essência" ou coisa.
    
    A totalização é própria da predicação transcendental. Não diminui a afirmação; aumenta-a. Portanto, sobretudo as noções transcendentais se configuram como conceitos de interesse, como objetos eminentemente lógicos, como elementos construtores dos objetos.
    
    Para Kant ocorre, entretanto, uma situação muito especial. Ele constrói o objeto mediante formas apriorísticas, nada surge a começar de dentro; os dados são apenas fenômenos e tudo o mais vem por acréscimo. E assim, poderia parecer que o belo, ao ser predicado do objeto como um todo, resultasse em nada dizer do objeto, exatamente porque resulta de uma forma acrescido.
    
    Contra esta observação temos a dizer que também o entendimento acresce as formas das categorias, criando o objeto; deveríamos então observar que também as categorias nada afirmam de constitutivo do objeto; recebendo o fenômeno como um todo, o entendimento o reveste de formas. Mas, o objeto não se diz do fenômeno envolvido mas do resultado, este se constitui pelas formas com que foi construído. Desta sorte, também o belo envolve o objeto aprontado pelo entendimento; o novo resultado, também é objeto, tal qual como quando o entendimento tomava o fenômeno sensível e o revestia para criar um objeto.
    
    Concluindo sobre Kant e a essência do belo, o que resultou é que sua análise se apresenta muito apreciável. O belo não fora sequer estudado como transcendental pelos próprios medievais; estes que se haviam ocupado tão amplamente de outros aspectos dos transcendentais, não enveredam contudo pela região do belo como transcendental. O que em Tomás de Aquino é pouco mais do que implícito, em Kant, sob terminologia inteiramente diversa, amplifica-se; embora não ganhe ainda a clareza que os transcendentais podem adquirir, o belo, teve em Kant um adiantamento considerável. Todavia Kant, nunca progride sem neblina e entraves tecnicistas.
    
    
    § 2-o. O belo como forma viva (Schiller). 0764y407.
    
    
    408. O romântico Frederico Schiller (1759-1805) define a beleza como um estado espontâneo, chamado instinto do jogo, que equilibra dois outros instintos, o sensível e o racional. Enquanto Kant definia o belo em função a uma faculdade teorética, Schiller leva a questão para um plano prático de espontaneidades instintivas. Enquanto para Kant o belo estabelecia uma situação gnosiológica, para Schiller se trata de uma dinâmica. Agora, o sensível, chamado vida, e o racional, que estabelece a forma, ou lei, se equilibram na "forma viva", que é portanto a definição do belo. A harmonia da imaginação sensível e da forma, resultam em beleza.
    
    Kant passivamente dizia que a faculdade do juízo, em operação reflectante, julgava os objetos em função ao gênero universal (fim formal arquétipo). Schiller mostra haver uma certa luta entre a matéria sensível e sua forma ideal; no equilíbrio estaria a perfeição, isto é,  na forma viva. Hegel, interpondo a dialética dos contrários que se superam, faz o movimento rolar do sensível material na direção do Espírito. Portanto, a Crítica do Juízo, de Kant, as cartas sobre a educação estética, de Schiller, e a Estética, de Hegel, formam uma trilogia histórica das mais expressivas.
    
    A beleza é sensível, pois ela ocorre como união da forma e da matéria. Portanto, o belo é a perfeição da matéria sensível. Estão aqui os ecos de Baumgarten, para quem a beleza é objeto dos sentidos e a verdade da inteligência. Há, naturalmente, em Schiller o aspecto kantiano, de que a perfeição da matéria ocorre enquanto exerce-se em função ao arquétipo, esquecida a perspectiva do interesse.
    
    Leiamos Schiller: "a beleza, seguramente, é obra da livre contemplação, e com ela do sensível, como o deixaríamos para o conhecimento da verdade. Esta é o puro produto da separação de tudo que é material e contingente. Objeto puro no qual não deve subsistir limitação alguma do sujeito, pura espontaneidade sem mescla de atitude passiva. "E bem verdade que mesmo da mais alta abstração existe regresso à sensibilidade, pois o pensamento afeta o sentido interior e a representação da unidade lógica ou moral torna-se num sentimento de harmonia sensível. Quando nos comprazemos no conhecimento, entretanto, distinguimos muitos claramente nossa representação de nossa sensação, e vemos nesta última algo de contingente que poderia faltar sem que o conhecimento cessasse e a verdade deixasse de ser verdade. Seria um empreendimento vão, entretanto, separar da representação da beleza esta relação com a faculdade sensível; por ser insuficiente pensar uma efeito da outra, é necessário pensar as duas a um tempo, como causa e como efeito recíprocos "
    
    Leiamos textos para apreciar a ação plasmadora da forma ideal:
    
    "O objeto do impulso sensível, expresso num conceito geral, chama-se vida em seu significado mais amplo; um conceito que significa todo o ser material e toda presença imediata nos sentidos. O objeto do impulso formal, expresso por um conceito geral, é a forma (figura), tanto em seu significado próprio como metafórico; um conceito que compreende todas as disposições formais dos objetos e todas as suas relações com as forças do pensamento. O objeto do impulso lúdico, representado num esquema geral, é a forma (figura) viva; um conceito que denomina todas as disposições dos fenômenos, tudo que entendemos no mais amplo sentido por beleza"
    
    Um pouco à frente: "o homem, sabemos, não é exclusivamente matéria nem apenas espírito. A beleza, portanto, consumação de sua humanidade, não pode ser exclusiva e meramente vida, como quiseram observadores argutos que se ativeram com excesso ao testemunho da experiência, solicitados pelo gosto do tempo; nem ode ser mera figura, como julgaram sábios especulativos, demasiado distantes da experiência, e artistas filósofos, que se deixaram conduzir em excesso pelas exigências da arte para explicá-la: ela é um objeto comum de ambos os impulsos, e portanto do impulso lúdico. Este nome é plenamente justificado pela linguagem corrente, que costumam chamar de jogo tudo aquilo que não sendo subjetiva, nem objetivamente contingente, ainda assim não tem necessidade interior nem exterior. Se o espírito encontra, ao intuir o belo, um feliz compromisso entre a lei e a necessidade, é por repartir-se entre os dois, furtando-se ao império material como as do impulso formal tem validez e seriedade plenas, pois, que no conhecimento, um se refere à realidade das coisas e o outro à sua necessidade, pois que na ação, o primeiro visa a manutenção da vida e o segundo a da dignidade, visando os dois, portanto, a verdade e a perfeição" (Ibidem). É importante notar que a doutrina da "forma viva" de que trata Schiller, insinua a concepção do belo e da arte como projeção sentimental (empatia, Einfühlung), de maneira geral, como processo de associação de imagens, que se atraem. Posto um objeto material, sobre ele projeta o espírito um "mundo"; este projetar, eis que consiste o belo para Schiller. De maneira geral, a "forma" que Kant sobrepôs à matéria, sugere tal doutrina empática, visto que, para este filósofo, a forma exerce-se como a priori. Ainda que se julgue o objeto em função a um arquétipo, dizendo-se belo o objeto que está concorde a ele, esta beleza se mostra como que projetada, por que também o arquétipo não é senão, no contexto de Kant, um a priori. E assim, a doutrina da forma, de Kant, sugere a doutrina do Einfühlung.
    
    Agora, em Schiller, a forma adquire mais dinâmica. Um equilíbrio entre a participação ativa da forma, que vem do espírito, e o sensível, que procede do material, resulta no beleza. Note-se, pois, a ação da forma, cuja projeção é algo que se injeta, semelhantemente à doutrina da empatia.
    
    Em Hegel, a forma tornar-se-á eminentemente ativa, porque ela será o mesmo Espírito. A dialética, marchando sempre para o seu contrário, põe o Eu a marchar e a se projetar para dentro do objeto, que se lhe opõe. E assim o mundo, bem como a beleza do mundo, não seria senão uma projeção do Espírito. Aliás, disse o próprio Hegel: "O fim do homem, na arte é encontrar nos objetos exteriores seu próprio Eu".
    
    É possível que haja exagero em colocar toda a arte apenas nesta região empática; é todavia, importante para a arte atender a ela, pois que não opera apenas com mimese (prosa) mas também com evocação associativa de imagens (poesia. Embora ainda não mui claramente era o que começava a ser visto pelo olhar de filósofo de Schiller. Via-o sobretudo quando descrevia o estado estético surgindo como "maravilhosa comoção para qual o entendimento não tem conceito e a linguagem não tem nome" (carta, XV, no final).
    
    A doutrina Schilleriana da "forma viva" prenuncia a adoção dos elementos "associativos" (evocativos) na explicação da arte, bem como do belo. O campo psíquico da evocação, em que imagens atraem outras imagens, explica o fenômeno da poesia. A importância de Schiller está em ter inclinado a teoria explicadora da arte nesta direção. Ainda que as leis de associação de imagens fossem expostas nitidamente por Aristóteles, não as aduziu ele para esclarecer a natureza da poesia. Com a mimese (imitação) explicou o principal; todavia, ao lado da mimese, que aponta diretamente para os temas, em os imitando, funciona ainda a evocação, que atrai novas imagens juntamente com as indicadas pela mimese. Toda a poesia é associação de imagens; tal não o viam até Schiller os explicadores da arte. Nem mesmo Schiller o explicou claramente.
    
    A forma de que fala Schiller é um elemento intelectual. A associação de imagens processa-se na memória e imaginação sensíveis. Para Schiller, a forma é ainda um juízo do entendimento, tal como Kant; neste, o entendimento comparava o ser sensível concreto (objeto visto como um todo) com o seu respectivo arquétipo; de tal visão resultava o ajuizamento, que dizia belo ou feio o objeto. Neste ajuizamento haveria algo de novo a projetar-se sobre o sensível. Eis o que ainda vale para Schiller, com a diferença que para este a forma exerce muito mais dinâmica, o que bem lembra que o poeta filósofo está pensando no mundo da poesia, que é evocação.
    
    Leia-se in totum a carta 25, para se apreciar nela a concepção schilleriana do belo como algo sensível, enquanto recebe a projeção do espírito, que nela deposita um mundo, a forma, ao mesmo tempo que com isto lembra a evocação poética e as doutrinas estéticas, como de Lipps e Heidegger, que fazem da arte uma projeção e evocação (Citamos sempre a tradução de Robert Schwartz das 27 Cartas e intérprete experimentado da Estética alemã).
    
    
    411. Em páginas imortais realçou Schiller o caráter livre e sem interesse da contemplação estética. Comparando esta peculiaridade do belo com o jogo, não quer isto dizer que confundisse pura e simplesmente uma o outra coisa. Não cuidando o jogo senão da forma lúdica, sem atender à realidade em si mesma, há nisto uma comparação como o belo, que se diz da forma enquanto se harmoniza um termo ideal e não da matéria em si mesma como uma estrutura real.
    
    Considerando que a forma desinteressada é o objetivo a ser atingido, como perfeição plena do homem, resulta o seguinte, afirmado no contexto que a palavra jogo tem em Schiller: "O homem deve somente jogar com a beleza, somente com a beleza ele deve jogar. Pois, para tudo sintetizarmos, o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno quando joga" (Carta, 15).
    
    À medida que o homem se desliga, pelo estado estético, da realidade interesseira da matéria, cuida da forma, que é, como que aparência. "Em seu primeiro estado físico, o homem aceita o mundo sensível da maneira puramente passiva, sendo plenamente uno com ele, e justamente por ser o próprio homem apenas mundo, não ainda mundo para ele. Somente quando, em estado estético, ele o coloca fora de si e o contempla, sua personalidade se descola, faz que o mundo lhe apareça, já que deixou de ser uno com ele. A contemplação é a primeira relação liberal do homem com o mundo que o circunda. Enquanto a voracidade segura seu objeto de maneira imediato, a contemplação afasta-o e faz dele sua propriedade verdadeira e inalienável na medida em que o protege da paixão. A necessidade natural, que o dominara, inconteste, no estado da mera sensação, libera o objeto da reflexão; há trégua momentânea nos sentidos, o próprio tempo eternamente mutável repousa enquanto os raios dispersos da consciência se conjugam e a imagem do infinito, a forma, reflete-se em fundo perecível" (Carta 24, no início).
    
    

    § 3-o. O belo em Hegel. 0764y412.
    
    
    413. A Estética hegeliana é conhecida particularmente por sua obra póstuma, Estética, em vários volumes, e em que têm parte os discípulos (Citações pela tradução portuguesa de Orlando Vitorino, Guimarães Editores, Lisboa, 1959 . Começa Hegel: "Esta obra é dedicada a estética, quer dizer: à filosofia, à ciência do belo, e mais precisamente do belo artístico, pois dela exclui-se o belo natural" ,Estética, Intr. C. 1. Seção 1,1 pag. 11).
    
    O belo diz-se do sensível, porém, como sensível que realiza uma certa perfeição. Em Hegel, a perfeição resulta da presença da idéia. Mas o que faz a idéia estabelecer-se como perfeita é superioridade intrínseca à mesma idéia.
    
    O que chama por primeiro a atenção na concepção hegeliana do belo está no mesmo particular que também ocorre em Baumgarten, Kant e Schiller: o caráter sensível do belo. Ainda que a inteligência procure entender, mediante conceito, o belo, este é sempre algo sensível. Jamais o belo mostra-se como luz plena, à maneira da verdade. Mantém a concepção hegeliana do belo a oposição entre sensibilidade do belo e verdade da idéia. Encontra-se ali o eco remoto de Baumgarten, atribuindo ao pensamento a verdade, aos sentidos o belo.
    
    A perfeição, para que haja o belo e a superioridade da idéia, eis outro elemento que precisa se anotado, pois lembra os arquétipos. Sem um termo de comparação, é impossível falar em perfeição maior e menor. Tomado, pois, um objeto como um todo, julga-se-o em função a algo que lhe é extrínseco.
    
    
    414. Distingue Hegel entre o belo natural e o belo artístico. Não se trata de uma rigorosa especificidade, porque dá a ambos a qualificação de belos em virtude da presença da idéia, em grau mínimo no belo natural, deixa a este inferiorizado diante do belo artístico, em que a idéia encontra-se em maior escala. "O belo artístico é superior ao belo natural ser um produto do espírito que , superior à natureza, comunica estas superioridade aos seus produtos e por conseguinte à arte, por isso é o belo estético superior ao belo natural. A pior das idéias que perpassa pelo espírito de um homem, é melhor e mais elevada do que a mais grandiosa produção da natureza, é melhor e mais elevada do que a mais grandiosa produção da natureza - justamente porque essa idéia participa do espírito, porque o espiritual é superior ao natural" (Hegel, Estética, Intr., c. 1, 1-a sec., 1 p. 12).
    
    Depois frisa os graus de participação na verdade, que está apenas adequadamente na idéia e não nos sentidos: "A superioridade do belo artístico provém da participação no espírito e portanto na verdade se bem que aquilo que existe só exista pelo que lhe é superior, e só graças a esse superior é o que é possui o que possui. Só o espírito é verdade. Só enquanto espiritualidade existe o que existe. O belo natural será assim um reflexo do espírito, pois só é belo enquanto participante do espírito e dever-se-á conceber como um modo imperfeito do espírito, como um modo contido no espírito, como um modo privado de independência e subordinado ao espírito" (Ibidem, p. 13).
    
    
    415. Ainda que o belo seja sensível, deixa-se alcançar pela apreensão mental. Entende-se esta particularidade, em função à estrutura dialética do sistema da realidade que progride por tempos sucessivos e envolventes. "Conviria rapidamente que numerosos são aqueles que pensam que o belo em geral, precisamente por ser o belo, se não deixa encerrar em conceitos e constitui, por este motivo, um objeto que o pensamento é incapaz de apreender. Responderemos a esta maneira de ver, dizendo que, embora a verdade seja ainda hoje, considerada como inconcebível e só, portanto, as temporais finitude e ocasionalidade do fenômeno se ofereçam à conceptualização, nós pensamos, pelo contrário, que só a verdade é concebível pois só ela se funda no conceito absoluto, e mais exatamente na idéia. Ora, sendo a beleza um certo modo de exteriorização e representação da verdade, por todas as suas faces oferece-se ela ao pensamento conceitual quando este possua verdadeiramente o poder de formar conceitos...A beleza, como já mostramos, não constitui uma abstração do intelecto, mas sim o conceito em si, concreto e absoluto, ou seja a idéia absoluta" (Ibidem, p. 199, 200).
    
    
    416. Para o panteísmo dialético de Hegel, que faz de tudo fazes da Idéia, é possível falar em idéia por toda a parte, inclusive na sensação e na matéria. A beleza é sensível; mas como o sensível é idéia , a beleza é idéia...sem ficarmos atentos a esta modalidade de conceber, as frases de Hegel poderão confundir. Na verdade, para Hegel é sensível; a interpretação metafísica do belo, apesar de sensível, o faz ser idéia, porque afinal tudo tem de ser reduzido, de algum modo em idéia. Sob este prisma, o sensível é , ao mesmo tempo, idéia; portanto, o belo ao mesmo tempo que é sensível, é algo que se pode dizer idéia. Não senso o belo (sensível) a idéia clara, como na verdade, é uma representação exteriorizada da verdade. A idéia, quando diretamente pensada, é verdade; a idéia, quando no seu instante sensível, é a beleza.
    
    Continua, pois a haver em Hegel, a tendência à substancialização do belo, como em Baumgarten. Não seria apenas o belo uma determinação resultante da perfeição de algo, mas o mesmo algo se especifica; este deve ser sensível...ainda que ao mesmo tempo espírito, que se sensibiliza.
    
    
    417. Na dialética de Hegel uma idéia atrai outra, de sorte a ocorrer um progressivo movimento de soma, que vai desde a noção mais simples, até a totalidade concreta do ser absoluto (espírito Absoluto). A atração faz-se pela invocação dos contrários; por exemplo, finito lembrando o infinito, o subjetivo, o objetivo; desta maneira, a contradição vai trazendo novas caracterizações do ser. Em si mesmo, o ser concreto é um só; mas ao ingressar a pensar a si mesmo, começa de um instante inicial simples e vago, a partir do qual progride, pensando sempre, até completar toda a cascata de noções que se vão atraindo como contrários da noção precedente. Desta maneira, altera-se alógica tradicional, pois Aristóteles progredia por progressões lógicas, como por exemplo, pelas relações que há entre o todo e as partes (o juízo é a declaração de que algo cabe no sujeito, ou não).
    
    Agora, a progressão é para os contrários; pensa-se a própria contradição.
    
    Algo similar à dialética hegeliana, a progredir pela invocação dos contrários, encontramos na lógica aristolélica ao progredir do explicito para o implícito; uma afirmação que afirma algo explicitamente, implicitamente afasta sua contrário, invocando-a, portanto, ou então, introduz um outro elemento implícito, mas destas vez se trata simplesmente das relações entre todo e partes.
    
    
    418. Reunidas todas as oposições, em esquema maiores, elas resultam em três partes de um grande sistema: lógica, filosofia da natureza, filosofia do espírito. Trata-se de perspectivas tomadas a uma só grande idéia.
    
    Em sendo a idéia uma representação de objeto, a lógica trata da idéia apenas sob a perspectiva de ser em si-para-si. Não cuida do mundo exterior, de que a idéia fala (como em Kant, também para Hegel, todo o saber começa no fenômeno, que se mostra). Concentrando-se a lógica apenas no pensamento enquanto interesse a si mesmo (em si e para si), estuda-o enquanto principia pensando em termos de ser, essência, conceito, com as suas demais peculiaridades.
    
    Tomando agora o objeto exterior, ao qual o pensamento revela, a perspectiva estudada fica sendo a das idéias quanto à sua alteridade, fora de si; apresenta-se como nova importante parte do sistema, a filosofia natural, subdividida, segundo Hegel, em mecânica, Física, orgânica. DO ponto de vista dialético, trata-se sempre de novas perspectivas, que aparecem como contrários ao exterior. Em conjunto, a natureza opõe-se à idéia em si e para si tratada pela lógica. Mas, em ambos os casos, sempre se trata da idéia, uma vez tratada em si em para si, somente como interessa ao ponto de vista meramente formal da lógica, outra vez tratada como aquilo que a idéia representa, a natureza.
    
    Continua a dialética, passando a um novo contrário, que se opõe à natureza, subindo ao Espírito, que se sobrepõe à idéia como aparece na lógica e na natureza. O espírito é o existir da idéia em si; portanto, não é a idéia em si e para si, nem a idéia fora de si. Neste novo plano vai ser encontrada a perspectiva, segundo a qual a idéia dir-se-á bela. Haveria, pois, no belo a presença do espírito; na obra de arte, o espírito seria a matéria enquanto vista como perspectiva do espírito; já não seria a obra de arte apenas a matéria, pois algo a faria erguer-se para superar sua opacidade; efetivamente, ninguém cuida de ver nas obras de arte apenas a matéria, pois em tais circunstâncias não passaria de objeto como a estuda a filosofia da Natureza.
     Complexo apresenta-se o espírito; muitos detalhes dialéticos ocorrem até se alcançar o instante da arte. Divide Hegel esta área em Espírito subjetivo, Espirito objetivo e Espírito absoluto; este enfim, se subdividiria em Arte, Religião e filosofia.
    
    Ocorre o Espírito subjetivo no instante finito, que é o instante em que o Espírito Absoluto se opõe a natureza exterior. Então vemos a alma opondo-se ao mundo dos corpos. Nestas condições, situam-se o corpo e o Espírito lado a lado. Desenvolve-se o Espírito subjetivo em três sucessões dialéticas ricas: Antropologia (relações com o clima, raça, temperamento), Fenomenologia (sentimento, consciência, razão), Psicologia (inteligência, vontade, moralidade).
    
    Como antítese do espírito subjetivo, apresenta-se o Espírito objetivo; trata-se agora da razão da espécie humana. Dali resultam outras três manifestações dialéticas: direito, moralidade, eticidade.
    
    
    420. A síntese suprema, invoca, por sobre o espírito subjetivo e objetivo, o espírito Absoluto. "O espírito absoluto é identidade, que é tanto eternamente em si, quanto deve tornar e é tornada em si; é a única e universal substância como substância espiritual; a divisão ( o juízo) em si e em um saber, para o qual ela é como a substância" (Hegel, Enciclopédia das ciências § 554).
    
    Chegamos agora a uma perspectiva, em que a primeira manifestação do espírito é a da arte. Seria, pois, a arte o momento em que as coisas sensíveis são vistas como espírito. Ou pelos menos as obras, conhecidas como sendo de arte, o seriam porque, nelas o espírito se encontra como sensível; seria arte porque dita matéria deixa-se ver como espírito tornado sensível.
    
    Quando Hegel aborda a Estética, insiste em explicar os termos gerais da dialética do Espírito, para depois nela insertar o conceito do belo artístico como um momento da idéia no instante que se conscientiza como Espírito Absoluto. Enquanto assim insiste, torna a leitura de sua Estética eminentemente difícil aos que não se encontram habituados aos esquemas de sua filosofia. Mas, não poderia deixar de fazê-lo, pois sem isto não daria uma explicação exaustiva do belo artístico nos termos de seu sistema dialético. Depois de uma longa introdução, ingressa com uma parte (parte I) em que estuda a "Idéia e o ideal".
    
    Supondo vários elementos contextualmente, ingressa maciçamente no tema da idéia. "Comecemos pela idéia, cujo exame nos irá revelar que existem entre a arte e os domínios que dela aproximam-se" (Estética, I, C. 1, 1).
    
    Depois mostra como a idéia aparece no primeiro grande instante dialético em si e para si (Lógica). A seguir como surge no instante do espírito subjetivo, oposto ao objeto da natureza. Mas como espírito subjetivo, este Espirito restringe-se a uma subárea, que tem acima de si o espírito absoluto, onde se inserta a arte. Atentos a estas linhas gerais. Leiamos agora a Estética de Hegel, neste passo difícil e básico.
    
    "Para darmos da idéia uma definição mais rigorosa, diremos que, enquanto existente em si e para si, a idéia é também a verdade em si, é o que participa do espírito de um modo geral, o que é o espiritual universal, o espírito absoluto. O espírito absoluto é o espírito enquanto universal e não enquanto particular e finito. Determina-se como o que recebe a verdade de uma verdade universal. É certo que estamos habituados a colocar o espírito ao lado da natureza como se esta o igualasse em dignidade, como se as relações entre o espírito e a natureza fossem as de igual para igual, reciprocamente independentes. Ora, nós postulamos aqui, a oposição de espírito e natureza. O espírito que separando-se da natureza, se opõe a ela, não é o espírito absoluto, mas o espírito finito que recebe a verdade do espírito absoluto onde a natureza se situa, de um modo ideal. Ele se diferencia por virtude das suas imanentes atividades e se decompõe em termos opostos - a natureza e o espírito finito - termos que embora representem a idéia total, apenas a representam sem constituírem a verídica forma dele" (Hegel, Estetica I, c. 1,1. Citamos a trad. De Orlando Vitorino, Guimarães Editores, Lisboa, 1959, p. 200-201.)
    
    Segue-se uma consideração em separado para a Natureza e outra para o espírito subjetivo, como membros dialéticos da idéia, ora unida a natureza ora à subjetividade do indivíduos. Quando mostra a subjetividade, como contrariedade à natureza, parece ouvirmos a Schiller, quando define os impulsos da forma contrariando os sensíveis inferiores; do equilíbrio, pretende Schiller estabelecer um todo ativo, a chamada forma viva.
    
    Agora, também, Hegel, mostrando a subjetividade como contrariedade à natureza, busca na síntese do Espírito absoluto o todo final. Leiamos o que diz sobre a subjetividade, enfim equilibrada pela síntese:
    
    "Tal idealidade e tal negatividade infinita da natureza formam o conceito profundo da subjetividade do espírito. Mas enquanto subjetividade, o espírito ainda não é mais do que a verdade da natureza, visto que ainda não formou o conceito de si e para si. A natureza não lhe aparece como outro, como o que lhe foi formulado por ele, mas sim como aquilo que é feito diferentemente, como aquilo que é limitado não ultrapassando e com o qual o espírito, enquanto subjetivo na sua existência de querer e de saber, se relaciona como com uma objetividade que acha completamente feita e de que ele é , por assim dizer, uma resposta. Eis o que explica o caráter finito do espírito, quer teórico quer prático, a limitação do conhecimento e a mera obediência ao dever na realização do bem. Como na natureza, também aqui a manifestação exterior não corresponde à verdadeira essência do espírito, e por isso temos esse quadro confuso de toda a espécie de habilidades, paixões, opiniões, intuitos e propósitos que convergem e divergem, que concordam, se contradizem e opõem, com o acaso a presidir, sob as formas mais variadas, à orientação do querer e dos anseios, à direção das opiniões e dos pensamentos, umas vezes favorecendo-os, outras vezes perturbando-os. Assim parece tão só o espírito finito, o espírito de manifestações temporais, o espírito em contradição consigo próprio e por conseguinte, caduco, insatisfeito e infeliz. E que as satisfações assim obtidas são sempre, em virtude do seu caráter finito, limitadas e confusas, relativas e isoladas. Para procurarem e acharem a universalidade verdadeira, o acordo e a satisfação, precisam a consciência, o querer e o pensamento de se elevarem acima dessa esfera, até ao infinito da verdade. Tal acordo e tal satisfação, até aos quais é erguida pela racionalidade dinâmica do espírito a matéria da sua finitude, constituem a verídica revelação do que é o mundo dos fenômenos considerado do ponto de vista do seu conceito. O espírito apreende a finitude a sua própria negação e atinge assim o infinito. Estas verdade do Espírito finito é que é o espírito absoluto. O espírito absoluto é estas totalidade, verdade suprema. Este é o ponto de partida das nossas reflexões sobre a filosofia e a ele ligamos a arte" (Hegel, estética, I, c. 1, 1 p. 202-203).
    
    
    421. A arte, a religião, a filosofia se situam no plano do Espírito absoluto, porque se desligam das particularidades do finito, para se ocuparem do universal ou comum. "O espirito absoluto opõe-se a si mesmo, na sua comunidade, com o espírito finito; só é espírito absoluto, quando é reconhecido como tal na comunidade. Como este é o ponto de vista da arte, considerada na mais alta e verídica dignidade e da filosofia. Isto tem de comum a arte, a religião e a filosofia: Exercer-se o espírito sobre um objeto que é a verdade absoluta. Na religião, o homem eleva-se acima dos seus interesses particulares, acima de suas opiniões...A filosofia tem por objeto a verdade..." (Hegel, Estética, I, c. 1,1, p. 205).
    
    

    § 4.  A estética do belo sensível e dos contrários de Croce. 0764y422.
    
    
    423. De maneira geral Benedetto Croce (1866-1952) associa-se às estéticas de origem baumgartenianas, estabelecendo o belo como sendo sensível. Em não sendo objeto de pensamento, o belo como sensível, está fora da área lógica do pensamento; como o belo é próprio do sensível, a verdade é do pensamento.
    
    A arte, enquanto é expressão sensível, é beleza. Sobre a arte desenvolve ainda Croce princípios peculiares, de que não pretendemos agora nos ocupar, visto que atendemos ao belo simplesmente ( Veja-se nosso Filosofia Geral da Arte. Cf. O.N. Derisi, La Filosofia del Espiritu de B. Croce, Madrid, 1947. Uma vasta literatura se desenvolve em torno das idéias da Croce).
    Uma vez que o belo é sensível, sem o objeto sensível não existe o belo. Não se origina portanto, o belo em função a alguma consideração mental.
    
    Em virtude do idealismo e fenomenismo crociano, que não admite realidades exteriores aos conteúdos exercidos pelo conhecimento, é Croce enfático em dizer que o belo se cria como o mesmo exercer-se do ato cognoscitivo sensível da fantasia e dos sentidos exteriores em geral. Todavia esta ênfase fenomenista não altera fundamentalmente o princípio de que o belo seja o sensível; quer seja real, quer viva no mesmo conteúdo da consciência imanente, o belo define-se sempre como o sensível.
    
    "A arte rege-se unicamente sobre a fantasia; suas únicas riquezas são imagens. Não classifica os objetos, não os pronuncia reais ou imaginários, não os define; os sente e representa. Nada mais. E por isso, enquanto é conhecimento não abstrato, mas concreto e tal que toma o real sem alteração e falsificação, a arte é intuição; e enquanto o expõe em sua imediatez, isto é, todavia não como mediato e esclarecido pelo conceito, se deve dizer intuição pura".
    
    Em Croce, intuição é conhecimento sensível; o pronunciar-se sobre a realidade, seria um ato intelectual. A expressão artística cuida apenas do sensível e portanto não atende ao se as coisas sensíveis são reais ou não. Isto posto, continuemos em outro lugar. Lendo Croce:
    
    "com a arte o homem encerra-se na vida teorética em uma ingênua e maravilhada contemplação da realidade, está nesta contemplação profunda e se perde totalmente. E contemplando, cria as representações que contempla, e criando, expressa e expressando cria: visão, criação de visão, e expressão de visão é tudo o mesmo: É a atividade estética, a intuição criadora como pura intuição-criação- expressão de imagens. As quais, portanto, não preexistem à criação-expressão, como objetos chamados intuíveis belos e feitos com certa propriedade determinada que os façam intuíveis, senão que nascem em um só parto com ela: a imagem e a atualidade do espírito intuitivo. Fora ou antes ou sob o ato intuitivo está a sensação, está a matéria informe que o Espírito não pode jamais tomar em si mesma, enquanto mera matéria, e que possui somente com a forma e na forma. É a matéria revestida e vencida pela forma, desde logo da forma concreta" (Croce, Estética, p. 8).
    
    Como decidir sobre as afirmações de Croce? Apenas a observação direta, portanto fenomenológica, poderá decidir. Tal como ele afirma ver o belo como sensível, nós podemos afirmar que o vemos como algo realçante e que em tal condição, apenas é apreensível pela perspiciência mental. Foi assim que mostramos consistir o belo como sendo uma qualidade aperfeiçoativa, colocando os seres em função a um termo ideal arquétipo, ao mesmo tempo que alcançam realizar estas qualidade de maneira realçada, como esplendor portanto de sua forma (veja-se o início do presente capítulo). De maneira geral, contra Benedetto Croce valem as restrições que se fazem a todo o grupo das estéticas que desde Baumgarten, vem repondo o belo no sensível.
    
    Abranda Croce a rigidez dialética do sistema filosófico e estético de Hegel, apondo à dialética dos contrários a dos distintos (representações que não se eliminam). Na dialética dos contrários de Hegel a arte era vencida pela religião, a qual por sua vez era eliminada pela Filosofia. Para Croce, o mundo da sensibilidade e o do pensamento não se eliminam, mas se comportam como distintos. Acontece assim que o sensível (a expressão artística, o belo, etc. ) não se eliminam diretamente pelo espírito.
    
    Tal como Plotino reabilitou o arte no sistema de Platão, agora Croce lhe cria um lugar ao sol no sistema dialético de Hegel.
    
    Como distintos se apresentam os conceitos de coisas que não se opõem, mas também não se confundem nem se identificam. Os contrários são os que se opõem.  "Na investigação da realidade nosso pensamento se exerce em presença não só de conceitos distintos, mas também de conceitos contrários, os que não podem ser identificados como casos especiais daqueles, i.é., como uma classe de conceitos distintos. Uma coisa é a categoria lógica da distinção e muito outra a categoria da oposição. Dois conceitos distintos, como já se tem dito, unem-se entre si, ainda que em sua própria distinção; dois conceitos contrários parecem excluir-se: onde aparece um o outro desaparece totalmente...Exemplo de conceitos distintos são os já mencionados de imaginação e intelecto e muitos outros que poderiam agregar-se. Como ser, direito, moralidade e infinidade de conceitos semelhantes. No que diz respeito aos exemplos de conceitos contrários, pode-se extraí-los de numerosas associações de palavras que tanto abundam em nossa linguagem e que não constituem, por certo, associações pacíficas e amistosas. São, por exemplo, os termos antitéticos de verdadeiro e falso; de bem e mal, de belo e feio; de valor e desvalor; de prazer e dor; de atividade e passividade; de positivo e negativo; de vida e morte; de ser e nada; etc... não se pode, pois confundir a série dos distintos com os contrários" (Croce, o vivo e morto em Hegel, item 1, pp. 16-17).
    
    Cedeu Croce ao fato. Efetivamente há manifestações que não se apresentam como contrárias, mas apenas distintas. Era recuar de Hegel e retornar a Aristóteles. Em Croce o belo mantém-se como o contrário do feio (como nós também o defendemos); mas nem tudo se opõe ao belo como seu contrário. Por isso, ao lado do belo ocorrem elementos que dele se distinguem e que por isso não se eliminam com a afirmação do belo. Já ocorreria em Hegel esta possibilidade, visto que fazia oporem-se entre si os conceitos; a arte era superada pela religião, estas pela filosofia.
    
    Os graus distintos supremos, segundo Croce, se esquematizam em número de quatro, em grupos de dois, em que um grupo é teorético e outro prático. Dali termos como primeiro grau a síntese imaginativa (ou intuição artística); como segundo grau do espírito, a síntese lógica (ou filosofia). Como terceiro e quarto graus as duas sínteses práticas. (economia e moral).
    
    Numa filosofia da arte deveríamos agora expor o grau distinto inicial, referente à intuição artística.
    
    Tudo isto, apesar de se constituir como grau distinto ( e não como contrário) é idealidade, simples elemento composto de Espírito Absoluto. A diferença entre Hegel e Croce apenas ocorre, no que concerne ao idealismo, em que para o filósofo alemão o Espírito se manifesta só com oposições; para o italiano, também, em graus distintos sem oposição.
    
    Quanto ao belo, ainda que sensível, também este seria inteiramente ideal, qualquer grau distinto ou grau de contrários seja posto. Para Croce, conforme vimos, o belo surge como contrário do feio; neste posto ocorre ainda a manutenção de Hegel. contudo, o belo não se pode definir em função ao contrário, apesar de possuir um seu contrário. O possuir em contrário é propriedade, nunca, porém, essência constitutiva de algo.
    
    
    425. De maneira geral, toda a questiúncula de Hegel e Croce referente aos contrários e aos graus distintos é de ordem superficial, porque divide o ser em função a propriedades; em sendo propriedades, não derivam de todos os seres. Tem os diversos seres propriedades, não derivam de todos seres. Tem os diversos seres propriedades como as de terem graus , de terem graus, de terem seu contrário, de possuírem semelhantes. Frisou Aristóteles que somente a categoria da qualidade possuía a propriedade de ter semelhantes. A Propriedade de possuir graus e contrários ocorre também na categoria da qualidade, mas não em todas as qualidades individualmente. Observam também sutilmente os aristotélicos que algumas propriedades dizem-se de várias categorias de ser, outras não; estas propriedades que alcançam várias, foram denominadas pós-predicamentos. De maneira geral não podem constituir questão decisiva na organização fundamental dos seres.
    
    

    §5. O belo não é evocação, nem empatia. 0764y428.
    
    
    429. O mundo da imaginação alarga imensamente a área do sensível. Cresce, consequentemente, a área da beleza, qualquer que seja a interpretação que se lhe dê. Destacam-se os fenômenos conhecidos por "empatia" (Empathy, Einfühlung), dito também "projeção sentimental" e a "poesia", chamada ainda "evocação", ou ainda "associação de imagens".
    
    Reduzida a si mesma, a imaginação é apenas criação da imagem. Por acréscimo, à maneira de propriedade, a imaginação projeta imagens sobre os objetos, dando-lhes como que vida. A floresta, em movimento, murmura ao som da brisa, geme à ação do vendaval, torna-se triste e dolente ao cair da tarde. E contudo as árvores não murmuram, não se entristecem nem choram. Assim também a montanha dominadora, nada domina. Julgamos que os animais nos cuidados dos homens e não fazem senão o que lhes é instintivo.
    
    Semelhantemente, a evocação poética, associando imagens, que se atraem umas às outras, não é uma operação da mesma imaginação. Uma outra faculdade, a memória, reproduz as imagens. E nesta reprodução, obedece a leis, chamadas de associação. A presença de um objeto (sensação exterior) pode fazer brotar do subconsciente (memória) outras imagens. Aristóteles estabelecia que as imagens brotam por associação de contiguidade, contraste, semelhança. Não se erguem, portanto, do subconsciente por obra de uma conexão lógica, à maneira de juízos que se desenvolvem em outros juízos e raciocínios. A alogicidade das imagens que se associam é evidente, pois se atraem por simples contiguidade, como de lugar e de tempo.
    
    Se vivemos em um velha casa, ainda que dela nos afastemos há muito, basta rever a casa afim de que despertem muitas outras imagens. A poesia aproveita esta particularidade, enunciando aqueles objetos que são capazes de despertar as muitas outras imagens, que o poeta tem em vista.
    
    De maneira geral, no mundo das imagens que se evocam e das imagens que se infundem empaticamente   ocorre uma evidente facilidade de encontrar a beleza e a arte.. Dali vem que facilmente poderia alguém confundir a própria bela e a arte com ditas imagens, quando se associam e se infundem. Ainda que a grande arte opere com as mesmas, criando a poesia, elas não são a mesma arte, porém um recurso da mesma. Igualmente, o belo, que tais processos engrandecem, não se confunde com as mesmas imagens.
    
    
    430. Na história da Estética, desde Schiller, vem tal interpretação ganhando corpo. Expúnhamos, anteriormente, à propósito de Schiller, sua teoria da "forma viva", em que fazia consistir a beleza. "O objeto do impulso lúdico, representado num esquema geral é a forma (Gestalt) viva; um conceito que denomina todas as disposições dos fenômenos, tudo o que entendemos no mais amplo sentido por beleza. Continua: " Um bloco de mármore, embora inerte, mesmo assim pode tornar- se forma viva através do arquiteto e do escultor; um homem, conquanto viva e tenha forma, nem por isso é forma viva.  Somente quando sua forma vive em nossa sensação e sua vida se forma em nosso entendimento ele é configuração viva e isto será sempre o caso quando o julgarmos belo" (carta 15).
    
    Ao tempo de Schiller o associacionismo preconizado pelos empiristas (Locke, Hobbes, Hume) era o das simples justaposições dos elementos cognoscitivos atomizados. Na escola Escocesa, de Thomas Reid (1710-1796) começam as primeiras reações, mostrando que as imagens comportam-se como elementos que obedecem a todos maiores; assim é que Guilherme Hamilton (1788-1856) da referida escola estabelece a lei da "integração de Hamilton", afirmando a imagem de um grupo evoca a todos os indivíduos do mesmo.
    
    
    431. Tais idéias adquirem pleno desenvolvimento com a Gestalt-Psychologie(psicologia da forma) de Max Wertheimer (Praga 1880, EUA, 1941), Kurt, Koffka, Wolfgang Kohler. Desta se desenvolveu a teoria do campo psíquico de Kurt Lewin.
    
    No trânsito do século XIX e XX desenvolvia idéias semelhantes Willian James (1842-1910), insistindo que as imagens operam como partes em um todo. Também em Bergson (1859-1941) vamos encontrar a doutrina dos "esquemas dinâmicos" (Energie spirituelle p. 172), bem como a estética misticista que põe no alogicismo da evocação poética uma fonte mais profunda de saber, a intuição.
    
    Desta maneira cria-se a atmosfera para todas as Estéticas que fazem dos elementos associativos, evocativos, sugestivos, poéticos a definição da beleza.
    
    
    432. O Einfühlung ou projeção sentimental, processo semelhante ao da evocação das imagens do mesmo campo psíquico, também ganha defensores, como sendo projeção o belo e a mensagem artística.
    
    A Estética do Einfühlung tem começo na Alemanha, com notória influência. Seu promotor é Theodor Lipps (1851-1914), autor do tratado em três volumes Estética psicológica do belo e da arte (1903, com trad., espanhola, Madrid). Distingue nada menos de cinco espécies de Einfühlung; aliás, este vocábulo alemão, com variados prefixos, é indicador de sutilezas intraduzíveis, de que já se ocupava o romântico Roberto Vischer "Ein- An- Nach- Zufühlung".
    
    A empatia é fato, que nem os antigos deixaram por despercebida. Os românticos começam a lhe dar valor, como se vê em Herder, Lotze, Frederic, Vischer, Siebeck. O próprio Hegel anota: "o fim do homem na arte é encontrar nos objetos exteriores seu próprio eu". Aliás, no desenvolvimento dialético, sai a idéia para fora de si (tese e antítese), para numa síntese final perceber que o eu e o objeto não passam de extremidades de um só grande espírito.
    
    A estética do Einfühlung  é impulsionada por Johannes Volkelt (1848--1930), ao mesmo tempo que se filia ao grupo filosófico relativista, historicista, culturalista de Georg Simmel e Guilherm Dilthey.
    
    É fácil de perceber que a Estética empática fosse receptiva na área da Filosofia dos valores, com sua intencionalidade emocional e alógica, Max Schler (1874-1928) em seu conhecido tratado Essência e formas da simpatia distende-se sobre as diversas modalidades de empatia, ora concordando, ora discordando de Lipps. Contudo na filosofia dos valores o Einfühlung não é o próprio belo, porém uma situação emotiva que revela valores, entre os quais o do belo.
    
    Victor Basch (1836-1944) é o representante francês da Estética do Einfühlung (Cf.  Raymond Bayer, L'esthetique mondiel au XX siecle, no item sobre Alemanha (cap. 5) Lipps e Volkelt, sobre França).
    
    

    § 6. O belo na filosofia dos valores. 0764y434.
    
    
    435. A filosofia dos valores de Max Scheler (1875-1929) tem a preocupação de manter como valor absoluto o que talvez se pudesse reter como realidade. Assim são salvos como elementos absolutos, o moral, o estético, o religioso, o cultural, etc... Ocorre aqui uma situação idêntica à de Kant, que na ordem da essência conservou as antigas e clássicas afirmações, esvaziou o pensamento só de seu conteúdo ontológico. Por isso, em tudo quanto dizem os filósofos dos valores, no plano meramente axiológico, é possível uma certa aproximação com as filosofias clássicas.
    
    A distinção entre o aspecto que diz essência e o que afirma realidade é admissível; a essência situa-se no plano da res (coisa); a realidade coloca-se no plano do aliquid ( o ser como contrário do nada como anteposição, como existência). Aspectos distintos, são tratáveis, até um limite dado, separadamente. E assim sob a filosofia dos valores consegue manipular afirmações absolutas, ou valores, sem ainda comprometer diretamente a questão da realidade. Aliás, Nicolai Hartmann (1882-1550) o mais expressivo e percuciente dos filósofos dos valores também distingue entre o Dasein ( o fato de cada ser) e o Sosein ( ser-assim).
    
    
    436. Os valores ingressam, porém, por via alógica; geralmente diz-se através do sentimento. Já em Kant, as afirmações absolutas, de ordem não categorial, se faziam através da faculdade do juízo; as noções, como o belo, que viam o objeto como um todo, a maneira dos transcendentais aristotélicos, resultavam assim de uma feitura inteiramente inteligível. Na filosofia dos valores, porém, o ingresso se faz pela via alógica do "vale" que se impõe; em vez de uma intencionalidade lógica ocorreria uma intencionalidade emocional.
    
    Ocorre, portanto, na filosofia dos valores uma transferência das tarefas da faculdade do Juízo para a da razão prática. Conforme Kant, certas determinações apriorísticas eram impostas à faculdade da razão, como uma "determinação prática" como modalidade de raciocinar que se impunha naturalmente; eu devo (Ich soll), - é a voz da consciência prática. E assim se impunham valores morais. Desenvolvendo e ampliando estas área da razão prática, a escola kantiana de Baden deu origem a uma série de filosofias dos valores; enquanto isto a escola kantiana de Magdeburgo ficava fiel às formulações do Mestre em tudo aquilo que representava restrições ao mundo ontológico. Scheler nega o construtivismo apriorístico da faculdade do entendimento de Kant. Reformula a doutrina da inteligência e amplia a seu lado uma "ordem do coração" a priori.
    
    Os valores ingressam pela via do sentimento; haveria, tal como a intencionalidade do processo mental, uma intencionalidade emocional; em ambos os processos ocorre nitidamente um objeto; porém, na inteligência um objeto lógico, no sentimento um objeto alógico. Como Husserl descreveu fenomenologicamente o processo intencional do conhecimento, agora a filosofia dos valores, suplementando a fenomenologia de Husserl, faz uma descrição fenomenológica dos objetos intencionais do sentir (Intentionale Gegenstande des Fühlens).
    
    Na formulação aristotélica, a vontade dirige-se ao objeto que a razão lhe aponta; não haveria um caminhar cego para os objetos; a volição seria o matrimônio de duas atividades específicas e complementares, do intelecto que vê, da vontade que caminha para o objeto visto.
    
    Agora, para os filósofos dos valores, não se "pensa" o valor. Ele se impõe como determinação sempre válida à ação. Na sua direção encaminha-se a intencionalidade emocional. Revelam-se sem necessitar do intelecto.
    
    "Nada mais frequente na filosofia contemporânea que a separação absoluta entre o domínio metafísico vedado para uma inteligência incapaz de alcançá-lo e o domínio ético religioso das verdades captáveis imediatamente à margem da atividade mental, por meio da emoção, dos sentimentos, da intuição, da fé cega (que nada tem a ver com a virtude cristã da fé) etc... Kant com os postulados da crítica da razão prática, Schleiermacher com o sentimento religioso, William James, Bergson com a intuição anti-intelectualista, Blondel com a ação, Kierkegaard, Unamuno, e ulteriormente Heidegger com o cuidado e a angústia e Gabriel Marcel com o ser possuído e ameaçado, o imanentismo e o fideismo irracionalista sob todas as suas formas não fazem senão apregoar (graças à denegrida inteligência ) a captação irracional da realidade inalcançável pelo caminho do conhecimento. O agnosticismo da inteligência desdobra-se deste modo em um irracionalismo fideísta ou intuicionista de diversas tonalidades" (O. N. Derisi, Filosofia moderna e fil. tomista, I, c. 1, 7).
    
    Pelo que se observa, o intencionalismo irracional não é fenômeno isolado. Contudo não devemos exagerar o radicalismo das correntes anti-intelectualistas; a intuição, que defendem contra o "conhecimento por meio de imagens "pode também exercer-se pela razão, embora de fato possa não existir tal intuição. A intuição é irracional, quando concebida como intencionalidade emotiva, mas não quando exercida como processo mental. De qualquer forma, porém, a referida constelação de autores, em contribuindo para desprestigiar os processos representativos da inteligência, criou o clima próprio para os sistemas de intencionalidade emotiva; ao mesmo tempo que isto se dava, abria-se a oportunidade para as estéticas do mesmo caráter emotivo e para as interpretações da arte à base do mistério, do impulso subconsciente, do sentir profundo do gênio.
    
    Nicolai Hartmann revigora um tanto o poder da inteligência, mas sem afastar a contribuição da intencionalidade emotiva; enquanto a intencionalidade intelectiva ruma para o objeto real, seus resultados recebem confirmação da intencionalidade emotiva; dois a descobrirem a mesma realidade, certamente a tornam mais segura.
    
    
    438. Que são valores? O caminho por onde ingressam os valores, não importa diretamente à natureza do valor. Em aqui tratando do valor, importa pouco sua ingressão pela  via alógica. Visamos diretamente o valor em si mesmo... Ainda neste plano não nos preocupa a sua consistência na ordem do existir, da realidade ou da idealidade. Agora nos situamos apenas no ponto de vista da essência, ou seja daquilo que o valor é. Em outro lugar, fica a vez da pergunta sobre o conteúdo ontológico. Neste instante, pois, a pergunta incide sobre a essência dos valores e especificamente sobre a natureza do belo como valor.
    
    Não há somente valores. Por isso, ocorre a distinção entre coisa e valor. "Os valores são independentes, em seu ver, de seus depositários" (Scheler, Ética, p. 45). "Em conseqüência, é claro que as qualidades valiosas não variam com as coisas". Os valores em si mesmos são absolutos, imutáveis; combatia Scheler o nominalismo com insistência; insistiu contra toda a espécie de relativismos, particularmente da ética. A relatividade não está nos valores, mas pode encontrar-se em nosso conhecimento dos mesmos. Neste outro particular podemos apontar para uma efetiva variação do sentimento dos valores (Ethos) e variação no juízo dos valores (Ethik); a oscilação ainda observa-se no comportamento humano pragmático, nos costumes e nas tradições. Mas em si mesmos, os valores firmam-se em essências invariáveis.
    
    
    439. Conforme ao ponto de vista tomado, tem classificado Scheler de diversas maneiras os valores; há valores positivos e outros negativos; valores superiores; valores de pessoa e valores de coisa; enfim, os valores podem classificar-se em:
    
    1) valores sensíveis: o agradável e o desagradável
    
    2) valores vitais: o nobre e o vulgar
    
    3) valores espirituais: o belo e o feio, o justo e o injusto, o conhecimento puro da verdade
    
    4) valores de sagrado e do profano.
    
    
    Temos, por conseguinte, o belo classificado como valor espiritual. Alcançar-se- ia, pois, o belo como termo de um intencionalidade emocional. É sabido que Max Scheler fez do Einfühlung um instrumento de captação de valor. Nesta hipótese não se pode cogitar em uma  estética intelectualizada, em que o paralelismo do conhecimento e da aquietação apetitiva andem juntos; o belo resulta de uma descoberta mental nem seria por obra da descoberta mental que surgiria o prazer estético.
    
    Todavia como valor espiritual, o valor estético mantém num alto nível, numa camada superior ao da mera sensação empírica; o belo apresenta-se num plano eminente, fora da contingência, firmado no absoluto.
    
    
    440. As idéias de Nicolai Hartmann (1882-1950) sobre o belo, que se encontram difundidas por todas as suas obras, tiveram enfim uma sistematização em Estética (1953, póstuma). N. Hartmann figura entre os grandes nomes da Filosofia que no século XX, se empenharam pelo retorno à ontologia, lançando as questões a partir do ser.
    
    O belo é firmado como uma categoria de valor. Supera, portanto, o nominalismo relativista. Ao mesmo tempo, situando-o como valor, distingue o belo, radicalmente, dos princípios ônticos.
    
    Que é valor em N. Hartmann? Define como valor o que está subtraído da aprovação do sujeito. Não seria, portanto, valor o que resultasse das ponderações da razão,  mesmo da razão prática.
    
    
    "Entre os antigos ocupa a idéia o lugar do valor (a idéia da justiça, da valentia, do bem em geral); porém o verdadeiro caráter do valor só ressalta nela no conteúdo, não estando destacado da maneira de ser, patentemente distinta, dos princípios ônticos (como, por exemplo, a unidade, a oposição, a forma, a matéria).
    
    Kant, pelo contrário, destacou mui precisa e belamente dos princípios do objeto (por exemplo, as categorias) a lei moral - mediante o conceito de dever ser. Pôs porém a fonte do dever ser na razão, e com isto surge uma nova dificuldade.
    
    Pois esta razão - entendida como prática é a mesma à qual toca decidir livremente pró ou contra a lei moral. Tem, portanto, que prescrever, por um lado, um espaço livre para opor-se exatamente a esta lei. Se não possuísse este espaço, estaria submetida à lei "como uma lei natural; seria, por conseguinte, infalível em sua atividade , porém a infalibilidade não seria seu valor moral. Kant uniu, portanto, na razão prática duas autonomias heterogêneas, a da lei do dever ser e a da decisão frente à lei 0 o que, assim, não é, patentemente, sustentável (N. Hartmann, Ontologia, Intr. 13).
    
    Os princípios ônticos também se impõem, mas à maneira de essência, influindo como elementos constitutivos do ser. A maneira de ser dos princípios ônticos é diferente da maneira de ser dos valores. Há, por conseguinte, dois domínios.
    
    
    "O subtraído à aprovação do sujeito existe "em si". Nem por isso requer ser real. A realidade tão pouco entra para nada na consideração do que diz respeito à maneira de ser dos valores, pois estes existem com patente independência de que se os realize no mundo, nem da medida em que se os realiza, e só assim é possível que os valores morais tenham um caráter do dever ser e se exercem frente ao homem como exigências.
    
    É necessário, pois atribuir aos valores outra maneira de ser.
    
    Nisto não estariam sem dúvida sós. Há até leis e essências que tem um mero "ser ideal"; desde Platão se tem aduzido em apoio deste fato as relações matemáticas. Porém, nem se aclarou que maneira de ser tem estas relações - justamente hoje volta vivamente a discussão em torno disto - nem pode sua maneira de ser meramente idêntica a dos valores.
    
    Pois é patente que não têm caráter de dever ser e que dominam o real, na medida em que se referem a ele, sem resistência, como leis naturais.
    
    De outra maneira, quaisquer que fossem suas dimensões, as leis matemáticas da natureza seriam coisa impossível.
    
    O ser ideal dos valores há de ter ainda, pois, uma espécie de ser distinta, que nem se sustente no sujeito, nem seja idêntica à das outras essências.  Semelhante espécie é fácil de admitir, porém não de mostrar diretamente, em de caracterizar com precisão ontologicamente (N. Hartmann, Ontologia, ).
    
    
    441. Na apreciação das coisas haveria, portanto, sempre duas perspectivas, que poderão ser consideradas separadamente. O que se conhece de uma coisa e o que nela se contempla como  valor são distintas considerações. Referindo-se a contemplação do belo em uma paisagem, adverte Hartmann. "A paisagem geográfica não é o contemplado esteticamente. Aquela existe em si, ainda sem contemplador; o segundo está só para este último, é o que é só como visto, só sob um determinado ponto de vista; lhe são essenciais a perspectiva especial, os termos dentro do campo visual, a luz especial.
    
    Caracterizando o ser do belo como valor, continua N. Hartmann:
    
    "Já um exemplo tão simples mostra que a maneira de ser do objeto estético é uma maneira peculiar, uma maneira fundamentalmente distinta da maneira do objeto teorético. E contudo não se esgota no mero ser para o contemplador. Pois, sem a presença real do campo efetivo, não surge tampouco a paisagem estética. O conjunto tem, pois, dois estratos, um real e que forma a base, o outro irreal, puro fenômeno, que se erige sobre o anterior. E contudo estão ambos tão entrelaçados, que se trata pura e exclusivamente de um objeto único" ( Ibidem).
    
    O belo surge como um valor. Ainda que a reflexão raciocinativa lógica posteriormente cria reflexões, o ponto de partidas foi o do valor originário.
    
    "Uma estética, diz N. Hartmann, não se escreve para o criador nem tampouco para o observador do belo, mas exclusivamente para o pensador a quem "o fazer", a ação, a tarefa, e a postura, o procedimento de ambos se torna um enigma. Ao homem pensante, contemplativo, só pode perturbar o pensamento; ao artista só pode aborrecer o descontentar quando o pensamento procura entender o que seja seu fazer e o que seja o objeto de sua contemplação. A ambos arranca-os de sua postura visionária, apesar de se encontrar perto de ambos a percepção do enigmático, tão perto que faz parte de sua posição diante da Estética. A ambos é uma evidência essa sua posição; eles sabem de uma necessidade íntima e nisso não erram. Mas eles a aceitam beatificamente como uma dádiva, um dom do céu, e essa "aceitação", esse "aceitar" é essência própria de sua posição contemplativa" (Aesthetik, p.1).
    
    Dali decorre uma estética, em que as indicações sobre o belo não se prendem a conexões judicativas, que unem partes na todo, ou dissolvem o todo em partes, outra é a índole do que se oferece sobre o belo, que vai sendo observado como valor.
    
    "As leis do belo são altamente qualificativas, especializadas; são, na origem , diferentes para cada objeto. Isso significa que elas são leis individuais.
    
    Por sobre essas haverá também leis generalizadoras, portanto, que referem todos os objetos estéticos, em parte, e doutro lado pelo menos classes, categorias completas.
    
    A essência do belo em sua toda particularidade, como de conteúdo estético estimativo especial, está não nelas, mas na legalidade especial do objeto primo, único.
    
    Também o artista produtivo não a concebe nem a abraça. Ele trabalha segundo ela e por ela, mas não a descobre e por isso também não a pronuncia, traduzindo-a.   Não há uma consciência própria sobre as leis do belo. Parece estar em sua essência, que essas leis permaneçam ocultas à consciência e só constituírem o segredo de um pano-de-fundo encoberto.
    
    Seria isto talvez o motivo, porque a estética possa dizer em princípio, o que seja o belo, com menção de suas espécies e degraus inclusive as pressupostas generalizadas destas, mas não pode ensinar praticamente o que é belo, ou porque justamente a configuração de uma figura - é uma configuração bela.
    
    A reflexão estética é, sob todas as condições, uma reflexão posterior. Se se quiser perquirir seriamente o problema do belo na vida e nas artes, deve-se renunciar de antemão a toda e qualquer exigência de conhecimento dessa espécie" (N. Hartmann, Aesthetik, p. 4).
    
    
    442. Para decidir sobre a legitimidade da estética da Filosofia dos valores se deve voltar à mesma observação fenomenológica.
    
    A partir da observação direta, do que efetivamente acontece nos dados que se apresentam à evidência imediata,  não nos parece que possam confirmar o conhecimento do belo como uma situação como a pretendem os filósofos do Valor. O belo implica sempre em perspiciência profundamente intelectual.
    
    

    CONCLUINDO O TRATADO DO BELO. 0764y445.
    
    446. Chegar ao fim de um tratado metafísico do belo representa a realização de um enorme esforço. O resultado a ter sido alcançado é o de uma posição sobre a  natureza do belo, particularmente de sua essência, no que é e no que não é.
    
    Surgiu diante de nós o belo como "esplendor da forma" (splendor formae) por conseguinte como uma qualidade "em relativo" que diz haver uma certa perfeição nos seres, em virtude da qual se realçam. Assim estabelecida, a tese defendida já vem da antiguidade clássica de Platão e Aristóteles; apenas cuidamos de desenvolvê-la mais amplamente.
    
    Ao mesmo tempo afastamos as posições que fazem do belo algo "em absoluto" geralmente objeto dos sentidos. Nisto há algo de verdade. Mas, conforme vimos, não é toda a verdade sobre o belo.
    
      E. Pauli.
    
 Fonte:
ENCICLOPÉDIA    SIMPOZIO
 
  (Versão em Português do original em Esperanto)
© Copyright 1997
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