quinta-feira, 3 de março de 2011

COLABORAÇÃO E CONVERGÊNCIA - Agência FAPESP




Colaboração e convergência
Para Steve Oliver, da Universidade de Cambridge, a bioinformática impulsionou a cooperação científica no Brasil na última década. Pesquisador analisa estratégias para a formação de cientistas capazes de aliar robótica e biologia (Foto: Eduardo Cesar)

Por Fábio de Castro

Agência FAPESP – Em 1999, o uso de softwares com base na internet possibilitou a concretização de um marco da ciência brasileira: o sequenciamento completo do DNA da bactéria Xylella fastidiosa, causadora da clorose variegada de citros, popularmente conhecida como praga do amarelinho.
Para o pesquisador britânico Steve Oliver, que integrou o comitê diretivo do projeto de sequenciamento, realizado no âmbito pelo Programa Genoma-FAPESP, a iniciativa não apenas correspondeu à introdução da bioinformática no Brasil, mas também revolucionou a cultura de cooperação científica no país.
Oliver, que é diretor do Centro de Biologia de Sistemas da Universidade de Cambridge (Reino Unido), participou, no dia 24 de fevereiro, do Workshop on Synthetic Biology and Robotics, organizado pela FAPESP e pelo Consulado Britânico em São Paulo, no âmbito da Parceria Brasil–Reino Unido em Ciência e Inovação.
No evento, Oliver falou sobre a aplicação da automatização à análise metabolômica – área que procura explorar toda a diversidade metabólica existente nos sistemas biológicos – e à quimiogenômica, ou o estudo das respostas genômicas dos compostos químicos com o objetivo de identificar novos fármacos e alvos terapêuticos. Nesses estudos, ele utiliza “robôs cientistas” desenvolvidos na Universidade de Gales, no Reino Unido.

Em entrevista à Agência FAPESP, Oliver analisou o perfil do cientista que trabalhará na área emergente que reúne a robótica e a biologia sintética. O cientista também comentou a evolução da ciência brasileira, nesse período, no campo que compreende a ciência da computação aplicada à biologia.
Em uma de suas mais recentes colaborações com brasileiros, Oliver e Fábio Costa, do Instituto de Biologia (IB) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), desvendaram o mecanismo de ação da violaceína. Esse composto, isolado por Costa a partir de bactérias do rio Amazonas, é um eficaz antimalárico. Mas, sem conhecer o mecanismo de ação, seria impossível transformá-lo em uma nova droga.
Agora, com ajuda de um robô cientista, os pesquisadores poderão testar outras drogas contra o mesmo alvo identificado no mecanismo de ação da violaceína. O trabalho feito a partir de um único composto poderá ser testado, graças à automação, em bibliotecas inteiras de outros compostos, acelerando o processo e aumentando exponencialmente a chance de se chegar a um novo fármaco contra a malária.

Agência FAPESP – Depois do seu envolvimento com o projeto de sequenciamento genético da Xylella fastidiosa, há mais de dez anos, o senhor manteve parcerias com cientistas brasileiros?
Steve Oliver – Sim, tenho contato com a comunidade científica brasileira há muito tempo, antes mesmo de ser convidado para participar do comitê do projeto Genoma Xylella. Mas a partir daquele momento tive oportunidade de desenvolver uma boa rede de contatos no país e de levar adiante alguns projetos de pesquisa em cooperação.

Agência FAPESP – Qual a sua visão sobre a evolução no Brasil, durante esse período, das áreas que integram ciências biológicas e tecnologia computacional? Houve avanços?
Oliver – Os projetos Genoma, na minha opinião, transformaram a ciência brasileira, em particular no caso do Estado de São Paulo. Em muitos aspectos, acho que houve nesse período avanços em relação ao desenvolvimento de novas competências, na formação de cientistas talentosos e melhoramento na infraestrutura – com boas instalações e equipamentos.

Agência FAPESP – O que deu àqueles projetos esse caráter transformador?
Oliver – Principalmente a maneira como o projeto foi levado adiante. Algo semelhante ao que ocorreu na Europa com os grandes projetos de sequenciamento do genoma. O aspecto fundamental é que nesses projetos os cientistas têm que cooperar, necessariamente. Lembro que, em meus primeiros trabalhos com brasileiros, a ausência da cooperação entre os laboratórios chamava a atenção.

Agência FAPESP – O projeto Genoma Xylella deu um impulso inédito à cooperação científica?
Oliver – Sim, foi fundamental para criar essa cultura. Antes o dinheiro era mais escasso e as pessoas ficavam realmente ciumentas em relação ao que conseguiam. Isso gerava situações tolas: houve momentos em que pesquisadores vieram me pedir para fornecer reagentes que eles poderiam conseguir com o colega de departamento, atravessando o corredor. Em relação a isso, o projeto Genoma Xylella mudou as coisas completamente, ao gerar mais acesso a recursos e a novos equipamentos, facilitando o trabalho em cooperação. A situação da cooperação entre cientistas no Brasil é muito mais saudável agora. As pessoas começaram a trabalhar juntas. É bobagem não cooperar.

Agência FAPESP – Essa interação também se intensificou em relação aos grupos internacionais?
Oliver – Sem dúvida. Em relação a isso, a FAPESP, que já tinha feito a diferença com o Genoma Xylella, deu uma contribuição decisiva nos últimos anos intensificando suas relações internacionais. É o caso do acordo da FAPESP com os Conselhos de Pesquisa do Reino Unido (RCUK). Essas ações fazem parte desse contexto geral de avanço da cooperação internacional da ciência brasileira.

Agência FAPESP – É importante para o Brasil investir nas tecnologias de automação voltadas para a biologia sintética? Ou não vale a pena focar os recursos em infraestrutura desse tipo?
Oliver – Acho importante. Alguém poderia argumentar que não há tantos limites de mão de obra no Brasil e por isso não valeria a pena automatizar os processos. Mas não acredito nisso. Em primeiro lugar porque ainda há escassez de talentos em relação à demanda, em especial agora, com a economia crescendo, com o acesso cada vez mais fácil às instalações disponíveis para fazer ciência de ponta. Em segundo lugar, porque cada vez mais se tem necessidade de experimentos que tenham alta reprodutibilidade. E os robôs podem conseguir isso muito melhor do que os cientistas humanos. O Brasil tem condições de desenvolver tecnologias de automação e elas são fundamentais para que os dados de um experimento possam ser aplicados em inúmeros outros estudos. A robotização tem um efeito multiplicador na ciência.

Agência FAPESP – A automação aplicada à biologia sintética é uma área que requer um perfil de cientista muito especial. Como formar esse pessoal?
Oliver – Posso falar do Reino Unido, onde o grande problema é que os estudantes de biologia em geral não tendem a ser bons em matemática. Em várias grandes universidades, eles não têm estímulo para aprimorar o conhecimento nas matemáticas. Em Cambridge é diferente, insistimos muito nisso. Mas, olhando para minha própria educação, vejo que eu nunca pensava que ia precisar saber mais matemática ou química. Agora vemos que já há biólogos com um background de matemática, ciências físicas ou engenharia, e isso é muito bom.

Agência FAPESP – Mas é possível – e necessário – ter conhecimento em alto nível nas duas áreas?
Oliver – Acho que é possível, sim. Mas não acho que todo mundo precise fazer isso. Alguns indivíduos podem explorar esses talentos muito bem, como uma estudante do meu laboratório que se formou em matemática em Cambridge e agora está fazendo o doutorado em ciências biológicas. O essencial, no entanto, é que um especialista tenha o conhecimento suficiente para poder se comunicar com os especialistas de outras áreas. Em Cambridge tentamos incentivar esse diálogo, mesmo entre os indivíduos que não têm aptidão para mergulhar a fundo em duas ou mais áreas.

Agência FAPESP – Como vocês incentivam isso?
Oliver – Começamos, por exemplo, a fazer um programa de cursos com foco interdisciplinar em Cambridge, para alunos de quarto ano. Recebemos estudantes com background de matemática, computação, física e biologia. O curso começa antes do início do ano acadêmico, com aulas intensivas em todas essas áreas. Promovemos essa formação mínima para que haja um diálogo entre eles, conectando as pessoas. O importante é colocá-los em contato. É minha convicção que os estudantes aprendem mais com outros estudantes do que com os professores. Acho que está funcionando muito bem. É importante não para incrementar o currículo deles, mas para possibilitar esse contato e fazer com que eles ensinem uns aos outros.



 Fonte:
Agência FAPESP
Entrevistas -  3/3/2011
http://www.agencia.fapesp.br/materia/13537/colaboracao-e-convergencia.htm

Sejam felizes todos os seres. 
Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres
.

LIBERDADE E COMPROMISSO - Franklin Leopoldo e Silva

Liberdade e compromisso

Ninguém está predeterminado a qualquer coisa, 
por mais fortes que sejam os fatos que configuram uma situação.
Eu sou aquilo que faço com o que fazem de mim

De todas as relações que se possa estabelecer na filosofia de Sartre, talvez não se possa apontar alguma mais íntima do que aquela que se dá entre liberdade e engajamento. Essas duas noções e a relação entre elas estão na base da própria definição sartreana de existência e, nesse sentido, desempenham função nuclear na filosofia existencial. Para percebê-lo, basta lembrar como ambas podem ser vistas enquanto explicitação do dístico emblemático do existencialismo, seu verdadeiro lema: a existência precede a essência.
 
A recusa da concepção tradicional, segundo a qual o homem possuiria uma essência dada a priori (animal racional, por exemplo), implica a aceitação de que o ser humano primeiramente surge na sua radical espontaneidade e depois se define, se faz aquilo que vem a ser. O primado da existência significa precisamente esse ato de projetar-se, de lançar-se à frente de si mesmo, de fazer-se e de assumir-se no mundo por via da realização de alguma possibilidade. Tudo isso está contido na acepção de liberdade originária, espécie de grau zero da realidade humana entendida fundamentalmente como existência. Não se trata, como se pensava na tradição filosófica, de compreender a liberdade como uma faculdade humana, disposição ou capacidade para agir livremente. 

O caráter absolutamente originário da liberdade nos leva a entender que ela não é algo que o homem tenha, e sim algo que ele é. Ora, sendo antes de tudo liberdade, o homem não é propriamente nada além das possibilidades de ser. É isso que o distingue das coisas e dos animais: não poder ser concebido na sua integridade essencial antes que o processo contingente de existir o leve a assumir por si mesmo um projeto de existência que tentará realizar como um modo de ser no mundo.

Por isso, O ser e o nada, o tratado de ontologia fenomenológica que Sartre publica em 1943, elucida principalmente três noções centrais na filosofia da existência: possibilidade, projeto e contingência. Dizer que o homem é o ser dos possíveis significa pensá-lo a princípio unicamente como abertura a todas as possibilidades, já que não traz em si antecipadamente nenhuma determinação. 

Assumir livremente alguma dessas possibilidades significa projetar um modo de existir e projetar-se na existência, num tipo de experiência em que a realidade humana se define muito mais como futuro do que como passado ou presente. Essa projeção antecipatória de si mesmo implica que o homem vive, sobretudo, fora de si, à frente de si, vindo a ser aquilo que poderá fazer de si mesmo a partir de um projeto de existência. Ora, como o homem pode assumir qualquer possibilidade, já que não está determinado para alguma em particular, isso significa que todas são igualmente contingentes, isto é, nenhuma o atrai mais do que outra, não está necessariamente determinado a assumir alguma dentre elas.

Vê-se como a liberdade originária, tal como é concebida por Sartre, só pode realizar-se a partir da escolha radical de um projeto a ser assumido num mundo contingente. 

A fenomenologia da existência desenvolvida em O ser e o nada faz da liberdade um tema de ontologia e não de psicologia, porque a compreensão fundamental da realidade humana só pode acontecer em termos da elucidação de um processo, em que as condutas humanas, fenomenologicamente desvendadas, constituem-se progressivamente como elementos de revelação dessa peculiaridade: o homem não é algo dado como uma natureza, mas vem a ser aquilo que se faz no devir da existência. Assim, a filosofia da existência supõe uma atitude interrogativa que nos afasta de qualquer idéia, natural ou metafísica, que se possa colocar como pressuposto explicativo do que seja o homem.

Mas essa fenomenologia da existência só pode atingir o processo concreto de existir se a análise levar em conta as configurações efetivas de possibilidades em que se dá a escolha existencial pela qual o homem se faz projeto. Esse ajuste do projeto existencial a um dado contexto de possibilidades é definido como situação, outra das noções fundamentais que já aparece no tratado de ontologia fenomenológica. A situação é a demarcação concreta do exercício da liberdade, isto é, da escolha e do projeto. Por isso Sartre diz que a liberdade é sempre situada, e que a situação é a configuração real da abertura originária da realidade humana aos possíveis. 

É esse ajuste fenomenológico que faz com que a liberdade não seja uma categoria transcendental ou uma idéia reguladora, mas um exercício real de construção processual de si mesmo. É a consideração primordial do processo de existir que faz com que a liberdade, mesmo pensada como espontaneidade radical, não se exerça no vácuo, mas no denso universo de possibilidades, que não devem ser compreendidas simplesmente como princípios de ação, mas como que formando a teia complexa de tudo aquilo que devo afirmar e negar, aceitar e recusar, superar e evitar, transpor e contornar, na sucessão de atos concretos em que cada um se faz ser.

A essa variedade complexa que constitui o entorno mundano da subjetividade livre Sartre denomina facticidade. É algo que supera o sujeito porque cada um de nós, ao surgir no mundo, já encontra um mundo, isto é, um conjunto de fatos dados em que nos inserimos, mas que nos precede e nos transcende: família, sociedade, ambiente histórico, condição social etc. Desde fatores de ordem pessoal até condições gerais de ordem histórica, há todo um conjunto de fatos que constituem para cada sujeito a sua situação.

Agir significa, em grande parte, reagir a tudo isso. 
E assim a liberdade é inseparável das condições concretas do seu exercício.

Eis um ponto a propósito do qual é necessário enfatizar que o existencialismo sartreano, longe de propor uma liberdade que seria pura e simples fruição da espontaneidade da consciência, nos faz defrontar com o trabalho duro de vencer a adversidade, num enfrentamento difícil de tudo aquilo que temos de superar para realizar autenticamente um projeto livre de ser.

A noção de facticidade leva-nos ao engajamento ou ao compromisso. Diríamos que, primeiramente, não se trata tanto de assumir um compromisso quanto de reconhecer que estamos irremediavelmente comprometidos. E aqui a posição de Sartre faz eco ao que Pascal formula na sua famosa aposta: não se trata de escolher se apostamos ou não; estamos engajados e é a partir daí que se dá qualquer escolha. Como nascemos sempre num dado contexto real e concreto, já estamos, somente por isso, comprometidos com ele, isto é, com o mundo no qual temos de viver.

Ainda que venha a optar pelo quietismo e pela indiferença, tais atitudes não deixam de representar a maneira pela qual respondo às solicitações do meu mundo, da minha época, da minha classe e, portanto, a forma como me comprometo com os problemas do meu tempo.

O primeiro texto em que essas questões aparecem explicitadas de modo diretamente histórico é Que é a literatura?, de 1947. Mas não é nesse livro, cujo tema é o engajamento do escritor, que tais questões surgem pela primeira vez, posto que já em O ser e o nada os problemas da relação entre liberdade e facticidade estavam presentes como indagações fundamentais.

Ora, o compromisso é, por assim dizer, uma espécie de noção mediadora entre liberdade e facticidade, posto que representa de algum modo a decisão tomada a respeito de como devo lidar com os fatos. Assim, os elementos da facticidade, que pesam sobre mim com a força das determinações, não são irremediavelmente determinantes: tudo depende da conduta que cada um assume em relação a eles. Por isso Sartre insiste na contingência do mundo histórico; ninguém está predeterminado a qualquer coisa, por mais fortes que sejam os fatos que configuram uma situação. 

Eu sou aquilo que faço com o que fazem de mim.

O contexto familiar, a condição de classe, a formação cultural, a herança histórica, tudo isso pesa sobre o indivíduo; mas esse indivíduo é sujeito de sua história e da História. Se tudo isso vier a determiná-lo, como se ele fosse passivo, é porque ele se terá feito passivo e determinado; terá sido uma escolha, porque, de tudo o que nos constitui, a única coisa que não podemos escolher é deixar de ser livres. 

Daí a célebre frase:
o homem está condenado a ser livre. 

Isso significa que, por mais que procuremos mascarar a liberdade, nunca poderemos esconder de nós mesmos o movimento livre pelo qual nos disfarçamos com a máscara da determinação.

Ora, é um e o mesmo o movimento pelo qual alguém se coloca tal máscara e aquele pelo qual os outros a colocam nele. A opressão e a dominação econômico-política são os meios pelos quais os homens levam outros homens a assumirem a condição de coisa, a alienarem a própria humanidade. A partir de 1947, vai acentuando-se em Sartre a preocupação com a liberdade histórica, o que no contexto do capitalismo significa a preocupação com a alienação. Num primeiro momento, que vai até 1956, isso significou caminhar ao lado do PC francês, algo que representava muito mais uma aliança tática do que uma coincidência de pensamento

Depois da ruptura, marcada pela intervenção soviética na Hungria, seguiram-se as críticas ao Partido e ao marxismo oficial, que Sartre via como dogmático e mecanicista. Em 1960, a publicação de Questão de método esclarece, em pormenor, o que Sartre entende por esterilização doutrinal da Dialética entre os marxistas e a compatibilidade entre o existencialismo e o materialismo histórico, desde que este último seja entendido como o estabelecimento de uma relação verdadeiramente dialética entre subjetividade e história.

A partir daí, toda a vida de Sartre constituiu uma confluência entre o homem e a obra como raras vezes se pôde constatar. E isso aconteceu porque a figura do filósofo tornou-se uma espécie de encarnação do compromisso, sem que ele tivesse por isso de recuar um milímetro sequer em sua liberdade. A guerra da Argélia e o colonialismo, a condição do proletariado e a repressão, o imperialismo e a guerra do Vietnã, o racismo e a intolerância política: contra todas as desgraças que pontuaram a segunda metade do século 20, Sartre elevou a sua voz e exercitou sua escrita, na França e nos movimentos internacionais. Foi acusado de radicalismo e de inconse-qüência por aqueles que não souberam perceber que tudo isso não era senão a continuidade prática de um outro radicalismo, enunciado muito antes e ao qual nunca deixou de ser fiel: a liberdade radical e o engajamento completamente conseqüente.

Mas certamente o que está na raiz daquelas acusações é a incapacidade de perceber que, entre a liberdade existencial e a liberdade histórica, entre o projeto subjetivo e o compromisso objetivo, a continuidade se faz por via do substrato ético da filosofia de Sartre, algo que sempre esteve presente no seu pensamento e na sua ação, e que é absolutamente intrínseco ao rigorismo moral do seu existencialismo. Já na conferência de 1946, “O existencialismo é um humanismo”, esse rigorismo extremado se punha às claras por meio da insistência na relação entre a livre instituição dos valores imanentes à escolha e a responsabilidade aí inerente. O que então foi criticado como variante do subjetivismo já era a proposta de pensar a tensão entre o sujeito e a história, bem como a responsabilidade ética do agente histórico.

Essa tensão e essa responsabilidade ajudam-nos a compreender tudo aquilo que deixou perplexos os bem-pensantes, os dotados do “espírito de seriedade” e de outros atributos que constituem a má-fé, moral e intelectual.

As passeatas, a distribuição de panfletos, os discursos em porta de fábrica, os jornais maoístas: a liberdade do compromisso, o compromisso da liberdade; o reconhecimento de que estamos engajados e de que é impossível não se comprometer com o seu tempo. 

A grande lição, que Sartre por convicção não aceitaria dar, mas que podemos extrair da sua conduta filosófica, ética e política, é que o indivíduo somente sai de sua particularidade abstrata para atingir a universalidade concreta do humano quando reconhece o lastro histórico que enraíza a subjetividade na generosidade.

Franklin Leopoldo e Silva

Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP),
autor de Bergson 
Intuição e discurso filosófico (Ed. Loyola) e Descartes 
– A metafísica da modernidade (Ed. Moderna)
 Fonte
Revista Cult

 http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/liberdade-e-compromisso/
Publicado em 12 de março de 2010

Sejam felizes todos os seres. 
Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

LIBERDADE EM LEIBNIZ ,


sobre a liberdade

(De Libertate) [1689?]
G. W. Leibniz

Como a liberdade e a contingência podem coexistir com a série de causas e com a previdência é uma das mais antigas preocupações da raça humana. E a dificuldade do problema tem apenas se intensificado através das investigações realizadas pelos Cristãos no que diz respeito à justiça divina em prover a salvação dos homens>

Quando eu considerava que nada acontece por acaso ou por acidente (a menos que estejamos considerando certas substâncias entendidas por si mesmas), que a fortuna diferenciada do destino é nome vazio, e que nenhuma coisa existe a menos que suas próprias condições [requisitis] particulares estejam presentes (condições de cuja presença conjunta se segue, alternadamente, que as coisas existem) estive muito próximo à opinião daqueles que pensam que tudo é absolutamente necessário, que julgam que é suficiente para a liberdade que não estejamos coagidos, mesmo que estejamos sujeitos à necessidade, e próximo à opinião daqueles que não distinguem o que é infalível ou certamente conhecido como verdadeiro, daquilo que é necessário.

Mas a consideração dos possíveis, que não são, não foram e não serão, trouxe-me de volta esse princípio. Pois se há certos possíveis que nunca existem, então, as coisas que existem, pelo menos, não são sempre necessárias, pois do contrário, seria impossível para outras coisas existir em seu lugar e, assim, todas as coisas que nunca existem seriam impossíveis.

Tampouco podemos realmente negar que muitas histórias, especialmente aquelas denominadas fábulas, são pensadas como sendo possíveis, embora não possam encontrar lugar nessa série universal selecionada por Deus – a menos que se imagine que em uma tal extensão de espaço e de tempo há certas regiões poéticas onde podemos ver o Rei Arthur da Grã-Bretanha, Amadis de Gaul, e as histórias germânicas sobre o célebre Dietrich von Bern, vagando pelo mundo. Isso não parece muito distante da opinião de um distinto filósofo de nossa era, que em certo local explicitamente afirma que a matéria assume sucessivamente todas as formas de que é capaz (Princípio de Filosofia parte III art. 47), algo dificilmente defensável. 2 Pois isso eliminaria toda a beleza do universo e toda escolha entre as coisas, sem falar de outras considerações pelas quais o contrário pode ser provado.

Portanto, reconhecendo a contingência das coisas, eu, além disso, considerava o que deveria ser uma clara noção da verdade, pois esperava, e não absurdamente, por alguma luz oriunda daquela direção sobre como as verdades necessárias e contingentes poderiam ser distinguidas. Ora, percebi que é comum a toda proposição verdadeira afirmativa, universal e (ou) particular, necessária ou contingente, que o predicado esteja no sujeito, isto é, que a noção do predicado está envolvida de algum modo na noção do sujeito. E essa é a fonte [principium] da infalibilidade de todo tipo de verdade para aquele ser que conhece todas as coisas a priori. Mas isso parecia-me apenas intensificar a dificuldade, pois se a noção do predicado está na noção do sujeito em um dado tempo, então, como poderia o sujeito carecer do predicado sem contradição e impossibilidade e sem alterar aquela noção?

Finalmente, uma nova e inesperada luz brilhou de onde eu menos esperava, ou seja, das considerações matemáticas acerca da natureza do infinito. Pois há dois labirintos da mente humana: um diz respeito à composição do contínuo e o outro refere-se à natureza da liberdade e ambos provêm da mesma fonte, o infinito. Aquele mesmo filósofo já citado anteriormente preferiu cortar ambas as dificuldades com uma espada já que ele ou não poderia resolver os problemas, ou tampouco quis revelar sua opinião. Pois em seus Princípios de Filosofia I, art. 40 e 41, afirma que facilmente podemos nos enredar em enormes dificuldades se tentarmos reconciliar a predeterminação de Deus com o livre arbítrio; mas, afirma ele, devemos nos abster de discutir essas questões, já que não podemos compreender a natureza de Deus.

E também, em Princípios de Filosofia II art. 35, ele afirma que não devemos duvidar da infinita divisibilidade da matéria mesmo se não a podemos compreender. Porém, isso não é satisfatório, pois uma coisa é não compreendermos algo e outra coisa muito diversa é compreendermos que é contraditório. E assim, devemos, ao menos, ser capazes de responder a esses argumentos, que parecem acarretar que a liberdade ou a divisão da matéria implica uma contradição.

Portanto, devemos compreender que todas as criaturas têm gravadas em si um certo sinal [character] da divina infinidade, e que essa é a fonte de muitas coisas maravilhosas que assombram a mente humana.

Na verdade, não há porção de matéria tão diminuta que não contenha um tipo de mundo de criaturas, infinitas em número, e não há substância individual criada tão imperfeita que não atue sobre todas as outras e que não sofra suas ações, nenhuma substância tão imperfeita que não contenha o universo inteiro, e o que quer que seja, foi ou será, em sua noção completa (tal como existe na mente divina), nem há qualquer verdade de fato ou qualquer verdade relativa às coisas individuais que não dependa da infinita série de razões; o que quer que esteja nessa série pode ser visto apenas por Deus. Essa também é a razão pela qual apenas Deus conhece as verdades contingentes a priori e vê sua infalibilidade de outro modo que não através da experiência.

Após haver considerado mais atentamente essas questões, uma distinção mais profunda entre as verdades necessárias e contingentes me foi revelada. Ou seja, toda verdade ou é básica [originaria] ou derivada. As verdades básicas são aquelas para as quais não podemos fornecer uma razão; as identidades ou verdades imediatas, que afirmam a mesma coisa de si mesmas ou negam a contradição de suas contradições, são verdades deste tipo. As verdades derivadas, por sua vez, são de dois tipos, pois algumas podem ser decompostas em verdades básicas e outras, em sua decomposição, dão origem a uma série de etapas que vai ao infinito. As primeiras são necessárias; as últimas, contingentes. Na verdade, uma proposição necessária é aquela cujo contrário implica uma contradição.

Toda proposição idêntica e toda proposição derivada decomposta em proposições idênticas são de um tal tipo, como as verdades denominadas metafísicas ou necessidades geométricas. Pois a demonstração nada mais é que expor uma determinada igualdade ou coincidência do predicado com o sujeito (no caso de uma proposição recíproca) pela decomposição dos termos de uma proposição e pela substituição de uma definição ou parte de uma por aquilo que está definido ou, em outros casos, ao menos revelando a inclusão para que aquilo que permanece oculto na proposição e estava nela contido virtualmente torne-se evidente e explícito através da demonstração. Por exemplo, se por um número ternário, senário ou duodenário entendemos aquele divisível por 3, 6 , 12, então, podemos demonstrar a proposição segundo a qual todo duodenário é senário. Pois todo número duodenário é binário-binário-ternário (que é a análise de um duodenário em seus fatores primos, 12 = 2 x 2 x 3, isto é, a definição de um duodenário) e todo binário-binário-ternário é binário-ternário (que é uma proposição idêntica), e todo binário-ternário é senário (que é a definição de senário, 6 = 2 x 3). Portanto, todo duodenário é senário (12 = 2 x 2 x 3 e 2 x 2 x 3 é divisível por 2 x 3, e 2 x 3 é igual a 6. Portanto, 12 é divisível por 6).

Mas, nas verdades contingentes, ainda que o predicado esteja no sujeito, isso nunca pode ser demonstrado, tampouco pode uma proposição ser reduzida [revocari] a uma unidade ou a uma identidade, mas a análise continua ao infinito, apenas Deus vendo, não no fim da análise, é evidente, que não existe, mas, a conexão dos termos ou a inclusão do predicado no sujeito, já que Ele vê o que quer que seja na série. De fato, essa própria verdade foi derivada em parte do Seu intelecto, em parte de Sua vontade, e expressa Sua infinita perfeição e a harmonia de toda série de coisas em seu modo particular.

Todavia, nos restam dois modos para conhecer as verdades contingentes: um através da experiência e outro por meio da razão – pela experiência quando percebemos uma coisa distintamente através dos sentidos e pela razão quando alguma coisa é conhecida a partir do princípio geral segundo o qual nada é sem razão ou que sempre há alguma razão pela qual o predicado está no sujeito. De fato, devemos assumir como certo que Deus fez todas as coisas do modo mais perfeito, e que Ele nada faz sem uma razão, e que nada acontece, em qualquer lugar, a menos que Ele que a tudo conhece, reconheça sua razão, ou seja, por que o estado das coisas é deste modo e não de outro. E assim, razões podem ser fornecidas não menos para as ações das mentes do que para as ações dos corpos, embora as escolhas feitas pelas mentes careçam de necessidade.

Os pecados advêm da limitação original das coisas. Deus não escolhe os pecados tanto quanto escolhe admitir à existência certas substâncias possíveis, que envolve pecados livres quanto possíveis em suas noções completas e mesmo contém toda a série de coisas no que estarão contidas. Nem devemos duvidar que há razões ocultas que transcendem completamente a compreensão de uma criatura, razões pelas quais Deus prefere uma série de coisas, embora inclua os pecados, a uma outra. Mas Deus escolhe apenas a perfeição, isto é, o positivo. Todavia, a limitação e, dele se originando, o pecado são permitidos desde que estabelecendo certos decretos positivos, sua rejeição absoluta é excluída. Mas, nenhum dos preceitos [rationes] da sabedoria são de utilidade aqui exceto aquele pelo qual a limitação e o pecado devem ser compensados por um outro bem não passível de obtenção. Todavia, essas questões não são oportunas aqui.

Mas, a fim de melhor fixar a atenção da mente de modo que ela não salte de uma objeção sem objetivo a uma outra, uma certa analogia entre verdade e proposições vem à mente, que maravilhosamente parece iluminar toda a questão e fazer jorrar sobre ela uma luz transparente. Assim como em toda proporção um número menor está para um maior ou um igual está para um igual, assim, em toda verdade o predicado está no sujeito. E assim como em toda proposição entre quantidades homogêneas, pode-se empreender uma determinada análise de iguais ou congruentes e pode-se subtrair o menor do maior pela subtração de uma parte, do maior, igual ao menor, e de forma semelhante, pode-se subtrair um resto do resultado daquela subtração, e assim por diante, até onde se deseje, ou ao infinito, assim também na análise das verdades, um [termo] equivalente sempre pode ser substituído por um termo, de modo que o predicado está disperso nas coisas contidas no sujeito.

Mas nas proporções, enquanto a análise, às vezes, chega a um fim e a uma medida comum, ou seja, aquela que avalia cada termo da proporção através da exata repetição de si mesma, em outros casos a análise pode continuar ao infinito, como ocorre na comparação entre um número racional e um irracional, tal como a comparação do lado e a diagonal de um quadrado. Então, de modo similar, as verdades são, às vezes, demonstráveis, isto é, necessárias e, por outras, são livres ou contingentes e, então, não podem ser decompostas, por qualquer análise, a uma identidade, a uma medida comum, por assim dizer. E essa é uma distinção essencial, tanto para as proporções como para as verdades.

Todavia, assim como as proporções incomensuráveis são tratadas na ciência da geometria e possuímos provas acerca de séries infinitas, em uma maior extensão, as verdades contingentes ou infinitas estão subordinadas ao conhecimento divino e por Ele são conhecidas, na verdade, não através da demonstração (que implicaria uma contradição), mas por meio de Sua infalível intuição [visio]. Todavia, a intuição de Deus dificilmente deve ser pensada como um tipo de conhecimento da experiência (como se Ele visse algo nas coisas distinto de Si mesmo), mas como um conhecimento a priori, conhecimento derivado das razões para as verdades, na medida em que Ele vê as coisas no Seu interior [ex se ipsa], os possíveis através de uma consideração de Sua própria natureza e as coisas existentes através da consideração adicional de Seu livre arbítrio e Seus decretos, o mais importante dos quais é que todas as coisas acontecem do melhor modo, e pela melhor razão. Todavia, o que se denomina conhecimento médio nada mais é que o conhecimento dos possíveis contingentes.

Ademais, uma vez que essas coisas tenham sido adequadamente consideradas, não penso que possa surgir qualquer dificuldade sobre essa questão cuja solução não possa derivar do que foi dito. Pois, tendo-se aceito a noção de necessidade que todo mundo admite, ou seja, que aquelas coisas cujo contrário implica uma contradição são precisamente aquelas que são necessárias, prontamente aparecerá da consideração da natureza da demonstração e análise que certamente pode haver, de fato deve haver, verdades que não podem ser reduzidas por qualquer análise a verdades idênticas ou ao princípio de contradição, verdades dotadas de uma série infinita de razões, apenas conhecidas plenamente por Deus. E, facilmente mostra-se, essa é a natureza de todas as coisas denominadas livres e contingentes, especialmente aquelas que envolvem lugar e tempo. Isso foi suficientemente demonstrado acima a partir da própria infinidade das partes do universo e da interpenetração e conexão mútua das coisas.

Notas:
1. Título do editor. Latim; F. de C. 178-85; Gr. 326;
2. O “distinto filósofo” é, evidentemente, Descartes.

Fonte:
LEIBNIZ BRASIL
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CONTINGÊNCIA E LIBERDADE EM HENRI BERGSON


 

Wellington Lima Amorim - 1
Valdemar Habitzreuter - 2


RESUMO

Este trabalho é o resultado de uma pesquisa bibliográfica com o intuito de demonstrar que o método intuitivo de Bergson é um contato com a força criadora divina que se expressa pela experiência da contingência. Num primeiro momento fazemos um apanhado geral dos elementos fundantes de sua filosofia que nos dão já uma indicação de como sua filosofia está envolvida pelos conceitos de necessidade e contingência. Em seguida será esclarecido o que Bergson entende por élan vital, que é uma força dinâmica que cria, projetando-se em direções múltiplas, na ânsia de se manifestar em seres viventes, numa progressão evolutiva de autoconsciência e de liberdade.

1 INTRODUÇÃO

Ao longo da História da Filosofia sempre apareceram pensadores de grande envergadura que procuraram penetrar no mistério da vida. Dentre eles podemos destacar o filósofo Henri-Louis Bergson pela importância em fundamentar a realidade num princípio contingencial, ou seja, no impulso da vida. Se opôs ao cientificismo exagerado de sua época que considerava a ciência mecânica como única abordagem capaz de explicar os fenômenos existenciais.

Quando se aborda o tema da contingência, geralmente fazemos idéia de um assunto exclusivamente abstrato, e que estaria excluído de um questionamento filosófico claro. Mas, Bergson nos mostra o contrário. Ele faz da contingência um tema filosófico. O auge de filosofia é a posse de um conhecimento absoluto da realidade, uma realidade supra-humana experienciada pelo conhecimento intuitivo. Trata-se de um conhecimento positivo ou experiencial, embora esse conhecimento se cunhasse mais por simpatia ou intuição do que por uma compreensão intelectual. A contingência para Bergson é ultrapassar o entendimento intelectual e elevar-se ao conhecimento intuitivo, proporcionando ao ser humano o contato com o ato gerador da vida.

Ao aplicar um método novo de filosofar e de abordar a vida, Bergson tem como princípio gerador o élan vital que é uma força criadora. Bergson traz à luz da razão uma perspectiva nova de como a vida se processa e evolui na duração (durée), com a tendência a nos espiritualizar, um estágio de vida ideal, ou melhor, real, que a experiência contingencial é expressa como sendo divina. Por isso mesmo, este trabalho, que ora se desenvolveu, é o resultado de uma pesquisa que busca entender a contingência na obra filosófica de Bergson, cujo alicerce é esse élan vital, projetando a vida para além do necessitarismo que, no dizer de Bergson, é uma forma de vida radiante, “gozo no gozo, amor do que é só amor” (BERGSON, 1971, p. 175-176).


Pode-se dizer que todo seu pensamento filosófico converge
para a temática da contingência.

2 OS ELEMENTOS FUNDANTES DA FILOSOFIA DE BERGSON


A abordagem filosófica que Bergson faz para fundamentar sua metafísica ou filosofia positivista espiritualista constitui-se de quatro elementos essenciais: impulso vital, evolução criadora, duração e intuição. Sintetizando seu pensamento filosófico pode-se dizer que há um impulso de vida que cria e que se desenrola num tempo real, culminando no aparecimento do ser humano constituído de consciência, memória e liberdade. Bergson entende que a realidade dura, ou seja, existe um movimento dinâmico de ininterrupta criação. Essa duração se percebe, intuitivamente, em primeiro lugar, em nós mesmos como umeu. Por isso, ela é essencialmente consciência, memória e liberdade, testemunhada por esse eu.

Ao lado do corpo que está confinado ao momento presente notempo e limitado ao lugar que ocupa no espaço, que se conduz como autômato e reage mecanicamente às exigências exteriores, apreendemos algo que se estende muito mais longe que o corpo no espaço e que dura através do tempo, algo que solicita ou impõe ao corpo movimentos não mais automáticos e previstos, mas imprevisíveis e livres: isto que ultrapassa o corpo por todos os lados e que cria atos ao se criar continuamente a si mesmo, é o “eu”, é a “alma”, é o “espírito”- o espírito sendo precisamente uma força que pode tirar de si mesma mais do que contém, devolver mais do que recebe, dar mais do que possui (BERGSON, 1984, p. 84).

Assim, é preciso compreender o que Bergson entende por tempo como duração, que é consciência, memória, liberdade, e o método intuitivo que ele emprega para fazer uma autêntica filosofia.


2.1 O método intuitivo.
Na época de Bergson reinava a filosofia kantiana. A metafísica era desprezada por não conseguir um conhecimento do absoluto ou da coisa em si. Bergson não aceita essa condenação para a metafísica. Para ele a metafísica é uma experiência interior que dá conta do absoluto. Bergson estabelece uma nova metafísica. Distingue ele dois modos de conhecimento. O conhecimento intelectual ou analítico, que tem como característica a necessidade, e o conhecimento intuitivo, que é a expressão máxima da contingência superior ao conhecimento intelectual por chegar à coisa em si, ou seja, ao Absoluto.

O conhecimento intelectual diz respeito às necessidades da vida humana em seu ambiente natural e social. Ele se presta à utilidade das coisas enquanto apreensíveis na imobilidade. O único método para este tipo de conhecimento é a classificação e a manipulação. É um conhecimento que busca a realidade concreta. Por exemplo: a técnica, a linguagem, o mundo cotidiano, enfim, todo conhecimento científico. É um conhecimento que se ocupa da exterioridade prática e estática. Não consegue estabelecer-se no movimento ou no dinamismo da vida, uma vez que tudo se transforma tudo é um devir.

O intelecto só consegue conceber o movimento na imobilidade. Ele pára e o secciona em partes para catalogá-lo como momentos justapostos, e toma, assim, a realidade como sendo estática. Assim, pois, o movimento ou a dinamicidade foge do entendimento do intelecto, pois aquilo que é agora, já não o é mais, é algo novo. É esse o movimento contínuo e dinâmico que a inteligência não capta, porque é um movimento vivido pela consciência, ou pelo espírito.

Já o conhecimento intuitivo é interior, é contemplativo, mas ao mesmo tempo é criador. Neste sentido ele se realiza na duração que é movimento. Não se detém ao útil da vida prática que é concebido na fragmentação espacial e temporal. O conhecimento intuitivo não classifica as coisas para satisfazer as necessidades do cotidiano. Não as divide nem as mede como o conhecimento analítico. Portanto, não é um conhecimento relativo, que é próprio do conhecimento intelectual ou científico. Em suma, é um conhecimento do espírito que se eleva acima do conhecimento intelectual e apreende a realidade como sendo um movimento criativo dinâmico. Não se fixa no simples
movimento que age no interior das coisas.

Bergson, portanto, adota um método que ultrapassa a condição humana de inteligir simplesmente, ou de saber manipular o mundo material para sua comodidade e conveniência. “A filosofia deveria ser um esforço para ultrapassar a condição humana” (BERGSON, 2001, p. 1425). 

A busca de Bergson é ir além da inteligência e intuir a realidade. Na análise de Mossé-Bastide, Bergson procura seguir os moldes da ciência positiva que se baseia na experiência para demonstrar suas verdades. Impõe como método para a filosofia, uma metafísica positiva. Positivo quer dizer posto aí, às claras, verificável, controlável por alguém que busca um resultado científico. Portanto, é preciso conduzir a metafísica no terreno da experiência, fazendo um estudo tão preciso quanto o da ciência positiva.

Assim, essa metafísica experimental pelo conhecimento intuitivo será capaz de um veredicto positivo. Porque, para Bergson, a intuição é uma experiência especial, distinta da experiência vulgar, ou do senso comum. Ela é capaz de tocar a coisa em si, o absoluto, sem abandonar o fio condutor da experiência. A positividade da metafísica, para Bergson, é a submissão do fato à experiência como na ciência. Para ele, a metafísica deve chegar a ser a própria experiência. Assim como o positivismo científico tem por objeto o concreto e que afirma que é impossível conhecer além do que a experiência nos revela, da mesma maneira, há uma experiência interior, também indubitável, direta e irrecusável. Essa experiência interior é a intuição (Cf. MOSSÉ-BASTIDE, 1959, p. 19).

Segundo Levesque, Bergson enfatiza que experienciar é deixar ser a realidade como ela se apresenta. É ceder-lhe a palavra. Que fale ao filósofo o que ela é, sem apoio de conceitos. O discurso filosófico deve se adaptar a essa realidade. A própria realidade deve refletir no discurso do filósofo. Não é estabelecer princípios e daí proceder à dedução do real ou intervindo nas coisas. A realidade deve falar por si. (Cf. LEVESQUE, G. 1975, p. 14).

O método intuitivo de Bergson é experimental e inova ao querer ultrapassar a experiência humana intelectiva. Porque, segundo ele, a faculdade intelectiva não deixa a realidade falar por si, ela se intromete para que essa realidade seja distorcida e se preste unicamente às suas necessidades. Por isso, Bergson quer buscar essa experiência na sua fonte mesma, se introduzindo no objeto e coincidindo com ele o que tem de único e inexprimível, convidando-nos ao esforço para superar a condição humana que se molda às exigências da inteligência.

A experiência humana ordinária do empirismo clássico se atém ao fato que corresponde ao útil. Não é a realidade tal como apareceria a uma intuição imediata, mas uma adaptação do real aos interesses da vida prática e às necessidades da vida social. Com isso, podemos dizer que a humanidade se define pela conquista do mundo material (tecnologia) através da inteligência. Por sua vez, a sobre-humanidade se define pela conquista da realidade metafísica com o auxílio da simpatia intuitiva.

Segundo Meyer, o conhecimento intuitivo de Bergson é o conhecimento da realidade em si. Essa realidade é o movimento que se encerra no mundo material. O mundo material não se caracteriza pela imobilidade, mas encerra-se nele o movimento criativo donde advém o novo irrepetível.

Portanto, conhecimento intuitivo seria coincidir com esse movimento, que é o próprio ato gerador da realidade, o princípio de tudo. Nosso conhecimento já não seria relativo, mas absoluto. Embora não se capte toda realidade, ao menos se apreende uma parte dela, sem alterações, porque estamos inseridos na sua realidade e não fora dela. Há uma preocupação em Bergson, segundo Meyer, em achar uma experiência que fosse própria da metafísica.

A intuição é esta experiência. A intuição abre um domínio independente da ciência: a intuição é conhecimento absoluto, conhecimento do espírito, que experiência o movimento e não a  realidade estática. Neste domínio ela terá de cumprir o mesmo esforço de precisão,o mesmo trabalho de paciência que a ciência, ou seja, conhecimento científico 
fenômeno estático físico do mundo exterior, ele percebe o
(Cf. MEYER, 1964, p. 83).

 
2.2 Intuição
Bergson define assim a intuição: “Chamamos aqui intuição a simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com o que ele tem de único e, consequentemente, de inexprimível” (BERGSON, 1984, p. 14). Por essa definição, verifica-se que a intuição é um conhecimento contingencial que tem o seu acento experiencial a partir da interioridade. Pela intuição entra-se no objeto como se entra no nosso eu, vivencia-se sua vida como se vive a nossa. Não se conhece um objeto plenamente ou absolutamente vendo-o de fora, colocando-se sob vários ângulos de observação. Isso é conhecê-lo relativamente, manter relações à distância com o objeto. É necessário que se insira nele e se tenha a visão de que o objeto expressa a si próprio. Assim, esse objeto nos fala de sua realidade e não aquela que se querer que ele tenha.

Essa capacidade intuitiva de se transportar ao interior de um objeto e coincidir com sua realidade é privilégio dos que fazem o esforço de ultrapassar a condição humana da intelectualidade, é tornar o instinto primitivo consciente de si mesmo, capaz de refletir, enfim transformá-lo em intuição. A grandiosidade da experiência intuitiva é transportar-nos para dentro do movimento do élan vital que é o princípio de todas as coisas e coincidir com ele no que tem de único e inexprimível como força de vida, que se impõe a impulsionar-nos para frente e ao mesmo tempo impelindo-nos ao reconhecimento da origem do nosso próprio ser. Essa experiência intuitiva é, na verdade, nossa inserção na dinamicidade do élan vital em seu movimento criador e que é a dinamicidade divina. Tal conhecimento pertence à intuição, um conhecimento do espírito, voltado para dentro, refletindo o significado de uma realidade contingente que dura, não algo substancial, mas puro movimento criativo.

É da intuição que viria a luz, se alguma vez devesse esclarecer-se o interior do impulso vital, sua finalidade, sua significação. Porque ela estava voltada para dentro; e se, por uma primeiraintensificação nos fazia apreender a continuidade da nossa vida interior, se a maior parte de nós não fosse mais longe, uma intensificação superior a levaria talvez até às raízes de nosso ser e, com isso, até ao próprio princípio da vida em geral. Acaso a alma mística não tinha precisamente esse privilégio? (BERGSON, 1978, p. 206)

Ao assinalar que a intuição é um conhecimento do espírito, ou uma experiência interior da consciência, não se diminui a inteligência e nem se nega a ela nada do que lhe é próprio. Somente se constata ao lado dela a existência de uma outra faculdade, um prolongamento do conhecimento intelectivo, capaz de um outro tipo de conhecimento que capta a realidade em si, o absoluto. Temos, pois, de um lado a ciência e a arte mecânica provenientes da inteligência pura, e de outro lado a metafísica que faz apelo à intuição. Cada qual tem seu campo de precisão.

A rigor, a intuição nada mais é que a percepção de um eu profundo (espírito) traduzido em duração onde a multiplicidade, e a experiência da contingência, significa concentração, fusão, conversão e organização em contraposição ao eu superficial (inteligência) onde a multiplicidade significa dispersão, exterioridade, necessitarismo e que supõe o tempo e espaço divisíveis, deixando escapar a riqueza da vida que é duração do espírito ou consciência do movimento da vida. O eu superficial tem sua experiência no mundo espacial, no mundo físico e não entende a melodia fluida da vida interior, a realidade que dura. É nesse sentido que a intuição, no pensamento de Bergson, revela a existência de um conhecimento absoluto da duração.

3 -DURAÇÃO
Pela intuição assim definida, Bergson chega ao conceito de duração que é o tempo como experiência interior de duração, isto é, uma experiência viva, contingente, que dura. Assim, o tempo como duração é o elemento fundante da teoria filosófica de Bergson. Precisa-se aqui abrir um parêntesis do porquê Bergson fundamentar sua teoria filosófica na intuição da duração. Bergson formulou essa filosofia devido ao exagerado acento cientificista do positivismo que se desenvolveu nos séculos XIX e XX. Sua filosofia insere-se, pois, no espiritualismo europeu como reação ao positivismo.

Entretanto, também Bergson seguiu, inicialmente, os passos do positivismo como brilhante estudante de matemática e mecânica que era. Entusiasmou-se com o evolucionismo de Spencer (1820-1903) de cunho mecanicista. Segundo Spencer, “os fenômenos cósmicos e físicos geraram os fenômenos biológicos que, por sua vez, causam os fenômenos psicológicos e sociológicos. Esse imenso movimento é ativado pela incognoscível Potência, que só conhecemos por suas manifestações” (HUISMAN, 2004, p. 941). Para Bergson, todavia, essa Potência é cognoscível porque experienciável intuitivamente. Trata-se do impulso da vida que se experimenta em nós como duração.

Para Bergson, o evolucionismo mecanicista de Spencer não tomava em consideração, como experiência concreta, o tempo como duração, mas como tempo espacializado de instantes distintos e justapostos um ao outro, isto é, o tempo era divido em partes. Assim, o passado era distinto do presente e futuro, ademais, o tempo da mecânica seria um tempo reversível onde se pode repetir os experimentos, isto é, uma transformação não seria uma novidade irrepetível do ato criador.

Spencer não se dava conta de que a evolução se efetua numa duração sem hiatos em que subjaz um impulso interior. Apregoava um evolucionismo que se dá num processo de etapas justapostas. Por isso, não lhe foi possível tratar da evolução inorgânica na qual, para Bergson, já há o movimento do germe da vida potencialmente, o impulso vital. Spencer passa, pois, imediatamente para as origens da vida, dizendo que as condições que originaram a matéria orgânica a partir da inorgânica deixaram de existir. E, assim, tendo pulado do inorgânico para o orgânico, também deu um salto dos fenômenos da vida aos da consciência.

Bergson, apesar de ficar entusiasmado no início com a filosofia evolucionista de Spencer, por se enquadrar no pensamento positivista de ser fiel aos fatos concretos, não concorda, no entanto, que a realidade seja concebida como reduzida nem envolvida pelos fatos concretos dos positivistas em traduzir tudo à luz do tempo fragmentado, embora, também, Bergson pretenda ser fiel à realidade quando diz: “tudo o que se oferece diretamente aos sentidos ou à consciência, tudo o que é objeto de experiência, seja interior ou exterior, deve ser tido por real enquanto se não demonstrar que é uma simples aparência” (BERGSON, 1984, p. 86).

Bergson ao constatar que o positivismo da ciência não é fiel aos fatos quando, por exemplo, toma o fator tempo como espacializado, ou matematizado, em que a evolução acontece por etapas, veio reformular a teoria da evolução, através do conceito de tempo como duração, pois seu evolucionismo dá conta da lacuna de Spencer, ao considerar subjacente a todos os fatos o impulso da vida que é experienciado interiormente, e que estende a vida em duração e não em fragmentos ou momentos separados.

Duração, para Bergson, é oe u que é essencialmente consciência, memória e liberdade: “o eu vive o presente com a memória do passado e a antecipação do futuro” (REALE, ANTISERI, 2003, p. 711). Na consciência, o tempo é duração vivida, não é fracionado em momentos. Passado, presente e futuro formam um uníssono. Um necessita do outro para serduração. Nesse sentido a duração é vida interior em que um momento funde-se no outro, cresce sobre o outro e com ele se envolve.

Assim, duração não é um momento estático, é movimento, mudança, contingência. Mudar quer dizer devir, significando que nunca nada é idêntico a si mesmo e que tudo se transforma constantemente em algo distinto de si. “Não existem coisas feitas, mas somente coisas que se fazem, não existem estados que se mantém, mas somente estados que mudam1” (BERGSON, 2001, p. 1420). Coisas que se fazem! Isto é, a realidade é constante mudança, movimento, dinamicidade. E, segundo interpretação de Levesque, tempo para Bergson são as coisas que duram. As coisas não estão no tempo, mas são o próprio tempo. Na concepção de tempo do positivismo mecanicista, as coisas existem, isto é, ocupam um pedaço de espaço e estão aí num determinado tempo. Para o mecanicismo, tempo e espaço se equivalem.

Mas, Bergson não concorda com isso, afirmando que, se as coisas ocupam espaço, elas, no entanto, não estão no tempo, porque elas são o próprio tempo, porque elas duram, como se o tempo fosse uma massa da qual as coisas fossem feitas. A ilusão nossa é que imaginamos que a coisa é logo afetada pelo tempo que a desenvolve e a destrói. É a coisa mesma que se afeta por seu próprio crescimento e decaimento (Cf. LEVESQUE, 1975, p. 26). Portanto, para se compreender a experiência da contingência em Bergson, é necessário entender dois conceitos: a) Consciência e b) Memória.

3.1 Consciência
Essa duração assim definida é um estado de consciência do ser humano. Consciência, na explicação de Meyer, é uma experiência privilegiada na qual se revela, em sua pureza, a duração real. Não é o espetáculo do mundo exterior que nos dará essa experiência real, mas o retorno à intimidade de nossa própria consciência, do nosso eu que dura. Portanto, consciência é o que dura. Lá onde Descartes acreditava encontrar o pensamento, uma coisa que pensa, Bergson vê essencialmente uma coisa que dura e que se estende.

Assim, segundo Meyer, consciência em Bergson é uma conversão da atenção para o mundo interior, afastando do campo da consciência os conceitos fabricados, os símbolos, a linguagem, tudo criado para satisfazer as necessidades da vida social e da conversação, e afastando as imagens depositadas em nós pela longa convivência com os objetos do mundo; enfim, obtendo de nossa atenção uma coincidência intima com a experiência interior que, somente então, a consciência se revelará em toda sua pureza.

Por isso, no dizer de Meyer, Bergson nos convida a um desnudamento para uma experiência de inocência com o pensamento original desprovido de conceitos. Ele nos convida a olhar em nós e aí descobrir os dados imediatos da consciência. Mas, essa imediatidade terá que ser trabalhada, pois não será dada como uma graça (Cf. MEYER, 1964, p. 23-24). Há dois aspectos de consciência como experiência. Um no qual a consciência se ocupa das coisas externas. Outro no qual a consciência entra em si mesma, se toma a si mesma, aprofunda-se a si mesma.

Há, portanto, duas formas de consciência: uma exterior que é percepção, e outra interior que é duração. Na consciência exterior, ou na percepção, o sujeito se opõe ao objeto que lhe é exterior. A consciência desdobra-se em sujeito e objeto. Já na duração, a consciência é simples, uma continuidade em que os momentos não se individualizam uns em relação aos outros e não se opõem ao eu que os vive. Essa consciência sem imagens, global e indivisa, formando um todo que é a própria pessoa, se avoluma sem cessar, como um discurso em que a significação toma volume e se modifica à medida que os períodos se desenvolvem. 


“Ora, eu creio que nossa vida interior inteira é algo como uma frase única encetada desde o primeiro despertar da consciência, frase semeada de vírgulas, mas nenhuma parte cortada por pontos” (BERGSON, 2001, p. 858).

Amor
Fonte:
http://unimestre.unibes.com.br/rica/index.php/rica/article/viewArticle/358
Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

quarta-feira, 2 de março de 2011

A CONCEPÇÃO DA DIFERENÇA EM BERGSON - D Gilles Deleuze


A CONCEPÇÃO DA DIFERENÇA EM BERGSON (D
Gilles Deleuze
 (1956)

tomado de
GILLES DELEUZE
A ILHA DESERTA E OUTROS TEXTOS


A noção de diferença deve lançar uma certa luz sobre a filosofia de Bergson, mas, inversamente, o bergsonismo deve trazer a maior contribuição para uma filosofia da diferença. Uma tal filosofia opera sempre sobre dois planos, metodológico e ontológico. 

De um lado, trata-se de determinar as diferenças de natureza entre as coisas: é somente assim que se poderá “retornar” às próprias coisas, dar conta delas sem reduzi-las a outra coisa, apreendê-las em seu ser. Mas, por outro lado, se o ser das coisas está de um certo modo em suas diferenças de natureza, podemos esperar que a própria diferença seja alguma coisa, que ela tenha uma natureza, que ela nos confiará enfim o Ser. Esses dois problemas, metodológico e ontológico, remetem-se perpetuamente um ao outro: o problema das diferenças de natureza e o da natureza da diferença. Em Bergson, nós os reencontramos em seu liame,  nós  surpreendemos a passagem de um ao outro.

O que Bergson censura essencialmente a seus antecessores é não terem visto as verdadeiras diferenças de natureza. A constância de uma tal crítica nos mostra ao mesmo tempo a importância do tema em Bergson. Aí onde havia diferenças de natureza foram retidas apenas diferenças de grau. Sem dúvida, surge por vezes a censura inversa; aí onde havia somente diferenças de grau foram postas diferenças de natureza, por exemplo, entre a faculdade dita perceptiva do cérebro e as funções reflexas da medula, entre a percepção da matéria e a própria matéria[1]


Mas esse segundo aspecto da mesma crítica não tem a freqüência nem a importância do primeiro.  Para julgar acerca do mais importante, é preciso que se interrogue a respeito do alvo da filosofia. Se a filosofia tem uma relação  positiva e direta com as coisas,  isso somente ocorre na  medida em que ela pretende apreender a coisa mesma a partir daquilo que tal coisa é,  em sua diferença a respeito de tudo aquilo que não é ela, ou seja, em sua diferença interna. Objetar-se-á que a diferença interna não tem sentido, que uma tal noção é absurda; mas, então, negar-se-á, ao mesmo tempo, que haja diferenças de natureza entre coisas do mesmo 
gênero. Ora, se há diferenças de natureza entre indivíduos de um mesmo gênero, deveremos reconhecer, com efeito, que a própria diferença não é simplesmente espaço-temporal, que não é tampouco genérica ou específica, enfim, que não é exterior ou superior à coisa. 

Eis por que é importante, segundo Bergson, mostrar que as idéias gerais nos apresentam, ao menos mais freqüentemente, dados extremamente diferentes em um agrupamento tão-só utilitário: “Suponhais que, examinando os estados agrupados sob o nome de prazer, nada de comum se descubra entre eles,  a não ser serem estados buscados pelo homem: a humanidade terá classificado coisas muito diferentes em um mesmo gênero, porque encontrava nelas o mesmo interesse prático e reagia a todas da mesma maneira” [2]

É nesse sentido que as diferenças de natureza são já a chave de tudo: é preciso partir delas, é preciso inicialmente reencontrá-las.  Sem prejulgar a natureza da diferença como diferença interna, sabemos já que ela existe, supondo-se que haja diferenças de natureza entre coisas de um mesmo gênero.  Logo, ou bem a filosofia se proporá esse meio e esse alvo (diferenças de natureza para chegar à diferença interna), ou bem ela só terá com as coisas uma relação negativa ou genérica, ela desembocará no elemento da crítica ou da generalidade, em todo caso em um estado da reflexão tão-só exterior. Situando-se no primeiro ponto de vista, Bergson propõe o ideal da filosofia: talhar, “para o objeto, um conceito apropriado tão-somente ao objeto, conceito do qual mal se pode dizer que seja ainda um conceito, uma vez que só se aplica unicamente a esta coisa” [3].

Essa unidade da coisa e do conceito é a diferença interna, à qual nos elevamos pelas diferenças de natureza.

A intuição é o gozo da diferença. Mas ela não é somente o gozo do resultado do método, ela própria é o método. Como tal, ela não é um ato único, ela nos propõe  uma pluralidade de atos, uma pluralidade de esforços e de direções[4]. Em seu primeiro esforço, a intuição é a determinação das diferenças de natureza. E como essas diferenças estão entre as coisas,  trata-se de uma verdadeira distribuição, de um problema de distribuiçãoÉ  preciso dividir a realidade segundo suas articulações[5], e Bergson cita de bom grado o famoso texto de Platão sobre o corte e o bom cozinheiro. Mas a diferença de natureza entre duas coisas não é ainda a diferença interna da própria coisa. Das articulações do real devemos distinguir as linhas de fatos [6], que definem um outro esforço da intuição. 

E, se em relação às articulações do real a filosofia bergsoniana se apresenta como um verdadeiro “empirismo”, em relação às linhas de fatos ela se apresentará sobretudo como um “positivismo”, e mesmo como um probabilismo. As articulações do real distribuem as coisas segundo suas diferenças de natureza, formam uma diferenciação. As linhas de fatos são direções, cada uma das quais se segue até a extremidade, direções que convergem para uma única e mesma coisa; elas definem uma integração, constituindo cada qual uma linha de probabilidade. Em A energia espiritual, Bergson nos mostra a natureza da consciência no ponto de convergência de três linhas de fatos[7].

Em As duas fontes, a imortalidade da alma está na convergência de duas linhas de fatos[8]

Neste sentido, a intuição não se opõe à hipótese, mas a engloba como hipótese. Em resumo, as articulações do real correspondem a um corte e as linhas de fato correspondem a uma “interseção” [9]

O real, a um só tempo, é o que se corta e se interseciona. Seguramente, os caminhos são os mesmos nos dois casos, mas o importante é o sentido que se tome neles, seguindo a divergência ou pegando o rumo da convergência. Pressentimos sempre dois aspectos da diferença: as articulações do real nos dão as diferenças de natureza entre as coisas; as linhas de fatos nos mostram a coisa mesma idêntica a sua diferença, a diferença interna idêntica a alguma coisa. 

  
Negligenciar as diferenças de natureza em proveito dos gêneros é, portanto, mentir para com a filosofia. Perdemos as diferenças de natureza. Encontramo-nos diante de uma ciência que as substituiu por simples diferenças de grau, e diante de uma metafísica que, mais especialmente, as substituiu  por simples diferenças de intensidade. A primeira questão é concernente à ciência: como fazemos para ver somente diferenças de grau?  “Dissolvemos as diferenças qualitativas na homogeneidade do espaço que as subtende” [10]. Sabemos que Bergson invoca as operações conjugadas da necessidade, da vida social e da linguagem, da  inteligência e do espaço,  sendo o  espaço aquilo que  a inteligência faz de uma matéria que a isso se presta. Em resumo, substituímos as articulações do real pelos modos só utilitários de agrupamento. Mas não é isso o mais importante; a utilidade não pode fundar o que a torna possível. Assim, é preciso insistir sobre dois pontos. Primeiramente, os graus têm uma realidade efetiva e, sob uma outra forma que não a espacial, estão eles já compreendidos de um certo modo nas diferenças de natureza: “por detrás de nossas distinções de qualidade”, há quase sempre números[11]

Veremos que uma  das idéias mais curiosas de Bergson é que a própria diferença tem um número, um número virtual,  uma espécie de número numerante. A utilidade, portanto, tão-somente libera e expõe os graus compreendidos na diferença até que esta seja apenas uma diferença de grau. Mas, por outro lado, se os graus podem se liberar para, por si sós,  formar diferenças, devemos buscar a razão disso no estado da experiência. O que o espaço apresenta ao entendimento, o que o entendimento encontra no espaço, são coisas, produtos, resultados e nada mais. Ora, entre coisas (no sentido de resultados), só há e só pode haver diferenças de proporção[12] .

O que difere por natureza não são as coisas, nem os estados de coisas, não são as características, mas as tendências. Eis porque a concepção da diferença específica não é satisfatória: é preciso estar atento não à presença de características, mas a sua tendência a desenvolver-se. “O grupo não se definirá mais pela  posse  de  certas características,  mas  por sua tendência a acentuá-las” [13]

Assim, em toda sua obra, Bergson mostrará que a tendência é primeira não só em relação ao seu produto, mas em relação às causas deste no tempo, sendo as causas sempre obtidas retroativamente a partir do próprio produto: em si mesma e em sua verdadeira natureza, uma coisa é a expressão de uma tendência antes de ser o efeito de uma causa. Em uma palavra, a simples diferença de grau será o justo estatuto das coisas separadas da tendência e apreendidas em suas causas elementares. As causas são efetivamente do domínio da quantidade. Consoante seja ele encarado em seu produto ou em sua tendência, o cérebro humano, por exemplo,  apresentará com o cérebro animal uma simples diferença de grau ou toda uma diferença de natureza [14]

Assim, diz Bergson, de um certo ponto de vista,  as  diferenças  de  natureza  desaparecem  ou  antes  não  podem  aparecer. “Colocando-se nesse ponto de vista”,  escreve ele a propósito da religião estática e da religião dinâmica, “aperceber-se-iam uma série de transições e como que diferenças de grau, lá onde realmente há uma diferença radical de natureza” [15]

As coisas, os produtos, os resultados, são sempre mistos. O espaço apresentará sempre e a inteligência só encontrará mistos, misto do fechado e do aberto, da ordem geométrica e da ordem vital, da percepção e da afecção, da percepção e da memória...etc. É preciso compreender que o misto é sem dúvida uma mistura de tendências que diferem por natureza,  mas,  como mistura, é um estado de coisas em que é impossível apontar qualquer diferença de natureza. O misto é o que se vê do ponto de vista em que, por natureza, nada difere de nada. O homogêneo é o misto por definição, porque o simples é sempre alguma coisa que difere por natureza: somente as tendências são simples,  puras. Assim, só podemos encontrar o que difere realmente reencontrando a tendência para além de seu produto. É preciso que nos sirvamos daquilo que o misto nos apresenta, das diferenças de grau ou de proporção, uma vez que não dispomos de outra coisa, mas delas nos serviremos somente como uma medida da tendência para chegar à tendência como à razão suficiente da proporção. “Esta diferença de proporção bastará para definir o grupo em que ela se encontra, se se pode estabelecer que ela não é acidental e que o grupo, à medida que evoluía, tendia cada vez mais a pôr o acento sobre essas características particulares” [16].

A metafísica, por sua vez, só retém diferenças de intensidade. Bergson nos mostra essa visão da intensidade percorrendo a metafísica grega: como esta define o espaço e o tempo como uma simples distensão, uma diminuição de ser, ela só encontra entre os seres propriamente ditos diferenças de intensidade, situando-os entre os dois limites de uma perfeição e de um nada [17].

Precisamos ver como nasce tal ilusão, o que a leva a fundar-se, por sua vez, nas próprias diferenças de natureza. Notemos, desde já, que ela repousa menos sobre as idéias mistas do que sobre as pseudo-idéias, a desordem, o nada. Mas estas são ainda uma espécie de idéias mistas [18],  e a ilusão de intensidade repousa em última instância sobre a de espaço. Finalmente, só  há  um tipo de falsos problemas, os problemas que não respeitam em seu enunciado as diferenças de natureza. É um dos papéis da intuição o de denunciar  seu caráter arbitrário.


Para chegar às verdadeiras diferenças, é preciso reencontrar o ponto de vista que permita dividir o misto. São as tendências que se opõem duas a duas, que diferem por natureza. A tendência é que é sujeito. Um ser não é o sujeito, mas a expressão da tendência, e, ainda, um ser é somente a expressão da tendência à medida que ela é contrariada por uma outra tendência. Assim, a intuição apresenta-se como um método da diferença ou da divisão: dividir o misto em duas tendências. Esse método é coisa distinta de uma análise espacial, é mais do que uma descrição da experiência e menos (aparentemente) do que uma análise transcendental. Ele eleva-se até as condições do dado, mas tais condições são tendências-sujeito, são elas mesmas dadas de uma certa maneira, são vividas. Além disso. são ao mesmo tempo o puro e o vivido, o vivente e o vivido, o absoluto e o vivido. Que o fundamento seja fundamento, mas que não deixe de ser constatado, é isso o essencial, e sabemos o quanto Bergson insiste sobre o caráter empírico do impulso vital. Não devemos então nos elevar às condições como às condições de toda experiência possível, mas como às condições da experiência real: Schelling já se propunha esse alvo e definia sua filosofia como um empirismo superior. 

A fórmula é também adequada ao bergsonismo. Se tais condições podem e devem ser apreendidas em uma intuição, é justamente porque elas são  as condições da experiência real,  porque elas não são mais amplas que o condicionado, porque o conceito que elas formam é idêntico ao seu objeto. Portanto, não é o caso de se espantar quando se encontra em Bergson uma espécie de princípio de razão suficiente e dos indiscerníveis. O que ele recusa é uma distribuição que põe a razão no gênero ou na categoria e que deixa o indivíduo na contingência, ou seja, no espaço. É preciso que a razão vá até ao indivíduo, que o verdadeiro conceito vá até a coisa, que a compreensão chegue até o “isto”. Por que isto antes que aquilo, eis a questão da diferença, que Bergson propõe sempre. Por que uma  percepção vai evocar tal lembrança antes que uma outra? [19]   

Por que a percepção vai “colher” certas freqüências, por que estas antes que outras? [20]  

 Por que tal tensão da duração? [21] 

De fato, é preciso que a razão seja razão disso que Bergson denomina nuança. Na vida psíquica não há acidentes [22]: a nuança é a essência. Enquanto não achamos o conceito que só convenha ao próprio objeto, “o conceito único”, contentamo-nos com explicar o objeto por meio de vários conceitos, de idéias gerais “das quais se supõe que ele participe” [23] : o que escapa, então, é que o objeto seja este antes que um outro do mesmo gênero, e que neste gênero haja tais proporções antes que outras. Só a tendência é a unidade do conceito e de seu objeto, de tal  modo que o objeto não é mais contingente nem o conceito geral. Mas é provável que todas essas precisões concernentes ao método não evitem o impasse em que esse parece culminar. Com efeito, o misto deve ser dividido em duas tendências: as diferenças de proporção no próprio misto não nos dizem como encontraremos tais  tendências,  qual é a regra de divisão. Ainda mais, das duas tendências, qual será a boa? As duas não se equivalem,  diferem em valor,  havendo sempre uma tendência dominante. E é somente a tendência dominante que define a verdadeira natureza do misto,  apenas ela é conceito único e só ela  é pura,  pois ela é a pureza da coisa correspondente: a outra tendência é a impureza que vem comprometer a primeira, contrariá-la. Os comportamentos animais nos apresentam o instinto como tendência dominante, e os comportamentos humanos apresentam a inteligência. No misto da percepção e da afecção, a afecção desempenha o papel da impureza que se mistura à percepção pura [24]

Em outros termos, na divisão, há uma metade esquerda e uma metade direita. Sobre o que nos regulamos para determiná-las? Reencontramos sob essa forma uma dificuldade que Platão já encontrava. Como responder a Aristóteles, quando este notava que o método platônico da diferença era apenas um silogismo fraco, incapaz de concluir em qual metade do gênero dividido se alinhava a idéia buscada, uma vez que o termo médio faltava? E Platão parece ainda mais bem armado que Bergson,  porque a idéia de um Bem transcendente pode efetivamente guiar a escolha da boa metade. Mas Bergson recusa em geral o recurso à finalidade, como se ele quisesse que o método da diferença se bastasse a si  próprio.

A dificuldade talvez seja ilusória. Sabemos que as articulações do real não definem a essência e o alvo do método. A diferença de natureza entre as duas tendências é sem dúvida um progresso sobre a diferença de grau entre as coisas, sobre a diferença de intensidade entre os seres. Mas ela não deixa de ser uma diferença exterior, uma diferença ainda externa. Nesse ponto não falta à intuição bergsoniana, para ser completa, um termo exterior que lhe possa servir de regra; ao contrário, ela apresenta ainda muita exterioridade. Tomemos um exemplo: Bergson mostra que o tempo abstrato é um misto de espaço e de duração e que, mais profundamente, o próprio espaço é um misto de matéria e duração, de matéria e memória. 

Então, eis que o misto se divide em duas tendências: com efeito, a matéria é uma tendência, já que é definida como um afrouxamento; a duração é uma tendência, sendo uma contração. Mas, se consideramos todas as definições, as descrições e as características da duração na obra de Bergson, apercebemo-nos que a diferença de natureza, finalmente, não está entre essas duas tendências. Finalmente, a própria diferença de natureza é uma das duas tendências, e se opõe à outra. Com efeito, o que é a duração? Tudo o que Bergson diz acerca dela volta sempre a isto: a duração é o que difere de si. A  matéria, ao contrário, é o que não difere de si, o que se repete. Em Os dados imediatos, Bergson não mostra somente que a intensidade é um misto que se divide em duas tendências, qualidade pura e quantidade extensiva, mas, sobretudo, que a intensidade não é uma propriedade da sensação, que a sensação é qualidade pura, e que a qualidade pura ou a sensação difere por natureza de si mesma. A sensação é o que muda de natureza e não de grandeza[25]

A vida psíquica, portanto, é a própria diferença de natureza: na vida psíquica há sempre outro sem jamais haver número ou vários[26]. Bergson distingue três tipos de movimentos, qualitativo, evolutivo e extensivo[27], mas a essência de todos eles, mesmo da pura translação como o percurso de Aquiles, é a alteração. O movimento é mudança qualitativa, e a mudança qualitativa é movimento[28].

Em suma, a duração é o que difere, e o que difere não é mais o que difere de outra coisa, mas o que difere de si. O que difere tornou-se ele próprio uma coisa, uma substância. A tese de Bergson poderia exprimir-se assim: o tempo real é alteração, e a alteração é substância. A diferença de natureza, portanto, não está mais entre duas coisas, entre duas tendências, sendo ela própria uma coisa, uma tendência que se opõe à outra. A decomposição do misto não nos dá simplesmente duas tendências que diferem por natureza, ela nos dá a diferença de natureza como uma das duas tendências. E, do mesmo modo que a diferença se tornou substância, o movimento não é mais a característica de alguma coisa, mas tomou ele próprio um caráter substancial, não pressupõe qualquer outra coisa,  qualquer móvel [29].

A duração, a tendência é a diferença de si para consigo; e o que difere de si mesmo é  imediatamente a unidade da substância e do sujeito.

Sabemos, ao mesmo tempo, dividir o misto e escolher a boa tendência, uma vez que há sempre à direita o que difere de si mesmo, ou seja,  a duração, que nos é revelada em cada caso sob um aspecto,  em uma de suas “nuanças”. Notar-se-á, entretanto, que, segundo o misto, um mesmo termo está ora à direita, ora à esquerda. A divisão dos comportamentos  animais põe a inteligência do lado esquerdo – uma vez que a duração, o impulso vital, se exprime através deles como instinto – ao passo que está à direita na análise dos comportamentos humanos. Mas a inteligência só pode mudar de lado ao revelar-se, por sua vez, como uma expressão da duração, agora na humanidade: se a inteligência tem a forma da matéria, ela tem o sentido da duração, porque é órgão de dominação da matéria, sentido unicamente manifestado no homem [30]

Não é de admirar que a duração tenha, assim, vários aspectos, que são as nuanças, pois ela é o que difere de si mesmo; e será preciso ir mais longe, até o fim, até ver enfim na matéria uma derradeira nuança da duração. Mas, para compreendermos esse último ponto, o mais importante, precisamos, inicialmente, lembrar o que a diferença deveio. Ela não está entre duas tendências, ela própria é uma das tendências e se põe sempre à direita. A diferença externa deveio diferença interna. A diferença de natureza, ela própria, deveio uma natureza. Bem mais, ela o era desde o início. É nesse sentido que as articulações do real e as linhas de fatos remetiam umas às outras: as articulações do real desenhavam também linhas de fatos que nos mostravam, ao menos, a diferença interna como o limite de sua convergência, e, inversamente, as linhas de fatos nos davam também as articulações do real; por exemplo, em Matéria e memória, a convergência de três linhas diversas nos leva à verdadeira distribuição do que cabe ao sujeito, do que cabe ao objeto [31]

A diferença de natureza era exterior somente em aparência. Nessa mesma aparência, ela já se distinguia da diferença de grau, da diferença de intensidade, da diferença específica. Mas, no estado da diferença interna, outras distinções devem ser feitas agora. Com efeito, se a duração pode ser apresentada como a própria substância, é por ser ela simples, indivisível. A alteração deve, então, manter-se e achar seu estatuto sem se deixar reduzir à pluralidade, nem mesmo à contradição, nem mesmo à alteridade. 

A diferença interna deverá se  distinguir da contradição, da alteridade e da negação. É aí que o método e a teoria bergsoniana da diferença se oporão a esse outro método, a essa outra teoria da diferença que se chama dialética, tanto a dialética da alteridade, de Platão, quanto a dialética da contradição, de Hegel, ambas implicando a presença e o poder do negativo. A originalidade da concepção bergsoniana está em mostrar que a diferença interna não vai e não deve ir até a contradição, até a alteridade, até o negativo, porque essas três noções são de fato menos profundas que ela ou são visões que incidem sobre ela apenas de fora. Pensar a diferença interna como tal, como pura diferença interna, chegar até o puro conceito de diferença, elevar a diferença ao absoluto, tal é o sentido do esforço de Bergson.

A duração é somente uma das duas tendências, uma das duas metades;  mas, se é verdadeiro que em todo seu ser ela difere de si mesma, não conteria ela o segredo da outra metade? Como deixaria ainda no exterior de si isto de que ela difere, a outra tendência? Se a duração difere de si mesma, isto de que ela difere é ainda duração, de um certo modo. Não se trata de dividir a duração como se dividia o misto: ela é simples, indivisível,  pura. Trata-se de uma outra coisa: o simples não se divide, ele se diferencia. Diferenciar-se é a própria essência do simples ou o movimento da diferença. Assim, o misto se decompõe em duas tendências, uma das quais é o indivisível, mas o indivisível se diferencia em duas tendências, uma das quais, a outra, é o princípio do divisível. O espaço é decomposto em matéria e duração, mas a duração se diferencia em contração e distensão, sendo a distensão o princípio da  matéria. 

A forma orgânica é decomposta em matéria e impulso vital, mas o impulso  vital se diferencia em instinto e em inteligência,  sendo a inteligência  princípio da transformação da matéria em espaço. Não é da mesma maneira, evidentemente, que o misto é decomposto e que o simples se diferencia: o método da diferença é o conjunto desses dois movimentos. Mas, agora, é a respeito deste poder de diferenciação que é preciso interrogar. É ele que nos levará até o conceito puro da diferença interna. Determinar esse conceito, enfim, será mostrar de que modo o que difere da duração, a outra metade, pode ser ainda duração. 
   Em Duração e simultaneidade, Bergson atribui à duração um curioso poder de englobar a si própria e, ao mesmo tempo, de se repartir em fluxo e de se concentrar em uma só corrente, segundo a natureza da atenção[32].

Em Os dados imediatos, aparece a idéia fundamental de virtualidade, que será retomada e desenvolvida em Matéria e memória: a duração, o indivisível, não é exatamente o que não se deixa dividir,  mas o que muda de natureza ao dividir-se, e o que muda assim de natureza define o virtual ou o subjetivo. Mas é sobretudo em A evolução criadora que acharemos os ensinamentos necessários. A biologia nos mostra o processo da diferenciação operando-se. Buscamos o conceito da diferença enquanto esta não se deixa reduzir ao grau, nem à intensidade, nem à alteridade, nem à contradição: uma tal diferença é vital, mesmo que seu conceito não seja  propriamente biológico. 

A vida é o processo da diferença.

Aqui Bergson pensa menos na diferenciação embriológica do que na diferenciação das espécies, ou seja, na evolução. Com Darwin, o problema da diferença e o da vida foram identificados nessa idéia de evolução, ainda que Darwin, ele próprio, tenha chegado a uma falsa concepção da diferença vital. Contra um certo mecanicismo, Bergson mostra que a diferença vital é uma diferença interna. Mas ele também mostra que a diferença interna não pode ser concebida como uma simples determinação: uma determinação pode ser acidental, ao menos ela só pode dever o seu ser a uma causa, a um fim ou a um acaso, implicando, portanto, uma exterioridade subsistente; além do mais, a relação de várias determinações é tão-somente de associação ou de adição[33].

A diferença vital não só deixa de ser uma determinação, como é ela o contrário disso; é, se se quiser, a própria indeterminação. Bergson insiste sempre no caráter imprevisível das formas vivas: “indeterminadas, quero dizer,  imprevisíveis”  [34]; e, para ele, o imprevisível, o indeterminado não é o acidental, mas, ao contrário,  o essencial, a negação do acidente. Fazendo da diferença uma simples determinação, ou bem a entregamos ao acaso, ou bem a tornamos necessária em função de alguma coisa, mas tornando-a acidental ainda em relação à vida. Mas, em relação à vida, a tendência para mudar não é acidental; mais ainda, as próprias mudanças não são acidentais[35], sendo o impulso vital “a causa profunda das variações” [36].

Isso quer dizer que a diferença não é uma determinação, mas é, nessa relação essencial com a vida, uma diferenciação. Sem dúvida, a diferenciação vem da resistência encontrada pela vida do lado da matéria, mas, inicialmente, ela vem, sobretudo, da força explosiva interna que a vida traz em si. “A essência de uma tendência vital é desenvolver-se em forma de feixe, criando, tão-só pelo fato do seu crescimento, direções divergentes entre as quais se distribuirá o impulso” [37]: a virtualidade existe de tal modo que se realiza dissociando-se, sendo forçada a dissociar-se para se realizar. Diferenciar-se é o movimento de uma virtualidade que se atualiza. A vida difere de si mesma, de tal modo que nos acharemos diante de linhas de evolução divergentes e, em cada linha, diante de procedimentos originais; mas é ainda e somente de si mesma que ela difere, de tal modo que, também em cada linha acharemos certos aparelhos, certas estruturas de órgãos idênticos obtidos por meios diferentes [38].

Divergência das séries, identidade de certos aparelhos, tal é o duplo movimento da vida como um todo. A noção de diferenciação traz ao mesmo tempo a simplicidade de um virtual, a divergência das séries nas quais ele se realiza e a semelhança de certos resultados fundamentais que ele produz nessas séries. Bergson explica a que ponto a semelhança é uma categoria biológica importante [39] : ela é a identidade do que difere de si mesmo, ela prova que uma mesma virtualidade se realiza na divergência das séries, ela mostra a essência subsistindo na mudança, assim como a divergência mostrava a própria mudança agindo na essência. “Que chance haveria para que duas evoluções totalmente diferentes culminassem em resultados similares através de duas séries inteiramente diferentes de acidentes que se adicionam?” [40].

Em As duas fontes, Bergson retorna a esse processo de diferenciação: a dicotomia é a lei da vida [41].

Mas aparece algo de novo: ao lado da diferenciação biológica aparece uma diferenciação propriamente histórica. Sem dúvida, a diferenciação biológica encontra seu princípio na própria vida, mas ela não está menos ligada à matéria, de tal modo que seus produtos permanecem separados, exteriores um ao outro. “A materialidade que elas”, as espécies, “deram a si as impede de voltar a unir-se para restabelecer de maneira mais forte, mais complexa, mais evoluída, a tendência original” DLa. No plano da história, ao contrário, é no mesmo indivíduo e na mesma sociedade que evoluem as tendências que se constituíram por dissociação. Desde então elas evoluem sucessivamente, mas no mesmo ser: o homem irá o  mais longe possível em uma direção, depois retornará rumo à outra [42].

Esse texto é ainda mais importante por ser um dos raros em que Bergson reconhece uma especificidade do histórico em relação ao vital. Qual é o seu sentido?  Significa que com o homem, e somente com o homem, a diferença torna-se consciente, eleva-se à consciência de si. Se a própria diferença é biológica,  a consciência da diferença é histórica. É verdade que não se deveria exagerar a função dessa consciência histórica da diferença. Segundo Bergson, mais ainda do que trazer o novo, ela libera do antigo. A consciência já estava aí, com e na própria diferença. A duração por si mesma é consciência, a vida por si mesma é consciência, mas ela o é de direito [43]

Se a história é o que reanima a consciência, ou, antes, o lugar no qual ela se reanima e se coloca de fato, é somente porque essa consciência idêntica à vida estava adormecida, entorpecida na matéria, consciência anulada, não consciência nula[44]

De maneira alguma a consciência é histórica em Bergson, e a história é somente o único ponto em que a consciência sobressai, tendo atravessado a matéria. Desse modo, há uma identidade de direito entre a própria diferença e a consciência da diferença: a história sempre é tão-somente de fato. Tal identidade de direito da diferença e da consciência da diferença é a memória: ela deve nos propiciar, enfim, a natureza do puro conceito.

Porém, antes de chegar aí, é preciso ainda ver como o processo da diferenciação basta para distinguir o método bergsoniano e a dialética. A grande semelhança entre Platão e Bergson é que ambos fizeram uma filosofia da diferença em que esta é pensada como tal e não se reduz à contradição, não vai até a contradição[45].

Mas o ponto de separação, não o único, mas o mais importante, parece estar na presença necessária de um princípio de finalidade em Platão: apenas o Bem dá conta da diferença da coisa e nos faz compreendê-la em si mesma, como no exemplo famoso de Sócrates sentado em sua prisão. Ademais, em sua dicotomia, Platão tem necessidade do Bem como da regra da escolha. Não há intuição em Platão, mas uma inspiração pelo Bem. Nesse sentido, pelo menos um texto de Bergson seria muito platônico: em  As duas fontes, ele mostra que, para encontrar as verdadeiras articulações do real, é preciso interrogar a respeito das funções. Para que serve cada faculdade, qual é, por exemplo, a função da fabulação?[46].

A diferença da coisa lhe vem aqui do seu uso, do seu fim, da sua destinação, do Bem. Mas sabemos que o recorte ou as articulações do real são tão-somente uma primeira expressão do método. O que preside o recorte das coisas é efetivamente sua função, seu fim, de tal modo que, nesse nível, elas parecem receber de fora sua própria diferença. Mas é justamente por essa razão que Bergson, ao mesmo tempo, critica a finalidade e não se atém às articulações do real: a própria coisa e o fim correspondente são de fato uma única e mesma coisa, que, de um lado, é encarada como o misto que ela forma no espaço e, por outro, como a diferença e a simplicidade de sua duração pura [47]

Já não se trata de falar de fim: quando a diferença tornou-se a própria coisa, não há mais lugar para dizer que a coisa recebe sua diferença de um fim. Assim, a concepção que Bergson tem da diferença de natureza permite-lhe evitar, ao contrário de Platão, um verdadeiro recurso à finalidade. Do mesmo modo, a partir de alguns textos de Bergson, pode-se prever as objeções que ele faria a uma dialética de tipo hegeliano, da qual, aliás, ele está muito mais longe do que daquela de Platão. Em Bergson, e graças à noção de virtual, a coisa, inicialmente, difere imediatamente de si mesma. Segundo Hegel, a coisa difere de si mesma porque ela, primeiramente, difere de tudo o que ela não é, de tal maneira que a diferença vai até à contradição. Pouco nos importa aqui a distinção do contrário e da contradição, sendo esta tão-só a apresentação de um todo como contrário.

De qualquer maneira, nos dois casos, substituiu-se a diferença pelo jogo da determinação. “Não há realidade concreta em relação à qual não se possa ter ao mesmo tempo as duas visões opostas, e que, por conseguinte, não se subsuma aos dois conceitos antagonistas”[48].  

 Com essas duas visões pretende-se em seguida recompor a coisa, dizendo-se, por exemplo, que a duração é síntese da unidade e da multiplicidade. Ora, se a objeção que Bergson podia fazer ao platonismo era a de ater-se este a uma concepção da diferença ainda externa, a objeção que ele fez a uma dialética da contradição é a de ater-se esta a uma concepção da diferença somente abstrata. “Essa combinação (de dois conceitos contraditórios) não poderá apresentar nem uma diversidade de graus nem uma variedade de formas: ela é ou não é”[49].

O que não comporta nem graus nem nuanças é uma abstração. Assim, a dialética da contradição falseia a própria diferença, que é a razão da nuança. E a contradição, finalmente, é tão-só uma das numerosas ilusões retrospectivas que Bergson denuncia. Aquilo que se diferencia em duas tendências divergentes é uma virtualidade e, como tal, é algo de absolutamente simples que se realiza. Nós o tratamos como um real, compondo-o com os elementos característicos de duas tendências, que, todavia, só foram criadas pelo seu próprio desenvolvimento.  Acreditamos que a duração difere de si mesma por ser ela, inicialmente, o produto de duas determinações contrárias; esquecemos que ela se diferenciou por ser de início, justamente, o que difere de si mesma. Tudo retorna à crítica que Bergson faz do negativo: chegar à concepção de uma diferença sem negação, que não contenha o negativo, é este o maior esforço de Bergson. Tanto em sua crítica da desordem, quanto do nada ou da contradição, ele tenta mostrar que a negação de um termo real por outro é somente a realização positiva de uma virtualidade que continha ao mesmo tempo os dois termos. “A luta é aqui tão-só o aspecto superficial de um progresso”[50]

Então, é por ignorância do virtual que se crê na contradição, na negação. A oposição dos dois termos é somente a realização da virtualidade que continha todos dois: isso quer dizer que a diferença é mais profunda que a negação, que a contradição.

Seja qual for a importância da diferenciação, ela não é o mais profundo. Se o fosse, não haveria qualquer razão para falar de um conceito da diferença: a diferenciação é uma ação, uma realização. O que se diferencia é, primeiramente, o  que  difere de si mesmo, isto  é,  o  virtual.  A diferenciação não  é  o conceito, mas a produção de objetos que acham sua razão no conceito. Ocorre que, se é verdadeiro que o que difere de si deve ser um tal conceito, é necessário que o virtual tenha uma consistência, consistência objetiva que o torne capaz de se diferenciar, que o torne apto a produzir tais objetos. Em páginas essenciais consagradas a Ravaisson, Bergson explica que há duas maneiras de determinar o que as cores têm em comum[51]

Ou bem extraímos a idéia abstrata e geral de cor, “apagando do vermelho o que faz dele vermelho, do azul o que faz dele azul, do verde o que faz dele verde”, o que, então, nos coloca diante de um conceito que é um gênero, diante de objetos que são vários para um mesmo conceito, de modo que o conceito e o objeto fazem dois, sendo de subsunção a relação entre ambos, enquanto permanecemos, assim, nas distinções espaciais, em um estado da diferença exterior à coisa. Ou bem fazemos que as coisas sejam atravessadas por uma lente convergente que as conduza a um mesmo ponto, e, neste caso, o que obtemos é “a pura luz branca”, aquela que “fazia ressaltar as diferenças entre as tintas”, de modo que, então, as diferentes cores já não são objetos sob um conceito, mas as nuanças ou os graus do próprio conceito, graus da própria diferença, e não diferenças de graus, sendo agora a relação não mais de subsunção, mas de participação. 

A luz branca é ainda um universal, mas um universal concreto, que nos faz compreender o particular, porque está ele próprio no extremo do particular. Assim como as coisas se tornaram nuanças ou graus do conceito, o próprio conceito tornou-se a coisa. É uma coisa universal, se se quer, uma vez que os objetos se desenham aí como graus, mas um concreto, não um gênero ou uma generalidade. Propriamente falando, não há vários objetos para um mesmo conceito, mas o conceito é idêntico à própria coisa; ele é a diferença entre si dos objetos que lhe são relacionados, não sua semelhança. O conceito devindo conceito da diferença: é esta a diferença interna. O que era preciso fazer para atingir esse objetivo filosófico superior?  Era preciso renunciar a pensar no espaço: a distinção espacial, com efeito, “não comporta graus”[52]

Era preciso substituir as diferenças espaciais pelas diferenças temporais. O próprio da diferença temporal é fazer do conceito uma coisa concreta, porque as coisas aí são nuanças ou graus que se apresentam no seio do conceito. É nesse sentido que o bergsonismo pôs no tempo a diferença e, com ela, o conceito. “Se o  mais humilde papel do espírito é ligar os momentos sucessivos da duração das coisas, se é nessa operação que ele toma contato com a matéria, e se é também graças a esta operação que ele, inicialmente, se distingue da matéria, concebe-se uma infinidade de graus entre a matéria e o espírito plenamente desenvolvido”[53].

As distinções do sujeito e do objeto, do corpo e do espírito são temporais e, nesse sentido, dizem respeito a graus[54], mas não são simples diferenças de grau. Vemos, portanto, como o virtual torna-se o conceito puro da diferença, e o que um tal conceito pode ser: um tal conceito é a coexistência possível dos graus ou das nuanças. Se, malgrado o paradoxo aparente, chamamos memória essa coexistência possível, como o faz Bergson, devemos dizer que o impulso vital é menos profundo que a memória, e esta menos profunda que a duração. Duração, memória, impulso vital formam três aspectos do conceito, aspectos que se distinguem com precisão

A duração é a diferença consigo mesma; a memória é a coexistência dos graus da diferença; o impulso vital é a diferenciação da diferença. Esses três níveis definem um esquematismo na filosofia de Bergson. O sentido da memória é dar à virtualidade da própria duração uma consistência objetiva que faça desta um universal concreto, que a torne apta a se realizar. Quando a virtualidade se realiza, isto é, quando ela se diferencia, é pela vida e é sob uma forma vital;  nesse sentido, é verdadeiro que a diferença é vital. Mas a virtualidade só pôde diferenciar-se a partir dos graus que coexistiam nela. 

A diferenciação é somente a separação do que coexistia na duração. As diferenciações do impulso vital são mais profundamente os graus da própria diferença. E os produtos da diferenciação são objetos absolutamente conformes ao conceito, pelo menos em sua pureza, porque, na verdade, são tão-somente a posição complementar dos diferentes graus do próprio conceito. É sempre nesse sentido que a teoria da diferenciação é menos profunda que a teoria das nuanças ou dos graus.

O virtual define agora um modo de existência absolutamente positivo. A duração é o virtual; e este ou aquele grau da duração é real à medida que esse grau se diferencia. Por exemplo, a duração não é em si psicológica, mas o psicológico representa um certo grau da duração, grau que se realiza dentre outros e no meio de outros [55].

Sem dúvida, o virtual é em si o modo daquilo que não age, uma vez que ele só agirá diferenciando-se, deixando de ser em si, mas  guardando algo de sua origem. Mas, por isso mesmo, ele é o modo daquilo que é. Essa tese de Bergson é particularmente célebre: o virtual é a lembrança pura, e a lembrança pura é a diferença. A lembrança pura é virtual, porque seria absurdo buscar a marca do passado em algo de atual e já realizado [56]; a lembrança não é a representação de alguma coisa, ela nada representa, ela é, ou, se continuamos a falar ainda de representação, “ela não nos representa algo que tenha sido, mas simplesmente algo que é [...] é uma lembrança do presente” [57]

Com efeito, ela não tem que se fazer, formar-se, não tem que esperar que a percepção desapareça, ela não é posterior à percepção. A coexistência do passado com o presente que ele foi é um tema essencial do bergsonismo. Mas, a partir dessas características, quando dizemos que a lembrança assim definida é a própria diferença, estamos dizendo duas coisas ao mesmo tempo. De um lado, a lembrança pura é a diferença, porque nenhuma lembrança se assemelha a uma outra, porque cada lembrança é imediatamente perfeita, porque ela é uma vez o que será sempre: a diferença é o objeto da lembrança, como a semelhança é o objeto da percepção [58].

Basta sonhar para se aproximar desse mundo onde nada se assemelha a nada; um puro sonhador jamais sairia do particular, ele só apreenderia diferenças. Mas a lembrança é a diferença em um outro sentido ainda, ela é portadora da diferença; pois, se é verdadeiro que as exigências do presente introduzem alguma semelhança entre nossas lembranças, inversamente a lembrança introduz a diferença no presente, no sentido de que ela constitui cada momento seguinte como algo novo. Do fato mesmo de que o passado se conserva, “o momento seguinte contém sempre, além do precedente, a lembrança que este lhe deixou” [59]; “a duração interior é a vida contínua de uma memória que prolonga o passado no presente, seja porque o presente encerra diretamenteNRT a imagem sempre crescente do passado, seja, sobretudo, porque ele, pela sua contínua mudança de qualidade, dá testemunho da carga cada vez mais pesada que alguém carrega em suas costas à medida que vai cada vez mais envelhecendo” [60]

De uma maneira distinta da de Freud, mas tão profundamente quanto, Bergson viu que a memória era uma função do futuro, que a memória e a vontade eram  tão-só uma mesma função, que somente um ser capaz de memória podia desviar-se do seu passado, desligar-se dele, não repeti-lo, fazer o novo. Assim, a palavra “diferença” designa, ao mesmo tempo, o particular que é e o novo que se faz.  A lembrança é definida em relação à percepção da qual é contemporânea e, ao mesmo tempo, em relação ao momento seguinte no qual ela  se prolonga. Reunindo-se os dois sentidos, tem-se uma impressão incomum: a de ser agido e a de agir ao mesmo tempo[61]

Mas como deixar de reunir esses dois sentidos, uma vez que minha percepção é já o momento seguinte?

Comecemos pelo segundo sentido. Sabe-se qual é a importância que a idéia de novidade terá para Bergson em sua teoria do futuro e da liberdade. Mas devemos estudar essa noção no nível mais preciso, quando ela se forma, parece-nos que no segundo capítulo do Ensaio sobre os dados Imediatos . Dizer que o passado se conserva em si e que se prolonga no presente é dizer que o momento seguinte aparece sem que o precedente tenha desaparecido. Isso supõe uma contração, e é a contração que define a duração [62]. O que se opõe à contração é a repetição pura ou a matéria: a repetição é o modo de um presente que só aparece quando o outro desapareceu, o próprio instante ou a exterioridade, a vibração, a distensão. A contração, ao contrário, designa a diferença, porque, em sua essência, ela torna impossível uma repetição, porque ela destrói a própria condição de toda repetição possível. Nesse sentido, a diferença é o novo, a própria novidade.  Mas como definir a aparição de algo de novo em geral?  

 No segundo capítulo do Ensaio, encontra-se a retomada desse problema, ao qual Hume tinha vinculado seu nome. Hume propunha o problema da causalidade, perguntando como uma pura repetição, repetição de casos semelhantes que nada produz de novo no objeto, pode, entretanto, produzir algo de novo no espírito que a contempla.  Esse “algo de novo”, a espera da milionésima vez, eis a diferença. A resposta era que, se a repetição produzia uma diferença no espírito que a observava, isso ocorria em virtude de princípios da natureza humana e, notadamente, do princípio do hábito. 

Quando Bergson analisa o exemplo das batidas do relógio ou do martelo, ele propõe o problema do mesmo modo e o resolve de maneira análoga : o que se produz de novo nada é nos objetos, mas no espírito que os  contempla, é uma “fusão”, uma “interpenetração”, uma “organização”, uma conservação do precedente que não desaparece quando o outro aparece, enfim, uma contração que se faz no espírito. A semelhança vai ainda mais longe entre Hume e Bergson: assim como, em Hume, os casos semelhantes se fundiam na imaginação, mas permaneciam ao mesmo tempo distintos no entendimento, em Bergson os estados se fundem na duração, mas guardam ao mesmo tempo algo da exterioridade da qual eles advêm; é graças a esse último ponto que Bergson dá conta da construção do espaço. Portanto, a contração começa por se fazer de algum modo no espírito; ela é como que a origem do espírito; ela faz nascer a diferença. Em seguida, mas somente em seguida, o espírito a retoma por sua conta,  ele contrai e se contrai,  como se vê na doutrina bergsoniana da liberdade [63]. Mas já nos basta ter apreendido a noção em sua origem.

Não somente a duração e a matéria diferem por natureza, mas o que assim difere é a própria diferença e a repetição. Reencontramos, então, uma antiga dificuldade: havia diferença de natureza entre duas tendências e, ao mesmo tempo e mais profundamente, ela era uma das duas tendências. E não havia apenas esses dois estados da diferença, mas dois outros ainda: a tendência privilegiada, a tendência direita diferenciando-se em dois estados, e podendo diferenciar-se porque, mais profundamente, havia graus na diferença. São esses quatro estados que é preciso agora reagrupar: a diferença de natureza, a diferença interna, a diferenciação e os graus da diferença. Nosso fio condutor é este: a diferença (interna) difere (por natureza) da repetição. Mas vemos muito bem que uma tal frase não se equilibra: simultaneamente, a diferença aí é dita interna e difere no exterior. Entretanto, se antevemos o esboço de uma solução, é porque Bergson se dedica a nos mostrar que a diferença é ainda uma repetição e que a repetição é já uma diferença. Com efeito, a repetição, a matéria é bem uma diferença; as oscilações são bem distintas, uma vez que “uma se esvanece quando a outra aparece”. Bergson admite que a ciência tente atingir a própria diferença e possa consegui-lo; ele vê na análise infinitesimal um esforço desse gênero, uma verdadeira ciência da diferença [64]

Mais ainda: quando Bergson nos mostra o sonhador vivendo no particular até apreender somente as diferenças puras, ele nos diz que essa região do espírito reencontra a matéria[65], e que sonhar é desinteressar-se, é ser indiferente. Portanto, seria incorreto confundir a repetição com a generalidade, pois esta, ao contrário, supõe a contração do espírito. A repetição nada cria no objeto, deixa-o subsistir, e mesmo o mantém em sua particularidade. Sem dúvida, a repetição forma gêneros objetivos; porém, em si mesmos, tais gêneros não são idéias gerais, pois não englobam uma pluralidade de objetos que se assemelham, mas nos apresentam somente a particularidade de um objeto que se repete idêntico a si mesmo [66]

A repetição, portanto, é uma espécie de diferença, mas uma diferença sempre no exterior de si, uma diferença indiferente a si. Inversamente, a diferença, por sua vez,  é uma repetição. Com efeito, vimos que, em sua  própria origem e no ato dessa origem, a diferença era uma contração. Mas qual é o efeito de tal contração? Ela eleva à coexistência o que se repetia em outra parte. Em sua origem, o espírito é tão-somente a contração dos elementos idênticos, e por isso ele é memória. Quando Bergson nos fala da memória, ele a apresenta sempre sob dois aspectos, dos quais o segundo é mais profundo que o primeiro: a memória-lembrança e a memória-contração [67].

Contraindo-se,  o elemento da repetição coexiste consigo, multiplica-se se se quer, retém-se a si mesmo. Assim, definem-se graus de contração, cada um dos quais, no seu nível, apresenta-nos a coexistência consigo mesmo do próprio elemento, ou seja o todo. Portanto, é sem paradoxo que a memória é definida como a coexistência em pessoa, pois, por sua vez, todos os graus possíveis de coexistência coexistem consigo mesmos e formam a memória. Os elementos idênticos da repetição material fundem-se em uma contração; tal contração apresenta-nos, ao mesmo tempo, algo de novo, a diferença, e graus que são os graus dessa própria diferença. 

É nesse sentido que a diferença é ainda uma repetição, tema este ao qual Bergson retorna constantemente: “A mesma vida psicológica, portanto, seria repetida um número indefinido de vezes, em níveis sucessivos da memória, e o mesmo ato do espírito poderia efetuar-se em alturas diferentes” [68]; as seções do cone são “outras tantas repetições de nossa vida passada inteira” [69]; “tudo se passa, pois,  como se nossas lembranças fossem repetidas um número indefinido de vezes nessas mil reduções possíveis de nossa vida passada” [70].

Vê-se a distinção que resta a fazer entre a repetição material e essa repetição psíquica: é no mesmo momento em que toda nossa vida passada é infinitamente repetida; vale dizer, a repetição é virtual. Além disso, a virtualidade não tem outra consistência além daquela que recebe de tal repetição original. “Esses planos não são dados [...] como coisas prontas, superpostas umas às outras. Eles existem, sobretudo, virtualmente, gozam dessa existência que é própria das coisas do espírito” [71]

Nesse ponto, seria quase possível dizer que, em Bergson, é a matéria que é sucessão, e a duração, coexistência: “Uma atenção à vida que fosse suficientemente potente, e suficientemente destacada de todo interesse prático, abarcaria assim em um presente indiviso toda a história  passada da pessoa consciente” [72].

Mas a duração é uma coexistência virtual; o espaço é uma coexistência de um gênero inteiramente distinto, uma coexistência real, uma simultaneidade. Eis por que a coexistência virtual, que define a duração, é ao mesmo tempo uma sucessão real, ao passo que a matéria, finalmente, nos dá menos uma sucessão do que a simples matéria de uma simultaneidade, de uma coexistência real, de uma justaposição. Em resumo, os graus psíquicos são outros tantos planos virtuais de contração, de níveis de tensão. A filosofia de Bergson remata-se em uma cosmologia, na qual tudo é mudança de tensão e de energia e nada mais.[73] 

A duração, tal como se dá à intuição, apresenta-se como capaz de mil tensões possíveis, de uma diversidade infinita de distensões e contrações. A combinação de conceitos antagonistas é censurada por Bergson pelo fato de só poder nos apresentar uma coisa em um bloco, sem graus nem nuanças, ao passo que a intuição, contrariamente, nos dá “uma escolha entre uma infinidade de durações possíveis” [74], “uma continuidade de durações que devemos tentar seguir seja para baixo, seja para cima” [75].

Como se reúnem os dois sentidos da diferença: a diferença como particularidade que é, e a diferença como personalidade, indeterminação, novidade que se faz?  Os dois sentidos só podem se unir por e nos graus coexistentes da contração. A particularidade apresenta-se efetivamente como a maior distensão, um desdobramento, uma expansão; nas seções do cone, é a base a portadora das lembranças sob sua forma individual. “Elas tomam uma forma mais banal quando a memória se fecha mais, mais pessoal quando ela se dilata” [76]

Quanto mais a contração se distende, mais as lembranças são individuais, distintas uma das outras, e se localizam [77]

O particular encontra-se no limite da distensão ou da expansão, e seu movimento será prolongado pela própria matéria que ele prepara. A matéria e a duração são dois níveis extremos de distensão e da contração, como o são, na própria duração, o passado puro e o puro presente, a lembrança e a percepção. Vê-se, portanto, que o presente, em sua oposição à particularidade, se definirá como a semelhança ou mesmo como a universalidade. Um ser que vivesse no presente puro evoluiria no universal; “o hábito é para a ação o que a generalidade é para o pensamento” [78].

Mas os dois termos que assim se opõem são somente os dois graus extremos que coexistem. A oposição é sempre apenas a coexistência virtual de dois graus extremos: a lembrança coexiste com aquilo de que ela é a lembrança, coexiste com a percepção correspondente; o presente é tão-somente o grau mais contraído da memória, é um passado imediato [79].

Entre os dois, portanto, encontraremos todos os graus intermediários, que são os da generalidade ou, antes, os que formam eles próprios a idéia geral. Vê-se a que ponto a matéria não era a generalidade: a verdadeira generalidade supõe uma percepção das semelhanças, uma contração. A idéia geral é um todo dinâmico, uma oscilação; “a essência da idéia geral é  mover-se sem cessar entre a esfera da ação e a da memória pura”, “ ela consiste na dupla corrente que vai de uma à outra” [80]

Ora, sabemos que os graus intermediários entre dois extremos estão aptos a restituir esses extremos como os próprios produtos de uma diferenciação. Sabemos que a teoria dos graus funda uma teoria da diferenciação: basta que dois graus possam ser opostos um ao outro na memória para que, ao mesmo tempo, sejam a diferenciação do intermediário em duas tendências ou movimentos que se distinguem por natureza. Por serem o presente e o passado dois graus inversos, eles se distinguem por natureza, são a diferenciação, o desdobramento do todo. A cada instante, a duração se desdobra em dois jatos simétricos, ”um dos quais recai em direção ao passado, enquanto o outro se lança para o futuro” [81].

Dizer que o presente é o grau mais contraído do passado é dizer também que ele se opõe por natureza ao passado, que é um porvir iminente. Entramos no segundo sentido da diferença: algo de novo. Mas o que é esse novo, exatamente? A idéia geral é esse todo que se diferencia em imagens particulares e em atitude corporal, mas tal diferenciação é ainda o todo dos graus que vão de um extremo a outro, e que põe um no outro [82].

A idéia geral é o que põe a lembrança na ação, o que organiza as lembranças com os atos, o que transforma a lembrança em percepção; mais exatamente, ela é o que torna as imagens oriundas do próprio passado cada vez mais “capazes de se inserir no esquema motor” [83]

O particular posto no universal, eis a função da idéia geral. A novidade, o algo de novo, é justamente que o particular esteja no universal. O novo não é evidentemente o presente puro: este, tanto quanto a lembrança particular, tende para o estado da matéria, não em virtude do seu desdobramento, mas de sua instantaneidade. Mas, quando o particular desce no universal ou a lembrança no movimento, o ato automático dá lugar à ação voluntária e livre.  A novidade é o próprio de um ser que, ao mesmo tempo, vai e vem do universal ao particular, opõe um ao outro e coloca este naquele. Um tal ser pensa, quer e lembra-se ao mesmo tempo. Em resumo, o que une e reúne os dois sentidos da diferença são todos os graus da generalidade.

Para muitos leitores, Bergson dá uma certa impressão de vagueza e de incoerência. De vagueza, porque o que ele nos ensina, finalmente, é que a diferença é o imprevisível, a própria indeterminação. De incoerência, porque ele, por sua vez, parece retomar uma após outra cada uma das noções que criticou. Sua crítica incidiu sobre os graus, mas ei-los retornando ao primeiro plano da própria duração, a tal ponto que o bergsonismo é uma filosofia dos graus: “Por graus insensíveis, passamos das lembranças dispostas ao longo do tempo aos movimentos que desenham sua ação nascente ou possível no espaço” [84]; “assim, a lembrança transforma-se gradualmente em percepção” [85]

Do mesmo modo, há graus da liberdade [86]. 

A crítica bergsoniana incidiu especialmente sobre a intensidade, mas eis que a distensão e a contração são invocadas como princípios de explicação fundamentais;  “entre a matéria bruta e o espírito mais capaz de reflexão, há todas as intensidades possíveis da memória ou, o que dá no mesmo, todos os graus da liberdade” [87].

Finalmente, sua crítica incidiu sobre o negativo e a oposição, mas ei-los reintroduzidos com a inversão: a ordem geométrica diz respeito ao negativo, nasceu da “inversão da positividade verdadeira”, de uma “interrupção” [88];  se  comparamos a ciência e a filosofia, vemos que a ciência não é relativa, mas “diz respeito a uma realidade de ordem inversa” [89]

– Todavia, não acreditamos que essa impressão de incoerência seja justificada. Inicialmente, é verdadeiro que Bergson retorna aos graus, mas não às diferenças de grau. Toda sua idéia é a seguinte: que não há diferenças de grau no ser, mas graus da própria diferença. As teorias que procedem por diferenças de grau confundiram precisamente tudo, porque não viram as diferenças de natureza, perderam-se no espaço e nos mistos que este nos apresenta. Acontece que o que difere por natureza é, finalmente, aquilo que, por natureza, difere de si próprio, de modo que aquilo de que ele difere é somente seu mais baixo grau; o que assim difere de si próprio é a duração, definida como a diferença de natureza em pessoa. 

Quando a diferença de natureza entre duas coisas torna-se uma das duas coisas, a outra é somente o último grau desta. É assim que, em pessoa, a diferença de natureza é exatamente a coexistência virtual de dois graus extremos. Como eles são extremos, a dupla corrente que vai de um a outro forma graus intermediários. Estes constituirão o princípio dos mistos, e nos farão crer em diferenças de grau, mas somente se os consideramos em si mesmos, esquecendo que as extremidades que reúnem são duas coisas que diferem por natureza, sendo na verdade os graus da própria diferença. 

Portanto, o que difere é a distensão e a contração, a matéria e a duração como graus, como intensidades da diferença. E se Bergson não cai assim em uma simples visão das diferenças de grau em geral, ele tampouco retorna, em particular, à visão das diferenças de intensidade. A distensão e a contração são graus da própria diferença tão-somente porque se opõem e enquanto se opõem. Extremos, eles são inversos. O que Bergson censura na metafísica é não ter ela visto que a distensão e a contração são o inverso, e ter, assim, acreditado que se tratava apenas de dois graus mais ou menos intensos na degradação de um mesmo Ser imóvel, estável, eterno[90]

De fato, assim como os graus se explicam pela diferença e não o contrário, as intensidades se explicam pela inversão e a supõem. Não há no princípio um Ser imóvel e estável; aquilo de que é preciso partir é a própria contração, é a duração, da qual a distensão é a inversão. Encontrar-se-á sempre em Bergson esse cuidado de achar o verdadeiro começo, o verdadeiro ponto do qual é preciso partir: assim, quanto à percepção e à afecção, “em lugar  de partir da afecção, da qual nada se pode dizer, pois não há qualquer razão para que ela seja o que é e não seja qualquer outra coisa, partimos da ação” [91].

Por que é a distensão o inverso da contração, e não a contração o inverso da distensão? Porque fazer filosofia é justamente começar pela diferença, e porque a diferença de natureza é a duração, da qual a matéria é somente o mais baixo grau. A diferença é o verdadeiro começo; é por aí que Bergson se separaria mais de Schelling, pelo menos em aparência; começando por outra coisa, por um Ser imóvel e estável, coloca-se no princípio um indiferente, toma-se um menos por um mais, cai-se numa simples visão das intensidades. Mas, quando funda a intensidade na inversão, Bergson parece escapar dessa visão, mas para tão-somente retornar ao negativo, à oposição. Mesmo nesse caso, tal censura não seria exata. Em última instância, a oposição dos dois termos que diferem por natureza é tão-só a realização positiva de uma virtualidade que continha a ambos. 


O papel dos graus intermediários está justamente nessa realização: eles põem um no outro, a lembrança no movimento. Não pensamos, portanto, que haja incoerência na filosofia de Bergson, mas, ao contrário, um grande aprofundamento do conceito de diferença. Finalmente, não pensamos tampouco que a indeterminação seja um conceito vago. Indeterminação, imprevisibilidade, contingência, liberdade significam sempre uma independência em relação às causas: é neste sentido que Bergson enaltece o impulso vital com muitas contingências [92].

O que ele quer dizer é que, de algum modo, a coisa vem antes de suas causas, que é preciso começar pela própria coisa, pois as causas vêm depois. Mas a indeterminação jamais significa  que a coisa ou a ação teriam podido ser outras. “Poderia o ato ser outro?” é uma questão vazia de sentido. A exigência bergsoniana é a de levar a compreender por que a coisa é mais isto do que outra coisa. A diferença é que é explicativa da própria coisa, e não suas causas. “É preciso buscar a liberdade em uma certa nuança ou qualidade da própria ação e não em uma relação desse ato com o que ele não é ou teria podido ser” [93].

O bergsonismo é uma filosofia da diferença 
e da realização da diferença: 
há a diferença em pessoa, 
e esta se realiza como novidade.
. . .
Tradução de
Lia Guarino e Fernando Fagundes RibeiroNRT
Notas
 Fonte
archivo del portal de recursos para estudiantes
www.robertexto.com
Textos e entrevistas
(1953-1974)
Edição preparada por David Lapoujade
Tradução brasileira
Editora Iluminuras
2004
Sejam felizes todos os seres. 
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Sejam abençoados todos os seres.