segunda-feira, 23 de agosto de 2010

HENRI BERGSON - O Filósofo da Intuição



Henri Bergson (1859-1941)

Henri Bergson (1859-1941) nasceu em Paris,filho de mãe inglesa e pai judeu-polonês, e cresceu tendo o francês como língua materna.

Por: IHU Online

Passou sua vida ativa como professor universitário de filosofia, mas era um escritor tão cativante que foi lido amplamente e teve influência fora das universidades. Em 1927, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Entre seus livros mais conhecidos, estão Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (1889), Matéria e Memória (1896) e A evolução criadora (1907). Nos últimos anos de vida, seu pensamento tomou um rumo religioso, e é possível que tenha sido recebido na Igreja Católica romana pouco antes de morrer; se assim foi, o ato foi deliberadamente protelado e mantido em segredo, porque não queria parecer estar abandonando os judeus enquanto estavam sendo perseguidos pelos nazistas e enquanto a França estava sob ocupação alemã.
“Elã vital”

Bergson acreditava que os seres humanos devem ser explicados
primordialmente em termos do processo evolutivo.

Parecia-lhe que, desde o início, a função dos sentidos nos organismos vivos tem sido não fornecer ao organismo “representações” de seu ambiente, mas estimular reações de caráter preservador da vida. Em primeiro lugar, os órgãos sensoriais; em seguida, o sistema nervoso central, e, depois, a mente desenvolveram-se durante eras incontáveis como parte do equipamento do organismo para a sobrevivência, e sempre como auxiliares do comportamento; e até hoje aquilo que nos fornecem não são pinturas objetivas do nosso ambiente, mas mensagens que nos levam a nos comportar de determinada maneira. Nossa concepção de nosso ambiente não é nada parecida com um conjunto de fotografias detalhadas: ela é altamente seletiva, sempre pragmática, e sempre a serviço de si mesma. Damos atenção quase exclusiva àquilo que importa para nós, e a concepção que formamos de nosso ambiente de constrói em termos de nossos interesses, sendo o mais premente deles nossa própria segurança. Apenas quando se percebe isso é que a verdadeira natureza do conhecimento humano para ser entendida.

Quanto à evolução, Bergson acreditava que os processos mecânicos de seleção aleatória são inadequados para explicar o que acontece. Parece haver algum tipo de impulso persistente rumo a uma maior individualidade e todavia, ao mesmo tempo, maior complexidade, apesar de ambas sempre implicarem uma crescente vulnerabilidade e risco. A esse impulso Bergson deu o nome de “elã vital”, que podemos traduzir por “impulso vital”.

Bergson acredita que, dado que tudo está mudando o tempo todo, o fluxo do tempo é fundamental a toda realidade. Nós realmente vivenciamos esse fluxo dentro de nós mesmos da maneira mais direta e imediata, não por meio de conceitos, e não por meio de nossos sentidos. Bergson chama esse tipo de conhecimento não-mediado de “intuição”. Ele acredita que também temos conhecimento intuitivo a respeito de nossas decisões de agir, portanto conhecimento imediato de nossa própria posse do livre-arbítrio. No entanto, esse conhecimento imediato da natureza íntima das coisas é bastante diferente em caráter do conhecimento que nosso intelecto nos dá do mundo externo a nós mesmos.

A realidade fluiO que nosso intelecto nos fornece são sempre os materiais exigidos para a ação, e o que queremos é poder prever e controlar os eventos, por isso nosso intelecto nos apresenta um mundo que podemos apreender e usar, um mundo repartido em unidade manejáveis, objetos separados em medidas delimitadas de espaço e também em medidas delimitadas de tempo. É o mundo dos afazeres e negócios diários, do senso comum, e também da ciência. Sua extraordinária utilidade para nós se exibe nos triunfos da moderna tecnologia. Mas tudo isso é um produto de nossa maneira de lidar com o mundo, exatamente da mesma maneira (e pelo mesmo tipo de razão) como um cartógrafo representará uma paisagem viva em termos de uma grade geométrica quadriculada. Isso é inegavelmente útil, prodigiosamente útil, e nos permite fazer toda sorte de coisas práticas que queremos; mas não nos mostra a realidade. A realidade é um continuum. No tempo real não existem instantes. O tempo real é um fluxo contínuo, sem unidades separáveis, não delimitado por extensões mensuráveis. O mesmo com o espaço: no espaço real não há pontos, nem lugares separados e específicos. Tudo isso são mecanismos da mente.

Ser e tempoAssim, vivemos simultaneamente em dois mundos. No mundo íntimo de nosso conhecimento imediato tudo é continuum, tudo é fluido, fluxo perpétuo. No mundo externo apresentado a nós por nossos intelectos há objetos separados ocupando determinadas posições no espaço por períodos mensuráveis de tempo. Mas, é claro, esse tempo externo, o tempo dos relógios e do cálculo, é um construto intelectual, e não é de modo algum o mesmo tempo “real” de cujo fluxo contínuo temos experiência íntima direta.

No ponto culminante de sua filosofia, Bergson identifica esse fluxo de tempo vivenciado internamente com a vida mesma e com o impulso vital, o elã vital que leva o processo da evolução constantemente para a frente. Lembraremos que a filosofia de Heidegger também culminava na identificação de ser e tempo, embora os dois filósofos tenham chegado à mesma conclusão independentemente e de pontos de partida completamente diferentes.

Em sua própria época, Bergson teve alguns críticos eminentes entre seus contemporâneos, como Bertrand Russell. A principal queixa deles era que Bergson, embora tornasse suas idéias atraentes com vívidas analogias e metáforas poéticas, não as sustentava muito com argumentos racionais. Confiava-os à intuição dos leitores. Além disso, queixavam-se seus críticos, suas idéias não resistiam muito bem à análise lógica. Seus defensores replicavam dizendo que ele possuía todas essas características em comum com os mais criativos escritores, e assim era porque estava oferecendo insights, mais do que argumentos lógicos. Em todo caso, é certo que seu pensamento teve apelo amplo e permanece como um elemento distintivo da filosofia do século XX.

Fonte: UNISINOS
MAGEE, Bryan. História da filosofia. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2001.
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1334&secao=237
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DESVENDAR A CONSCIÊNCIA EM NÓS -



 Desvendar a consciência que nos habita
Na opinião do filósofo francês Eric Lecerf, uma das proposições mais importantes contidas em A evolução criadora, obra que neste ano completa um centenário de lançamento, é o convite a “desvendar a consciência que nos habita” Para Lecerf, “isso nos conduz, desta forma, a atingir um conhecimento verdadeiro do ser vivo, pois nossa consciência procede de uma intenção da vida, por ser da mesma um desdobramento, da qual a intelectualidade nada saberia dizer pela simples razão de que ela é uma expressão da mesma entre outras, ou antes, para retomar Bergson, uma orientação de uma tendência. Trata-se de uma virada radical no seio da filosofia: conhecer o vivente implica um conhecimento interior, uma experiência de si que encontra na intimidade da percepção o que é o absoluto de um movimento incessante, no qual a vida encontra toda a sua substância”. Confira a seguir a íntegra da entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Por: IHU Online

Lecerf é professor de Filosofia na Universidade Paris VIII, Saint-Denis e autor de inúmeros livros, entre os quais Le sujet du chômage (Paris, Budapest, Torino: Harmattan, 2002) e La famine des temps modernes: es sai sur le chômeur (Paris: Harmattan, 1992). Obteve diploma em História Contemporânea pela École des Hautes Études en Sciences  Sociales (EHESS) e foi diretor de programa no Collège International de Philosophie (Colégio Internacional de Filosofia). Publicou vários artigos sobre o trabalho de filósofos como Henri Bergson, Simone Weil e Georges Sorel.  Lecerf concedeu entrevista, por e-mail, à IHU On-Line, publicada nos Cadernos IHU Em Formação, edição 13, intitulada Michel Foucault. Sua contribuição para a educação, a política e a ética e encontra-se disponível para download no site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, www.unisinos.br/ihu. O título da entrevista é Foucault e a genealogia da modernidade.

IHU On-Line - No contexto da filosofia de Bergson, como se explica a valorização que ele deu à intuição, deixando a inteligência em segundo plano? Qual é a explicação filosófica para esta opção?

Eric Lecerf - Em primeiro lugar, não me parece correto dizer que Bergson teria colocado a inteligência em segundo plano em relação à intuição. Na verdade, ele se esforçou em marcar os limites de uma inteligência implicada pela lógica num momento em que a filosofia era compartilhada entre positivismo e irracionalismo. Bergson explica que ele próprio hesitou por muito tempo antes de utilizar o termo intuição. Em seu primeiro livro, o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, publicado em francês em 1889, a intuição como conceito só aparece nos usos correntes da filosofia clássica. Ele faz mesmo referência, nesta obra, a uma “intuição matemática” que não corresponde em nada à intuição bergsoniana. Portanto, o que Bergson chamará mais tarde de intuição está no centro deste ensaio, mas sob a forma de um sentido particular totalmente voltado para a percepção pura e a compreensão da duração.

Em Matéria e memória, seu segundo livro, publicado sete anos mais tarde, a intuição só aparece verdadeiramente no terceiro capítulo e é deduzida da experiência de re-apreensão colocada na introdução do livro (eu nada sei da matéria, nem do corpo e do espírito... o que é que me aparece: imagens). Só é realmente em A introdução à metafísica, artigo publicado em 1903, que Bergson conjuga uma relação específica entre intuição e método, cujos fundamentos ontológicos ele retomará cerca de dez anos mais tarde, numa conferência intitulada “A intuição filosófica”.

Seu objetivo não é o de condenar a inteligência nem mesmo rebaixá-la, mas simplesmente o de notar que a inteligência, estando interessada pela ação e levada por uma necessidade de espacializar sua duração, não pode de forma alguma tocar na essência da vida que é móvel. A inteligência constrói mundos, instrui artífices, produz sistemas, ela é uma potência ativa. Mas captar a vida implica, para Bergson, renunciar a esta potência e retomar aquele sentido íntimo, ao qual, por não dispor de um termo novo, ele dará o nome de intuição.

IHU On-Line - De que modo as esquerdas se apropriaram do bergsonismo? Qual é o uso que elas fizeram do conceito de “elã vital”?

Eric Lecerf - Para responder a esta questão, seria preciso estar em condições de redimensionar o que constituía, então, a paisagem política no seio da qual uma parte da esquerda apelaria ao bergsonismo. De que se trata? De modo geral, de dissidentes ou de intelectuais que levavam a peito fazer evoluir o marxismo fora dos dogmas nos quais suas determinações científicas o inscreveram. Para ser mais claro, no momento em que uma maioria dos intelectuais de esquerda aderia a um positivismo implicando uma série de determinismos históricos. Aqueles que se declaravam adeptos do bergsonismo procuravam precisamente defender noções de virtualidade e espontaneidade para explicar os movimentos revolucionários. Os nomes que se impõem são os de Georges Sorel , Edouard Berth  e Charles Péguy . Sorel ocupa efetivamente, nesta história, um lugar essencial. Autor das Reflexões sobre a violência (Petrópolis: Vozes, 1993), nelas ele faz explicitamente referência à conexão bergsoniana entre inteligência e intuição, para opor o socialismo teórico das seitas marxistas ao sindicalismo revolucionário.

Associando o nome de Bergson aos de Proudhon  e de Vico , ele explica que é nesta percepção intuitiva da história que se produz o novo. As teses de Sorel terão influência particularmente importante na Itália. Antonio Gramsci  escreverá, então, um artigo em 1921, intitulado “bergsoniano!”, onde ele reivindicará a participação nesta herança. Na França, Bergson será, no entanto, objeto de críticas importantes da parte dos jovens filósofos marxistas, e notadamente da parte de Politzer (O bergsonismo, o fim de uma impostura) e de Paul Nizan  (Os cães de guarda ). As posições “patrióticas” tomadas por Bergson durante a Primeira Guerra Mundial, e depois a publicação das As duas fontes da moral e da religião (Rio de Janeiro: Zahar, 1978), desempenharam papel determinante nessas críticas que explicam porque, em 1947, Sartre  se creia em condições de dizer que o bergsonismo era uma “filosofia ultrapassada”.

IHU On-Line - No contexto da Filosofia contemporânea, qual é o lugar ocupado por Bergson?
Eric Lecerf - O nome de Gilles Deleuze  se impõe aqui, e eu poderia mesmo dizer que por vezes ele tende a ocupar todo o espaço, como se Bergson tivesse tido por principal interesse ser um “pré-deleuziano”. Mais seriamente, a leitura que fez Gilles Deleuze de Bergson é verdadeiramente muito forte. Desde 1956, ele publica dois artigos (republicados em Iles desertes), que permitem compreender o que Deleuze veio procurar em Bergson, a saber, um método implicando uma teoria do conhecimento que associasse o empirismo e a busca de um absoluto. Desde esses artigos, Deleuze define a filosofia como criação de conceitos e é, no entanto, em Bergson, que explica que convém para a filosofia pensar por imagens antes do que por conceitos, que ele vem procurar seus predicados teóricos.

De fato, o conceito deleuziano é primeiramente derivado da imagem bergsoniana, desta imagem da qual Bergson dizia possuir três qualidades. Em primeiro lugar, ela induz uma pluralidade de sentidos lá onde o conceito procura destacar uma univocidade; em segundo lugar, ela é concreta lá onde o conceito é por essência abstrato; em terceiro lugar, sua imprecisão constrange a um exercício da atenção que se aproxima bastante da intuição, lá onde o conceito tende à expressão de uma certeza. E são estas qualidades que permitem a Deleuze situar a invenção de um novo valor do conceito como foco de indeterminação entre o que ele chama de articulações do real e de linhas de fatos; entre a coleção de qualidades que induz uma categoria e o nome etiqueta que se desdobra numa multidão de aventuras lingüísticas.

Vinte e cinco anos mais tarde, Deleuze retomará a imagem bergsoniana para pensar, desta vez, não o cinema , mas antes as condições de possibilidade de uma filosofia na era do cinema. E é então que, seguindo um caminho inverso, Deleuze repensa uma imagem bergsoniana, inteiramente enriquecida por jogos, nos quais o conceito se desdobrou como virtualidade gramatical e existencial.

IHU On-Line - Como pode a obra A evolução criadora ajudar-nos a reler e compreender a pós-modernidade em sua complexidade?

Eric Lecerf - Eu jamais compreendi o que se poderia designar pelo termo de “pós-modernidade”. Basta, aliás, reler a introdução de La pensée et le mouvant (O pensamento e o movente ), notadamente a parte intitulada “a lógica retrospectiva do verdadeiro”, para constatar até que ponto este conceito é vazio de sentido.

IHU On-Line - Quais são as proposições filosóficas desta obra que o senhor considera as mais importantes?

Eric Lecerf - A evolução criadora é um livro fascinante no seio do qual Bergson se dedica, não só a defender uma tese, mas também a ilustrar e adaptar um estilo de escritura suscetível de trazer nele essas linhas de virtualidades, pelas quais a vida se desenvolve sem cessar. Eu retomaria, pois, uma tese que me parece decisiva, isto é, sem a qual a obra de Bergson seria ilegível. Bergson nos engaja, em A evolução criadora, num trabalho de recompreensão da vida em nós. De que se trata? De um conhecimento psicológico de nossa personalidade? Absolutamente. Para Bergson, trata-se de bem outra coisa do que do inconsciente. Pelo contrário, o que ele nos engaja mesmo a redescobrir em nós é precisamente aquilo que ele chama de consciência. Mas de que consciência se trata? De uma consciência que perpassa todo ser vivo, que está em cada um de nós em ato e que, no mundo vegetal, permanece em posição de torpor. De uma consciência que é a vida.

Desvendar a consciência que nos habita, isso nos conduz, desta forma, a atingir um conhecimento verdadeiro do ser vivo, pois nossa consciência procede de uma intenção da vida, por ser da mesma um desdobramento, da qual a intelectualidade nada saberia dizer pela simples razão de que ela é uma expressão da mesma entre outras, ou antes, para retomar Bergson, uma orientação de uma tendência. Trata-se de uma virada radical no seio da filosofia: conhecer o vivente implica um conhecimento interior, uma experiência de si que encontra na intimidade da percepção o que é o absoluto de um movimento incessante, no qual a vida encontra toda a sua substância.

IHU On-Line - De que forma o ser humano consegue mover-se na dicotomia dos dois mundos nos quais ele vive: o do conhecimento imediato (onde tudo é “continuum”) combinado com o do tempo, concebido como construção intelectual?
Eric Lecerf - A resposta a esta questão me parece estar em parte respondida na precedente. A verdadeira questão não é a de saber como o humano consegue mover-se, mas antes, como ele chega a crer que ele construiu uma estabilidade. Assim, poder-se-ia dizer que toda a história intelectual se declina como uma perseguição ao infinito desta busca de estabilidade. Isso é verdade na produção de instituições, bem como nesse cuidado de ordem que, mesmo quando nos damos um destino de revolucionários, configura uma parte decisiva de nossos atos.

A filosofia de Bergson não procura, de nenhum modo, afastar-nos das formas graças às quais nós tentamos congelar o movimento. Ele procura simplesmente lembrar-nos que estas formas são apenas ilusões e que o conhecimento da vida, que deve fundar toda metafísica, não saberia satisfazer-se com essas formas. Não é menos verdade que há em Bergson uma verdadeira análise daquilo que o marxismo chamará de coisificação. Em Bergson, tratar-se-á antes de um tornar-se autômato, do repetitivo que tende a rejeitar toda intrusão do inédito.

De fato, como o mostra Deleuze em Diferença e repetição (2 ed.: São Paulo: Graal, 2006), mesmo lá onde tudo parece congelado, o movimento se insere na própria repetição como elemento de diferenciação. Em Bergson, encontra-se isso efetivamente, mas sem esse otimismo desesperado que caracteriza a filosofia de Deleuze. De fato, ninguém escapa à vida, afora aquele que a teoriza. Dito de outra forma, se há um autômato absoluto em Bergson, este não é o operário que trabalha em série, mas o filósofo que crê que a vida seja uma questão de leis e de sistemas lógicos.



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MEMÓRIA - IMPULSO VITAL - INTUIÇÃO em BERGSON


BERGSON, 1859-1941 (DL)

Um grande filósofo é aquele que cria novos conceitos: esses conceitos ultrapassam as dualidades do pensamento ordinário e, ao mesmo tempo, dão às coisas uma verdade nova, uma distribuição nova, um recorte extraordinário. O nome de Bergson permanece ligado às noções de duração, memória, impulso vital, intuição. Sua influência e seu gênio se avaliam graças à maneira pela qual tais conceitos se impuseram, foram utilizados, entraram e permaneceram no mundo filosófico. Desde Os dados imediatos, o conceito original de duração estava formado; em Matéria e memória, um conceito de memória; em A evolução criadora, o de impulso vital. A relação das três noções vizinhas deve indicar-nos o desenvolvimento e o progresso da filosofia bergsoniana. Qual é, pois, essa relação?

Em primeiro lugar, entretanto, nós nos propomos estudar somente a intuição, não que ela seja o essencial, mas porque ela é capaz de nos ensinar sobre a natureza dos problemas bergsonianos. Não é por acaso que, falando da intuição, Bergson nos mostra qual é a importância, na vida do espírito, de uma atividade que põe e constitui os problemas [1]: há mais falsos problemas do que falsas soluções, e eles aparecem antes de haver falsas soluções para os verdadeiros problemas. Ora, se uma certa intuição encontra-se sempre no coração da doutrina de um filósofo, uma das originalidades de Bergson está em que sua doutrina organizou a própria intuição como um verdadeiro método, método para eliminar os falsos problemas, para propor os problemas com verdade, método que os propõe então em termos de duração

“As questões relativas ao sujeito e ao objeto, 
à sua distinção e à sua união, 
devem ser propostas mais em função do tempo do que do espaço” [2]

Sem dúvida, é a duração que julga a intuição, como Bergson lembrou várias vezes, mas, ainda assim, é somente a intuição que pode, quando  tomou consciência de si como método, buscar a duração nas coisas, evocar a duração, requerer a duração, precisamente porque ela deve à duração tudo o que ela é. Portanto, se a intuição não é um simples gozo, nem um pressentimento, nem simplesmente um procedimento afetivo, nós devemos determinar primeiramente qual é o seu caráter realmente metódico.

A primeira característica da intuição é que, nela e por ela, alguma coisa se apresenta, se dá em pessoa, ao invés de ser inferida de outra coisa  e concluída. O que está em questão, aqui, é já a orientação geral da filosofia; com efeito, não basta dizer que a filosofia está na origem das ciências e que ela foi sua mãe; agora que elas estão adultas e bem constituídas, é preciso perguntar por que há ainda filosofia, em que a ciência não basta. 

Ora, a filosofia respondeu de apenas duas maneiras a uma tal questão, e isto porque, sem dúvida, há somente duas respostas possíveis: uma vez dito que a ciência nos dá um conhecimento das coisas, que ela está, portanto, em certa relação com elas, a filosofia pode renunciar a rivalizar com a ciência, pode deixar-lhe as coisas, e só apresentar-se de uma maneira crítica como uma reflexão sobre esse conhecimento que se tem delas. Ou então, ao contrário, a filosofia pretende instaurar, ou antes restaurar, uma outra relação com as coisas, portanto um outro conhecimento, conhecimento e relação que a ciência precisamente nos ocultava, de que ela nos privava, porque ela nos permitia somente concluir e inferir, sem jamais nos apresentar, nos dar a coisa em si mesma. É nessa segunda via que Bergson se empenha, repudiando as filosofias críticas, quando ele nos mostra na ciência, e também na atividade técnica, na inteligência, na linguagem cotidiana, na vida social e na necessidade prática, enfim e sobretudo, no espaço, outras tantas formas e relações que nos separam das coisas e de sua interioridade.

Mas a intuição tem uma segunda característica: assim compreendida, ela se apresenta como um retorno. Com efeito, a relação filosófica que nos insere nas coisas, ao invés  de nos deixar de fora, é mais restaurada do que instaurada pela filosofia, é mais reencontrada do que inventada. Estamos separados das coisas, o dado imediato não é, portanto, imediatamente dado; mas nós não podemos estar separados por um simples acidente, por uma mediação que viria de nós, que concerniria tão-somente a nós: é preciso que esteja fundado nas próprias coisas o movimento que as desnatura; para que terminemos por perdê-las, é preciso que as coisas comecem por se perder; é preciso que um esquecimento esteja fundado no ser. A matéria é justamente, no ser, aquilo que prepara e acompanha o espaço, a inteligência e a ciência. É graças a isso que Bergson faz coisa totalmente distinta de uma psicologia,  vez que,  mais do  que ser a  simples inteligência  um  princípio  psicológico  da matéria e do espaço, a própria matéria é um princípio ontológico da inteligência[3]

É por isso também que ele não recusa direito algum ao conhecimento científico, e nos diz que esse conhecimento não nos separa simplesmente das coisas e de sua verdadeira natureza, mas que apreende pelo menos uma das duas metades do ser, um dos dois lados do absoluto, um dos dois movimentos da natureza, aquele em que a natureza se distende e se põe ao exterior de si [4]. Bergson irá mesmo mais longe, uma vez que, em certas condições, a ciência pode unir-se à filosofia, ou seja, ter acesso com ela a uma compreensão total [5]

De qualquer maneira, nós  podemos dizer desde já que não haverá em Bergson a menor distinção de dois mundos, um sensível, outro inteligível, mas somente dois movimentos ou antes dois sentidos de um único e mesmo movimento: um deles é tal que o movimento tende a se congelar em seu produto, no resultado que o interrompe; o outro sentido é o que retrocede, que reencontra no produto o movimento do qual ele resulta. Do mesmo modo, os dois sentidos são naturais, cada um à sua maneira: o primeiro se faz segundo a natureza, mas  esta corre aí o risco de se perder a cada repouso, a cada respiração; o segundo se faz contra a natureza, mas ela aí se reencontra, ela se retoma na tensão. O segundo só pode ser encontrado sob o primeiro, e é sempre assim que ele é reencontrado. Nós reencontramos o imediato porque, para encontrá-lo, precisamos retornar. Em filosofia, a primeira vez é já a segunda; é essa a noção de fundamento. Sem dúvida, de certa maneira, o produto é que é, e o movimento é que não é, que não é mais. Mas não é nesses termos que se deve propor o problema do ser. A cada instante, o movimento já não é, mas isso porque, precisamente, ele não se compõe de instantes, porque os instantes são apenas as suas paradas reais ou virtuais, seu produto e a sombra de seu produto. 

O ser não se compõe com presentes. De outra maneira, portanto, o produto é que não é  e o movimento é que já era. Em um passo de Aquiles, os instantes e os pontos não são segmentados. Bergson nos mostra isso em seu livro mais difícil: não é o presente que é e o passado que não  é mais, mas o presente é útil, o ser é o passado, o ser era [6] –  veremos que essa tese funda o imprevisível e o contingente, ao invés de suprimi-los. Bergson substituiu a distinção de dois mundos pela distinção de dois movimentos, de dois sentidos de um único e mesmo movimento, o espírito e a matéria, de dois tempos na mesma duração, o passado e o presente, que ele soube conceber como coexistentes justamente porque eles estavam na mesma duração, um sob o outro e não um depois do outro. Trata-se de nos levar, ao mesmo tempo, a compreender a distinção necessária como diferença de tempo, e também a compreender tempos diferentes, o presente e o passado, como contemporâneos um do outro, e formando o mesmo mundo. Nós veremos de que maneira.

Por que dar o nome de imediato àquilo que reencontramos? O que é imediato? Se a ciência é um conhecimento real da coisa, um conhecimento da realidade, o que ela perde ou simplesmente corre o risco de perder não é exatamente a coisa. O que a ciência corre o risco  de perder, a menos que se deixe penetrar de filosofia, é menos a própria coisa do que a diferença da coisa, o que faz seu ser, o que faz que ela seja sobretudo isto do que aquilo, sobretudo isto do que outra coisa. Bergson denuncia com energia o que lhe parece ser falsos problemas: por que há, sobretudo, algo ao invés de nada, por que, sobretudo, a ordem ao invés da desordem [7]

Se tais problemas são falsos, mal propostos, isso acontece por duas razões. Primeiro, porque eles fazem do ser uma generalidade, algo de imutável e de indiferente que, no conjunto imóvel em que é tomado, pode distinguir-se tão-somente do nada, do não ser. Em seguida, mesmo que se tente dar um movimento ao ser imutável assim posto, tal movimento será apenas o da contradição, ordem e desordem, ser e nada, uno e múltiplo. Mas, de fato, assim como o movimento não se compõe de pontos do espaço ou de instantes, o ser não pode se compor de dois pontos de vista contraditórios: as malhas seriam muito frouxas [8].

O ser é um mau conceito enquanto serve para opor tudo o que é ao nada, ou a própria coisa a tudo aquilo que ela não é: nos dois casos, o ser abandonou, desertou das coisas, não passa de uma abstração. Portanto, a questão bergsoniana não é: por que alguma coisa ao invés de nada? mas: por que isto ao invés de outra coisa? Por que tal tensão da duração[9] ? Por que esta velocidade ao invés de uma outra[10] ? Por que tal proporção[11] ? E por que uma percepção vai evocar tal lembrança, ou colher certas freqüências, umas ao invés de outras[12] ?
Isso quer dizer que o ser é a diferença, e não o imutável ou o indiferente, tampouco a contradição, que é somente um falso movimento. O ser é a própria diferença da coisa, aquilo que Bergson chama freqüentemente de nuança. “Um empirismo digno deste nome [...] talha para o objeto um conceito apropriado ao objeto apenas, conceito do qual mal se pode dizer que ainda seja um conceito, uma vez que ele só se aplica unicamente a esta coisa” [13] . E, em um texto curioso, no qual Bergson atribui a Ravaisson  a intenção de opor a intuição intelectual à idéia geral como a luz branca à simples idéia de cor, lê-se ainda:  

“Em lugar de diluir seu pensamento no geral,
o filósofo deve concentrá-lo no  individual [...]
O objeto da metafísica é reapreender, 
nas existências individuais, 
seguindo-o até a fonte de que ele emana, 
o raio particular que,
conferindo a cada uma delas sua nuança própria, 
torna assim a ligá-la à luz universal” [14].

O imediato é precisamente a identidade da coisa e de sua diferença, tal como a filosofia a reencontra ou a “reapreende”. Na ciência e na metafísica, Bergson denuncia um perigo comum: deixar escapar a diferença, porque uma concebe a coisa como um produto e um resultado, porque a outra concebe o ser como algo de imutável a servir de princípio. Ambas pretendem atingir o ser ou recompô-lo a partir de semelhanças e de oposições cada vez mais vastas, mas a semelhança e a oposição são quase sempre categorias práticas, não ontológicas. Donde a insistência de Bergson em mostrar que, graças a uma semelhança, corremos o risco de pôr coisas extremamente diferentes sob uma mesma palavra, coisas que diferem por natureza [15]

O ser, de fato, está do lado da diferença, nem uno nem múltiplo. Mas o que é a nuança, a diferença da coisa, o que é a diferença do pedaço de açúcar?  Não é simplesmente sua diferença em relação a uma outra coisa: nós só teríamos aí uma relação puramente exterior, remetendo-nos em última instância ao espaço. Não é tampouco sua diferença em relação a tudo o que o pedaço de açúcar não é: seríamos remetidos a uma dialética da contradição. Já Platão não queria que se confundisse a alteridade com uma contradição; mas, para Bergson, a alteridade  ainda não basta para fazer que o ser  alcance as coisas e seja verdadeiramente o ser das coisas. Ele substitui o conceito platônico de alteridade por um conceito aristotélico, aquele de alteração, para fazer desta a própria substância. O ser é alteração, a alteração é substância[16]. E é bem isso que Bergson denomina duração, pois todas as características pelas quais ele a define, desde Os dados imediatos, voltam sempre a isto: a duração é o que difere ou o que muda de natureza , a qualidade, a heterogeneidade, o que difere de si mesmo. 

O ser do pedaço de açúcar se definirá por uma duração, por um certo modo de durar, por uma certa distensão ou tensão da duração.

Como a duração tem esse poder? A questão pode ser proposta de outra maneira:  se o ser é a diferença da coisa,  o que daí resulta para a própria  coisa? Encontramos aqui uma terceira característica da intuição, mais profunda que as precedentes. Como método, a intuição é um método que busca a diferença. Ela se apresenta como buscando e encontrando as diferenças de natureza, as “articulações do real”. O ser é articulado; um falso problema é aquele que não respeita essas diferenças. Bergson gosta de citar o texto em que Platão compara o filósofo ao bom cozinheiro que corta segundo as articulações naturais; ele censura constantemente a ciência e a metafísica por terem perdido esse sentido das diferenças de natureza, por terem retido somente diferenças de grau aí onde havia uma coisa totalmente distinta, por terem, assim, partido de um “misto” mal analisado. 

Uma das passagens mais célebres de Bergson nos mostra que a intensidade recobre de fato diferenças de natureza que a intuição pode reencontrar [17]. Mas sabemos que a ciência e mesmo a metafísica não inventam seus próprios erros ou suas ilusões: alguma coisa os funda no ser. Com efeito, enquanto nos achamos diante de produtos, enquanto as coisas com as quais estamos às voltas são ainda resultados, não podemos apreender as diferenças de natureza pela simples razão de que elas não estão aí: entre duas coisas, entre dois produtos, só há e só pode haver diferenças de grau, de proporção. O que difere por natureza nunca é uma coisa, mas uma tendência. A diferença de natureza não está entre dois produtos, entre duas coisas, mas em uma única e mesma coisa, entre duas tendências que a atravessam, está em um único e mesmo produto, entre duas tendências que aí se encontram [18]

Portanto, o  que é puro nunca é a coisa; esta é sempre um misto que é preciso dissociar; somente a tendência é pura: isso quer dizer que a verdadeira coisa ou a substância é a própria tendência. Assim, a intuição aparece como um verdadeiro método de divisão: ela divide o misto em duas tendências que diferem por natureza. Reconhece-se o sentido dos dualismos caros a Bergson: não somente os títulos de muitas de suas obras, mas cada um dos  capítulos, e o anúncio que precede cada página, dão testemunho de um tal dualismo. A quantidade e a qualidade, a inteligência e o instinto, a ordem geométrica e a ordem vital, a ciência e a metafísica, o fechado e o aberto: essas são as figuras mais conhecidas. Sabe-se que, em última instância, elas se reconduzem à distinção, sempre reencontrada, da matéria e da duração. E matéria e duração nunca se distinguem como duas coisas, mas como dois movimentos, duas tendências, como a distensão e a contração. Mas é preciso ir mais longe: se o tema e a idéia de pureza têm uma grande importância na filosofia de Bergson, é porque as duas tendências não são puras em cada caso, ou não são igualmente puras. Só uma das duas tendências é pura, ou simples, sendo que a outra, ao contrário, desempenha o papel de uma impureza que vem comprometê-la ou perturbá-la [19]

Na divisão do misto, há sempre uma metade direita, a que nos remete à duração. Com efeito, mais do que diferença de natureza entre as duas tendências que recortam a coisa, a própria diferença da coisa era uma das duas tendências. E se nos elevamos até a dualidade  da matéria e da duração, vemos bem que a duração nos apresenta a própria natureza da diferença, a diferença de si para consigo, ao passo que a matéria é apenas o indiferente, aquilo que se repete ou o simples grau, o que não pode mais mudar de natureza. Não se vê ao mesmo tempo que o dualismo é um momento já ultrapassado na filosofia de Bergson? Com efeito, se há uma metade privilegiada na divisão, é preciso que tal metade contenha em si o segredo da outra. Se toda diferença está de um lado, é preciso que este lado compreenda sua diferença em relação ao outro, e, de uma certa maneira, o próprio outro ou sua possibilidade. A duração difere da matéria, mas porque ela é, inicialmente, o que difere em si e de si, de modo que a matéria da qual ela difere é ainda duração.  Enquanto ficamos no dualismo, a coisa está no ponto de encontro de dois movimentos: a duração, que não tem graus por si própria, encontra a matéria como um movimento contrário, como um certo obstáculo, uma certa impureza que a perturba, que interrompe seu impulso , que lhe dá aqui tal grau, ali tal outro [20] .


Porém, mais profundamente, é em si que a duração é suscetível de graus, porque ela é o que difere de si, de modo que cada coisa é inteiramente definida na duração, aí compreendida a própria matéria. Em uma perspectiva ainda dualista, a duração e a matéria se opunham como o que difere por natureza e o que só tem graus; porém, mais profundamente, há graus da própria diferença, sendo a matéria somente o mais baixo, o próprio ponto  onde a diferença, justamente, é tão-somente uma diferença de grau [21]

Se é verdadeiro que a inteligência está do lado da matéria em função do objeto sobre o qual ela incide, resta que só se pode defini-la em si, mostrando de que maneira ela, que domina seu objeto, dura. E, se se trata de definir, enfim, a própria matéria, não bastará mais apresentá-la como obstáculo e como impureza; será sempre preciso mostrar como ela, cuja vibração ocupa ainda vários instantes, dura.  Assim, toda coisa é completamente definida do lado direito, reto, por uma certa duração, por um certo grau da própria duração.

Um misto se decompõe em duas tendências, das quais uma é a duração, simples e indivisível; mas, ao mesmo tempo, a duração se diferencia em duas direções, das quais a outra é a matéria. O espaço é decomposto em matéria e em duração, mas a duração se diferencia em contração e em distensão, sendo esta o princípio da matéria. Portanto, se o dualismo é ultrapassado em direção ao monismo, o monismo nos dá um novo dualismo, dessa vez controlado, dominado, pois não é do mesmo modo que o misto se decompõe e o simples se diferencia. Assim, o método da intuição tem uma quarta e última característica: ele não se contenta em seguir as articulações naturais para segmentar as coisas, ele remonta ainda às “linhas de fatos”, às linhas de diferenciação, para reencontrar o simples como uma convergência de probabilidades; ele não apenas corta, mas recorta, torna a cortar [22]

A diferenciação é o poder do que é simples, indivisível, do que dura. Aqui é que vemos sob qual aspecto a própria duração é um impulso vital. Bergson encontra na Biologia, particularmente na evolução das espécies, a marca de um processo essencial à vida, justamente o da diferenciação como produção das diferenças reais, processo do qual ele vai procurar o conceito e as conseqüências filosóficas. As páginas admiráveis que ele escreveu em A evolução criadora e em As duas fontes nos mostram uma tal atividade da vida, culminando na planta e no animal, ou então no instinto e na inteligência, ou ainda nas diversas formas de um mesmo instinto. Para Bergson, a diferenciação parece ser o modo do que se realiza, se atualiza ou se faz. Uma virtualidade que se realiza é, ao mesmo tempo, o que se diferencia, isto é, aquilo que dá séries divergentes, linhas de evolução, espécies. 


“A essência de uma tendência é desenvolver-se  
 em forma de feixe, criando, tão-só
pelo fato do seu crescimento, 
direções divergentes” [23]

O impulso vital, portanto, será a própria duração à medida que se atualiza, à medida 
que se diferencia. O impulso vital é a diferença à medida que ela passa ao ato. Desse modo, a diferenciação não vem simplesmente de uma resistência da matéria, mas, mais profundamente, de uma força da qual a duração é em si mesma portadora: a dicotomia é a lei da vida. E a censura que Bergson dirige ao mecanicismo e ao finalismo em biologia, assim como à dialética em filosofia, é que eles, de pontos de vista diferentes, sempre compõem o movimento como uma relação entre termos atuais, em vez de aí verem a realização de um virtual. Mas, se a diferenciação é assim o modo original e irredutível pelo qual uma virtualidade se realiza, e se o impulso vital é a duração que se diferencia, eis que a própria duração é a virtualidade. A evolução criadora traz a Os dados imediatos o aprofundamento assim como o prolongamento necessários. Com efeito, desde Os dados imediatos a duração se apresentava como o virtual ou o subjetivo, porque ela era menos o que não se deixa dividir do que o que muda de natureza ao dividir-se [24]

Compreendemos que o virtual não é um atual, mas não é menos um modo de ser; bem mais, ele é, de certa maneira, o próprio ser: nem a duração, nem a vida, nem o movimento são atuais, mas aquilo em que toda atualidade, toda realidade se distingue e se compreende, tem sua raiz. Realizar-se é sempre o ato de um todo que não se torna inteiramente real ao mesmo tempo, no mesmo lugar, nem na mesma coisa, de  modo que ele produz espécies que diferem por natureza, sendo ele próprio essa diferença de natureza entre as espécies que produz. Bergson dizia constantemente que a duração era a mudança de natureza, de qualidade.

Entre a luz e a obscuridade, 
entre cores, entre nuanças, a diferença é absoluta. 
A passagem de uma à outra é também 
um fenômeno absolutamente real”[25].

Temos, portanto, como que dois extremos, a duração e o impulso vital, o virtual e sua realização. É preciso dizer, ainda, que a duração já é impulso vital, porque é da essência do virtual realizar-se; portanto, é preciso um terceiro aspecto que nos mostre isto, um aspecto de algum modo intermediário em relação aos dois precedentes. É justamente sob este terceiro aspecto que a duração se chama memória. Por todas as suas características, com efeito, a duração é uma memória, porque ela prolonga o passado no presente, 

 seja porque o presente encerra distintamente 
a imagem sempre crescente do passado,  
seja sobretudo porque ele, 
pela sua contínua mudança de qualidade, 
dá testemunho da carga cada vez mais pesada 
que alguém carrega em suas costas 
à medida que vai cada vez mais envelhecendo” [26]

Anotemos que a memória é sempre apresentada por Bergson de duas maneiras: memória-lembrança e memória-contração, sendo a segunda a essencial [27]. Por que essas duas figuras, figuras que  vão dar à memória um estatuto filosófico inteiramente novo? A primeira nos remete a uma sobrevivência do passado. Mas, dentre todas as teses de Bergson, talvez seja esta a mais profunda e a menos bem compreendida, a tese segundo a qual o passado sobrevive em si [28].  Porque essa própria sobrevivência é a duração, a duração é em si memória. Bergson nos mostra que a lembrança não é a representação de alguma coisa que foi; o passado é isso em que nós nos colocamos de súbito para nos lembrar [29]

O passado não tem porque sobreviver psicologicamente e nem fisiologicamente em nosso cérebro, pois ele não deixou de ser, parou  apenas de ser útil; ele é, ele sobrevive em si. E esse ser em si do passado é tão-somente a conseqüência imediata de uma boa  proposição do problema: pois se o passado devesse esperar não mais ser, se ele não fosse de imediato e desde já “passado em geral”, jamais poderia ele tornar-se o que é, jamais seria ele este passado. Portanto, o passado é o em si, o inconsciente ou, justamente, como diz Bergson, o virtual  [30].

Mas em que sentido é ele virtual? É aí que devemos encontrar a segunda figura da memória. O passado não se constitui depois de ter sido  presente, ele coexiste consigo como presente. Se refletirmos sobre isto, veremos bem que a dificuldade filosófica da própria noção de passado vem do estar ele de algum modo interposto entre dois presentes: o presente que ele foi e o atual presente em relação a qual ele é agora passado. A falha da psicologia, propondo mal o problema, foi ter retido o segundo presente e, conseqüentemente,  ter buscado o passado a partir de alguma coisa de atual, além de, finalmente, tê-lo mais ou menos posto no cérebro. Mas, de fato, 

a memória de modo algum
consiste em uma regressão
do presente ao passado” [31]

O que Bergson nos mostra é que, se o passado não é passado ao mesmo tempo em que é  presente, ele jamais poderá constituir-se e, menos ainda, ser reconstituído a partir de um presente ulterior. Eis, portanto, em que sentido o passado coexiste consigo como presente: a duração é tão-somente essa própria coexistência, essa coexistência de si consigo. Logo, o passado e o presente devem ser pensados como dois graus extremos coexistindo na duração, graus que se distinguem, um pelo seu estado de distensão, o outro por seu estado de contração. Uma metáfora célebre nos diz que, a cada nível do cone, há todo o nosso passado, mas em graus diferentes: o presente é somente o grau mais contraído do passado.

“A mesma vida psíquica seria, portanto, repetida um número indefinido de vezes, em camadas sucessivas da memória, e o mesmo ato do espírito poderia se exercer em muitas alturas diferentes”; “tudo se passa como se nossas lembranças fossem repetidas um número indefinido de vezes nessas milhares de reduções possíveis de nossa vida passada”
tudo é mudança de energia, de tensão, e nada mais [32]. A cada grau há tudo, mas tudo coexiste com tudo, ou seja, com os outros graus. Assim, vemos finalmente o que é virtual: são os próprios graus coexistentes e como tais [33]

Tem-se razão em definir a duração como uma sucessão , mas falha-se em insistir nisso, pois ela só é efetivamente sucessão real por ser coexistência virtual. A propósito da intuição, Bergson escreve:
“Somente o método de que falamos 
permite ultrapassar o idealismo 
tanto quanto o realismo,
afirmar a existência de objetos inferiores e superiores a nós,
conquanto sejam em certo sentido interiores a nós, 
e fazê-los coexistir juntos sem dificuldade” [34].

E se, com efeito, pesquisamos a passagem de Matéria e memória à Evolução criadora, vemos que os graus coexistentes são ao mesmo tempo o que faz da duração algo de virtual e o que, entretanto, faz que a duração se atualize a cada instante, porque eles desenham outros tantos planos e níveis que determinam todas as linhas de diferenciação possíveis. Em resumo, as séries realmente divergentes nascem, na duração, de graus virtuais coexistentes. Entre a inteligência e o instinto, há uma diferença de natureza, porque eles estão nos extremos de duas séries que divergem; mas o que essa diferença de natureza exprime enfim senão dois graus que coexistem na duração, dois graus diferentes de distensão e de contração? É assim que cada coisa, cada ser é o todo, mas o todo que se realiza em tal ou qual grau. 

Nas primeiras obras de Bergson, a duração pode parecer uma realidade sobretudo psicológica; mas o que é psicológico é somente nossa duração, ou seja, um certo grau bem determinado. “Se, em lugar de pretender analisar a duração (ou seja, no fundo, fazer sua síntese com conceitos), instalamo-nos primeiramente nela por um esforço de intuição, teremos o sentimento de uma certa tensão bem determinada, cuja própria determinação aparece como uma escolha entre uma infinidade de durações possíveis. Perceberemos então numerosas durações, tantas quanto queiramos, todas muito diferentes umas das outras...” [35]

Eis por que o segredo do bergsonismo está sem dúvida em Matéria e memória; aliás, Bergson nos diz que sua obra consistiu em refletir sobre isto: que tudo não está dado. Que tudo não esteja dado, eis a realidade do tempo. Mas o que significa uma tal realidade? Ao mesmo tempo,  que o dado supõe um movimento que o inventa ou cria, e que esse movimento não deve ser concebido à imagem do dado [36]

O que Bergson critica na idéia de possível  é que esta nos apresenta  um simples decalque do produto, decalque em seguida projetado ou antes retroprojetado sobre o movimento de produção, sobre a invenção [37].  

 Mas o virtual não é a mesma coisa que o possível: a realidade do tempo é finalmente a afirmação de uma virtualidade que se realiza, e para a qual realizar-se é inventar. Com efeito, se tudo não está dado, resta que o virtual é o todo. Lembremo-nos de que o impulso vital é finito: o todo é o que se realiza em espécies, que não são à sua imagem, como tampouco são elas à imagem umas das outras; ao mesmo tempo, cada uma corresponde a um certo grau do todo, e difere por natureza  das outras, de maneira que o próprio todo apresenta-se, ao mesmo tempo, como a diferença de natureza na realidade e como a coexistência dos graus no espírito.

Se o passado coexiste consigo como presente, se o presente é o grau mais contraído do passado coexistente, eis que esse mesmo presente, por ser  o ponto preciso onde o passado se lança em direção ao futuro, se define como aquilo que muda de natureza, o sempre novo, a eternidade de vida [38]. Compreende-se que um tema lírico percorra toda a obra de Bergson: um verdadeiro canto em louvor ao novo, ao imprevisível, à invenção, à liberdade. Não há aí uma renúncia da filosofia, mas uma tentativa profunda e original para descobrir o domínio próprio da filosofia, para atingir a própria coisa para além da ordem do possível, das causas e dos fins. Finalidade, causalidade, possibilidade estão sempre em relação com a coisa uma vez pronta, e supõem sempre que “tudo” esteja dado. 

Quando Bergson critica essas noções, quando nos fala em indeterminação, ele não nos está convidando a abandonar as razões, mas a alcançarmos a verdadeira razão da coisa em vias de se fazer, a razão filosófica, que não é determinação, mas diferença. Encontramos todo o movimento do pensamento bergsoniano concentrado em Matéria e Memória sob a tríplice forma da diferença de natureza, dos graus coexistentes da diferença, da diferenciação. 

Bergson nos mostra inicialmente que há uma diferença de natureza entre o passado e o presente, entre a lembrança e a percepção, entre a duração e a matéria: os psicólogos e os filósofos falharam ao partir, em todos os casos, de um misto mal analisado. Em seguida, ele nos mostra que ainda não basta falar em uma diferença de natureza entre a matéria e a duração, entre o presente e o passado, uma vez que toda a questão é justamente saber  o que é uma diferença de natureza: ele mostra que a própria duração é essa diferença, que ela é a natureza da diferença, de modo que ela compreende a matéria como seu mais baixo grau, seu grau mais distendido, como um passado infinitamente dilatado, e compreende a si mesma ao se contrair como um presente extremamente comprimido, retesado

Enfim, ele nos mostra que, se os graus coexistem na duração, a duração é a cada instante o que se diferencia, seja porque se diferencia em passado e em presente ou, se se prefere, seja porque o presente se desdobra em duas direções, uma em direção ao passado, outra em direção ao futuro. A esses três tempos correspondem, no conjunto da obra, as noções de duração, de memória e de impulso vital. O projeto que se encontra em Bergson, o de alcançar as coisas, rompendo com as filosofias críticas, não é absolutamente novo, mesmo na França, uma vez que ele define uma concepção geral da filosofia e sob vários de seus aspectos participa do empirismo inglês. Mas o método é profundamente novo, assim como os três conceitos essenciais que lhe dão seu sentido.
Tradução de
Lia Guarino NRT
Henri Louis Bergson


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ligação do origem- Gilles Deleuze [1956]

tomado de
GILLES DELEUZE
A ILHA DESERTA E OUTROS TEXTOS
Textos e entrevistas
(1953-1974)
Edição preparada por David Lapoujade
Tradução brasileira
Editora Iluminuras
2004
Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

INTUIÇÃO NO PROCESSO TERAPÊUTICO


 Bergson jovem

 Simbologia e intuição no processo terapêutico




Por Idalina Krause   
06 de Agosto de 2009 

Sem marcar hora uma brisa leve me tocou a alma. Movimento intenso, beleza, luz durável de um instante, pérolas de imagens, delírios sutis, algo potente. Era a intuição novamente me sacudindo pelos ombros. (Idalina Krause)   


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Nas práticas de consultório tem me chamado a atenção o aparecimento de certos sinais simbólicos, conjunções de imagens, que podem se dar tanto em sonhos dos partilhantes como em suas vivências cotidianas. Esses acontecimentos são fenômenos que saltam, têm vida e grande significação, são muito importantes quando analisados dentro das circunstâncias de cada caso e com profundidade.
Quando falo em intuição, ela está relacionada à visão de Spinoza e Bergson. Segundo esses filósofos a intuição proporciona o conhecimento do mundo como um todo concreto inter-relacionado.

Trago dois exemplos de como isso pode ocorrer na prática. 

Uma partilhante está tendo um envolvimento com um rapaz, se encontram esporadicamente. “Ficante” é o termo que utilizam atualmente. Só que, nesse “ficar”, há uma desconfiança da parte dela em função dos desaparecimentos súbitos de seu par, e a impossibilidade de contato por telefone, ou seja, ele se torna para ela uma incógnita. Entre escapadelas, sumiços que duram semanas ou meses, acontecem novos encontros, mas as dúvidas continuam no ar. 

Dentro desse processo clínico este é apenas um dos pontos que chamam a atenção, há uma dissonância, digamos que um comportamento que faz pensar, principalmente no que tange às ações do rapaz. Há mais incertezas do que firmeza neste relacionamento, algo está camuflado. Isso incomoda a partilhante, ela sente que algo não “fecha”, as coisas não batem. Já havia pensado várias vezes, em colocar um ponto final na relação, devido ao mal-estar subjetivo que essa relação vinha causando.

Mas como a simbologia e a intuição entram nesta história? Num desses encontros esporádicos, quando ele resolve aparecer, se deslocaram para a casa de campo dele. Entre conversas e bate-papos que não dizem muito de sua intimidade, sempre meio-escondida, ocorre um fenômeno. O aparecimento de uma enorme aranha e uma revoada de louva-deuses do nada que invade a casa.

Como terapeuta observando todo o contexto, este fato me chama atenção, os canais intuitivos vibram. Para confirmar minhas suspeitas, faço uma pesquisa para verificar a simbologia destes seres da natureza.
Começando pelo louva-deus: símbolo da rebeldia, infidelidade, perito em camuflagem. Fica parado nas plantas, esperando sua presa como que rezando. Ficam imóveis por longos períodos para não serem, comidos por outros animais. O jeitinho de devoto é só fachada, por trás da aparência há um animal feroz. Patas dianteiras perfeitas para golpear, a tentativa de escapar desta armadilha é inútil.

Algumas fêmeas de louva-deus cortam a cabeça do macho no momento do acasalamento. Se estiverem zangadas devoram o parceiro em seguida. Os grandes olhos do louva-deus o permitem enxergar em todas as direções num ângulo de 180 graus. Desde que nascem caçam, se estiverem com muita fome são capazes de comer seus próprios filhotes que se encontrem ao redor.
Agora as aranhas: aranhas precisam trocar de pele periodicamente, durante o período de crescimento produzem seda, só algumas constroem teias para capturar animais de que se alimentam. Outras usam teias como casas para proteger seus ovos. Todas possuem veneno, mas, são pouco perigosas para os humanos. Alguns tipos de peçonha servem apenas para atordoar a vítima facilitando a tarefa de matá-la. O veneno em muitas simbologias ilustra o “mal” que palavras ferinas ou mentirosas podem causar.

Essa pesquisa - coincidência ou não – pode ser o retrato da relação estabelecida entre os dois em que tracei somente alguns detalhes. É como uma metáfora da natureza, rica em vice-conceitos simbólicos, retrata, se não literalmente, mas com um grau de aproximação muito grande a realidade vivida entre os dois.

Não foi surpresa que depois de termos analisado essa simbologia, novos fatos se configuraram mesclando características entre aranhas e louva-deus. O mistério sobre a vida dele foi desfeito de forma surpreendente.  Confirmando que: “O jeitinho de devoto é só fachada, por trás da aparência há um animal feroz”. Essa análise conjunta foi o desfecho de um esquema resolutivo que já apontava para o fim da relação. Intuição, mais simbologia e a confirmação que o mundo é um todo concreto inter-relacionado como afirmavam Bergson e Spinoza.

Outro exemplo para ilustrar agora sobre sonhos, destacando novamente a simbologia, agora relacionada ao conto “A bela e a fera”.  Lembrando de que esta partilhante a quem me refiro dá importância e grande significação aos sonhos, dados intuitivos, fabulações, literatura e artes em geral.
 Essa partilhante tinha sonhos recorrentes de dois rapazes parecendo príncipes em luta pelo amor e a atenção dela que aparecia em um castelo medieval.  Essas imagens vieram com uma riqueza de detalhes vívidos e com grande potencial de significado. Em seu histórico a busca é forte envolvendo axiologia, pré-juízos e emoções na busca de um parceiro “ideal” que mais se aproxime de seus anseios. Mas como chegamos á fábula da “A bela e a fera”?
Depois de vários meses de clínica, desfeito um relacionamento anterior, a partilhante revê ideais e conceitos, cria novos pensamento e ações. Esta partilhante após um tempo em que seguimos trabalhando, encontra a pessoa que considera o “amor da sua vida”. Ganha de presente uma leitura de seu mapa astral, e pelas configurações lá expostas aparece novamente à alusão “A bela e a fera”, entre as conjunções astrais.

Para mim já é um sinal de alerta, que me chega via intuição, duas vezes a “bela e a fera”! Fui pesquisar mais detalhes sobre esta fábula. Encontrei entre as leituras que fiz no livro “Repressão sexual”, de Marilena Chauí, as seguintes passagens sobre esta fábula: “A expressão, muito usada antigamente, “esperar pelo príncipe encantado” ou pela “princesa encantada” não queria dizer apenas a espera por alguém muito bom e belo, mas também a necessidade de aguardar os que estão enfeitiçados porque ainda não chegou a hora do desencantamento”.

Essa passagem reproduz quase que literalmente o momento em que a partilhante se encontrava em seu devir, a transição, o amadurecimento, o novo e “ideal” relacionamento. Possível saída da casa dos pais, afirmação profissional e o reconhecimento de sua própria mutação dentro do novo relacionamento amoroso.

Mais detalhes sobre esse conto segundo Chauí: Bela “retorna ao castelo da Fera, dedica-se a ela e, ao fazê-lo, quebra o encanto, surgindo o belo príncipe com quem viverá. O conto se desenvolve como processo de amadurecimento da heroína e de constituição da imagem masculina através de seus desejos”.
Mostrei o livro e as minhas anotações à partilhante, traçamos considerações, pontuamos fatos, evidenciamos vivências, elaboramos trajetos e a terapia foi belíssima. É bom lembrar que esse procedimento foi parte de uma série de planejamentos clínicos. A partilhante está de alta, concluiu seu curso, abriu novas perspectivas de trabalho e tem um relacionamento muito belo com o seu namorado com quem convive atualmente.

Estas práticas que utilizo, respeitam os dados intuitivos que me chegam, poderia ser uma forma de Informação dirigida simbólica, aproveitando a riqueza das simbologias, explorando significados.

Não custa salientar que não se usa essa prática por achá-la simplesmente interessante. É mais um desdobramento clínico que deve obrigatoriamente estar dentro do contexto do processo, e muito bem elaborado, dentro de um planejamento clínico. Utilizar esses recursos nos processos terapêuticos foi extremamente produtivo, satisfatório e, porque não dizer, educativo e culturalmente prazeroso. Agregamos novos valores, enriquecendo cada um dos encontros, fortalecendo interseções.

Recolher o que o partilhante trás, seus significados íntimos, cuidar destes símbolos, ouvir com atenção, ponderar, estudar, buscar mais informações. Estar atento às nossas intuições e se dedicar ao aperfeiçoamento deste espaço clínico tão rico e vasto de possibilidades também faz parte do nosso trabalho. A intuição, como lembra Bérgson, é uma visão que vive a realidade da duração. “Não se adquire facilmente a intuição; tão habituados estamos ao uso da inteligência que se torna necessária uma viragem íntima violenta, contrária a nossas inclinações naturais, para podermos exercitar a intuição, e só em momentos favoráveis e fugazes somos capazes de o fazer.” (BERGSON, 1968).

Viver o espaço clínico, com amor, paixão vivenciando esta duração fugaz proporciona uma qualificação inigualável. O exercício terapêutico potencializa quem já possui de forma latente o dado intuitivo. Com o tempo, ele se torna um instrumento fascinante dentro do processo que vibra de forma alegre na busca da compreensão da alma humana. Mas Spinoza sabiamente alerta em uma de suas citações famosas: “Tenho evitado cuidadosamente rir-me dos atos humanos, ou desprezá-los; o que tenho feito é tratar de compreendê-los”.  Acredito também no dito popular: tudo vale à pena se a alma não é pequena. Intuição e simbologia são acessos mais diretos à vida íntima de cada partilhante, corpo e alma numa mesma vibração.

Fonte:
Sejam felizes todos os seres. 
Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.