domingo, 22 de agosto de 2010

FRÉDÉRIC WORMS e BERGSON


Entrevista 

Frédéric Worms

Considerado o maior especialista na obra de Bergson, Frédéric Worms é coordenador do Centre International d’Étude de la Philosophie Française Contemporaine e professor da École Normale Superieure, em Paris. Atualmente, é responsável pelo relançamento da obra integral de Bergson na França, sob o título Le Choc Bergson. Além da coautoria da biografia de Bergson, Worms publicou outros três livros sobre o filósofo: Introduction à Matière et Mémoire (PUF, 1997), Le Vocabulaire de Bergson (Ellipses, 2000) e Bergson ou les Deux Sens de la Vie (PUF, 2004). Nesta entrevista à CULT, Worms explica as razões extrafilosóficas para o abandono do bergsonismo no pós-guerra e fala sobre a retomada do pensamento bergsoniano em diversos campos do conhecimento, da neurociência à bioética.

Eduardo Socha

CULT – Você está coordenando a primeira edição crítica da obra completa de Bergson. Poderia resumir quais as motivações para essa edição com o título curioso de “o choque Bergson”?
FRÉDÉRIC WORMS – Na verdade, não deveria se chamar assim. A ideia fundamental dessa edição é incentivar a leitura de Bergson como um clássico, ou seja, ler o filósofo sem as opiniões do tipo “a favor” ou “contra”. Para cada livro, há um material analítico e científico que justifica a presença do filósofo na história dos grandes pensadores. O editor optou por “choque” porque percebeu que ele ainda é pouco lido e, principalmente, mal lido, mesmo que seu nome seja bastante conhecido na França. Então, segundo o argumento publicitário do editor, um “choque” deveria ser necessário para redescobrir Bergson. Choque que não deveria acontecer, mas…

CULT – Temos a impressão de que, principalmente nos anos 1960, Bergson era um autor quase “proibido”, permanecendo esquecido até praticamente a década de 1980…
WORMS – Realmente, houve uma grande recusa antes desse esquecimento. Nos anos 1930, Bergson sofreu críticas da geração de Sartre e Merleau-Ponty, sobretudo por razões políticas e históricas. Na França, isso se acentuou nos anos 1960, porque Bergson foi compreendido como um filósofo do espírito em sentido metafísico, enquanto Sartre era o filósofo da existência, da história. O momento filosófico dos anos 1960 era o momento da linguagem e da estrutura por excelência. Mas hoje percebemos que isso já existia em Bergson. Ou seja, houve um Bergson existencialista, como aquele de Jankélevitch ou do próprio Merleau-Ponty; houve um Bergson estruturalista, como aquele de Deleuze. Mas isso não era compreendido na época por várias razões.

CULT – Que razões eram essas?
WORMS – Razões exteriores à obra. Havia o preconceito de que era apenas mais um espiritualista, o que no fundo significava ser independente de toda posição política, ao contrário do imperativo de engajamento definido pelo marxismo da época. Acho que o mais grave foi a ideia de que ele defendia cegamente o nacionalismo francês durante a Primeira Guerra; mesmo que tenha deixado claro, em Duas Fontes, que não era nacionalista, já era tarde demais. Para toda uma geração, Bergson pertencia a uma França da Guerra, a uma França que era preciso esquecer.

CULT – Apesar dos esforços de Gilles Deleuze para corrigir essa imagem?
WORMS – Houve exceções. Nos anos 1930, Vladimir Jankélevitch, Jean Wahl e Maurice Merleau-Ponty. Nos anos 1960, Deleuze, mas também [o filósofo brasileiro] Bento Prado Júnior. Foi uma pena o livro de Bento Prado não ter sido publicado na época

CULT – No ano passado, comemoramos o centenário de A Evolução Criadora, a obra mais conhecida de Bergson, pela qual recebeu o Nobel de Literatura. O prêmio literário acabou reforçando o preconceito da falta de rigor conceitual que ainda hoje se atribui ao filósofo?
WORMS – Sem dúvida, um Nobel de Literatura para um filósofo às vezes se transforma em presente de grego. Albert Camus disse, por exemplo, que Bergson era apenas um grande poeta. Nesse sentido, o prêmio foi uma armadilha. No entanto, apesar da centralidade das imagens e das metáforas no pensamento de Bergson, seus conceitos são igualmente importantes.

CULT – Quais os desafios mais relevantes para o bergsonismo hoje?
WORMS – Para mim, sua importância concentra-se principalmente no estudo da ética e da técnica. No plano ético, trata-se de pensar o homem sem reduzi-lo a um objeto, para em seguida enraizar a moral na vida, sem reduzi-la também a um objeto. Na compreensão da técnica, como resultante da própria natureza instrumental do homem. O projeto bergsoniano procura dar conta da articulação entre técnica (que por definição não é boa nem má) e moral.

CULT – Você vê contribuições no domínio da bioética?
WORMS – Sim, porque é a única filosofia que inscreve o homem no vivente e que mostra que o sentido vitalista corresponde ao sentido de liberdade, de permanente superação; a natureza não é uma essência à qual estamos aprisionados e à qual devemos retornar. Do ponto de vista da ecologia, é um pensamento bastante importante, porque realiza a crítica da razão instrumental não para defender o retorno a uma cultura/razão primitiva, mas para defender o desenvolvimento da relação entre homem e natureza. Bergson vê claramente, assim como Heidegger, que o homem corre o risco de destruir a natureza, mas que é equivocada a oposição entre homem e natureza. Na verdade, é preciso opor não o homem e a natureza, mas duas relações possíveis do homem com a natureza: uma relação de destruição e uma de liberdade. Os ecologistas que criticam toda ação humana parecem não compreender que o homem faz parte da natureza, que o objetivo humano é jogar uma parte da natureza contra a natureza naturante. Lembre da palavra pharmakon, que em grego significa ao mesmo tempo veneno e remédio. A tecnologia nuclear serve tanto para a produção de bombas quanto para aplicações na medicina. O verdadeiro objetivo de Bergson é dizer que precisamos da técnica, mas que não podemos nos enganar quanto ao seu uso. Não se trata de retroceder. Reformar as instituições políticas nesse sentido também é necessário porque de nada serve a técnica seu uso consciente . A natureza e a técnica não são problemas da ontologia, mas da moral.

CULT – Quais seriam as linhas de estudo que mais chamam a sua atenção entre as pesquisas sobre Bergson hoje?
Eu citaria três. A primeira estaria ligada à vida tanto em sua dimensão prática, limitante, primordial de nossa existência quanto em sua dimensão temporal e criadora, vinculada à moral e à religião; compreender o homem como pensante, agente, vivente ao mesmo tempo. A segunda linha está relacionada à história do pensamento, a fim de compreender o século 20 e aquilo que chamo de “momento 1900” na filosofia, ao lado de contemporâneos como Freud, Husserl, Durkheim etc., ou seja, sua relação com problemas maiores no campo da ciência, da metafísica, da arte etc. E, por fim, um campo de estudo dedicado à sua própria criação intelectual. Assim como se faz em relação a todo cânone do pensamento, é preciso estudar Bergson por ele mesmo, pelo seu conceito de duração, pela sua distinção entre “fechado” e “aberto” no âmbito da moral. É preciso, portanto, estudar Bergson pela perspectiva vitalista, pela perspectiva histórica, e também por ele mesmo, sem confundir esses três planos. É o que nos mostram os estudos bergsonianos hoje, que se renovam no mundo todo, em especial na França e no Brasil.

CULT – Como vê as críticas a Bergson de que seu pensamento ainda permanece refém das ultrapassadas filosofias do absoluto?
WORMS
– É verdade que é uma filosofia do absoluto, mas, para Bergson, o absoluto está em nossa vida. Temos a experiência da alegria, da criação, da duração, e cada um de nós, no ato livre, compreende que está no absoluto. Inversamente, há atos de destruição absoluta. Então, sempre vivemos no absoluto. Ser relativista significa pressupor que a vida é um espetáculo que podemos apenas observar. A filosofia de Bergson acredita em um absoluto não transcendente, que não está além da experiência, além da nossa vida, mas um absoluto do aqui e agora.

CULT – Bergson defendia que a filosofia deveria ser colaborativa e não mais a obra sistemática de um único pensador. A filosofia do século 20, com a diversidade de suas manifestações, sinalizou o fracasso da intenção de Bergson?
WORMS – De fato, o século 20 testemunhou antes a dispersão da filosofia do que sua unificação. Por outro lado, para além dessa dispersão de linguagens, escolas, discípulos, os fatos objetivos e as intuições singulares continuam a se comunicar. A unidade da filosofia permanece não apenas como ideal, mas como realidade concreta e uma exigência, abaixo e acima dos conflitos absurdos entre as seitas. Abaixo, no sentido de conhecer a realidade de nossas vidas. Acima, na correlação entre os grandes pensadores. Ciência e filosofia sempre superam, portanto, aqueles que desejam opor uma à outra. Bergson insistia nisso e talvez não estivesse errado.

CULT – Para resumir, por que estudar Bergson no século 21 para além do interesse exclusivamente universitário?
WORMS – Não separemos os interesses. Jean Wahl, um dos grandes alunos de Bergson, dizia que ele era um grande acadêmico e um grande antiacadêmico. Se não estudarmos sua obra rigorosamente, poderemos nos tornar vítimas do tipo de embate ideológico que o incomodou profundamente. Hoje não se pode negligenciar a vida em sua dimensão real, concreta, frágil, nem em sua dimensão última, intensa, metafísica, talvez menos real. Não se trata de resgatar apenas sua doutrina. Devemos retomar seu gesto duplo: a crítica aos falsos problemas e a formulação daqueles que realmente importam. Essa é a verdadeira responsabilidade da filosofia.

Entrevista – Frédéric Worms-

Publicado em 01 de março de 2010

Sejam felizes todos os seres. 
Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

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