Psicologia Analítica e Cultura
Alberto André Delpino de Mendonça
Instituto C.G. Jung Minas Gerais
É impossível compreendermos a contribuição cultural da psicologia
analítica sem antes examinarmos a trajetória científica e humana do seu
fundador, Carl Gustav Jung, ao longo de seus quase 86 anos de vida A
psicologia analítica teve muitos colaboradores além de Jung e continua
recebendo uma sólida contribuição científica de pesquisadores de todo o
mundo. Seria inexeqüível tentar abordar ou citar num texto como este os
nomes e contribuições de todos aqueles que ajudaram a construir ao lado
do mestre de Küsnacht o edifício da psicologia analítica. Diante disso,
restringir-me-ei a focalizar seu principal mentor ao longo de século XX.
Corre o último quarto do século XIX, naquela atmosfera própria de
um mundo que fatalmente eclodiria na Grande Guerra de 1914-1918. Há quem
diga que o século XIX ocidental só teria terminado historicamente após o
tratado de Versalhes. Nesse clima de incertezas e de grandes ousadias
nos vários campos do saber humano, Jung sedimenta as bases da sua
formação e do seu pensamento através de filósofos como Pitágoras,
Heráclito, Empédocles, Platão, Shopenhauer, Brentano, Hartmann,
Nieztsche, Kant, dentre outros. E também, de cientistas, pesquisadores,
poetas e artistas que iriam ajudá-lo a iniciar e mais tarde a construir,
enriquecer e solidificar a sua obra.
Em 1895, Jung inicia seus estudos de medicina na Universidade de
Basiléia, onde seu avô paterno fora reitor e, em 1900, ao término dessa
etapa, resolve dedicar-se à psiquiatria. Este passo será fundamental em
sua vida. Em 1902 torna-se o primeiro assistente do professor Eugen
Breuler, na época um dos psiquiatras mais conceituados da Europa que em
pouco tempo se destacará com a monografia sobre as esquizofrenias que o
transforma no monstro sagrado da psiquiatria ocidental contemporânea.
Entre 1903-1905 Jung desenvolve suas pesquisas sobre associações e
demonstra pela primeira vez, dentro de técnicas experimentais e de
laboratório, a existência de uma atividade inconsciente no psiquismo
humano. Durante o ano de 1906, o jovem livre-docente da Faculdade de
Medicina da Universidade de Zurique, encontrando respaldo científico nos
estudos de Freud às suas pesquisas clínicas e aos seus achados sobre
associações, busca apoio do mestre de Viena. O primeiro encontro pessoal
entre os dois ocorre em março de 1907.
Suas pesquisas sobre associações com a colaboração de Franz Riklin
e os trabalhos clínicos sobre a psicogênese na esquizofrenia, os quais
já haviam interessado a Freud, repercutem nos meios científicos e
despertam a curiosidade de acadêmicos e estudiosos. Suas atividades se
intensificam até 1912 quando amplia seu envolvimento com o movimento
psicanalítico, incluindo neste período sua viagem aos EEUU com o mestre
da psicanálise, em 1909. Nessa ocasião é convidado para conferências na
Clark University de Worcester, Massachusets. Já considerado o príncipe
herdeiro de Freud, no ano seguinte, torna-se presidente da recém-fundada
Sociedade Internacional de Psicanálise.
Em pouco tempo o prestígio do jovem cientista suíço se propaga,
não só na Europa como também nos EEUU. No mesmo ano da sua viagem à
América, é obrigado a deixar a clínica do Burghölzi, o grande hospital
em Zurique, por sobrecarga de trabalho. Além da clínica particular,
passa a dedicar-se com afinco ao estudo e pesquisa da mitologia, das
religiões e do folclore.
A publicação de Transformações e Símbolos da Libido enseja,
particularmente pelo capítulo denominado O Sacrifício, o rompimento com
Freud. A obra é uma espécie de pedra angular da psicologia analítica. O
encontro inicial de Freud e Jung não resiste à prova do tempo e passados
seis anos do casamento científico acontece o rompimento definitivo com
evidente desvantagem para o então jovem cientista suíço, uma vez que
passa por um período de isolamento e rejeição nos meios especializados,
como ele próprio confessaria. A partir de então, Jung entra numa fase de
introversão, denominada por ele de confronto com o inconsciente e que
ensejará a constituição de parte importante do material para o seu Livro
Vermelho.
Em 1919, Jung usa pela primeira vez o conceito de arquétipo. Nessa
época, já fim da primeira Grande Guerra, Jung serve como capitão-médico
nos campos de concentração ingleses. Finalmente, em 1920 inicia uma
série de viagens pela África e ao continente americano que no seu
conjunto só terminará em 1938, na Índia. Este afastamento do solo
europeu e do seu próprio ambiente cultural constitui, dentre outros
aspectos, uma tentativa de focalizar a partir de fora a avaliação de
outros povos no tocante à cultura europeia e propiciar à sua condição de
pesquisador um distanciamento crítico mais eficaz e mais isento de
preconceitos.
Não terá sido por acaso que o chefe Pueblo “Lago das Montanhas”, finalmente, diz ao visitante: ...
”Veja
como os brancos têm um ar cruel.
Têm lábios finos, nariz em ponta,
os
rostos sulcados de rugas e deformados.
Os olhos têm uma expressão fixa,
estão sempre buscando algo.
O que procuram?
Os brancos sempre desejam
alguma coisa,
estão sempre inquietos, e não conhecem repouso.
Nós não
sabemos o que eles querem.
Não os compreendemos e achamos que são
loucos”.
Com esses indígenas, Jung sedimenta a ideia de que toda cultura
necessita de mitos que a estruturem e sustentem: os Pueblos se julgavam
filhos do Sol e responsáveis pelo seu trajeto cotidiano. Sem eles tudo
seriam trevas. Esta certeza conferia-lhes a dignidade que necessitavam
para se manterem como um povo.
Na África, a viagem entre os Elgonís propicia ao pesquisador a
experiência viva da hora do nascimento do Sol como equivalente ao culto
egípcio a Osíris, onde este momento, o instante em que a luz se faz é
Deus. Para eles tudo que se estende ao sol é bom. A noite, em contraste
com o dia, é vista como “um novo mundo; o mundo obscuro, o mundo de
Ayik, do mal, do perigo e do medo. É ainda nessa época, que Jung
compreende que “... desde a origem, uma nostalgia de luz e um desejo
inesgotável de sair das trevas primitivas habitam a alma. A nostalgia da
luz é a nostalgia da consciência”.
Quanto à Índia, o aspecto central que sensibiliza o cientista,
dada a abordagem distinta conferida ao tema pelos indianos e pelo
cristianismo europeu, é a questão do bem e do mal. Evidentemente, que
sendo a Índia um manancial riquíssimo da cultura humana e uma fonte
contínua de novas respostas ao intelectualismo europeu, além da questão
do bem e do mal, ela acena como uma nova possibilidade de união de
opostos, como elemento complementar e compensador da cultura cristã
européia. Uma vez convencido destes fatos, a busca de interlocução entre
ocidente, Índia e oriente como um todo será uma constante na sua obra e
durante toda sua vida participará ativamente de eventos com este fim.
As conferências de Eranos são um testemunho disto. Jung participa delas
de 1933 até 1951, dez anos antes da sua morte. Entre 1934 e 1939 realiza
seus seminários em inglês sobre o Zaratustra de Nietzsche.
Mas é importante dar alguns passos atrás. Em 1922, um ano antes da
morte de sua mãe e da palestra de Richard Wilhelm sobre o I Ching em
Zurique, Jung adquire um terreno em Bollingen, no lago superior de
Zurique, e com a ajuda inicial de dois mestres de obra italianos executa
ao longo do tempo a construção da Torre. Em contraste com sua bela e
acolhedora casa de Küsnacht, local destinado à família, aos amigos e à
vida cotidiana, a nova construção se constitui em espaço de
aprofundamento interior e recolhimento.
A Torre manterá até o fim um
aspecto que Jung jamais deixou de considerar essencial na caminhada
humana: o da dimensão da busca das nossas raízes profundas e da dimensão
do mistério.
Em 1928 Jung se encontra com sinólogo Richard Wilhelm e toma
conhecimento do texto de O Segredo da Flor do Ouro. A partir de então,
interrompe suas experiências iniciadas em 1913 e se aprofunda nos textos
alquímicos, sobretudo, dos autores europeus.
Os títulos obtidos por Jung em vida na sua trajetória acadêmica e
profissional foram muitos. Contudo, segundo confessou, o momento supremo
da sua carreira acadêmica foi a sua nomeação para a cátedra de
psicologia médica na Universidade da Basiléia em 1944, a mesma onde seu
avô paterno havia sido reitor. Jung atribuiu inclusive a sua grave
doença, havida no mesmo ano e posterior à sua nomeação, à imensa carga
emocional que o fato representou para ele.
É a partir dos escritos e correspondências de Jung que nos
deparamos com uma quantidade significativa de temas que não se prendem a
questões específicas de psicologia, psicopatologia ou psiquiatria,
dentre eles os de cunho religioso. O escritor aborda estes temas na
condição de médico, pesquisador e psicólogo, procurando não se deixar
contaminar pela questão religiosa ou teológica propriamente dita. Isto
lhe valeu a animosidade e desconfiança de inúmeros teólogos e religiosos
que não admitiam a abordagem psicológica das religiões ou não
concordavam com seus achados, além do desprezo dos que o acusavam de
místico e não científico. Contudo, estes ataques não abalam suas
convicções e esses escritos e correspondências se manterão até o fim da
sua vida ao lado de outros temas, sejam científicos, artísticos,
pedagógicos, sociológicos, éticos.
Em 1948, é inaugurado o Instituto Carl Gustav Jung em Zurique, uma
vez que, a essa altura, o número de adeptos e colaboradores da
psicologia analítica já era considerável, tornando, assim, possível a
criação de um centro de formação de profissionais especializados na
área. O referido instituto torna-se, então, centro irradiador para a
formação de analistas em outros países do mundo.
Em 1953, é iniciada a edição inglesa das obras completas de Jung
(Collected Works, Bollingen Series, New York) e a partir da segunda
metade do século XX, outros institutos e associações se organizam em
vários países da Europa e fora dela. A International Association for
Analytical Psychology (IAAP) é fundada em 1955 e torna-se a instituição
credenciada para organizar e controlar, em nível ético, científico e
profissional, os grupos e sociedades de analistas devidamente
reconhecidos nos vários países e continentes, bem como para promover e
divulgar a psicologia analítica em todo o mundo.
Com a morte de Carl Gustav Jung, em 6 de junho de 1961, na sua
residência em Küsnacht, encerra-se a sua jornada terrena. Jung, desde o
início de sua trajetória, reconhecia que na base de toda questão do
psiquismo humano e da caminhada humana encontram-se as perguntas primordiais: o psiquismo busca um sentido, um fim? e, finalmente, a existência humana tem um sentido?
Para a primeira pergunta, responde-nos com o princípio de
individuação. Para a segunda, replica que sua “raison d’être’ (dele,
Jung) consistia no entendimento do ser indefinível que chamamos Deus”.
Quanto aos acréscimos à cultura pela psicologia analítica, estes
freqüentemente constituem novos paradigmas que também a transformam.
Inconsciente coletivo, arquétipos, complexos, tipos psicológicos,
introversão e extroversão, individuação, sincronicidade, são
contribuições ao pensamento humano de valor inestimável. A abordagem de
temas como símbolo, mito, folclore, religião, alquimia, libido,
interpretações de sonhos, imaginação ativa, Eros e logos, masculino e
feminino, as várias figuras arquetípicas, desenvolvimento da
personalidade, esquizofrenia e outros distúrbios mentais, amor e
casamento, fenômenos ocultos, UFO, arte e arte moderna, são questões
amplamente abordadas pela psicologia analítica, bem como as questões e
desafios da globalização e do movimento ecológico de alcance cultural
inquestionável.
A psicologia analítica contou desde o início da sua formação com
colaboradores cujo número, ao longo do tempo, foi se avolumando. As
qualidades acadêmicas, científicas, culturais e humanas de muitos deles,
por si só, seriam suficientes para enaltecer e autorizar qualquer grupo
a que se filiassem. Contamos hoje com mais de meia centena de
sociedades que se organizam por todo o mundo, incluindo Oriente, América
do Norte, America do Sul, Austrália, África do Sul, Europa ocidental e
Leste europeu. Ao lado destas sociedades, existem vários grupos em
desenvolvimento em várias partes do planeta. A Associação Junguiana do
Brasil encontra-se entre elas e é uma colaboradora e produtora de
cultura eficaz e ativa, com amplo intercâmbio no plano nacional e
internacional. Possui sete institutos distribuídos pelos estados do Rio
Grande Sul, Paraná, São Paulo (Campinas e São Paulo), Rio de Janeiro,
Minas Gerais e Bahia, todos promovendo cultura.
Alberto André Delpino de Mendonça
Pablo Picasso
Fonte:
Associação Junguiana do Brasil
http://www.ajb.org.br/
Associação Junguiana do Brasil
http://www.ajb.org.br/