Nietzsche
Nietzsche
- A FILOSOFIA NA ÉPOCA TRÁGICA DOS GREGOS
PREFÁCIO
I
Em relação aos homens que estão longe de nós, basta que saibamos os fins a que
se propõem para os aceitarmos ou os rejeitarmos em massa. Julgamos os que estão
mais perto de nós pelos meios que usam para alcançar os seus fins; e muitas
vezes não concordamos com os seus fins, mas os amamos em virtude dos meios que
usam e por causa da qualidade do seu querer. Ora, os sistemas filosóficos são
só inteiramente verdadeiros para os seus criadores: os filósofos posteriores
consideram-nos normalmente umerro enorme, e para os espíritos mais fracos não
passam de uma soma de erros e de verdades, enquanto fim supremo são, em todo o
caso, um erro e, por isso condenável. Eis porque tantos desprezam o filósofo: é
porque os seus fins diferem dos fins que aqueles se propõem; esses só de longe
nos dizem respeito.
Quem, em contrapartida, se alegra com grandes homens,
também tem a sua alegria em tais sistemas, pois, mesmo que sejam inteiramente
errôneos, não deixam de ter um ponto completamente irrefutável, uma disposição
pessoal, uma tonalidade; podem utilizar-se para construir a imagem do filósofo:
assim como a partir de uma planta se podem tirar conclusões sobre o solo. Em
todo o caso, trata-se de uma maneira de viver e de ver as coisas humanas
que já existiu, e que, por isso, é possível: o "sistema" ou, pelo
menos, uma parte deste sistema, é a planta nascida neste mesmo solo.
Vou fazer a narração de uma versão simplificada da história desses filósofos:
de cada sistema quero apenas extrair o fragmento de personalidade que
contém e que pertence ao elemento irrefutável e indiscutível que a história
deve guardar: é um começo para reencontrar e recriar essas naturezas através de
comparações. É também a tentativa de deixar soar de novo a polifonia da alma
grega. A tarefa consiste em trazer à luz o que devemos amar e venerar sempree
que não nos pode ser roubado por nenhum conhecimento posterior: o grande
homem.
II
Esta tentativa de contar a história dos filósofos gregos mais antigos se
distingue de outras tentativas semelhantes pela sua concisão. Esta conseguiu-se
porque, em cada filósofo, se mencionou apenas um número muito limitado das suas
teorias, em virtude, portanto, de não apresentar uma imagem completa. Mas
escolheram-se as doutrinas em que ressoa com maior força a personalidade de
cada filósofo, ao passo que uma enumeração completa de todas as teses que nos
foram transmitidas, como é costume nos manuais, só leva a uma coisa: ao total
emudecimento do que é pessoal. É por isso que esses relatos são tão
aborrecidos: pois em sistemas que foram refutados só nos pode interessar a
personalidade, uma vez que é a única realidade eternamente irrefutável. Com
três anedotas é possível dar a imagem de um homem; vou tentar extrair três
anedotas de cada sistema, e não me ocupo do resto.
A
FILOSOFIA NA ÉPOCA TRÁGICA DOS GREGOS
I
Há inimigos da filosofia, e é bom os escutar principalmente quando
desaconselham a metafísica às cabeças doentes dos Alemães e lhes pregam a
purificação pela física, como Goethe, ou a cura pela música, como Richard
Wagner. Os médicos do povo rejeitam a filosofia; e quem quiser justificá-la
terá de demonstrar para que é que os povos sãos precisam e precisaram da
filosofia. Se tal conseguir demonstrar, pode ser que até os doentes cheguem ao
conhecimento salutar das causas pelas quais a filosofia lhes é prejudicial. Há,
sem dúvida, bons exemplos de uma saúde que pode subsistir sem filosofia, ou que
dela faz um uso muito moderado, quase lúdico; e foi assim que os Romanos
passaram a sua época dourada sem filosofia. Mas, será possível encontrar o
exemplo de um povo doente ao qual a filosofia tivesse restituído a saúde
perdida? Se alguma vez ela manifestou ser útil, salutar e preventiva, foi para
com os povos sãos; aos doentes tornou-os sempre ainda mais doentes.
Se alguma
vez um povo se desmembrou e ficou ligado aos seus elementos singulares com uma
tensão frouxa, a filosofia nunca religou intimamente estes indivíduos ao todo.
Sempre que alguém se dispôs a afastar-se e a construir à sua volta uma barreira
de auto-suficiência, a filosofia esteve sempre pronta para o isolar ainda mais
e o destruir através desse mesmo isolamento. Ela é perigosa, quando não goza da
plenitude dos seus direitos, e só a saúde de um povo, embora não a de cada
povo, lhe dá esse direito.
Olhemos agora para aquela autoridade suprema que decide o que se pode chamar de
são num povo. Os Gregos, enquanto povo verdadeiramente são, justificaram a
filosofia de uma vez para sempre, pelo simples fato de terem filosofado; e mais
do que todos os outros povos. Nem deixaram de o fazer a tempo; pois até na
árida velhice se comportaram como ardentes adora dores da filosofia, embora
entendessem por filosofia apenas os sofismas piedosos e as subtilezas
sacrossantas da dogmática cristã. Por não terem sido capazes de parar a tempo,
encurtaram muito o serviço que poderiam ter prestado à posteridade bárbara que,
na ignorância e na impetuosidade da sua juventude, teve de findar fatalmente
presa nas redes e nas malhas artificialmente tecidas.
Em contrapartida, os Gregos souberam começar na altura própria, e ensinam mais
claramente do que qualquer outro povo a altura em que se deve começar a
filosofar. Não só na desgraça, como pensam aqueles que derivam a filosofia do
descontentamento. Mas antes na felicidade, na plena maturidade viril, na
alegria ardente de uma idade adulta corajosa e vitoriosa. Que os Gregos tenham
filosofado nesse momento [da sua história] informa-nos tanto sobre o que é a
filosofia e sobre o que ela deve ser como sobre os próprios Gregos.
Se eles
tivessem então sido esses homens práticos, esses brincalhões sóbrios e
precoces, tomo os imagina o filisteu erudito dos nossos dias, ou se tivessem
vivido apenas num luxurioso transporte, ressoar, respirar e sentir, como supõe
o fantasista inculto, a fonte da filosofia nunca teria vindo à luz no meio
deles. Quanto muito, teria surgido um regato que rapidamente desapareceria na
areia ou se evaporaria em nevoeiro, mas nunca aquele rio largo de ondulação
majestosa, que conhecemos como a filosofia grega.
É certo que se empenharam em apontar o quanto os gregos poderiam encontrar e
aprender no estrangeiro, no Oriente, e quantas coisas, de fato, trouxeram de
lá. Era, sem dúvida, um espetáculo curioso, quando colocavam lado a lado os
pretensos mestres do Oriente e os possíveis alunos da Grécia e exibiam agora
Zoroastro ao lado de Heráclito, os hindus ao lado dos eleatas, os egípcios ao
lado de Empédocles, ou até mesmo Anaxágoras entre os judeus e Pitágoras entre
os chineses.
No particular, pouca coisa ficou resolvida; mas já a idéia geral,
nós a aceitaríamos de bom grado, contanto que não nos viessem com a conclusão
de que a filosofia, com isso, germinou na Grécia apenas como importada e não de
um solo natural doméstico, e até mesmo que ela, como algo alheio, antes
arruinou do que beneficiou aos gregos. Nada é mais tolo do que atribuir aos
gregos uma cultura autóctone: pelo contrário, eles sorveram toda a cultura viva
de outros povos e, se foram tão longe, é precisamente porque sabiam retomar a
lança onde um outro povo a abandonou, para arremessá-la mais longe.
São
admiráveis na arte do aprendizado fecundo, e assim como eles devemos aprender
de nossos vizinhos, usando o aprendido para a vida, não para o conhecimento
erudito, como esteios sobre os quais lançar-se alto, e mais alto do que o
vizinho. As perguntas pelos inícios da filosofia são completamente
indiferentes, pois por toda parte o início é o tosco, o amorfo, o vazio e o
feio, e em todas as coisas somente os níveis superiores merecem consideração.
Quem, em lugar da filosofia grega, prefere dedicar-se à egípcia ou persa, porque
essas são talvez mais "originais" e, em todo caso, mais antigas,
procede com tanta desatenção quanto aqueles que não podiam contentar-se com a
mitologia grega, tão esplêndida e profunda, enquanto não a reduziram a
trivialidades físicas, sol, relâmpago, tempestade e nuvem, como seus
primórdios, e que, por exemplo, pensam ter reencontrado na limitada adoração de
uma única abóbada celeste, nos outros indogermanos, uma forma de religião mais
pura do que a politeísta dos gregos.
O caminho em direção aos inícios leva por
toda parte à barbárie; e quem se dedica aos gregos deve sempre ter presente que
o impulso de saber, sem freios, é em si mesmo, em todos os tempos, tão bárbaro
quanto o ódio ao saber, e que os gregos, por consideração à vida, por uma ideal
necessidade de vida, refrearam seu impulso de saber, em si insaciável - porque
aquilo que eles aprendiam queriam logo viver.
Os gregos filosofaram também como
homens civilizados e com os alvos da civilização e, por isso, pouparam-se de
inventar mais uma vez, por alguma presunção autóctone, os elementos da
filosofia e da ciência, mas partiram logo para cumprir, aumentar, elevar e
purificar esses elementos adquiridos, de tal modo que somente agora, em um
sentido superior e em uma esfera mais pura, tornaram-se inventores. Ou seja,
inventaram a cabeça filosófica típica, e a posteridade inteira nada mais
inventou de essencial a acrescentar.
Todos os povos se envergonham quando se aponta para uma sociedade de filósofos
tão maravilhosamente idealizada como a dos velhos mestres gregos, Tales,
Anaximandro, Heráclito, Parmênides, Anaxágoras, Empédocles, Demócrito e
Sócrates. Todos esses homens são talhados de uma só pedra. O seu pensamento e o
seu caráter estão ligados por uma necessidade estrita. Ignoram todas as convenções,
porque naquela altura não havia nenhuma classe de filósofos e de sábios.
Todos
eles são, numa solidão extraordinária, os únicos homens que então viviam
votados ao conhecimento. Todos possuem a energia virtuosa dos Antigos, pela
qual superam todos os que vêm depois, e que lhes permite encontrar a sua forma
própria e dar a esta o seu desenvolvimento pleno, nos pormenores mais pequenos
e nas proporções mais amplas, graças à metamorfose. Pois não veio moda alguma
ao seu encontro que se prestasse a aliviá-los. E assim eles formam, em
conjunto, aquilo que Schopenhauer chamou, em oposição à República dos sábios,
uma República de gênios: um gigante interpela outro através dos espaços vazios
do tempo, e, sem se deixarem perturbar pelos anões maliciosos e barulhentos que
guincham por baixo dele, continuam o seu diálogo espiritual sublime.
Propus-me narrar deste elevado diálogo espiritual o que a nossa surdez moderna
dele pode ouvir e compreender: isto quer, com certeza, dizer o mínimo.
Parece-me que, neste diálogo, os velhos sábios, de Tales a Sócrates, falaram,
se bem que da forma mais geral, sobre aquilo que aos nossos olhos constitui a
essência do espírito helênico. Manifestam nos seus diálogos, como também já nas
suas personalidades, os grandes traços do gênio grego, do qual toda a história
grega é uma impressão vaga, uma cópia difusa e que, por isso; nos fala em
termos pouco claros. Mesmo que interpretássemos corretamente toda a vida do
povo grego, encontraríamos sempre apenas o reflexo da imagem que brilha em
cores mais vivas nos seus gênios mais elevados. Já o primeiro acontecimento da
filosofia em solo grego, a sanção dos sete sábios, é um traço nítido e
inesquecível da imagem do gênio helênico.
Outros povos têm santos, os Gregos
têm sábios. Disse-se, com razão, que um povo não é só caracterizado pelos seus
grandes homens, mas sobretudo pela maneira de os reconhecer e de os honrar.
Noutros tempos, o filósofo é um viajante solitário, casual, em redondezas
hostis, que abre o seu caminho ou furtivamente ou aos empurrões e de punhos
cerrados. Só nos Gregos é que o filósofo não aparece por acaso: quando surge,
nos séculos sexto e quinto, entre os perigos enormes e as tentações de uma vida
secularizada, e quando avança, como se tivesse saído do antro de Trofônio, para
a opulência, a alegria da descoberta, a riqueza e a sensualidade das colônias
gregas, adivinhamos que ele vem como admoestador nobre e para o qual nasceu a
tragédia nesse século e que os mistérios órficos sugerem nos hieróglifos
grotescos dos seus ritos.
O juízo desses filósofos sobre a vida e sobre a
existência em geral é muito mais significativo do que um juízo moderno, porque
tinham diante de si a vida numa plenitude exuberante e porque neles o
sentimento do pensador não se enreda, como em nós, na cisão do desejo da
liberdade, da beleza, da grandeza da vida, e do instinto de verdade, que só
pergunta: o que é que a vida vale?
A tarefa que o filósofo tem de realizar no
âmbito de uma civilização autêntica e possuidora de uma grande unidade" de
estilo não se adivinha a partir da nossa condição e da nossa experiência,
porque não temos uma tal civilização.
Pelo contrário, só uma civilização como a
grega pode responder à pergunta relativa à tarefa do filósofo, só ela pode,
como eu dizia, justificar a filosofia em geral, porque só ela sabe e pode
provar porque razão e como o filósofo não é um viajante qualquer,
acidental e surge disperso aqui e ali. Há uma necessidade férrea que acorrenta
o filósofo a uma civilização autêntica: mas o que acontece quando esta
civilização não existe? Então, o filósofo é como um cometa imprevisível e
assustador, ao passo que, numa boa ocorrência, brilha como o astro-rei no
sistema solar da civilização. Os Gregos justificam o filósofo, porque este,
junto deles, não é nenhum cometa.
II
Depois destas considerações, ninguém ficará chocado por eu falar dos filósofos
pré-platónicos como se formassem uma sociedade coerente, e por pensar em
dedicar só a eles este critério. Com Platão, começa uma coisa completamente nova;
ou, como com igual razão se pode dizer, em comparação com aquela República de
gênios que vai de Tales a Sócrates, falta aos filósofos, desde Platão, algo de
essencial.
Quem se quer pronunciar desfavoravelmente sobre aqueles mestres mais antigos,
pode considerá-los unilaterais, e os seus epígonos, com Platão à frente,
poligonais. Seria mais correto e mais franco conceber os últimos como
caracteres mistos e os primeiros como os tipos puros. O próprio Platão é o
primeiro caráter misto extraordinário, tanto na sua filosofia como na sua
personalidade. Na sua teoria das Idéias, encontram-se unidos elementos
socráticos, pitagóricos e heraclíticos: é por isso que ela não é nenhum
fenômeno do tipo puro.
Também como homem, Platão mistura em si os rasgos da
reserva real e da moderação de Heráclito, da compaixão melancólica do
legislador Pitágoras e do dialético perscrutador de almas Sócrates. Todos os
filósofos posteriores são caracteres mistos deste tipo; quando neles sobressai
algo de unilateral, como acontece com os Cínicos, não se trata de um tipo, mas
de uma caricatura. Mas é muito mais importante que eles sejam fundadores de
seitas e que as seitas por eles fundadas sejam todas instituições de oposição
contra a civilização helênica e contra a unidade de estilo até então existente.
Buscam, à sua maneira, uma redenção - mas só para pessoas individuais ou,
quanto muito, para grupos próximos de amigos e de discípulos.
A atividade dos
filósofos mais antigos remonta, embora disso não sejam conscientes, a uma salvação
e purificação em geral; não se pretende interromper o curso imponente da
civilização grega, devem afastar-se do seu caminho os perigos terríveis, o
filósofo protege e defende a sua pátria. Mas agora, desde Pia tão, ele
encontra-se no exílio e conspira contra a pátria.
É uma grande desgraça que tenhamos conservado tão pouco destes primeiros
mestres ,da filosofia e que só nos tenham chegado fragmentos. Por causa desta
perda, aplicamos-lhes, involuntariamente, medidas erradas' e somos injustos para
com os Antigos, em virtude do fato puramente casual de nunca terem faltado nem
admiradores nem copiadores a Platão e a Aristóteles.
Há quem admita um destino
próprio para os livros, um fatum libellorum: mas deve ter sido um
destino muito maligno, se ele houve por bem tirar-nos Heráclito, o poema
maravilhoso de Empédocles, os escritos de Demócrito, que os Antigos equipararam
a Platão e que ultrapassa este último em ingenuidade, e em troca nos deu os
escritos dos Estóicos, dos Epicuristas e de Cícero. É provável que tenhamos
perdido a parte mais grandiosa do pensamento grego e da sua expressão em
palavras: um destino que não devia surpreender quem se lembra das desventuras
de Escoto Eriúgena ou de Pascal, e quem pensa que, neste século esclarecido, a
primeira edição do Mundo como Vontade e Representação de Schopenhauer
teve de fazer-se em maculatura. Se alguém quer admitir para tais coisas a
existência de um poder fatalista, que o faça e que diga com Goethe: "Übers
Niederträchtige niemand sich beklage; denn es ist das Mächtige, was man dir
auch sage". ("De realidades infames ninguém se queixe, porque são
poderosas, diga-se o que se disser").
É sobretudo mais poderoso do que o
poder da verdade. É tão raro que a humanidade produza um bom livro em que se
entoe com liberdade audaz o canto de guerra da verdade, o hino do heroísmo
filosófico: e, no entanto, é dos acasos mais miseráveis, de obscurecimentos
repentinos das cabeças, de convulsões supersticiosas e de antipatias, e, em'
última análise, também dos dedos de escribas preguiçosos ou até dos insetos e
da chuva, que depende se este livro vive mais um século ou se volta à podridão
e à terra. Mas não queremos queixar-nos, vamos antes ouvir as palavras de
conclusão e de consolação que Hamann dirige aos espíritos cultos que se queixam
de obras perdidas: "Não tinha o artista, que fazia passar uma lentilha
pelo fundo de uma agulha, o suficiente para treinar a habilidade adquirida com
um alqueire de lentilhas?
Quer fazer-se esta pergunta a todos os espíritos eruditos,
que não sabem fazer melhor uso das obras dos Antigos do que o homem faz das
lentilhas". No nosso caso, deveria acrescentar-se que nenhuma palavra,
nenhuma anedota, nenhuma data precisava de nos ser transmitida para além do que
já nos foi transmitido, uma vez que nos chegaria menos para constatar a
doutrina geral, segundo a qual os Gregos justificam a filosofia.
Uma época que sofre daquilo a que se chama cultura geral, mas que não tem
cultura nenhuma, nem na sua vida tem unidade de estilo, nunca saberá o que
fazer com a filosofia, mesmo que ela seja proclamada nas estradas e nos
mercados pelo gênio da Verdade em pessoa. Numa época assim, ela será muito mais
o monólogo erudito do passeante solitário, o roubo que o indivíduo faz por
acaso, o segredo do quarto fechado ou a conversa inofensiva de velhos
acadêmicos com crianças.
Ninguém
pode ousar cumprir a lei da filosofia em si, ninguém vive filosoficamente com
aquela lealdade elementar que obrigava um Antigo, onde quer que estivesse e
fosse o que fosse que fizesse, a comportar-se, como Estóico, se tinha jurado
fidelidade à Stoa. Todo o filosofar moderno é restringido a uma aparência de
erudição, politicamente e policialmente, por governos, por Igrejas, por
academias, por costumes, por modas e pelas cobardias dos homens: fica-se pelo
suspiro "se" ou pela constatação "era uma vez".
A filosofia
já não tem razão de ser e, por isso, o homem moderno, se fosse corajoso e
honesto, deveria rejeitá-la e bani-la com palavras semelhantes àquelas com que
Platão expulsou os poetas trágicos do seu Estado. Ela poderia, sem dúvida,
replicar, como também os poetas trágicos retorquiram a Platão. Se fosse
obrigada a falar, poderia, por exemplo, dizer:
"Pobre povo! Será por minha
culpa que eu vagueio no teu solo como uma profetiza e que tenho de me esconder
e de me disfarçar, como se fosse uma pecadora e vós os meus juízes? Olhai a
minha irmã, a arte Acontece-lhe como a mim, refugiamo-nos junto dos Bárbaros e
já não sabemos salvar-nos. Aqui, é verdade, já não temos nenhuma boa razão de
ser: mas os juízes, perante os quais encontramos razão, também vos julgam e hão
de dizer-vos: "Tende primeiro uma civilização; depois, aprendereis que a
filosofia quer e pode".
III
A filosofia grega parece começar com uma idéia absurda, com a proposição: a
água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo necessário
deter-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar,
porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo
lugar, porque faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar, porque
nela, embora apenas em estado de crisálida, está contido o pensamento:
"Tudo é um". A razão citada em primeiro lugar deixa Tales ainda em comunidade
com os religiosos e supersticiosos, a segunda o tira dessa sociedade e no-lo
mostra como investigador da natureza, mas, em virtude da terceira, Tales se
torna o primeiro filósofo grego- Se tivesse dito:
"Da água provém a
terra", teríamos apenas uma hipótese científica, falsa, mas dificilmente
refutável. Mas ele foi além do científico. Ao expor essa representação de
unidade através da hipótese da água, Tales não superou o estágio inferior das
noções físicas da época, mas, no máximo, saltou por sobre ele. As parcas e
desordenadas observações da natureza empírica que Tales havia feito sobre a
presença e as transformações da água ou, mais exatamente, do úmido, seriam o
que menos permitiria ou mesmo aconselharia tão monstruosa generalização; o que
o impeliu a esta foi um postulado metafísico, uma crença que tem sua origem em
uma intuição mística e que encontramos em todos os filósofos, ao lado dos
esforços sempre renovados para exprimi-Ia melhor - a proposição: "Tudo é
um".
E notável
a violência tirânica com que essa crença trata toda a empiria: exatamente em
Tales se pode aprender como procedeu a filosofia, em todos os tempos, quando
queria elevar-se a seu alvo magicamente atraente, transpondo as cercas da
experiência.
Sobre leves esteios, ela salta para diante: a esperança e o
pressentimento põem asas em seus pés. Pesadamente, o entendimento calculador
arqueja em seu encalço e busca esteios melhores para também alcançar aquele
alvo sedutor, ao qual sua companheira mais divina já chegou. Dir-se-ia ver dois
andarilhos diante de um regato selvagem, que corre rodopiando pedras; o
primeiro, com pés ligeiros, salta por sobre ele, usando as pedras e apoiando-se
nelas para lançar-se mais adiante, ainda que, atrás dele, afundem bruscamente
nas profundezas. O outro, a todo instante, detém-se desamparado, precisa antes
construir fundamentos que sustentem seu passo pesado e cauteloso; por vezes
isso não dá resultado e, então, não há deus que possa auxiliá-lo a transpor o
regato.
Acaso
ele se distingue do pensamento calculador e mediador por seu vôo mais veloz
através de grandes espaços? Não, pois seu pé é alçado por uma potência alheia,
lógica, a fantasia. Alçado por esta, ele salta adiante, de possibilidade em
possibilidade, que por um momento são tomadas por certezas; aqui e ali,
ele mesmo apanha certezas em vôo. Um pressentimento genial as mostra a ele e
adivinha de longe que nesse ponto há certezas demonstráveis.
Mas, em
particular, a fantasia tem o poder de captar e iluminar como um relâmpago as
semelhanças: mais tarde, a reflexão vem trazer seus critérios e padrões e
procura substituir as semelhanças por igualdades, as contigüidades por
causalidades. Mas, mesmo que isso nunca seja possível, mesmo no caso de Tales,
o filosofar indemonstrável tem ainda um valor; mesmo que estejam rompidos todos
os esteios quando a lógica e a rigidez da empiria quiseram chegar até a
proposição "Tudo é água", fica ainda, sempre, depois de destroçado o
edifício científico, um resto; e precisamente nesse resto há uma força
propulsora e como que a esperança de uma futura fecundidade.
Naturalmente
não quero dizer que o pensamento, em alguma limitação ou enfraquecimento, ou
como alegoria, conserva ainda, talvez, uma espécie de "verdade":
assim como, por exemplo, quando se pensa em um artista plástico diante de uma
queda d'água, e ele vê, nas formas que saltam ao seu encontro, um jogo
artístico e prefigurador da água, com corpos de homens e de animais, máscaras,
plantas, falésias, ninfas, grifos e, em geral, com todos os protótipos
possíveis: de tal modo que, para ele, a proposição "Tudo é água"
estaria confirmada.
O pensamento de Tales, ao contrário, tem seu valor - mesmo
depois do conhecimento de que é indemonstrável - em pretender ser, em todo
caso; não-místico e não-alegórico.
Os gregos, entre os quais Tales subitamente
destacou tanto, eram o oposto de todos os realistas, pois propriamente só
acreditavam na realidade dos homens e dos deuses e consideravam a natureza
inteira como que apenas um disfarce, mascaramento e metamorfose desses
homens-deuses. O homem era para eles a verdade e o núcleo das coisas, todo o
resto apenas aparência e jogo ilusório. Justamente por isso era tão
incrivelmente difícil para eles captar os conceitos como conceitos: e, ao
inverso dos modernos, entre os quais mesmo o mais pessoal se sublima em
abstrações, entre eles o mais abstrato sempre confluía de novo em uma pessoa.
Mas Tales dizia: "Não é o homem, mas a água, a realidade das coisas";
ele começa a acreditar na natureza, na medida em que, pelo menos, acredita na
água.
Como matemático e astrônomo, ele se havia tornado frio e insensível a
todo o místico e o alegórico e, se não logrou alcançar a sobriedade da pura
proposição "Tudo é um" e se deteve em uma expressão física, ele era,
contudo, entre os gregos de seu tempo, uma estranha raridade. Talvez os
admiráveis órficos possuíssem a capacidade de captar abstrações e de pensar sem
imagens, em um grau ainda superior a ele: mas estes só chegaram a exprimi-lo na
forma da alegoria. Também Ferécides de Siros, que está próximo de Tales no
tempo e em muitas das concepções físicas, oscila, ao exprimi-Ias, naquela
região intermediária em que o mito se casa com a alegoria: de tal modo que, por
exemplo, se aventura a comparar a Terra com um carvalho alado, suspenso no ar
com as asas abertas, e que Zeus, depois de sobrepujar Kronos, reveste de um
faustoso manto de honra, onde bordou, com sua própria mão, as terras, águas e
rios.
Contraposto a esse filosofar obscuramente alegórico, que mal se deixa
traduzir em imagens visuais, Tales é um mestre criador, que, sem fabulação
fantástica, começou a ver a. natureza em suas profundezas. Se para isso se
serviu, sem dúvida, da ciência e do demonstrável, mas logo saltou por sobre
eles, isso é igualmente um caráter típico da cabeça filosófica.
A palavra grega
que designa o "sábio" se prende, etimologicamente, a sapio, eu
saboreio, sapiens, o degustador, sisyphos, o homem do gosto mais
apurado; um apurado degustar e distinguir, um significativo discernimento,
constitui, pois, segundo a consciência do povo, a arte peculiar do filósofo.
Este não é prudente, se chamamos de prudente àquele que, em seus assuntos
próprios, sabe descobrir o bem.
Aristóteles diz com razão: "Aquilo que
Tales e Anaxágoras sabem será chamado de insólito, assombroso, difícil, divino,
mas inútil, porque eles não se importavam com os bens humanos". Ao
escolher e discriminar assim o insólito, assombroso, difícil, divino, a
filosofia marca o limite que a separa da ciência, do mesmo modo que, ao
preferir o inútil, marca o limite que a separa da prudência. A ciência, sem
essa seleção, sem esse refinamento de gosto, precipita-se sobre tudo o que é
possível saber, na cega avidez de querer conhecer a qualquer preço; enquanto o
pensar filosófico está sempre no rastro das coisas dignas de serem sabidas, dos
conhecimentos importantes e grandes.
Mas o conceito de grandeza é mutável, tanto no domínio moral quanto no
estético: assim a filosofia começa por legislar sobre a grandeza, a ela se
prende uma doação de nomes. "Isto é grande", diz ela, e com isso
eleva o homem acima da avidez cega, desenfreada, de seu impulso ao
conhecimento. Pelo conceito de grandeza, ela refreia esse impulso: ainda mais
por considerar o conhecimento máximo, da essência e do núcleo das coisas, como
alcançável e alcançado.
Quando Tales diz: 'Tudo é água", o homem estremece
e se ergue do tatear e rastejar vermiformes das ciências isoladas, pressente a
solução última das coisas e vence, com esse pressentimento, o acanhamento dos
graus inferiores do conhecimento.
O filósofo busca ressoar em si mesmo o
clangor total do mundo e, de si mesmo, expô-lo em conceitos; enquanto é
contemplativo como o artista plástico, compassivo como o religioso, à espreita
de fins e causalidades como o homem de ciência, enquanto se sente dilatar-se
até a dimensão do macrocosmo, conserva a lucidez para considerar-se friamente
como o reflexo do mundo, essa lucidez que tem o artista dramático quando se
transforma em outros corpos, fala a partir destes e, contudo, sabe projetar
essa transformação para o exterior, em versos escritos.
O que é o verso para o
poeta, aqui, é para o filósofo o pensar dialético: é deste que ele lança mão
para fixar-se em seu enfeitiçamento, para petrificá-la. E assim como, para o
dramaturgo, palavra e verso são apenas o balbucio em uma língua estrangeira,
para dizer nela o que viveu e contemplou e que, diretamente, só poderia
anunciar pelos gestos e pela música, assim a expressão daquela intuição
filosófica profunda pela dialética e pela reflexão científica é, decerto, por
um lado, o único meio de comunicar o contemplado, mas um meio raquítico, no
fundo uma transposição metafórica, totalmente infiel, em uma esfera e língua
diferentes. Assim contemplou Tales a unidade de tudo o que é: e quando quis
comunicar-se, falou da água!
IV
Enquanto
o tipo universal do filósofo, na imagem de Tales, como que apenas se delineia
de neblinas, já a imagem de seu grande sucessor nos fala muito mais claramente.
Anaximandro de Mileto, o primeiro escritor filosófico dos antigos, escreve como
escreverá o filósofo típico, enquanto solicitações alheias não o despojaram de
sua desenvoltura e de sua ingenuidade: em inscrições sobre pedra, estilo
grandioso, frase por frase, cada uma testemunha de uma nova iluminação e
expressão do demorar-se em contemplações sublimes. O pensamento e sua forma são
marcos de milha na senda que conduz àquela sabedoria altíssima.
Nessa concisão
lapidar, diz Anaximandro uma vez: "De onde as coisas têm seu nascimento,
ali também devem ir ao fundo, segundo a necessidade; pois têm de pagar
penitência e de ser julgadas por suas injustiças, conforme a ordem do
tempo". Enunciado enigmático de um verdadeiro pessimista, inscrição
oracular sobre a pedra limiar da filosofia grega, como te
interpretaremos?
O único moralista seriamente intencionado de nosso
século, nos Parerga (volume II, capítulo 12, suplemento à doutrina do
sofrimento do mundo, apêndice aos textos conexos), depõe sobre nosso coração
uma consideração similar.
"O verdadeiro critério para o julgamento de cada
homem é ser ele propriamente um ser que absolutamente não deveria existir, mas
se penitencia de sua existência pelo sofrimento multiforme e pela morte: o que
se pode esperar de um tal ser? Não somos todos pecadores condenados à morte?
Penitenciamo-nos de nosso nascimento, em primeiro lugar, pelo viver e, em
segundo lugar, pelo morrer."
Quem lê essa doutrina na fisionomia de nossa
sorte humana universal e já reconhece a má índole fundamental da cada vida
humana no simples fato de nenhuma delas suportar ser considerada atentamente e
mais de perto - embora nosso tempo habituado à epidemia biográfica pareça
pensar de outro modo, e mais favoravelmente, sobre a dignidade do homem - quem,
como Schopenhauer, ouviu, "nas alturas dos ares hindus", a palavra
sagrada do valor moral da existência, dificilmente poderá ser impedido de fazer
um metáfora altamente antropomórfica e de tirar aquela doutrina melancólica de
sua restrição à vida humana para aplicá-la, por transferência, ao caráter
universal de toda existência.
Pode não
ser lógico, mas, em todo caso, é bem humano e, além disso, está no estilo do
salto filosófico descrito antes, considerar agora, com Anaximandro, todo
vir-a-ser como uma emancipação do ser eterno, digna de castigo, como uma
injustiça que deve ser expiada pelo sucumbir. Tudo o que alguma vez veio a ser,
também perece outra vez, quer pensemos na vida humana, quer na água, quer no
quente e no frio: por toda parte, onde podem ser percebidas propriedades,
podemos profetizar o sucumbir dessas propriedades, de acordo com uma monstruosa
prova experimental.
Nunca, portanto, um ser que possui propriedades
determinadas, e consiste nelas, pode ser origem e princípio das coisas; o que é
verdadeiramente, conclui Anaximandro, não pode possuir propriedades
determinadas, senão teria nascido, como todas as outras coisas, e teria de ir
ao fundo. Para que o vir-a-ser não cesse, o ser originário tem de ser
indeterminado.
A imortalidade e eternidade do ser originário não está em sua
infinitude e inexauribilidade - como comumente admitem os comentadores de
Anaximandro -, mas em ser destituído de qualidades determinadas, que levam a
sucumbir: e é por isso, também, que ele traz o nome de "o indeterminado".l
O ser originário assim denominado está acima do vir-a-ser e, justamente por
isso, garante a eternidade e o curso ininterrupto do vir-a-ser. Essa unidade
última naquele "indeterminado", matriz de todas as coisas, por certo
só pode ser designada negativamente pelo homem, como algo a que não pode ser
dado nenhum predicado do mundo do vir-a-ser que aí está, e poderia, por isso,
ser tomada como equivalente à "coisa-em-si" kantiana.
É certo que quem é capaz de se pôr a discutir com outros sobre o que tenha sido
propriamente essa proto-matéria, se é porventura uma coisa intermediária entre
ar e água, ou talvez entre ar e fogo, não entendeu nosso filósofo: o mesmo se
pode dizer dos que perguntam seriamente se Anaximandro pensou sua proto-matéria
como mistura de todas as matérias existentes.
Temos, antes, de dirigir nosso
olhar ao ponto de onde podemos aprender que Anaximandro já não mais tratou a
pergunta pela origem deste mundo de maneira puramente física, e de orientá-lo
segundo aquela proposição lapidar apresentada no início. Se ele preferiu ver,
na pluralidade das coisas nascidas, uma soma de injustiças a ser expiadas, foi
o primeiro grego que ousou tomar nas mãos o novelo do mais profundo dos
problemas éticos. Como pode perecer algo que tem direito de ser!
De onde vem
aquele incansável vir-a-ser e engendrar, de onde vem aquela contorção de dor na
face da natureza, de onde vem o infindável lamento mortuário em todo o reino do
existir? Desse mundo do injusto, do insolente declínio da unidade originária
das coisas, Anaximandro refugiou-se em um abrigo metafísico, do qual se debruça
agora, deixa o olhar rolar ao longe, para enfim, depois de um silêncio
meditativo, dirigir a todos os seres a pergunta:
Por vossa culpa, observo eu,
demorais-vos nessa existência. Com a morte tereis de expiá-la. Vede como murcha
vossa Terra; os mares se retraem e secam; a concha sobre a montanha vos mostra
o quanto já secaram; o fogo, desde já, destrói vosso mundo, que, no fim, se
esvairá em vapor e fumo. Mas sempre, de novo, voltará a edificar-se um tal
mundo de inconstância: quem seria capaz de livrar-vos da maldição do
vir-a-ser?".
Para um
homem que faz tais perguntas, cujo pensar arrebatado rompe constantemente as
malhas empíricas para logo lançar-se no mais alto vôo supralunar, nem todo modo
de viver pode ter sido bem-vindo. De bom grado aceitamos a tradição de que ele
se apresentava em indumentária particularmente cerimoniosa e mostrava um
orgulho verdadeiramente trágico em seus gestos e hábitos de vida.
Vivia como
escrevia; falava tão solenemente quanto se vestia; elevava a mão e pousava o pé
como se esse estar-aí fosse uma tragédia em que ele teria nascido para tomar
parte como herói. Em tudo ele foi o grande modelo de Empédocles. Seus concidadã
os elegeram-no para conduzir uma colônia emigrante - talvez se alegrassem de
poder ao mesmo tempo venerá-lo e desvencilhar-se dele. Também seu pensa mento
emigrou, e fundou colônias: em Éfeso e Eléia não se desvencilharam dele e, se
não puderam decidir-se a permanecer onde ele estava, sabiam, contudo, que foram
guiados por ele ao lugar de onde agora, sem ele, se dispunham a prosseguir.
Tales mostra a necessidade de simplificar o reino da pluralidade e reduzi-lo a
um mero desdobramento ou disfarce da única qualidade existente, a água.
Anaximandro o ultrapassa em dois passos. Pergunta-se, da primeira vez:
"Mas, se há em geral uma unidade eterna, como é possível aquela
pluralidade?", e deduz a resposta do caráter contraditório dessa
pluralidade, que consome e nega a si mesmo. Sua existência se toma para ele um
fenômeno moral, que não se legitima, mas se penitencia, perpetuamente, pelo
sucumbir. Mas, em seguida, ocorre-lhe a pergunta: "Por que, então, tudo o
que veio a ser já não foi ao fundo há muito tempo, uma vez que já transcorreu
toda uma eternidade de tempo?
De onde vem o fluxo sempre renovado do vira-ser?"
Ele só sabe salvar-se dessa pergunta por possibilidades místicas: o vir-a-ser
eterno só pode ter sua origem no ser eterno, as condições para o declínio
daquele ser em um vir-a-ser na injustiça são sempre as mesmas, a constelação
das coisas tem desde sempre uma índole tal que não se pode prever nenhum
término para aquele sair dos seres isolados do seio do "indeterminado".
Aqui ficou Anaximandro: isto é, ficou nas sombras profundas que, como
gigantescos fantasmas, deitam-se sobre a montanha de uma tal contemplação do
mundo. Quanto mais se procurava aproximar-se do problema - como, em geral, pode
nascer, por declínio, do indeterminado o determinado, do eterno o temporal, do
justo a injustiça -, maior se tornava a noite.
V
Heráclito de Éfeso surgiu no meio desta noite mística que envolvia o
problema do devir de Anaximandro, e iluminou-o com um raio de luz divino:
"Contemplo o devir", diz ele, "e nunca alguém contemplou com
tanta atenção o fluxo e o ritmo eternos das coisas. E o que é que eu vi?
Legalidades, certezas infalíveis, vias imutáveis do direito, as Erinias que
julgam todas as infrações às leis, o mundo inteiro a oferecer o espetáculo de
uma justiça soberana e de forças naturais demoníacas, presentes em todo o lado
e submissas ao seu serviço.
Contemplei, não a punição do que no devir entrou,
mas a justificação do devir. Quando é que o crime, a secessão se manifestou em
formas invioláveis, em leis piedosamente veneradas? Onde domina a injustiça,
depara-se com o arbitrário, a desordem, a irregularidade, a contradição; mas
onde só reinam a lei e a diké, filha de Zeus, como neste mundo, como
poderia aí vigorar a esfera da culpa, da expiação, da condenação e, por assim
dizer, o lugar de suplício de todos os condenados ?"
Heráclito tirou desta intuição duas negações entre si solidárias, que só vêm
completamente à luz pela comparação com os ensinamentos do seu precursor. Em
primeiro lugar, negou a dualidade de dois mundos totalmente diferentes, que
Anaximandro se vira obrigado a admitir; já não distingue um mundo físico e um
mundo metafísico, um domínio de qualidades definidas e um domínio da indeterminação
indefinível. Após este primeiro passo, também já não pôde coibir-se de uma
maior audácia da negação: negou o ser em geral. Pois o único mundo que ele
conservou - um mundo rodeado de leis eternas não escritas, animado do fluxo e
do refluxo de um ritmo de bronze - nada mostra de permanente, nada de
indestrutível, nenhum baluarte no seu fluxo.
Heráclito exclamou mais alto do
que Anaximandro: "Só vejo o devir. Não vos deixeis enganar! É à vossa
vista curta e não à essência das coisas que se deve o fato de julgardes
encontrar terra firme no mar do devir e da evanescência. Usais os nomes das
coisas como se tivessem uma duração fixa; mas até o próprio rio, no qual
entrais pela segunda vez, já não é o mesmo que era da primeira vez".
O dom real de Heráclito é a sua faculdade sublime de representação intuitiva;
ao passo que se mostra frio, insensível e hostil para com o outro modo de
representação que se efetiva em conceitos e combinações lógicas, portanto, para
a razão, e parece ter prazer em poder contradizê-la com alguma verdade
alcançada por intuição; fá-lo com uma insolência tal, em frases como:
que
Aristóteles o acusa de crime supremo perante o tribunal da razão, de pecado
contra o princípio de contradição. Mas a representação intuitiva engloba dois
aspectos diferentes: o primeiro é o mundo presente, colorido e em mudança, que
se comprime à nossa volta em todas as experiências, e portanto, as condições
que tornam possível a experiência deste mundo, isto é, o tempo e o espaço. Pois
se o tempo e o espaço existem sem conteúdo definido, podem ser apercebidos
independentemente de toda a experiência, de maneira puramente intuitiva.
Neste
modo de consideração do tempo, desligado de todas as experiências, Heráclito
tinha o monograma mais instrutivo, que resume tudo o que se encontra no domínio
da representação intuitiva. A sua concepção do tempo é, por exemplo, a de
Schopenhauer, para o qual cada instante do tempo só existe na medida em que destruiu
o instante precedente, seu pai, para bem depressa ser ele próprio também
destruído; para ele, o passado e o futuro são tão vãos como qualquer sonho, e o
presente é unicamente o limite, sem extensão nem consistência, que a ambos
separa.
Como o tempo, também o espaço, e, como este, também tudo o que nele e
no tempo existe só tem uma existência relativa, só existe para um outro, a ele
semelhante, quer dizer, que não tenha mais permanência do que ele. Eis uma
verdade de evidência imediata, acessível a todos e, justamente por isso,
difícil de atingir pela via dos conceitos e da razão. Mas quem a tem diante dos
olhos deve também passar imediatamente à conseqüência heraclítica e dizer que a
essência total da realidade é só atividade e que para ela não há outro modo de
ser; foi o que Schopenhauer expôs (O Mundo como Vontade e Representação, tomo
I, livro primeiro, parágrafo quarto):
"Ela só enche o espaço, só enche o
tempo, na medida em que age: a sua ação sobre o objeto imediato condiciona a
intuição, na qual unicamente existe; a conseqüência da ação de qualquer outro
objeto material sobre outro só se conhece e só é consistente na medida em que o
último age agora de maneira diferente sobre o objeto imediato.
A essência total
da matéria só é,
portanto, causa e efeito; o seu ser é a sua ação.
De modo
muitíssimo apropriado se designa um alemão o conjunto das coisas materiais com
a palavra "Wirklichkeit" [realidade efetiva], que é muito mais
expressiva do que "Realitat". Aquilo sobre o que ela age, é de
novo a matéria: todo o seu ser e a sua essência consiste, pois, apenas na
modificação regular que uma parte desta matéria produz numa outra; por
conseguinte, ela é, por natureza, inteiramente relativa, segundo uma relação
que só é válida no âmbito dos seus limites, e neste aspecto é semelhante ao
tempo, semelhante ao espaço".
O dever único e eterno, a inconsistência total de todo o real, que somente age
e flui incessantemente, sem alguma vez ser, é, como Heráclito ensina, uma idéia
terrível e atordoadora, muitíssimo afim, na sua influência, ao sentimento de
quem, num tremor de terra, perde a confiança que tem na terra firme.
Foi
precisa uma energia surpreendente para transformar este efeito no seu
contrário, em sublimidade e no assombro bem-aventurado. Heráclito chegou a este
ponto graças a uma observação do verdadeiro curso do devir e da destruição, que
ele concebeu sob a forma da polaridade, como a disjunção de uma mesma força em
duas atividades qualitativamente diferentes, opostas, e que tendem de novo a
unir-se. Incessantemente uma qualidade se cinde em si mesma e se divide nos
seus contrários: permanentemente esses contrários tendem de novo um para o
outro. O vulgo, é verdade, julga reconhecer algo de rígido, acabado, constante;
na realidade, em cada instante, a luz e a sombra, o doce e o amargo estão
juntos e ligados um ao outro como dois lutadores, dos quais ora a um, ora a
outro cabe a supremacia.
O mel é, segundo Heráclito, simultaneamente amargo e
doce, e o próprio mundo é um jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se
constantemente. Todo o devir nasce do conflito dos contrários; as qualidades
definidas que nos parecem duradouras só exprimem a superioridade momentânea de
um dos lutadores, mas não põem termo à guerra: a luta persiste pela eternidade fora.
Tudo acontece de acordo com esta luta, e é esta luta que manifesta a justiça
eterna.
É uma idéia admirável, oriunda da mais pura fonte do gênio helênico,
que considera a luta como a ação contínua de uma justiça homogênea, severa,
vinculada a leis eternas. Só um Grego era capaz de fazer desta representação o
fundamento de uma cosmodicéia; é a boa Éris de Hesíodo, transfigurada em
princípio cósmico, é a idéia de competição dos Gregos singulares e da cidade
grega, transferida dos ginásios e das palestras dos agons artísticos, da luta
dos partidos políticos e das cidades entre si, para o mais universal, de
maneira que agora a engrenagem do cosmos nela gira.
Assim como cada Grego luta,
como se apenas ele tivesse razão e como se um critério infinitamente seguro da
decisão judiciária definisse em cada instante para que lado tende a vitória,
assim também lutam entre si as qualidades, segundo regras e leis invioláveis,
imanentes ao combate. As próprias coisas que a inteligência limitada do homem e
do animal julga sólidas e constantes não têm existência real, não passam do
luzir e do faiscar de espadas desembainhadas, são o brilho da vitória na luta
das qualidades opostas.
Essa luta que é própria de todo o devir, essa flutuação eterna da vitória, é
assim descrita por Schopenhauer (O Mundo como Vontade e Representação, tomo
I, livro segundo, parágrafo 27):
"É necessário que a matéria persistente
mude incessantemente de forma, porque fenômenos mecânicos, físicos, químicos,
orgânicos, guiados pela causalidade, lutam com avidez pelo primeiro plano e
dilaceram mutuamente a matéria, já que cada um quer manifestar a sua idéia..
Este conflito pode observar-se em toda a natureza, porque também ela só existe
mediante este conflito".
As páginas seguintes apresentam as ilustrações
mais notáveis deste conflito: mas a tônica fundamental dessa descrição já não é
a de Heráclito porque a luta, para Schopenhauer, não passa de uma prova da
autocisão do querer-viver, uma autocorrosão deste instinto sombrio e confuso; é
um fenômeno absolutamente horroroso, nada beatificante. A arena e o objeto
desta luta é a matéria, que as forças naturais tentam dilacerar umas às outras,
e também o espaço e o tempo, cuja união através da causalidade é precisamente a
matéria.
VI
Enquanto a imaginação de Heráclito perscrutava o universo agitado
infatigavelmente, a "realidade", com o olhar do espectador encantado
que vê lutar com alegria inúmeros pares sob a vigilância de árbitros severos,
teve um pressentimento ainda mais sublime; já não podia considerar os pares a
lutar e os juízes como separados uns dos outros, os próprios juízes pareciam
estar a lutar, os lutadores pareciam estar a julgar-se a si mesmos - sim, uma
vez que ele, no fundo, só se apercebeu da justiça eternamente reinante, ousou
exclamar: "A própria luta dos seres múltiplos é a pura justiça! E, de
resto, o uno é o múltiplo. Pois, qual é a essência de todas essas qualidades?
Deuses imortais? São seres separados que, desde o começo e sem fim, agem por si
mesmos?
E se o mundo que vemos só conhece o devir e a destruição e ignora o que
permanece, não deveriam talvez essas qualidades constituir um mundo metafísico
de outra espécie: não propriamente um mundo da unidade, como o que Anaximandro
procurava atrás do véu flutuante da multiplicidade, mas um mundo de
multiplicidades eternas e essenciais ?"
- Embora o tenha negado com
veemência, não voltou talvez Heráclito a entrar, por um desvio, na ordem
cósmica dupla, a braços com um Olimpo de numerosos deuses e demônios imortais -
isto é, de muitas realidades - e com um mundo humano, que só vê as
nuvens de poeira da luta olímpica e o brilho das lanças divinas - isto é, um
devir e nada mais?
Anaximandro tinha-se precisamente abrigado das qualidades
definidas, refugiando-se no seio do "Indefinido"metafísico, porque
essas qualidades nascem e perecem, tinha-lhes negado a existência verdadeira e
essencial; mas não parece agora que o devir é apenas o evidenciar de uma luta
de qualidades eternas? Não se deveria voltar à fraqueza peculiar do conhecimento
humano, quando falamos do devir - enquanto na essência das coisas talvez não
haja devir algum, mas unicamente a coexistência de múltiplas realidades
verdadeiras que se subtraem ao devir e à destruição?
Eis saídas e falsos caminhos que não são dignos de Heráclito; ele grita pela
segunda vez: "o uno é o múltiplo". As inúmeras qualidades de que
podemos aperceber-nos não são essências eternas, nem fantasmas dos nossos
sentidos (Anaxágoras admitira a primeira [destas possibilidades], Parmênides a
segunda), não são um ser rígido e arbitrário, nem a aparência fugi dia que
atravessa os cérebros humanos.
A terceira possibilidade, a única que restava a
Heráclito, não poderá ser adivinhada nem calculada antecipadamente por ninguém
dotado de faro dialético: pois o que ele inventou aqui é uma realidade, até no
domínio das idéias místicas mais inacreditáveis e das metáforas cósmicas mais
inesperadas. - O mundo é o jogo de Zeus ou, em termos físicos, do fogo
consigo mesmo, o uno só neste sentido é simultaneamente o múltiplo.
Para explicar agora a introdução do fogo concebido como força criadora do
mundo, recordo o desenvolvimento que Anaximandro tinha dado à teoria da água
como origem das coisas. Embora confiando em Tales no tocante ao essencial e
reforçando e desenvolvendo as suas observações, Anaximandro não estava, no
entanto, convencido de que não houvesse qualquer outro grau de qualidade antes
e, por assim dizer, por detrás da água; parecia-lhe antes que o úmido se
formava por si mesmo a partir do quente e do frio. Por isso, o quente e o frio
deveriam ser os estádios preliminares da água, as qualidades ainda mais
originárias.
O devir começa quando elas se separam do ser primordial, do
"Indefinido". Heráclito que, como físico, se sujeitou à autoridade de
Anaximandro, interpreta esta teoria do quente segundo Anaximandro como o sopro,
o hálito quente, os vapores secos, em suma, o elemento ardente; acerca deste
fogo, diz o que Tales e Anaximandro tinham dito da água: que percorre em
inúmeras metamorfoses a senda do devir, sobretudo nos três estados principais,
que são o quente, o úmido e o sólido. Pois a água que desce torna-se terra, e a
água que sobe torna-se fogo; ou, como Heráclito parece ter dito com mais
precisão: do mar só se elevam os vapores mais puros, que servem de alimento ao
fogo celeste dos astros; da terra só se elevam os vapores escuros e nebulosos,
que servem de alimento ao úmido.
Os vapores puros são a transição do mar para o
fogo, os vapores impuros são a transição da terra para a água. É assim que o
fogo segue duas vias de metamorfose que sobem e descem incessantemente, vão e
vêm, lado a lado, do fogo à água, daí à terra, da terra de novo à água e da
água ao fogo.
Embora Heráclito siga Anaximandro no tocante às mais importantes
destas concepções, por exemplo, quando diz que o fogo é sustentado pelas
evaporações, ou quando afirma que da água se separa em parte a terra, em parte
o fogo, mostra-se independente e contradiz o mestre, porque exclui o frio do
processo físico, ao passo que Anaximandro o tinha colocado junto do quente para
fazer nascer o úmido da união de ambos.
Esta decisão era realmente uma
necessidade para Heráclito: pois se tudo é fogo, nada pode haver, em todas as
possibilidades da sua metamorfose, que possa ser o seu contrário absoluto.
Heráclito interpreta assim o que se chama frio apenas como um grau do quente; e
pôde justificar esta interpretação sem dificuldade alguma. Mas muito mais
importante do que este afastamento da doutrina de Anaximandro é uma outra
coincidência: ele acredita, como este último, num colapso do mundo, que se
repete periodicamente, e no surgimento sempre novo de um outro mundo, nascido
da conflagração cósmica que tudo aniquila.
É extremamente surpreendente que
Heráclito caracterize o período em que o mundo acorre ao encontro dessa
conflagração cósmica e da desintegração no fogo puro, como um desejo e uma
necessidade, e a plena consumação pelo fogo como a saciedade; e só nos resta
perguntar como entende e designou ele o acordar do novo impulso de formação do mundo,
o efundir-se nas formas da multiplicidade.
O provérbio grego segundo o qual
"a saciedade gera o crime" (a hybris) parece vir em nosso
auxílio; e pode mos, com efeito, perguntar-nos por um instante se Heraclito fez
derivar da hybris este retorno à multiplicidade. Tome-se este pensamento
a sério: à sua luz, a face de Heráclito transforma-se aos nossos olhos,
apaga-se o brilho orgulhoso dos seus olhos, traça-se no seu rosto uma ruga
profunda de renúncia dolorosa e de impotência; parece que compreendemos por que
razão a Antiguidade tardia lhe chamou o "filósofo que chora". Não é
todo o processo universal um castigo da hybris? E não é a multiplicidade
o resultado de um crime?
Não é a metamorfose do puro no impuro uma conseqüência
da injustiça? Não é a culpa transferida para o próprio coração das coisas? E
se, assim, o mundo do devi r e dos indivíduos é dela libertado, não está ao
mesmo tempo condenado a sofrer sempre as conseqüências dela?
VII
Esta palavra perigosa, a hybris, é de fato a pedra de toque de todo o
discípulo de Heráclito; é aqui que ele pode demonstrar se compreendeu ou não o
mestre. Será que este mundo está cheio de culpa, de injustiça, de contradições
e de sofrimento?
Sim, grita Heráclito, mas só para o homem limitado que vê as coisas separadas
umas das outras e não no seu conjunto, não para o seu contuitivo; para
este, todos os contrários confluem numa harmonia, invisível, é verdade, ao
olhar humano comum, mas inteligível para quem, como Heráclito, se assemelha ao
deus contemplativo. Perante o seu olhar de fogo, não subsiste nenhuma gota de
injustiça no mundo derramado em seu redor; e chega mesmo a superar, mediante
uma comparação sublime, a dificuldade principal em explicar como é possível que
o fogo puro possa assumir formas tão impuras.
Neste mundo, só o jogo do artista
e da criança tem um vir à existência e um perecer, um construir e um destruir
sem qualquer imputação moral em inocência eternamente igual. E, assim como brincam
o artista e a criança, assim brinca também o fogo eternamente ativo, constrói e
destrói com inocência - e esse jogo joga-o o Eão consigo mesmo.
Transformando-se em água e em terra, junta, como uma criança, montinhos de
areia à beira-mar, constrói e derruba: de vez em quando, recomeça o jogo.
Um
instante de saciedade: depois, a necessidade apodera-se outra vez dele, tal
como a necessidade força o artista a criar. Não é a perversidade, mas o impulso
do jogo sempre despertando de novo que chama outros mundos à vida. As vezes, a
criança lança fora o brinquedo: mas depressa recomeça a brincar com uma
disposição inocente. Mas, logo que constrói, liga e junta as formas segundo uma
lei e em conformidade com uma ordem intrínseca.
Ao mundo só assim o contempla o homem estético, que divisou no artista e na
gênese da obra de arte como o conflito da multiplicidade que pode, no .entanto,
ter em si uma lei e um direito, como o artista se coloca meditativamente acima
da sua obra e nela está quando trabalha, como a necessidade e o jogo, o
conflito e a harmonia se jungem constantemente para gerar a obra de arte.
Quem irá exigir ainda de uma tal filosofia uma ética com os imperativos
constrangedores do "tu deves", ou quem acusará Heráclito de dela
carecer? O homem é, até à sua última fibra, necessidade, é absolutamente
"não-livre" - quando se entende por liberdade a pretensão estúpida de
poder mudar arbitrariamente a sua essentia como se fora um vestido,
pretensão esta que, até agora, todas as filosofias sérias rejeitaram com o
desprezo merecido. Se é tão pequeno o número de homens que vivem
conscientemente no jogos e em conformidade com o olho do Artista que
tudo domina, é porque as suas almas são úmidas e porque os olhos, os ouvidos e,
sobretudo, o intelecto dos homens são más testemunhas, quando "lama úmida
se apodera das suas almas". Não se pergunta porque razão assim é, como
também não se pergunta porque é que o fogo transforma em terra e em água.
Heráclito não tem razão alguma para se sentir obrigado a provar (como
Leibniz) que este mundo é o melhor de todos; basta-lhe que seja o jogo belo e
inocente do Eão.
Em geral, até considera o homem um ser irracional; isto não
impede que em todo o seu ser se cumpra a lei da Razão soberana. Ele nem sequer
tem um lugar privilegiado na natureza, cuja manifestação máxima é o fogo, por
exemplo, como astro, mas não o homem tolo. Se este, mediante a necessidade,
recebeu alguma parte no fogo, já é um pouco mais razoável; na. medida em que
consiste em água e em terra, dificilmente participa da sua razão. Nada o
obriga, pelo fato de ser. homem, a conhecer o jogos. Mas, porque é que
há água, porque é que há terra? Eis um problema que é bastante mais sério para
Heráclito do que perguntar porque é que os homens são tão estúpidos e tão maus.
Tanto no homem superior como no mais medíocre se revela a mesma conformidade
imanente à lei, a mesma justiça. Mas, se se quisesse perguntar a Heráclito:
"Porque é que o fogo não é sempre fogo, porque é que agora é água e logo
terra?", este responderia simplesmente: "É um jogo, não se aborda
pateticamente e, sobretudo, de um modo moral !"
Heráclito só descreve o
mundo que existe e acha nele o mesmo prazer contemplativo com que o artista
olha para a sua obra em vias de realização. Só os que não se dão por
satisfeitos com a sua descrição natural do homem é que o acham triste,
melancólico, choroso, sombrio, bilioso, pessimista e, numa só palavra, odioso.
Mas esses homens, assim como as suas antipatias e simpatias, o seu ódio e o seu
amor, tê-lo-iam deixado indiferente, e ele tê-las-ia servido com algumas
verdades deste tipo: "Os cães ladram aos desconhecidos", ou "O
burro prefere a palha ao ouro".
Também é desses descontentes que provêm as numerosas queixas acerca da
obscuridade do estilo de Heráclito: é provável que jamais um homem, em tempo
algum, tenha escrito de um modo mais claro e mais luminoso.
É verdade
que se
trata de um estilo muito lacônico e,
por isso, obscuro para leitores
muito
apressados.
Mas é completamente inexplicável que um filósofo escrevesse de
propósito com pouca clareza - acusação que se costuma fazer a Heráclito -, a
não ser que tivesse razões para esconder os seus pensamentos, ou que fosse
suficientemente tratante para dissimular em palavras o vazio do seu pensamento.
É preciso evitar cuidadosamente, mediante a clareza, como diz Schopenhauer,
mesmo nas circunstâncias normais da vida prática, mal-entendidos possíveis;
como é que alguém deveria poder exprimir-se de maneira pouco precisa, e até
enigmática, ao tratar do objeto mais difícil, mais abstruso e menos acessível
ao pensamento, das tarefas da filosofia?
Mas Jean-Paul dá um bom conselho, no
tocante à brevidade: "Em geral, é bom que tudo o que seja grande - tudo o
que tenha sentido para grandes espíritos - se exprima em termos breves e
(portanto) obscuros, para que os espíritos medíocres antes vejam ai um
não-sentido do que o traduzam para a sua insipidez. Pois os espíritos vulgares
têm a habilidade repugnante de só verem, nas palavras mais profundas e mais
ricas, a sua própria opinião de todos os dias".
De resto, Heráclito não
escapou aos "espíritos medíocres"; já os Estóicos o interpretaram
superficialmente, rebaixando a sua percepção estética fundamental do jogo do
mundo para a consideração vulgar pelas conveniências do mundo, sobretudo pelas
vantagens dos homens; de maneira que a sua física, naquelas cabeças, se tornou
um otimismo grosseiro, com o constante convite dirigido a Pedro e a Paulo para
o "Plaudite amici!"
VIII
Heráclito era orgulhoso, e quando o orgulho entra num filósofo, então, é um
grande orgulho. A sua ação nunca o remete para um "público", para o
aplauso das massas e para o coro entusiasta dos seus contemporâneos. Seguir um
caminho solitário pertence à essência do filósofo. O seu dom é o mais raro e,
de certa maneira, o menos natural, excluindo e ameaçando todos os outros dons.
O muro da sua auto-suficiência deve ser de diamante, para não ser destruído nem
partido, porque tudo se movimenta contra ele. A sua viagem para a imortalidade
é mais penosa e mais contrariada do que qualquer outra; e, no entanto, ninguém
mais do que o filósofo pode estar seguro de nela alcançar o seu próprio fim -
porque só ele sabe permanecer nas asas abertas de todas as épocas.
O desprezo
pelo presente e pelo momentâneo é parte integrante da grande natureza
filosófica. Ele possui a verdade: a roda do tempo pode rodar para onde quiser,
nunca poderá subtrair-se à verdade. E importante saber se estes homens já
viveram. Nunca se poderia, por exemplo, imaginar um orgulho semelhante ao de
Heráclito como simples possibilidade. Parece que todo o esforço pelo
conhecimento está, por natureza, votado a nunca ser satisfeito nem
satisfatório. Por isso, ninguém, a não ser quem tenha sido ensinado pela
história, poderá acreditar numa tão régia auto-estima e convicção de ter sido o
único galanteador da verdade que teve êxito.
Homens assim vivem num sistema
solar próprio; e é aí que se devem procurar. Um Pitágoras, um Empédocles
tratavam-se a si mesmos com uma consideração sobre-humana, com um temor quase
religioso; mas o vínculo da compaixão, conexo com a fé profunda na metempsicose
e na unidade de todos os seres vivos, voltou a levá-los aos outros homens, à
sua salvação e redenção. Contudo, é só nas montanhas mais selvagens e mais
solitárias que se pode vislumbrar, com um arrepio, o sentimento da solidão que
invadia o habitante efésio do templo de Ártemis.
Dele não jorra nenhuma emoção
prepotente de compaixão, nenhuma ânsia de ajudar, de salvar e de remir. E um
astro sem atmosfera. O seu olhar ardente, voltado para dentro, vira-se, morto e
gélido, para fora, como se para somente uma aparência. A sua volta, diretamente
contra a fortaleza do seu orgulho, batem as vagas da loucura e da perversidade:
ele volta-lhes as costas, cheio de náusea. Mas até os homens que têm um coração
sensível evitam esta máscara, que parece feita de metal; num santuário isolado,
no meio de imagens de deuses e ao pé de uma arquitetura fria e de calma
sublimidade, um ser assim pode parecer mais compreensível.
Como homem entre
homens, Heráclito tem algo de inacreditável; e se é verdade que foi visto a
observar os jogos de crianças barulhentas, ao menos nessa altura reparou
naquilo que jamais alguém considerara numa ocasião dessas: o jogo da grande
criança universal, o jogo de Zeus. Ele não precisava dos homens, sem sequer
para o seu conhecimento; todas as informações que deles se podiam obter ao
interrogá-los e tudo o que os outros sábios antes dele tinham tentado pesquisar
não lhe interessavam. Falava com desprezo desses homens interrogadores,
colecionadores, em suma, "históricos". "Foi a mim mesmo que eu
procurei e investiguei", dizia ele de si próprio, com uma palavra com que
se designa a decifração de um oráculo: como se ele, e mais ninguém, fosse o
verdadeiro realizador e cumpridor do preceito de Delfos: "Conhece-te a ti
mesmo".
Mas considerou tudo o que extraiu desse oráculo como sabedoria imortal e digna
de ser eternamente interpretada, como tendo uma ação ilimitada no futuro
longínquo segundo o modelo dos discursos proféticos da Sibila. É suficiente
para a humanidade mais distante: desde que se aplique a interpretar, como se de
oráculos se tratasse, o que ele, como o deus de Delfos, "não diz nem
esconde". Embora a anuncie "sem um sorriso, sem ornato e sem bálsamo",
mas antes com uma "boca espumante", esta sabedoria deve chegar
ao milenário futuro. Pois o mundo precisa eternamente da verdade, precisa,
portanto, eternamente de Heráclito: embora ele não precise do mundo. Que lhe
importa a sua glória?
A glória dos "mortais em incessante fluxo
!", como ele brada com desdém. A sua glória importa aos homens, não a ele;
imortalidade da humanidade precisa dele, ele não precisa da imortalidade do
homem Heráclito. O que ele contemplou, a doutrina da lei no devir e do jogo na
necessidade, deve contemplar-se eternamente a partir de agora: foi ele quem
levantou a cortina deste espetáculo sublime.
IX
Enquanto em todas as palavras de Heráclito exprime-se a imponência e a
majestade da verdade, mas da verdade apreendida na intuição, não da verdade
galgada pela escada de corda da lógica; enquanto ele em um êxtase sibilino vê,
mas não espia, conhece mas não calcula, aparece ao lado seu contemporâneo
Parmênides, como um par; igualmente com o tipo de um profeta da verdade, mas
como que formado de gelo, não de fogo, vertendo em torno de si uma luz fria e
penetrante.
No fim
da sua vida, provavelmente, Parmênides teve um momento da mais pura
abstração, purificada de toda efetividade e completamente exangue; este momento
- não-grego como nenhum outro nos dois séculos da época trágica -, cujo produto
é a teoria do ser, foi para sua própria vida um ponto de demarcação que
a dividiu em dois períodos; este mesmo momento separa igualmente o pensamento
pré-socrático em duas metades, sendo que a primeira pode ser chamada
anaximândrica e a segunda parmenídica.
O primeiro e mais antigo período do
próprio filosofar de Parmênides ainda carrega igualmente a rubrica de
Anaximandro; este período produziu um sistema físico-filosófico efetivo como resposta
às perguntas de Anaximandro. Quando mais tarde ele foi acometido daquele
calafrio de abstrações glaciais e formulou a mais simples proposição referente
ao ser e ao não-ser, lá estava o seu próprio sistema, entre as muitas teorias
antigas que sua proposição reduzia a nada. Todavia, ele parece não ter perdido
toda a piedade paternal em relação à criança forte e bem formada de sua
juventude; e por isto diz:
"Verdadeiramente
existe apenas um caminho correto;
mas, querendo dirigir-se por outro caminho,
o único correto é o da minha antiga
opinião,
por seus bens e sua conseqüência".
Protegendo-se com essa
locução, deu ao seu antigo sistema físico um importante e extenso espaço
naquele grande poema sobre a natureza, o próprio poema que devia proclamar o
novo conhecimento como o único itinerário para a verdade. Esta consideração
paterna, exatamente quando através dela um erro poderia insinuar-se, é um resto
de sensibilidade humana numa natureza quase transformada em uma máquina de
pensar, inteiramente petrificada pela intransigência lógica.
Parmênides,
cujas relações pessoais com Anaximandro não me parecem inverossímeis, que não
apenas verossimilmente mas evidentemente teve na teoria de Anaximandro seu
ponto de partida, tinha as mesmas suspeitas em relação à perfeita separação
entre um mundo que apenas é e um mundo que apenas vem a ser, suspeita que
também Heráclito apreendera e que o conduzira à negação do ser. Ambos
procuravam uma saída, fora daquela oposição e separação de uma dupla ordem do
mundo.
Aquele salto no Indeterminado, no indeterminável, através do qual
Anaximandro escapara de uma vez por todas ao reino do vir-a-ser e de suas
qualidades empíricas dadas, não era fácil para duas cabeças tão independentes e
diferentes como as de Heráclito e Parmênides; eles primeiramente procuraram
andar tão longe quanto podiam e reservaram o salto para aquele lugar onde o pé
não encontra mais apoio e onde se precisa saltar para não cair.
Ambos viam
repetidamente aquele mesmo mundo que Anaximandro tão melancolicamente
condenara, explicando-o como o lugar do crime e simultaneamente da expiação
para a injustiça do vir-a-ser. Como já sabemos, em sua visão Heráclito
descobria que maravilhosa ordenação, regularidade e certeza manifestam-se em
todo vir-a-ser; daí concluía ele que o vir-a-ser não poderia ser injusto nem
criminoso.
Parmênides
teve uma visão completamente diferente; ele comparava as qualidades umas com as
outras e acreditava descobrir que elas não seriam todas idênticas, mas
precisavam ser ordenadas em duas classes. Por exemplo: ele comparou a luz e a
obscuridade e, assim, a segunda qualidade era manifestamente apenas a negação
da primeira; e assim ele diferenciava qualidades positivas e negativas,
esforçando-se seriamente por reencontrar e assinalar esta oposição fundamental
em todo o reino da natureza. Seu método era o seguinte: ele tomava alguns
opostos, por exemplo, leve e pesado, sutil e denso, ativo e passivo, e os
remetia àquela oposição modelo entre luz e obscuridade; o que correspondia à
luz era a qualidade positiva e o que correspondia à obscuridade, a qualidade
negativa.
Ele tomava por exemplo o pesado e o leve: o leve ficava ao lado da
luz, o pesado do lado obscuro; e assim o pesado valia para ele apenas como
negação do leve; este valendo como qualidade positiva. Neste método já se
revela uma aptidão ao procedimento lógico abstrato, resistente e fechado às
insinuações dos sentidos. O pesado parece oferecer-se insistentemente aos
sentidos como qualidade positiva, o que não detinha Parmênides em marcá-lo com
uma negação.
Da mesma forma ele indicava a terra em oposição ao fogo, o frio em
oposição ao quente, o denso em oposição ao sutil, o feminino em oposição ao
masculino, o passivo em oposição ao ativo, cada um apenas como negação do
outro; de tal maneira que, segundo sua visão, nosso mundo empírico cindia-se em
duas esferas separadas: naquela das qualidades positivas - com um caráter
luminoso, ígneo, quente, delgado, ativo, masculino - e naquela das qualidades
negativas.
As últimas exprimem propriamente apenas a falta, a ausência das
outras, das positivas; ele descrevia também a esfera onde faltavam as
qualidades positivas como obscura, terrestre, fria, pesada, espessa e em geral
com caracteres passivo-femininos. Ao invés das expressões "positivo"
e "negativo", ele tomava os rígidos termos "ser" e
"não-ser" e chegava com isso à tese, em contradição a Anaximandro,
que este nosso mundo contém algo de ser e sem dúvida também algo de não-ser.
Não se deve procurar o ser fora do mundo e como que acima do nosso horizonte;
deve-se buscá-lo diante de nós, em todo vir-a-ser está contido algo de ser e em
atividade.
Entretanto, restava para ele a tarefa de dar a resposta correta à pergunta:
"O que é o vir-a-ser?" E este era o momento em que ele precisava
saltar para não cair, ainda que, talvez, para tais naturezas como a de
Parmênides, todo salto equivalesse a uma queda. Enfim, caímos no nevoeiro, na
mística das qualitates occultae, talvez até mesmo na mitologia.
Parmênides
vê, como Heráclito, o vir-a-ser e o não-permanecer universais, mas apenas pode
interpretar um perecer de tal maneira que nele o não-ser precise ter uma culpa.
Pois como podia o ser ter a culpa do perecer!
Entretanto, o nascer precisa
igualmente realizar-se pelo auxílio do não-ser: pois o ser está sempre presente
e não poderia, por si mesmo, nascer nem explicar nenhum nascer.
Assim, tanto o
nascer como o perecer são produzidos pelas qualidades negativas. O fato de ter
um conteúdo o que nasce e perder um conteúdo o que perece, pressupõe que as
qualidades positivas - isto é, aquele - participem igualmente de ambos os
processos:
"Ao vir-a-ser é necessário
tanto o ser quanto o não ser;
se
eles agem conjuntamente,
então resulta um vir-a-ser".
Mas como
colaboram o positivo e o negativo? Eles não deviam ao contrário repelir-se
constantemente como contraditórios, fazendo assim todo vir-a-ser impossível?
Aqui, Parmênides lança mão de uma qualitas occulta, de uma mística
tendência dos contraditórios a aproximarem-se e atraírem-se, simbolizando
aquela oposição pelo nome de Afrodite, através da conhecida relação mútua e
empírica entre masculino e feminino. O poder de Afrodite é ligar os
contraditórios, o ser e o não-ser. Um desejo une os elementos que conflituam e
se odeiam: o resultado é um vir-a-ser. Quando o desejo está satisfeito, o ódio
e o conflito interno impulsionam novamente o ser e o não-ser à separação - e
então o homem fala: "A coisa perece".
X
Mas
ninguém se engana impunemente com abstrações tão terríveis como são o ser e o
não-ser. O sangue se coagula pouco a pouco quando se toca nelas. Houve um dia
em que Parmênides teve uma estranha idéia, que parecia invalidar todas as suas
combinações anteriores, de forma que ele tinha prazer de jogá-las de lado como
se joga um saco de moedas sem valor. Supõe-se habitualmente que na invenção
daquele dia teve influência não apenas a conseqüência interna de tais conceitos
como ser e não-ser mas também uma impressão externa, o conhecimento da teologia
do velho e errante rapsodo, cantor de uma mística divinização da natureza,
Xenófanes de Colofão.
Xenófanes vivia uma vida extraordinária como poeta nômade e tornou-se, através
de suas viagens, um homem muito instruído e muito instrutivo, que sabia
interrogar e narrar; por isso Heráclito o contava entre os poli-historiadores e
em geral entre as naturezas "históricas" no sentido mencionado. De
onde e quando lhe veio o impulso místico ao Uno e eternamente Imóvel, ninguém
pode verificar; ela é talvez a concepção de um homem que finalmente se tomou
velho e sedentário, que após o movimento de sua odisséia e após um aprender e
investigar infatigáveis concebe o maior e o supremo na visão de um repouso
divino, na permanência de todas as coisas e uma paz panteística originária.
No
restante, parece-me puramente casual que, exatamente no mesmo lugar, em Eléia,
conviviam dois homens, cada um trazendo na cabeça uma concepção da Unidade;
eles não formam nenhuma escola e não têm nada em comum, nada que um pudesse ter
aprendido do outro e então ensinado. Pois a origem de concepção da Unidade é
num completamente diferente, mesmo oposta à do outro; e, se um tivesse
aprendido a teoria do outro, ele precisaria, apenas para entendê-la, traduzi-Ia
primeiramente em sua própria linguagem.
Em todo caso, nesta tradução se
perderia exatamente o específico da outra teoria. Se Parmênides chegava à
unidade do ser puramente através de uma suposta conseqüência lógica,
retirando-a dos conceitos de ser e não-ser, Xenófanes é um místico religioso e,
com aquela unidade mística, pertence com efeito ao VI século. Ele não era uma
personalidade tão transformadora como Pitágoras; mesmo assim, teve em suas
peregrinações sempre os mesmos impulsos e inclinações: curar, purificar e
melhorar os homens.
Ele é o moralista, mas ainda na categoria dos rapsodos; em
uma época posterior ele teria sido um sofista. Em sua ousada condenação dos
costumes vigentes ela não tem par na Grécia; por isso não se recolhia d~
maneira alguma à solidão, como Platão e Heráclito, mas colocava-se, não como um
Térsites discordante, exatamente diante daquele público que ele condenava com
cólera e ironia, pela sua admiração ruidosa por Homero, pela sua inclinação
apaixonada às honras dos festivais de ginástica, por sua adoração pelas pedras
com forma humana. Com ele a liberdade do indivíduo está no seu ponto mais alto;
e, nesta fuga quase sem limites de todas as convenções, ele está mais próximo
de Parmênides do que naquela suprema unidade divina que ele viu uma vez, em um
daqueles estados de visão dignos de seu século, que tem em comum com a visão do
ser de Parmênides apenas a expressão e a palavra mas não certamente a origem.
Foi antes
em um estado de espírito oposto que Parmênides encontrou as teoria do ser.
Naquele dia e nesse estado ele examinava aquelas oposições cooperantes cujo
desejo e ódio constituíam o mundo e o vir-a-ser, o ser e o não-ser, as
qualidades positivas e negativas; e então ele se prendeu repentinamente,
desconfiado, ao conceito de qualidade negativa, do não-ser. Algo que não é pode
ser um qualidade?
Ou, interrogado no plano dos princípios: algo que não é, pode
ser? Mas a única forma do conhecimento que nos oferece imediatamente uma
segurança incondicional e cuja negação iguala a loucura é a tautologia A = A.
Este mesmo conhecimento tautológico lhe dizia implacavelmente: "O que não
é, não é! O que é, é!" Repentinamente ele sentiu pesar sobre sua vida um
monstruoso pecado lógico; ele sempre havia suposto sem escrúpulo que existiam
qualidades negativas, nãoseres em geral, havia suposto que, formalmente
expresso, A = não A: o que somente a mais completa perversidade do pensamento
poderia formar.
Mas, vendo as coisas de perto, como ele mesmo percebeu, toda a
grande maioria dos homens julgava com a mesma perversidade; ele mesmo tinha
apenas tomado parte do crime geral contra a lógica. Mas o mesmo momento que o
acusa deste crime ilumina-o com a glória de uma descoberta: ele encontrou um
princípio, a chave para o mistério universal, separado de toda ilusão humana;
na firme e terrível mão da verdade tautológica sobre o ser, ele desce agora ao
abismo das coisas.
No caminho ele encontra Heráclito: um encontro infeliz! Para ele, que tinha
colocado tudo na mais rigorosa separação entre o ser e o não-ser, os jogos de
antinomias de Heráclito tinham que ser profundamente odiosos; proposições como:
"Nós simultaneamente somos e não somos"... "Ser e não-ser são e
não são os mesmos", proposições através das quais tudo o que ele tinha
destrinchado e esclarecido se tornaria novamente opaca e inexplicável,
levaram-no ao furor. "Fora com os homens que nada sabem e parecem ter duas
cabeças", gritava ele. "Junto deles está tudo, também seu pensamente,
em fluxo. Eles admiram as coisas perenemente mas precisam ser tão surdos quanto
cegos para misturarem assim os contrários!" A compreensão da massa,
glorificada através dos jogos de antinomias e exaltada como o cume de todo
conhecimento, era para ele uma vivência dolorosa e ininteligível.
Ele
mergulhava então no banho frio de suas terríveis abstrações. O que é verdadeiro
precisa estar no presente eterno, dele não pode ser dito "ele era",
"ele será". O ser não pode vir-a-ser: pois de que ele teria vindo? Do
não-ser? Mas o não-ser não é e não pode produzir nada. Do ser? Isto não seria
senão produzir-se a si mesmo. O mesmo acontece com o perecer; ele é igualmente
impossível, como o vir-a-ser, como toda mutação, como todo aumento, como toda
diminuição. É válida em geral a proposição: tudo do que pode ser dito
"foi" ou "será", não é; do ser, entretanto, nunca pode ser
dito "não é". O ser é indivisível, pois onde está a segunda potência
que devia dividi-lo? Ele é imóvel, pois para onde ele devia movimentar-se?
Ele
não pode ser nem infinitamente grande nem infinitamente pequeno, pois ele é acabado
e um infinito dado por acabado é uma contradição. Assim limitado, acabado,
imóvel, em equilíbrio, em todos os pontos igualmente perfeito como uma esfera,
ele paira, mas não em um espaço, pois caso contrário este espaço seria um
segundo ser. Mas não podem existir vários seres, pois para separá-los
precisaria haver algo que não fosse um ser: o que é uma suposição que se
suprime a si mesma. Assim, existe apenas a Unidade eterna.
Mas, se agora Parmênides voltava seu olhar ao mundo do vira-ser, cuja existência
ele antes tinha procurado compreender através de combinações tão engenhosas,
ele zangava-se com os seus olhos por verem o vir-a-ser e com seus ouvidos, por
ouvi-lo. Seu imperativo agora era: "Não siga os olhos estúpidos, não siga
o ouvido ruidoso ou a língua, mas examine tudo somente com a força do
pensamento". Com isto ele operava a primeira crítica do aparelho do
conhecimento, extremamente importante e funesta em suas conseqüências, se bem
que ainda muito insuficiente. Através disso ele repentinamente separou os
sentidos e a capacidade de pensar abstrações, a razão, como se fossem duas
faculdades inteiramente distintas, desintegrou o próprio intelecto e animou
aquela divisão completamente errônea entre corpo e espírito que, especialmente
desde Pia tão, pesa sobre a filosofia como uma maldição.
Todas as percepções
dos sentidos, pensa Parmênides, dão apenas ilusões; e sua ilusão fundamental é
simular que o não-ser é, que o vir-a-ser tem um ser. Toda aquela multiplicidade
e variedade do mundo conhecido pela experiência, a troca de suas qualidades, a
ordenação de seus altos e baixos, foram postas de lado impiedosamente como uma
ilusão e pura aparência; não há nada para aprender dela, está perdido todo
trabalho que se tem com este mundo mentiroso, nulo e alcançado através dos
sentidos. Quem pensa desta maneira, como o fez Parmênides, suprime a
possibilidade de ser um investigador da natureza; seu interesse pelo fenômeno
cai, forma-se um ódio em não poder livrar-se desta eterna fraude dos sentidos.
Agora a verdade apenas pode habitar nas mais desbotadas e pálidas
generalidades, nas caixas vazias das mais indeterminadas palavras, como num
castelo de teias de aranha; e ao lado de uma tal "verdade" senta-se o
filósofo, igualmente exangue como uma abstração, e luta enclausurado em
fórmulas.
A aranha quer o sangue de suas vítimas;
mas o filósofo parmenidiano
odeia
justamente o sangue de sua vítima,
o sangue da empiria por ele
sacrificada.
XI
E ele era
um grego, cujo "florescimento" é aproximadamente contemporâneo à eclosão
da revolução jônica. Era então possível a um grego fugir da profusa efetividade
como de um puro e impostor esquema da imaginação. Fugir, não, por exemplo, como
Pia tão, para o país das idéias eternas, para a oficina do artesão do mundo,
para passear os olhos nos protótipos imaculados, e inquebráveis das coisas -
mas para o rígido sossego da morte do mais frio e inexpressivo conceito, o ser.
Queremos guardar-nos de interpretar este fato notável segundo falsas analogias.
Aquela fuga não era uma fuga universal no sentido dos filósofos hindus, para
ela não era exigida a profunda convicção religiosa da perversidade,
mutabilidade e infelicidade da existência; aquela meta final, o repouso do ser,
não era aspirada como o mergulho místico em uma representação totalmente
satisfatória e encantadora que, para os homens comuns, é um enigma e um
escândalo.
O pensamento de Parmênides não traz em si nada do perfume sombrio e
embriagante dos hindus, perfume que talvez não seja totalmente imperceptível em
Pitágoras e Empédocles; o milagroso naquele fato, para aquele tempo, é antes o
inodoro, o incolor, o inanimado, o deformado, a falta total de sangue, de
religiosidade e de calor ético, o esquematismo abstrato - em um grego! O
milagroso é antes de tudo a terrível energia da aspiração à certeza em uma
época de pensamento místico, fantástico e sumamente móvel. A oração de
Parmênides é: "ó deuses, concedei-me apenas uma certeza! E que ela seja
uma tábua sobre o mar da incerteza, apenas larga o suficiente para permanecer
sobre ela. Tomai para vós tudo o que vem-a-ser, o que é exuberante,
multicolorido, florescente, enganador, excitante e vivo; e dai-me apenas a
única, pobre e vazia certeza".
Na filosofia de Parmênides preludia-se o tema da ontologia. A experiência não
lhe apresentava em nenhuma parte um ser tal como ele o pensava, mas, do fato
que podia pensá-lo, ele concluía que ele precisava existir: uma conclusão que
repousa sobre o pressuposto de que nós temos um órgão de conhecimento que vai à
essência das coisas e é independente da experiência.
Segundo Parmênides, o
elemento de nosso pensamento não está presente na intuição mas é trazido de
outra parte, de um mundo extra-sensível ao qual nós temos um acesso direto
através do pensamento.. Aristóteles já fizera valer, contra, todas as deduções
análogas, que a existência nunca pertence à essência, que o ser-aí nunca
pertence à essência das coisas.
Exatamente por isso não se pode, a partir do
conceito "ser" - cuja essentia é apenas o ser -, concluir uma existentía
do ser. A verdade lógica daquela oposição entre o ser e não-ser é
completamente vazia, se não pode ser dado o objeto subjacente, se não pode ser
dada a intuição através da qual esta oposição é deduzi da por abstração; sem
este retorno à intuição, ela é apenas um jogo com abstrações através do qual
nada é conhecido de fato. Pois o puro critério lógico da verdade, como Kant
ensina, isto é, a concordância de um conhecimento com as leis formais e gerais
do entendimento e da razão, é apenas o conditío sine qua non, portanto a
condição negativa de toda verdade: a lógica não pode ir mais longe nem
descobrir, através de nenhum procedimento, o erro que se refere não à forma mas
ao conteúdo.
Assim, quando se procura o conteúdo para a verdade lógica da
oposição: "O que é, é; o que não é, não é", não se encontra, de fato,
nem uma única efetividade que lhe seja rigorosamente conforme; de uma árvore eu
tanto posso dizer "ela é", em comparação com todas as coisas
restantes, como "ela vem a ser", em comparação com ela mesma num novo
momento do tempo, ou finalmente, também, "ela não é", "ela ainda
não é árvore", por exemplo, enquanto eu considerava o arbusto.
As palavras
são apenas símbolos das relações das coisas entre si e conosco, elas não fundam
em parte alguma a verdade absoluta; e a palavra "ser" indica apenas a
relação mais geral que liga todas as coisas, igualmente como a palavra
"não-ser". Mas, se a própria existência das coisas não é
demonstrável, então a relação das coisas entre si, o chamado "ser" e
"não-ser", não pode ajudar a aproximarmo-nos nem um passo do país da
verdade. Através de palavras e conceitos nós não chegamos jamais a penetrar a
muralha das relações, nem mesmo a algum fabuloso fundamento originário das
coisas; e mesmo nas puras formas da sensibilidade e do entendimento, no espaço,
no tempo e na causalidade, nós não ganhamos nada que se assemelhe a uma veritas
aeterna.
É incondicionalmente impossível, para o sujeito, querer conhecer e
ver algo acima de si mesmo; tão impossível que conhecimento e ser são, de todas
as esferas, as mais contraditórias. Se Parmênides, na ingenuidade ignorante da
crítica do intelecto de então, podia presumir chegar a um ser-em-si a partir de
um conceito eternamente subjetivo, hoje, depois de Kant, é uma ignorância
atrevida colocar aqui e ali, como tarefa da filosofia, particularmente junto
aos teólogos mal instruídos que querem brincar de filósofos, "apreender o
absoluto com a consciência", aproximadamente na forma:
"O absoluto já
está presente,
senão como ele poderia ser procurado?"
- como se exprimiu
Hegel.
Ou na direção de Beneke: "O ser precisa estar dado de alguma
maneira, ele precisa de alguma maneira estar acessível, sem o que nem mesmo o
conceito do ser poderíamos ter". O conceito do ser! Como se ele já não
mostrasse na etimologia a mais pobre origem empírica. Pois, no fundo, esse quer
dizer apenas respirar; e, quando o homem o emprega em relação a todas as
outras coisas, ele transfere a convicção que ele mesmo respira e vive às
coisas, através de uma metáfora, isto é, através de algo ilógico, compreendendo
a existência destas coisas como um respirar, segundo a analogia humana.
Logo,
confunde-se o significado original das palavras, permanecendo sempre o fato de
que o homem representa o ser-aí das outras coisas segundo a analogia com seu
próprio ser-aí, portanto, antropomorficamente, em todo o caso, através de uma
transposição ilógica. Mesmo para os homens, portanto, à parte aquela
transposição, a proposição "eu respiro, logo existe um ser" é
completamente insuficiente: pois contra ela pode ser feita a mesma objeção que
contra o ambulo ergo sum ou ergo est.
XII
O outro
conceito, de maior conteúdo que o do ser e igualmente já encontrado por
Parmênides, é o de Infinito, se bem que ainda não tão bem manejado como por seu
discípulo Zenão. Não pode existir nada de infinito acabado. O fato que nossa
efetividade, nosso mundo presente, traga em si o caráter daquele acabado,
significa segundo sua essência uma contradição contra o lógico, em conseqüência
contra o real, e é ilusão, mentira, fantasma. Zenão usava sobretudo um método
de demonstração indireta; ele dizia, por exemplo: "Não pode existir nenhum
movimento de um lugar para outro, pois, se existisse um tal movimento, estaria
dado um infinito acabado, o que é uma impossibilidade".
Na corrida,
Aquiles' não pode alcançar a tartaruga que tem uma pequena vantagem. Pois,
apenas para alcançar o ponto de onde a tartaruga partiu, ele já precisaria ter
percorrido uma inúmera quantidade de espaços, quantidade infinita;
primeiramente metade daquele espaço, depois a quarta parte, depois a oitava, a
décima sexta e assim ao infinito. Se ele de fato alcança a tartaruga, este é um
fenômeno ilógico, em todo o caso, não é nem uma verdade, nem uma realidade, nem
um ser verdadeiro, mas apenas uma ilusão. Pois nunca é possível terminar o
infinito. Uma outra forma popular de expressão desta teoria é a da flecha que
está em movimento e entretanto em repouso. Em cada momento de seu vôo ela ocupa
um lugar, neste lugar ela repousa. Seria a soma dos infinitos lugares de
repouso idêntica ao movimento?
Seria o repouso, repetido infinitamente, o
movimento, logo, seu próprio oposto? Aqui, o infinito é utilizado como o sol
vente da efetividade; junto a ele, ela se desfaz.
Todavia, se os conceitos são
rígidos, eternos e existentes - e ser e pensar coincidem para Parmênides -, se,
portanto, o infinito nunca pode estar acabado, se o repouso nunca pode
tornar-se movimento, então em verdade a flecha não voou; ela não saiu de seu
lugar e de seu repouso, não fluiu nenhum momento temporal. Ou, expresso de
outra maneira: não existe nesta chamada efetividade, nesta efetividade apenas
suposta, nem tempo nem espaço ou movimento. Finalmente a própria flecha é
apenas uma ilusão: pois ela descende da multiplicidade, da fantasmagoria do
não-uno produzida pelos sentidos.
Supondo que a flecha tivesse um ser
, então
ele seria imóvel, intemporal, rígido, eterno
e estaria fora de vir-a-ser uma
representação impossível!
Supondo que o movimento fosse realmente verdadeiro,
então não haveria repouso, logo não haveria nenhum lugar para a flecha, nenhum
espaço - uma representação impossível! Supondo que o tempo fosse real, então
ele não poderia ser infinitamente divisível; o tempo de que a flecha necessita
consistiria em um número limitado de momentos temporais, cada um destes
momentos precisaria ser um átomo - uma representação impossível!
Todas as
nossas representações, enquanto seu conteúdo empiricamente dado, seu conteúdo
extraído deste mundo intuitivo é suposto como veritas aeterna, conduzem-nos
à contradição. Se existe o movimento absoluto, então não existe nenhum espaço;
se existe o espaço absoluto, então não existe nenhuma multiplicidade; se existe
a multiplicidade absoluta, então não existe nenhuma unidade. Aqui deveria
ficar claro o quão pouco nós, com tais conceitos, tocamos o coração das coisas
ou desatamos os nós da realidade; e entretanto, ao invés disto, Parmênides e
Zenão fixam-se na verdade e validade universal dos conceitos, repudiam o mundo
intuitivo como o contrário dos conceitos verdadeiros e universalmente válidos,
como uma objetivação do que é ilógico e completamente contraditório.
Em todas
as suas demonstrações eles partem do pressuposto completamente indemonstrável,
mesmo inverossímil, segundo o qual nós temos naquela faculdade de conceitos o
mais alto e decisivo critério sobre o ser e o não-ser, isto é, sobre a
realidade objetiva; não se deve confirmar ou corrigir aqueles conceitos junto à
efetividade, como indubitavelmente derivados dela, mas, ao contrário, eles é
que devem dirigir e medir a efetividade e, em caso de uma contradição com o que
é lógico, condená-la. Para poder conceder-lhes esta competência diretora,
Parmênides precisava lhes conferir o mesmo ser do que ele em geral admitia como
o ser. Agora não era mais para serem tomados como dois modos diferentes do ser,
o pensamento e aquela esfera do ser perfeita e fora do vir-a-ser, pois não
podia existir nenhuma duplicidade.
Assim, tornou-se necessária a idéia
ousadíssima de explicar o pensamento e o ser como idênticos; aqui não podia vir
em auxílio nenhuma forma de visibilidade, nenhum símbolo, nenhuma metáfora; a
idéia era completamente irrepresentável mas era necessária; e ele até mesmo
festejava, nesta falta de toda possibilidade de representação, o maior triunfo
sobre o mundo e as exigências dos sentidos.
O pensamento e aquele ser nodular e
esférico, completamente morto e maciço, imóvel e imutável, precisavam, segundo
o imperativo de Parmênides e para o terror da imaginação, coincidir e ser
totalmente um e o mesmo. Esta identidade pode contradizer os sentidos!
Exatamente isto é a garantia de que ela não toma deles nada emprestado.
XIII
No
restante, poder-se-ia apresentar contra Parmênides poderosos argumentos ad
hominem ou ex-concessis, através dos quais não viria à luz a
verdade, mas sim a inverdade daquela separação entre mundo dos sentidos e mundo
dos conceitos e daquela identidade entre ser e pensar.
Primeiramente,
se é real o pensamento da razão por conceitos, então a multiplicidade e o
movimento também precisam ter realidade, pois o pensamento racional é móvel, é
em verdade um movimento entre conceitos, logo entre uma quantidade de
realidades.
Contra isso não existe nenhum subterfúgio,
é completamente
impossível qualificar o pensamento
como um rígido permanecer, como um eterno
e
imóvel pensar-se-a-si-mesmo da unidade.
Em
segundo lugar, se dos sentidos vem apenas engano e aparência, e se em verdade
existe apenas a identidade real entre ser e pensamento, então o que são os
próprios sentidos? De qualquer modo, eles certamente também são apenas
aparência, pois não coincidem com o pensamento e o seu produto, o mundo dos
sentidos, não coincide com o ser. "Mas se os próprios sentidos são
aparência, para quem eles o são? Como eles podem, como irreais, ainda iludir? O
não-ser pode enganar.
O problema de onde procede a ilusão
e a aparência
permanece um
enigma,
mesmo uma contradição.
Nós chamamos estes argumentos ad hominem: a
objeção da razão móvel e a objeção da origem da aparência. Do primeiro seguiria
a realidade do movimento e da multiplicidade; do segundo, a impossibilidade da
aparência parmenídica, supondo que a teoria fundamental de Parmênides, a teoria
sobre o ser, seja admitida como fundada. Esta teoria fundamental diz apenas que
somente o ser tem um ser e que o não-ser não é.
Mas, se o movimento é um tal
ser, então vale para ele o que vale para o ser em geral e em todos os casos:
ele está fora do vir-a-ser, é eterno, indestrutível, não é suscetível de
aumento nem de diminuição. Se a aparência deste mundo é negada com o auxílio
daquela pergunta pela origem da aparência, fica ao abrigo da condenação de
Parmênides o palco do chamado vir-a-ser, a mutação, nossa existência
incansavelmente multiforme, colorida e rica; então é necessário caracterizar
simultaneamente este mundo da alternância e da mutação como uma soma de tais
seres verdadeiros, essencialidades existentes em toda a eternidade.
Com esta
suposição não se pode falar naturalmente em uma mutação no sentido rigoroso, em
um vir-a-ser. Mas agora a multiplicidade tem um ser verdadeiro, todas as
qualidades têm um ser verdadeiro e o movimento não menos; e de cada momento
deste mundo, mesmo se estes momentos arbitrariamente escolhidos fossem
separados por milênios, precisaria ser dito: toda as essencialidades
verdadeiras presentes neles existem simultaneamente sem exceção, imutáveis,
irredutíveis, sem aumento, sem diminuição.
Um milênio mais tarde elas são as
mesmas, nada se transformou. A despeito disto, se o mundo parece uma vez
completamente diferente do que em outra, isto não é nenhuma ilusão, não é
nenhuma aparência, mas conseqüências do movimento eterno.
Os seres
verdadeiros são movimentados ora de uma maneira, ora de outra, ora um em
direção ao outro, ora em direções contrárias, ora para cima, ora para baixo,
ora juntos, ora confundidos.
XIV
Esta consideração já nos fez penetrar um pouco na doutrina de Anaxágoras. É
ele quem levanta com toda a força duas objeções contra Parmênides, uma acerca
da mobilidade do pensamento e outra acerca da origem da aparência. No entanto,
a proposição fundamental de Parmênides continua a subjugá-lo, como também a
todos os filósofos e, naturalmente, mais novos. Todos eles negam a
possibilidade do devir e do parecer, no sentido que lhe dá o vulgo e que Anaximandro
e Heráclito tinham admitido com mais profunda reflexão, embora ainda de maneira
irrefletida.
Esta gênese mitológica a partir do nada, esta dissolução no nada,
esta transformação arbitrária do nada em qualquer coisa, esta troca arbitrária,
este tirar ou revestir de qualidades, passou a ser absurdo: mas do mesmo modo e
pelas mesmas razões se considera absurda a gênese do múltiplo a partir do uno,
das qualidades múltiplas a partir de uma qualidade primordial, em suma, a
derivação do mundo de uma matéria originária, à maneira de Tales ou de
Heráclito.
Agora é que estava posto o verdadeiro problema de transpor para este
mundo presente a doutrina do ser alheia ao devir e imperecível, sem buscar um
refúgio na teoria da aparência e da ilusão dos sentidos. Mas se não se quer
admitir que o mundo empírico é uma aparência, se as coisas nem podem provir do
nada nem de um ser único, é preciso que estas mesmas coisas contenham um ser
verdadeiro, é preciso que o seu conteúdo seja absolutamente real, e toda a modificação
só se pode referir à forma, isto é, à posição, à ordem, ao agrupamento, à
mistura ou à dissociação dessas essencialidades eternas que existem
simultaneamente. É como no jogo de dados: os dados são sempre os mesmos, mas,
por caírem ora deste modo, ora daquele, significam para nÓs algo de diferente.
Todas as teorias anteriores remontavam a um elemento primordial, seio e causa
original do devir, fosse este a água, o ar, o fogo ou o indefinido de
Anaximandro. Anaxágoras, pelo contrário, afirma que o dissemelhante nunca pode
provir do semelhante e que a mudança nunca se poderá explicar a partir de um
ente. Imagine-se esta matéria em estado de rarefação ou em estado de
condensação, nunca se chegará a explicar por rarefação ou por condensação o que
se deseja explicar: a multiplicidade das qualidades. Mas, se o mundo está
efetivamente cheio das qualidades mais diversas, é necessário que essas
qualidades tenham, caso não sejam aparência, um ser, quer dizer, é preciso que
sejam eternas, que não provenham do devir, que não sejam perecíveis e existam
sempre simultaneamente.
Não podem ser uma aparência, pois a questão da origem
da aparência ainda se mantém sem resposta, mais: é respondida com um
"não". Os investigadores mais antigos tinham querido simplificar o
problema do devi r, com a admissão de uma única substância que trazia no seu
seio todas as possibilidades do devir.
Agora, pelo contrário, diz-se: há
inúmeras substâncias, mas nunca há mais, nem menos, nem novas. Há apenas o
movimento que as arremessa sempre de novo: mas que o movimento é uma verdade e
não uma aparência foi o que Anaxágoras demonstrou, contra Parmênides, pela
sucessão incontestável das nossas representações no pensamento. Pelo simples
fato de pensarmos e de termos representações, temos, pois, acesso imediato à
verdade do movimento e da sucessão. Eis, portanto, de qualquer modo, afastado o
ser rígido, imóvel e morto de Parmênides; há muitos seres, tão seguramente como
todos estes seres (existências, substâncias) estão em movimento.
A mudança é movimento
- mas de onde provém o movimento? Será que este movimento deixa totalmente
intacto o ser genuíno dessas numerosas substâncias, independentes e isoladas, e
não tem, necessariamente, de lhes ser estranho, de acordo com o conceito
mais rigoroso do ser? Ou será que, apesar de tudo, pertence às próprias coisas?
Chegamos a um ponto decisivo: conforme nos voltarmos, penetraremos no
território de Anaxágoras, de Empédocles ou de Demócrito.
É preciso colocar esta
grave questão: se há muitas substâncias e se todas elas se movem, o que é que
as move? Movem-se umas às outras? Ou só as move a força da gravidade? Ou há
forças mágicas de atração ou de repulsa nas prÓprias coisas? Ou será que a
ocasião do movimento reside fora destas numerosas substâncias reais? Ou, mais
precisamente, se duas coisas revelam uma sucessão, uma mudança recíproca de
situação, será que isso se deve a elas mesmas? E deve isso explicar-se de forma
mecânica ou mágica? Ou, se assim não acontece, é uma terceira força que as
move?
É um problema muito sério, porque, mesmo que admitisse a existência de
muitas substâncias, Parmênides teria podido sempre provar a impossibilidade do
movimento contra Anaxágoras. Podia, efetivamente, dizer: tomai dois seres que
existam em si, cada um com um. ser absolutamente diferente, autônomo e
incondicional- e as substâncias de Anaxágoras são deste tipo -: nunca podem
colidir, ou movimentar-se, ou atrair-se mutuamente; entre elas, não há
causalidade, não há ponte alguma, não se tocam, não se incomodam, não têm nada a
ver umas com as outras.
O choque seria tão inexplicável como a atração mágica;
seres que são absolutamente estranhos uns aos outros não podem exercer nenhum
tipo de ação entre si, portanto, também não se podem mover a si mesmos, nem
podem deixar-se movimentar. Parmênides teria mesmo acrescentado: a única saída
que vos resta é a atribuir o movimento às próprias coisas.
Mas, então, tudo o
que conheceis e vedes como movimento é unicamente uma ilusão e não é o
verdadeiro movimento, porque o único tipo de movimento que poderia atribuir-se
a essas substâncias absolutas e autônomas seria apenas um movimento espontâneo,
sem ação alguma. Ora, vós admitis o movimento justamente para explicar essas
ações da alteração, da deslocação no espaço, da mudança,em resumo, as
causalidades e as relações das coisas entre si. Mas seriam precisamente essas
ações que não se explicariam e que permaneceriam tão problemáticas como antes.
Também não se vê mais nenhuma razão para admitir a necessidade de um movimento,
uma vez que não produz o efeito que dele se espera. O movimento não pertence à
essência das coisas e é-lhes eternamente estranho.
Os adversários da unidade imóvel dos Eleatas foram levados a abandonar uma tal
argumentação mediante um preconceito oriundo do mundo sensível. Parece tão
irrefutável que todo o ser verdadeiro seja um corpo que ocupa espaço, um pedaço
de matéria, grande ou pequeno, mas que, em todo o caso, tem determinada
extensão no espaço, que dois ou mais desses fragmentos não podem estar no mesmo
espaço.
Sob este pressuposto, Anaxágoras, como mais tarde Demócrito, admitiu
que deviam tocar-se se, nos seus movimentos, eram postos em contacto uns com os
outros, e que lutariam pelo mesmo espaço e que esta luta seria causa de toda a
mudança. Por outras palavras: essas substâncias absolutamente isoladas,
totalmente diferentes e eternamente imutáveis não eram pensadas como
absolutamente heterogêneas, mas possuíam todas, além de uma qualidade
específica muito particular, um substrato absolutamente homogêneo, um fragmento
de matéria que enche o espaço.
Eram todas iguais no que diz respeito à
participação na matéria e podiam, por isso, agir umas sobre as outras, isto é,
tocar-se. De resto, toda a mudança não dependia de modo algum da
heterogeneidade dessas substâncias, mas da homogeneidade das mesmas enquanto
matéria. Encontra-se aqui um erro lógico nas hipóteses de Anaxágoras, pois, o
ser verdadeiro tem de ser absolutamente incondicionado e uno, nada pode
pressupor como sua causa; ao passo que todas as substâncias de Anaxágoras estão
ainda sujeitas a uma condição, a matéria, cuja existência já pressupõem.
A
substância "vermelho", por exemplo, não era, para Anaxágoras, apenas
o vermelho em si, mas, além disso, tacitamente, um fragmento de matéria sem
qualidade alguma. Só por meio desta matéria é que o "vermelho em si"
podia agir noutras substâncias, não através do vermelho, mas mediante o que não
é nem vermelho, nem colorido, nem qualitativamente definido. Se, falando
estritamente, o vermelho fosse tomado como vermelho, como a própria substância,
se fosse, portanto, privado desse substrato, Anaxágoras não teria certamente
ousado falar numa ação do vermelho sobre outras substâncias, ao dizer, por
exemplo, que o "vermelho em si" propaga por meio do choque o movimento
recebido do "carnal em si". Tornar-se-ia então claro que um tal ser
verdadeiro nunca poderia mover-se.
XV
É preciso olhar para os adversários dos Eleatas para fazer justiça às vantagens
extraordinárias que oferece a hipótese de Parmênides. Que dificuldades - a que
Parmênides se subtraíra - esperavam Anaxágoras e todos os que acreditavam na
multiplicidade das substâncias, na pergunta: "Quantas substâncias
há?" Anaxágoras deu o salto, fechou os olhos e disse: "Um número
infinito"; assim escapou à comprovação extremamente penosa de enumerar
determinado número de matérias primordiais. Como estas substâncias
infinitamente numerosas deviam existir há eternidades sem aumento e sem sem
modificação, esta suposição implicava a idéia contraditória de uma infinidade
fechada e realizada. Em resumo, a multiplicidade, o movimento, o infinito,
afugentados por Parmênides graças ao princípio admirável do ser uno, voltavam
do exílio e lançavam as suas flechas sobre os adversários de Parmênides, para
lhes fazerem feridas que não têm cura.
Estes adversários não tinham,
aparentemente, consciência clara da força terrível do pensamento dos Eleatas:
"Não pode haver nem tempo nem movimento nem espaço, porque só podemos
pensá-los como infinitos, quer dizer, infinitamente grandes, por um lado,
divisíveis até ao infinito, por outro; mas todo o infinito não tem ser, não
existe" - ninguém contesta esta idéia desde que tome a palavra
"ser" em sentido estrito e que considere impossível a existência de
algo de contraditório, por exemplo, a de uma infinidade levada a cabo. Mas, se
é justamente a realidade que nos apresenta tudo sob a forma de uma infinidade
realizada, torna-se evidente que ela se contradiz a si mesma, que portanto, não
tem realidade verdadeira. Mas se esses adversários quisessem levantar a
objeção:
"No vosso próprio pensamento, existe a sucessão, por conseguinte,
o vosso pensamento poderia não ser real e, deste modo, também nada poderia
demonstrar"
Parmênides teria talvez podido responder como Kant respondera
num caso semelhante, confrontado com a mesma acusação:
"Posso realmente
dizer que as minhas representações se sucedem, mas isso significa apenas que
tomamos consciência delas numa sucessão temporal, quer dizer, de acordo com a
forma que lhes dá o nosso sentido interno. Por isso, o tempo não é uma coisa em
si, nem uma determinação objetivamente ligada às coisas".
Seria, pois,
preciso distinguir entre o pensamento puro, que seria intemporal como o ser uno
de Parmênides, e a consciência deste pensamento. Esta consciência já traduziria
o pensamento na forma da aparência, portanto, da sucessão, da multiplicidade e
do movimento. É provável que Parmênides tivesse recorrido a esta solução. De
resto, seria preciso levantar contra ele a mesma objeção que A. Spir (Denken
und Wirklichkeit, 2.a ed., t. I, p. 209 ss.) levanta contra Kant:
"Em primeiro lugar, é claro que eu nada posso saber de uma sucessão em si,
se não tenho simultaneamente os seus elementos sucessivos na minha consciência.
A própria representação de uma sucessão nada tem de sucessivo, é, portanto,
completamente diferente da sucessão das nossas representações. Em segundo
lugar, a suposição de Kant implica absurdos tão evidentes que se fica
surpreendido por ele os não ter considerado. Segundo tal suposição, César e
Sócrates não estão verdadeiramente mortos, estão tão vivos como há dois mil
anos e parecem apenas estar mortos, como conseqüência da organização do meu
"sentido interno".
Os homens
que estão por nascer já vivem agora,
e
se ainda não aparecem como vivos,
isso também se deve a essa organização
do
"sentido interno".
Antes de mais, é preciso perguntar aqui: Como é
que o começo e o fim da vida consciente, com todos os seus sentidos externos e
internos, podem existir na concepção do sentido interno? Fato é justamente que
não se pode negar a realidade da mudança.
Se se deitar pela janela fora, volta
a entrar pelo buraco da fechadura. Diga-se: "Parece-me apenas que os
estados e as representações mudam" - esta aparência é algo que existe
objetivamente, e a sucessão tem nela uma realidade objetiva incontestável, aí a
sucessão existe realmente. - Além disso, é preciso advertir que toda a critica
da razão só se encontra fundamentada e legitimada sob o pressuposto de que as
nossas próprias representações nos aparecem como elas são. Pois, se as
representações nos aparecessem igualmente de maneira diferente do que realmente
são, também nada de válido se poderia afirmar acerca delas. Por conseguinte,
não se poderia elaborar uma teoria do conhecimento nem fazer uma investigação "transcendental"
que tivesse valor objetivo. Ora, é indubitável que as nossas próprias
representações nos aparecem em sucessão.
A consideração desta sucessão e deste movimento que, certamente, são
indubitáveis, levou Anaxágoras a uma hipótese memorável. Obviamente, as
representações movimentam-se a si mesmas, não eram empurradas e não tinham
nenhuma causa exterior do movimento. Por isso, existe, diz ele para si mesmo,
uma coisa que traz em si a origem e o começo do movimento; em segundo lugar,
ele observa que esta representação não só se movimenta a si mesma, como ainda
move uma coisa completamente diferente, o corpo. Descobre assim na experiência
mais imediata uma ação de representações sobre a matéria extensa, ação esta que
se apresenta como o movimento desta matéria. Para ele, isto era um fato, só
incidentalmente é que foi levado a também explicá-lo. Em suma, possuía um
esquema regulativo para o movimento no mundo que ele, na altura, concebia ou
como o movimento das essencialidades verdadeiras e isoladas pela faculdade
representativa, o Nous, ou como o movimento causado por alguma coisa que já se
encontrava em movimento.
Provavelmente, escapou-lhe que esta última espécie de
movimento, a transmissão mecânica de movimentos e de choques, também continha
em si um problema, em virtude das suas suposições básicas: a presença comum e
quotidiana do efeito por choque fez, sem dúvida, com que o seu olhar deixasse
de reagir ao caráter enigmático desse mesmo fenômeno. Em contrapartida, sentiu
muito a natureza problemática, e até contraditória, de uma ação das
representações sobre substâncias que existem por si mesmas e, por isso, também
tentou fazer remontar esta ação a um fenômeno mecânico de empurrões e de
choques que lhe pareceu explicável.
O Nous também era, em todo o caso,
uma
dessas substâncias dotadas de existência,
e foi por ele caracterizado como uma
matéria muito delicada,
revestida da qualidade específica de pensar.
Uma vez
admitido um tal caráter, a ação desta matéria sobre outra matéria devia, sem
dúvida, ser semelhante à ação de uma outra substância sobre uma terceira, quer
dizer, uma ação mecânica movimentada por pressão e por choque.
Pelo menos, ele
tinha agora uma substância que se move a si mesma e que move outras, cujo
movimento não vem de fora, nem depende de mais ninguém; a maneira de pensar
este movimento espontâneo parecia quase indiferente, podia ser qualquer coisa
como o movimento do vai e vem de pequenas bolinhas de mercúrio muito delicadas.
Entre todas as perguntas relativas ao movimento, não há nenhuma mais maçadora
do que a pergunta acerca da origem do movimento. Se realmente se podem pensar
todos os outros movimentos como conseqüências e efeitos, fica sempre por
explicar o primeiro e mais originário destes movimentos. Mas, numa seqüência de
movimentos mecânicos, o primeiro elemento da corrente não pode residir num
movimento mecânico, porque isso equivaleria a recorrer à idéia absurda
da causa sui.
Mas também não se pode atribuir às coisas eternas e
incondicionadas um movimento espontâneo que lhes seria dado com a existência,
por assim dizer desde a origem. Pois o movimento não pode representar-se sem
uma direção e uma tendência, portanto, só pode representar-se como relação e
condição. Mas uma' coisa deixa de ser existente em si e incondicional se, por
sua própria natureza, se refere necessariamente a algo que exista fora dela.
Foi nesta dificuldade que Anaxágoras julgou encontrar a ajuda e salvação no Nous
que se move a si mesmo e que é independente; a sua essência é
suficientemente obscura e velada para nos iludir acerca de que também a sua
admissão implica, no fundo, esta mesma causa sui interdita.
O pensamento
empírico chega mesmo a estipular que a representação não é uma causa sui, mas
uma ação do cérebro; para ela, deve constituir uma extravagância singular
separar da sua causa o "espírito", produto do cérebro, e
imaginar que ele ainda existe depois desta separação. Foi o que fez Anaxágoras;
esqueceu o cérebro, a sua virtuosidade surpreendente, a delicadeza e a
complexidade das suas circunvoluções e dos seus processos, e decretou a
existência do "espírito em si".
Este "espírito em si" tinha
arbítrio, de todas as substâncias era a única a ter iniciativa - descoberta
maravilhosa! Podia começar, em qualquer momento, a mover as coisas fora dele, ou
podia ocupar-se unicamente de si mesmo durante séculos; em resumo, Anaxágoras
admitiu um primeiro movimento na origem dos tempos como o ponto germinal
de tudo o que se designa por devir, isto é, de toda a mudança, de toda a
deslocação e de toda a revolução das substâncias eternas e das suas partículas.
Mesmo que o espírito seja em si eterno, não é de maneira alguma obrigado a
torturar-se há eternidades com a deslocação dos grãos de matéria; e, em todo o
caso, houve um tempo e um estado dessas partículas de matéria - importa pouco
que a duração fosse curta ou longa -, em que o Nous ainda não agira
nelas, em que ainda eram imóveis. É esse o período do caos de Anaxágoras.
XVI
O caso de Anaxágoras não é uma concepção de evidência imediata; para a captar,
é preciso ter compreendido a idéia que o nosso filósofo concebeu do que se
chama "devir". Pois o estado de todas as existências elementares
heterogêneas antes de todo o movimento não produziria necessariamente uma
mistura absoluta de todas as "sementes das coisas", como reza a
expressão de Anaxágoras, uma mistura que ele imaginava como uma confusão total
de todas as coisas até às partes mais pequenas, depois de todas essas
existências elementares terem sido desfeitas como que em argamassa e reduzidas
a uma poeira de átomos, de maneira a poderem misturar-se umas com as outras
nesse caos, como num cadinho.
Poder-se-ia dizer que esta concepção do caos nada
tem de necessário; que seria suficiente admitir uma posição acidental qualquer
de todas essas existências, mas não uma divisão das mesmas até ao infinito.
Bastaria já uma justaposição irregular, seria desnecessária qualquer mistura e
impensável uma tão grande confusão.
Como é que Anaxágoras chegou a esta
representação difícil e complicada? Pela concepção que tinha do devir
empiricamente dado, como já foi referido. Começou por haurir da própria
experiência uma proposição extremamente surpreendente acerca do devir, e foi
esta proposição que acarretou como conseqüência a teoria do caos.
A observação dos processos do nascimento na natureza, e não a referência a um
sistema anterior, é que levou Anaxágoras à doutrina de que tudo nasce de
tudo: Esta era a convicção do naturalista, fundada numa indução múltipla,
no fundo, é certo, extremamente indigente. Ele demonstrou-o deste modo: se até
o contrário pode nascer do contrário, o preto, por exemplo, do branco, então,
tudo é possível; mas isso só acontece quando a neve branca se dissolve em água
preta. Explicava a nutrição do corpo pelo fato de os alimentos deverem conter
pequenas parcelas invisíveis de carne, de sangue ou de ossos, que se desagregam
na alimentação e se unem com o que lhes é análogo no corpo.
Mas se tudo pode
nascer de tudo, o que é sólido do que é líquido, o que é duro do que é mole, o
preto do branco, a carne do pão, é porque tudo deve estar contido em tudo.
Então, os nomes das coisas só exprimem a preponderância de uma substância sobre
as outras, que estão presentes em massas mais pequenas, por vezes
imperceptíveis. No ouro, isto é, no que se designa a potiore pelo nome
de "ouro", também deve haver prata, neve, pão e carne, mas em
componentes muito pequenas. O conjunto tem o nome da substância dominante, que
é o ouro.
Mas, como é possível
que uma substância predomine e encha uma coisa
com mais
massa do que as outras substâncias?
A experiência mostra que esta preponderância
só é produzida pouco a pouco pelo movimento; que a preponderância é o resultado
de um processo que normalmente designamos por devir. Pelo contrário, o fato de
tudo estar em tudo não é o resultado de um processo, mas antes o pressuposto de
todo o devir e de todo o movimento; é, portanto, anterior a todo o devir. Por
outras palavras: a empiria ensina que o semelhante se junta incessantemente ao
semelhante, por exemplo, pela nutrição; por isso, esses' elementos não se
encontravam lado a lado, nem estavam juntos desde a origem, mas separados.
Nos
processos empíricos que se oferecem aos nossos olhos, o semelhante é antes
sempre extraído do dissemelhante e movido para diante (por exemplo, na
nutrição, as partículas de carne a partir do pão); assim, a mistura das
substâncias diversas é a forma primitiva da constituição das coisas, e é
anterior no tempo a todo o devi r e a todo o movimento. Se, portanto, tudo o
que se chama devir é uma desagregação e pressupõe uma mistura, é preciso
perguntar pelo grau que essa mistura, essa confusão, deve ter tido na origem.
Embora o processo que é o movimento do semelhante para o semelhante, o devir,
dure já há um tempo incomensurável, reconhece-se, no entanto, que mesmo agora
todas as coisas contêm restos e sementes de todas as outras coisas, que estas
sementes aguardam a sua dissociação, e que aqui e ali se chegou à predominância
de uma delas; a mistura primogênita teve de ser total, isto é, uma mistura até
ao infinitamente pequeno, uma vez que é preciso um tempo infinito para desfazer
a mistura. Adere-se aqui firmemente à idéia de que tudo o que possui um ser
essencial é divisível até ao infinito, sem alguma vez perder a própria natureza
específica.
Segundo estes pressupostos, Anaxágoras imagina a existência primitiva do mundo
mais ou menos como uma massa poeirenta de pontos materiais infinitamente
pequenos, dos quais cada um é especificamente simples e possui apenas uma única
qualidade, mas de maneira a representar cada uma dessas qualidades específicas
num número infinito de pontos isolados. Aristóteles chamou homeomerias a esses
pontos, porque são as partes semelhantes entre si de um todo homogêneo às
próprias partes.
Mas seria um grande engano pôr em pé de igualdade a mistura
originária de todos esses pontos, das "sementes das coisas", e o
elemento primordial de Anaximandro: este último elemento, chamado
"Indefinido", é uma massa absolutamente homogênea e peculiar, ao
passo que o caos de Anaxágoras constitui um agregado de matérias diversas.
Acerca deste agregado de matérias pode dizer-se, sem dúvida, o que se dizia do
Indefinido de Anaximandro: foi o que fez Aristóteles; o agregado de matérias
não podia ser nem branco, nem cinzento, nem preto, nem de outra cor qualquer,
era insípido, inodoro e, no seu todo, não era determinado nem
quantitativamente, nem qualitativamente; é neste aspecto que o Indefinido de
Anaximandro e a mistura primordial de Anaxágoras são semelhantes.
Mas, à parte
esta semelhança negativa, distinguem-se de maneira positiva, na medida em que o
segundo é composto e o primeiro é uma unidade. Ao admitir o caos, Anaxágoras
tinha pelo menos esta vantagem em relação a Anaximandro: não precisava de
deduzir a multiplicidade a partir da unidade, nem o devir do ser.
Teve certamente de tolerar uma exceção na mistura universal das sementes: o Nous
não existia então e, mesmo agora, não está misturado com coisa alguma. Pois
se estivesse misturado com um único ente, teria de habitar, em infinitas
divisões, em todas as outras coisas. Esta exceção é extremamente contestável de
um ponto de vista lógico, sobretudo por estar dada a natureza material do Nous,
antes delineada; tem algo de mitológico e parece arbitrária mas, de acordo com
as premissas de Anaxágoras, era rigorosamente necessária. De resto, o espírito
é divisível até ao infinito como qualquer outra substância, só não é divisível
pelas outras substâncias, mas por si mesmo.
Quando se divide, dividindo-se e
aglomerando-se em massas uma vez grandes, outra vez pequenas, tem desde toda a
eternidade uma massa e uma qualidade invariáveis, e o que neste instante é
espírito no mundo inteiro, nos animais, nas plantas e nos homens, já o era há
um milhar de anos, sem aumento nem diminuição, embora repartido de outra
maneira. E quando ele alguma vez tinha uma relação com qualquer outra
substância, nunca se misturava nela, mas antes se apoderava voluntariamente
dela, movia-a e impelia-a como queria, em resumo, dominava-a.
O espírito, que é
o único a ter movimento próprio, também é o único a ter domínio no mundo e
demonstra-o pela movimentação dos grãos de substâncias. Mas para onde os move?
Ou será que este movimento é pensável sem direção, sem caminho? Será o espírito
tão caprichoso nos seus impulsos como quando dá ou não dá os seus impulsos? Em
suma, será que no movimento reina o acaso, isto é, a arbitrariedade cega? É
neste limite que entramos no santuário das concepções de Anaxágoras.
XVII
O que é que se devia fazer com a confusão caótica do estado originário antes de
todo o movimento para que dela surja, sem qualquer acrescentamento de
substâncias ou forças novas, o mundo presente com as órbitas regulares das
estrelas, as formas regulares das estações e das horas, a sua beleza múltipla e
a sua ordem, numa palavra, para que o caos se transformasse em cosmos? Isto só
poderia resultar do movimento, mas de um movimento determinado e ordenado de
maneira inteligente.
É esse movimento que é o meio de ação do Nous, o
seu fim consistiria em desligar completamente do agregado todas as partes
semelhantes, fim que ainda não foi atingido, porque a desordem e a mistura eram
infinitas na origem. Só se chegará a esse fim graças a um processo imenso;
nunca por ação de uma varinha de condão mitológica.
Se alguma vez, num momento
infinitamente longínquo, acontecer que todas as substâncias semelhantes sejam
reunidas e que as existências primordiais indivisas repousem lado a lado numa
ordem bela, quando cada partícula tiver reencontrado os seus companheiros e a
sua pátria, quando a grande paz suceder à grande dispersão e à grande divisão
das substâncias e quando já não houver fendas nem divisões, então, o Nous regressará
ao seu movimento espontâneo; não se encontrando já dividido, percorrerá o mundo
em massas uma vez grandes, outra vez pequenas, sob a forma de espírito vegetal
ou de espírito animal e instalar-se-á no interior de uma outra matéria.
A sua
tarefa, entretanto, ainda não está acabada: mas o modo de movimento, que o Nous
inventou para a realizar, ostenta uma adaptação maravilhosa aos seus fins,
pois tende a realizar cada vez melhor a sua tarefa; este movimento é uma
rotação contínua concêntrica, começou num ponto qualquer da mistura caótica,
percorre, na forma de uma pequena volta e por caminhos cada vez maiores, todo o
ser existente, extraindo de todas as coisas o semelhante, para o juntar ao seu
semelhante. Primeiramente, esta revolução rolante aproxima, na medida em que
avança, o espesso do espesso, o subtil do subtil, e também tudo o que é
sombrio, claro, úmido, seco do que 1hes é semelhante; mas, acima destas
rubricas gerais, ainda há duas mais vastas: o éter, isto é, tudo o que é
quente, claro, subtil, e o ar, ou seja, tudo o que é sombrio, frio, pesado,
compacto.
A separação das massas etéreas das aéreas produz como primeiro efeito
desta rotação, que se vai alargando, um efeito semelhante ao do turbilhão que
se gera em águas estagnadas: as partes pesadas são levadas para o centro e
comprimidas. Esse ciclone progressivo forma-se da mesma maneira no caos: na sua
parte exterior, forma-se de partículas etéreas, subtis, claras e, na sua parte
interior, de partículas nebulosas, pesadas, úmidas.
Na seqüência deste
processo, a água separa-se da massa etérea concentrada no interior e, depois,
separa-se a terra da água. Pela ação de um frio terrível, separam-se finalmente
as pedras da terra. Por outro lado, há fragmentos de pedras que, pela violência
da rotação, são arrancados de vez em quando à terra e projetados para a região
do éter ardente e claro. Aí, postos em brasa no elemento ardente e lançados na
rotação etérea, transformados no sol e nos astros, irradiam luz e iluminam e
reaquecem a terra sombria e fria. Toda esta concepção é de uma audácia e de uma
simplicidade admiráveis, e não se parece nada com a teleologia desajeitada e
antropomórfica que se associou tantas vezes ao nome de Anaxágoras.
O que faz a
grandeza e o orgulho dessa concepção é o fato de deduzir do ciclo em movimento
todo o cosmos do devir, ao passo que Parmênides considerava o ser verdadeiro
como uma esfera imóvel e morta. Desde que este ciclo se movimente e que role
graças à ação do Nous, a ordem, a regularidade e a beleza do mundo
torna-se a conseqüência natural deste primeiro impulso. Como é grande a
injustiça para com Anaxágoras, quando é censurado da sua abstenção sábia em
relação à teleologia, que se revela nesta concepção, e quando se fala do seu Nous
com desdém, como se fora um deus ex machina!Mas justamente porque
afastara tanto os fenômenos maravilhosos de origem mitológica ou teísta como os
fins e as utilidades humanas, Anaxágoras teria podido pronunciar palavras tão
orgulhosas como as que Kant usou na sua história natural do céu.
Pois é um
pensamento sublime fazer remontar o esplendor do cosmos e a precisão maravilhosa
das órbitas das estrelas a um simples movimento puramente mecânico e também a
uma figura matemática animada; por conseguinte, não remontam às intenções nem à
intervenção manual de um deus mecânico, mas simplesmente a um modo de vibração
que, uma vez desencadeado, prossegue de maneira necessária e determinada e
obtém efeitos que se parecem com os dos cálculos mais sábios da inteligência e
do sentido prático mais refletido, sendo, no entanto, completamente diferentes.
"Saboreio o prazer", dizia Kant, "de ver nascer um todo bem
ordenado, sem a ajuda de ficções arbitrárias, em virtude de leis do movimento
estabelecidas, todo que se parece tanto com o nosso universo que não posso
deixar de acreditar que se trate do mesmo. Parece-me que se poderia aqui dizer,
sem audácia presunçosa: dai-me a matéria e construirei um mundo!"
XVIII
Supondo mesmo que se admite a mistura primitiva como corretamente deduzida
parece que, do ponto de vista mecânico, se levantam algumas objeções a este
grande esboço da estrutura do universo. Mesmo que o espírito produza um
movimento giratório num ponto, é muito difícil imaginar a continuação do mesmo,
sobretudo porque deve ser infinito e deve fazer girar, aos poucos e poucos,
todas as massas existentes. Supor-se-ia desde o princípio que a pressão de todo
o resto da matéria teria de esmagar este movimento giratório fraco: que isto
não aconteça pressupõe da parte do Nous motor que intervenha de repente
com uma força terrível, em todo o caso, suficientemente depressa para termos de
chamar turbilhão ao movimento. Demócrito também imaginara um turbilhão assim. E
como esse turbilhão tem de ser infinitamente forte para não ser entravado pelo
peso do universo infinito que o esmagaria, também tem de ser infinitamente
rápido, porque a força, originalmente, só pode manifestar-se na rapidez. Em
contrapartida, quanto mais se alargam os anéis concêntricos, tanto mais lento
será esse movimento.
Se o movimento pudesse alguma vez atingir o termo da
extensão universal infinita seria preciso que já tivesse uma rapidez de
vibração infinitamente pequena. Se, pelo contrário, imaginamos o movimento como
infinitamente grande, quer dizer, como infinitamente rápido, na origem do
movimento, também é preciso que o ciclo original tenha sido infinitamente
pequeno.
Deste modo, obtemos no princípio um ponto que gira sobre si mesmo, com
um conteúdo material infinitamente pequeno. Mas esse ponto não explicaria a
seqüência do movimento, poder-se-ia mesmo imaginar alguns pontos da massa primitiva
girando sobre si mesmos e deixando toda a massa imóvel e indiferenciada.
No
caso de, pelo contrário, esse ponto material infinitamente pequeno, apanhado e
impelido pelo Nous, não ser levado a girar sobre si mesmo, mas a fazer
um círculo periférico alargado, isso chegaria para tocar, movimentar, lançar,
fazer ressaltar outros pontos e a suscitar deste modo, aos poucos e poucos, um
tumulto em movimento, cujo primeiro resultado seria a separação das massas
aéreas das massas etéreas. Assim como a iniciativa do movimento é um ato
arbitrário do Nous, também o é o modo desta iniciativa, na medida em que
o primeiro movimento descreve um círculo, cujo raio é escolhido arbitrariamente
como maior do que um ponto.
XIX
Sem dúvida, poder-se-ia agora perguntar por que razão o Nous teve a
idéia súbita de atingir um ponto material arbitrariamente escolhido nesse
grande número de pontos para o fazer girar na dança agitada e por que razão não
lhe ocorreu esta idéia mais cedo. Anaxágoras responderia: "Ele tem o
privilégio do arbitrário, tem o direito da iniciativa, só depende de si mesmo,
ao passo que o resto é todo determinado a partir de fora. Não tem nenhuma
obrigação e, portanto; também não existe causa alguma que ele fosse obrigado a
defender. Se alguma vez desencadeou o movimento e se fixou um fim, isso não
passou de" - a resposta é difícil e Heráclito acrescentaria - "um
jogo".
Parece ter sido sempre esta a melhor solução ou a resposta última que os Gregos
tiveram nos lábios. Segundo Anaxágoras, o espírito é um artista, é o gênio mais
poderoso da mecânica e da arquitetura, que cria com os meios mais simples as
formas e os caminhos mais grandiosos e que também cria uma espécie de
arquitetura móvel, mas sempre em virtude dessa arbitrariedade irracional, que
jaz no fundo da natureza do artista. Parece que Anaxágoras aponta para Fídias e
que, face à obra de arte prodigiosa que é o cosmos, brada como se se
encontrasse perante o Partênon:
"O devir não é um fenômeno moral, é apenas
um fenômeno estético". Aristóteles narra que Anaxágoras respondera assim à
pergunta acerca do valor que a existência tinha para ele: "Que eu possa
contemplar o céu e a ordem do cosmos", Tratava as coisas físicas com a
mesma piedade e com o mesmo temor devoto que nós experimentamos perante um
templo antigo.
A sua doutrina tornou-se uma espécie de religião laica que se
protegia com o odi profanum vulgus el arceo e que escolhia prudentemente
os adeptos da melhore mais nobre sociedade de Atenas. No cenáculo fechado dos
anaxagoreanos de Atenas, a mitologia popular só era tolerada como uma linguagem
simbólica. Todos os mitos, todos os deuses, todos os heróis surgiam aí
unicamente como hieróglifos de uma interpretação da natureza, e mesmo a épica
homérica devia ser o hino canônico que cantava o poder do No"s e as
lutas e as leis da physis.
De vez .em quando, uma palavra vinda desta
sociedade de espíritos livres e sublimes chegava até ao povo. E, sobretudo, o
grande Empédocles, sempre audaz e ansioso por novidades, manifestava, através
da máscara trágica, coisas que penetravam como uma flecha no espírito das
massas e das quais só se libertavam mediante caricaturas burlescas e
interpretações ridículas.
Mas o maior dos anaxagoreanos, o homem mais poderoso e mais digno de todos é
Péricles, e é precisamente a seu respeito que Platão diz que só a filosofia de
Anaxágoras deu ao seu gênio uma dimensão sublime. Quando se apresentava em
público para falar ao povo, assemelhava-se, na sua beleza imóvel e rígida, a um
olímpico de mármore; e quando agora, sereno, envolvido no seu manto, sem
desfazer o pregueado, sem mudar a expressão do rosto, sem sorrir, sem mudar o
tom forte da voz, falava, certamente não à Demóstenes, mas como Péricles,
lançando raios e faíscas, aniquilando e redimindo, era então que parecia a
abreviatura do cosmos de Anaxágoras, a imagem do Nous que construiu para
si a casa mais bela e mais digna e também a encarnação visível da força
construtiva, motriz, analítica, ordenadora, sinóptica, artístico-indeterminada
do espírito.
O próprio Anaxágoras disse que o homem é já o ser mais racional,
ou que deveria trazer dentro de si o Nous em maior abundância do que
todos os outros seres, simplesmente por possuir órgãos tão admiráveis como as
mãos. Concluiu então que o Nous, de acordo com a extensão ou a massa em
que se apropria de um corpo material, constrói sempre nessa matéria
instrumentos que correspondem ao seu grau quantitativo, portanto, instrumentos
mais belos e mais bem adaptados ao seu fim quando ele aparece na maior
plenitude.
E como o ato mais maravilhoso e mais eficaz do Nous tinha de
ser o movimento primordial de rotação, uma vez que o espírito estava ainda
indiviso e concentrado em si mesmo, assim também o efeito da eloqüência de
Péricles devia parecer muitas vezes a Anaxágoras, que o escutava, o símbolo
desse movimento giratório primitivo. Pois também aqui sentiu primeiro um
turbilhão de pensamentos, que se movimentava com uma força terrível, mas com
ordem, que se apropriava aos poucos e poucos dos ouvintes próximos ou
longínquos, levando-os consigo e que, no fim do discurso, tinha transformado
todo o povo num todo organizado.
Os filósofos posteriores da Antiguidade acharam singular e quase imperdoável a
maneira de Anaxágoras usar o Nous para explicar o universo. Pareceu-lhes
que tinha descoberto um instrumento magnífico sem o ter compreendido bem, e
tentaram recuperar o que o inventor negligenciara. Mas não compreenderam o
sentido da resignação de Anaxágoras que, inspirado pelo mais puro espírito do
método das ciências naturais, pergunta em cada caso e em primeiro lugar pelo
"mediante o que" uma coisa é (causa efficiens) e não pelo
"porquê" da coisa (causa finalis). Anaxágoras não invocou o Nous
para responder à pergunta especial: porque razão há movimento e como é que
há movimentos regulares?
Mas
Platão acusa-o de não ter demonstrado o que deveria ter demonstrado, a saber:
que cada coisa se encontra, a seu modo e no seu lugar próprio, no estado mais
belo, melhor e mais conveniente possível.
Anaxágoras não teria ousado afirmar isto em
nenhum caso particular. Para ele, o mundo presente nem sequer era o mais
perfeito possível, porque via todas as coisas nascerem umas das outras, e a
separação das substâncias por meio do NO!4s não lhe parecia realizada
nem acabada, nem na extremidade ,do espaço material universal, nem nos seres
individuais.
A sua
capacidade de conhecer estava satisfeita por ter encontrado um movimento, cuja
simples duração pode criar uma ordem visível num caos totalmente misturado, e
ele bem se abstinha de perguntar pelo porquê do movimento, pela causa racional
do movimento. Pois se o Nous realmente tivesse um fim necessário por
essência a realizar através do movimento, já não estaria à vontade para começar
o movimento num momento qualquer. Na medida em que é eterno, também teria de
ter sido determinado eternamente por esse fim, e então não poderia ter existido
momento algum em que faltasse o movimento.
No plano lógico, seria mesmo
interdito pensar que o movimento tivesse tido um começo, o que também tornaria
logicamente impossível a idéia do caos original, fundamento de toda a
cosmologia de Anaxágoras. Para evitar as dificuldades criadas pela teleologia,
Anaxágoras teve de afirmar e de sublinhar sempre com energia que o espírito age
livremente. Todos os seus atos, mesmo o do movimento original, são atos do
"querer livre", ao passo que, por outro lado, todo o resto do mundo
se forma a partir do momento primitivo com uma determinação rigorosa, uma
determinação mecânica.
Mas esse querer absolutamente livre só pode pensar-se
como desligado de qualquer fim, à maneira de um jogo de crianças ou do jogo do
instinto artístico. É sem razão que se imputa a Anaxágoras a confusão habitual
dos teleólogos que, maravilhados com a utilidade extraordinária do mecanismo,
com a consonância das partes com o todo, nomeadamente no mundo orgânico, supõem
que o que existe para o intelecto também deve ter sido introduzido pelo
intelecto e que aquilo que eles só realizam com a ajuda de um conceito de
finalidade também teve de ser realizado pela natureza, por meio da reflexão e
de conceitos de finalidade (Schopenhauer, O Mundo como Vontade e
Representação) volume II, livro segundo, capítulo 26, a propósito da
teleologia).
Mas, no espírito de Anaxágoras, a ordem e a finalidade das coisas
são diretamente apenas o resultado de um movimento cego e mecânico. Anaxágoras
admitiu o Nous arbitrário, dependente apenas de si mesmo, só para poder
dar início ao movimento, para poder sair alguma vez do repouso mortal do caos.
Nele, apreciou precisamente a qualidade de ser indiscriminado, de poder,
portanto, agir de maneira absoluta, indeterminada, sem ter de obedecer a causas
ou a fins.
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LIVRO VI
PITÁGORAS
Os Mistérios de Delfos
Os Mistérios de Delfos
Conhece-te a ti mesmo
– e conhecerás o Universo e os Deuses.
Inscrição do templo de Delfos
O Sono, o Sonho e o Êxtase
são as três portas para o Além,
de onde nos vêm a ciência da alma
e a arte da adivinhação.
A Evolução é a lei da Vida.
O Número é a lei do Universo.
A Unidade é a lei de Deus.
V
A FAMÍLIA DE PITÁGORAS. A ESCOLA E SEUS DESTINOS
Entre as mulheres que seguiam o ensinamento do mestre, haviauma jovem de grande beleza. Seu pai, natural de Crotona, chamava-se
Brontinos; ela, Teano. Pitágoras aproximava-se então dos sessenta anos.
Mas o grande domínio sobre as paixões e uma vida pura, consagrada
inteiramente à sua missão, haviam conservado intacta sua força viril. A
juventude da alma, aquela chama imortal que o grande iniciado haure
em sua vida espiritual e alimenta mediante as forças ocultas da natureza,
brilhava nele e subjugava a todos os que o cercavam.
O mago grego não estava no declínio, mas no apogeu de sua potência. Teano foi atraída para Pitágoras pela irradiação quase sobrenatural que emanava de sua pessoa. Grave, reservada, ela procurara junto ao mestre a explicação dos
mistérios, que amava sem compreender. Mas, quando à luz da verdade,
ao doce calor que a envolvia pouco a pouco, ela sentiu sua alma
desabrochar do fundo de si mesma como a rosa mística de mil pétalas,
quando ela sentiu que essa eclosão vinha dele e de sua palavra,
apaixonou-se silenciosamente pelo mestre, com um entusiasmo sem
limites e com um amor ardente.
Pitágoras não tinha procurado atraí-la. Sua afeição pertencia a
todos os discípulos. Sonhava apenas com sua escola, com a Grécia e
com o futuro do mundo. Como muitos dos grandes adeptos, tinha
renunciado à mulher para entregar-se todo à sua obra. A magia de sua
vontade, a posse espiritual de tantas almas que ele formara e que a ele
permaneciam ligadas como a um pai adorado, o incenso místico de
todos esses amores inexprimidos que subiam até ele, e esse perfume
delicado de simpatia humana que unia os irmãos pitagóricos – tudo isto
substituía para ele a volúpia, a felicidade, o amor.
Um dia, meditava sozinho sobre o futuro de sua Escola, na cripta
de Proserpina. Viu então aproximar-se séria e resoluta, a bela virgem,
com quem jamais falara em particular. Ela ajoelhou-se diante dele e
abaixou a cabeça,suplicando ao mestre –a ele que tudo podia –que a
livrasse de um amor impossível e infeliz, que consumia seu corpo e
devorava sua alma. Pitágoras quis saber o nome daquele a quem ela
amava. Após longas hesitações, Teano confessou que era ele, mas que,
preparada para tudo, se submeteria à sua vontade. Pitágoras nada
respondeu. Encorajada por esse silêncio, ela ergueu a cabeça e lançoulhe
um olhar suplicante, de onde escapavam a seiva de uma vida e o
perfume de uma alma ofertada em holocausto ao mestre.(pag.310)
O sábio ficou abalado. Seus sentidos, ele sabia vencer, sua
imaginação, ele lançara por terra. Mas, o clarão daquela alma penetrara
a sua. Naquela virgem amadurecida pela paixão, transfigurada pelo
pensamento de um devotamento absoluto, ele tinha encontrado sua
companheira e entrevisto uma realização mais completa de sua obra.
Pitágoras fez a jovem levantar-se com um gesto comovido, e Teano
pôde ver nos olhos do mestre que seus destinos estavam para sempre
unidos.
Por seu casamento com Teano, Pitágoras apôs o selo da
realização à sua obra. A associação, a fusão das duas vidas foi
completa. Um dia perguntaram à esposa do mestre quanto tempo é
necessário a uma mulher para tornar-se pura após ter tido contato com
um homem. Ela respondeu: “Se for com seu marido, ela já está na
mesma hora; se for com um outro, não ficará jamais”. Muitas mulheres
argumentarão, sorrindo, que para dizer estas palavras é preciso ser
mulher de Pitágoras e amá-lo como Teano.
Elas têm razão.
Não é o casamento
que santifica o amor. É o amor
que justifica o casamento.
Teano
penetrou tão completamente no pensamento de seu marido que, após sua
morte, ela tornou-se o centro da ordem pitagórica, e é citada por um
autor grego como autorizada na doutrina dos Números. Ela deu a Pitágoras
dois filhos: Arimneste e Telauges, e uma filha: Damo. Telauges
tornou-se mais tarde o mestre de Empédocles e transmitiu-lhe os segredos
da doutrina.A família de Pitágoras foi para a ordem um verdadeiro modelo.
Chamaram sua casa de o templo de Ceres e seu pátio de o templo das
Musas. Nas festas domésticas e religiosas, a mãe dirigia o coro das
mulheres e Damo, o coro das jovens. Damo foi, em todos os pontos,
digna de seus pais. Pitágoras havia-lhe confiado alguns escritos, sob a
proibição expressa de mostrá-los a quem quer que fosse fora da família.
Depois da dispersão dos pitagóricos, Damo ficou em extrema pobreza.
Ofereceram-lhe então uma elevada quantia pelo precioso manuscrito.
Porém, fiel à vontade do pai, ela sempre recusou entregá-lo.
Pitágoras viveu trinta anos em Crotona.(pag.311)
Em vinte anos este homem admirável adquiriu um poder tal que aqueles que o chamavam de semideus não exageravam. Seu poder era um prodígio. Nenhum outro filósofo obteve algo semelhante. Sua influência não se fazia sentir somente na escola de Crotona e em suas ramificações nas outras cidades das costas italianas, mas também na política de todos esses pequenos estados.
Pitágoras era um reformador
em toda a acepção da palavra.
Crotona, a colônia aqueana, tinha uma constituição aristocrática. Oconselho dos mil, composto das grandes famílias, exercia o poder
Legislativo e supervisionava o poder Executivo. As assembléias
populares existiam, mas com poderes restritos. Pitágoras, que desejava
para o Estado ordem e harmonia, não gostava da opressão oligárquica
nem do caos da demagogia. Aceitando a constituição dórica, ele
procurou simplesmente introduzir nela uma nova organização. A idéia
era ousada: criar, acima do poder político, um poder científico, com voz
deliberativa e consultiva nas questões vitais, tornando-se a chave do
poder, o regulador supremo do Estado. Acima do conselho dos mil, ele
organizou o conselho dos trezentos, escolhidos pelo primeiro mas
recrutados só entre os iniciados. Eram agora em número suficiente para
a tarefa. Porfírio conta que dois mil cidadãos de Crotona renunciaram à
vida habitual e reuniram-se para viver em comunidade, com as mulheres
e os filhos, depois de terem entregue seu patrimônio ao grupo.
Pitágoras queria
pois à frente do Estado um governo científico
menos misterioso, mas também tão elevado
quanto o sacerdócio egípcio.
O
que ele realizou por um momento passou a ser o sonho de todos os
iniciados que se ocuparam de política: introduzir o princípio da
iniciação e do exame do governo do Estado, e reconciliar, nesta síntese
superior, o princípio eletivo ou democrático com um governo constituído
pela seleção dos inteligentes e virtuosos.(pag.312)O conselho dos trezentos formou, então, uma espécie de ordem política, científica e religiosa, da qual Pitágoras era o chefe reconhecido. O indivíduo
alistava-se nele mediante um juramento solene e terrível de sigilo
absoluto, como se fazia nos Mistérios. Essas sociedades ou hetairias
estenderam-se de Crotona, onde se achava a sociedade-mãe, até quase
todas as cidades da Magna-Grécia, exercendo uma poderosa ação
política. A ordem pitágorica tendia também a tornar-se a cabeça do
Estado em toda a Itália meridional. Tinha ramificações em Tarento,
Heracléia, Metaponto, Regium, Himero, Catânia, Agrigento, Síbaris e,
segundo Aristóxene, até entre os etruscos.
Quanto à influência de Pitágoras no governo destas grandes e ricas cidades, não se poderia imaginar nada de mais elevado, liberal e pacífico. Em toda a parte onde aparecia, ele restabelecia a ordem, a justiça, a concórdia. Chamado para junto de um tirano da Sicília, conseguiu, com sua eloqüência, que ele se decidisse a renunciar às riquezas mal adquiridas e abdicasse do poder usurpado. Quanto às cidades, ele as tornava livres e independentes,
depois de terem estado subjugadas umas às outras. Tão benéfica era sua
ação que, quando ele chegava nas cidades, diziam:
“Não é para ensinar, mas para curar”.
A influência soberana de um grande espírito e de um grandecaráter, essa magia de alma e de inteligência excita invejas tanto mais
terríveis, ódios tanto mais violentos, quanto mais ela for inatacável. O
império de Pitágoras durava já um quarto de século. E o adepto
infatigável atingia a idade dos noventa anos, quando veio a reação. A
fagulha partiu de Síbaris, a rival de Crotona. Houve lá um levante
popular e o partido aristocrático foi vencido. Quinhentos exilados
pediram asilo em Crotona mas os sibaritas exigiram sua extradição.
Temendo a cólera de uma cidade inimiga, os magistrados de Crotona
iam atender àquela exigência, quando Pitágoras interveio. A suas
instâncias, recusaram a entregar aqueles infelizes suplicantes aos
adversários implacáveis. Diante desta recusa, Síbaris declarou guerra a
Crotona. Mas a armada de Crotona, comandada por um discípulo de
Pitágoras, o célebre atleta Mílon, derrotou completamente os sibaritas.
Seguiu-se o desastre de Síbaris, A cidade foi tomada, saqueada,
completamente destruída e transformada em deserto. (pag.313)
É impossível admitir que Pitágoras aprovasse semelhantes
represálias. Elas violentam seus princípios e de todos os iniciados.
Contudo, nem ele nem Mílon puderam refrear as paixões desencadeadas
de um exército vitorioso, atiçadas por antigas invejas e superexcitadas
por um ataque injusto.
Toda vingança, seja de indivíduos, seja de povos, provoca um choque em resposta às paixões desencadeadas. A Nêmesis desta foi terrível. As conseqüências recaíram sobre Pitágoras, e toda a sua ordem.
Após a tomada de Síbaris, o povo pediu a divisão das terras. Não contente de tê-la obtido, o partido democrático propôs na constituição uma mudança que retirava do Conselho dos Mil seus privilégios e suprimia o Conselho dos Trezentos, só admitindo uma única autoridade: o sufrágio universal.
Naturalmente os pitagóricos que faziam parte do Conselho dos Mil opuseram-se a uma reforma contrária a seus princípios e que solapava pela base a paciente obra do mestre. Os pitagóricos já eram objeto daquele ódio surdo que o mistério e a superioridade sempre excitam na multidão. Sua atitude política sublevou contra eles os furores da demagogia, e um ódio pessoal contra o mestre causou a explosão.
Um certo Cílon tinha-se candidatado outrora à Escola. Pitágoras, bastante severo na admissão dos discípulos, recusou-o por causa de seu caráter violento e voluntarioso. O candidato recusado tornou-se um adversário rancoroso. Quando a opinião pública começou a voltar-se contra Pitágoras, aquele organizou um grupo de oposição aos pitagóricos, uma grande sociedade popular. Conseguiu atrair os principais líderes do povo e preparou nas assembléias uma revolução que começaria pela expulsão dos pitagóricos. Perante uma multidão agitada, Cílon sobe à tribuna popular e lê trechos extraídos do livro secreto de Pitágoras, intitulado: A Palavra Sagrada (hiéros logos). Os textos foram desfigurados e deturpados. Alguns oradores tentam
defender os irmãos do silêncio, que respeitam até os animais.(Pag.314)
Respondem-lhes com gargalhadas. Cílon sobe e torna a subir à tribuna,
procurando demonstrar que o catecismo religioso dos pitagóricos atenta
contra a liberdade.
“Dizer isto é pouco, acrescenta o tribuno. Quem é esse mestre,
esse pretenso semideus, ao qual se obedece cegamente e basta que dê
uma ordem para que todos os seus irmãos gritem: ‘O mestre disse!’ Não
é ele o tirano de Crotona e o pior dos tiranos, um tirano oculto?
De que é feita esta amizade indissolúvel que une todos os membros das
hetairias pitagóricas, senão de desdém e de desprezo pelo povo? Eles
repetem sempre as palavras de Homero, ou seja, que o príncipe deve ser
o pastor de seu povo. Para eles, então, o povo não passa de um vil rebanho. Sim, a própria existência da ordem é uma conspiração permanente contra os direitos populares. Enquanto ela não for destruída, não haverá liberdade em Crotona!”
Um dos membros da assembléia popular, animado por um sentimento de lealdade, gritou: “Que se permita, pelo menos, a Pitágoras e aos pitagóricos que se justifiquem perante nossa tribuna, antes de condená-los”. Mas Cílon respondeu com altivez: “Esses pitagóricos não vos roubaram o direito de julgar e decidir os negócios públicos? Com que direito eles solicitariam hoje serem ouvidos? Eles não vos consultaram quando vos despojaram do direito de exercer a justiça! Pois bem, chegou a vossa vez de atingi-los sem ouvi-los!”
Retumbaram aplausos em resposta a estas saídas veementes; os espíritos
se exaltavam cada vez mais.
Uma tarde, quando os quarenta principais membros da ordem estavam reunidos na casa de Mílon, o tribuno sublevou seus bandos. Cercaram a casa. Os pitagóricos, e o mestre entre eles, barricaram as portas. A multidão furiosa ateou fogo ao edifício. Trinta e oito pitagóricos, os primeiros discípulos do mestre, a nata da ordem, e o próprio Pitágoras pereceram; alguns nas chamas do incêndio, outros mortos pelo povo. Arquipo e Lísis foram os únicos que escaparam ao massacre (1)
Assim morreu aquele grande sábio, aquele homem divino, que tentara aplicar sua sabedoria ao governo dos homens. O assassinato dos pitagóricos foi o sinal para uma revolução democrática em Crotona e no golfo de Tarento.(pag.315
As cidades da Itália expulsaram os infelizes discípulos do mestre. A ordem foi dispersa, mas seus remanescentes espalharam-se pela Sicília e pela Grécia, semeando por toda parte a palavra do mestre. Lísis tornou-se o mestre de Epaminondas. Depois de novas revoluções, os pitagóricos puderam voltar à Itália, sob a condição de não mais constituírem um corpo político. Uma comovente fraternidade nunca deixou de uni-los; consideravam-se uma mesma e única família. Certo dia, um deles, na miséria e doente, foi recolhido por um estalajadeiro.
Antes de morrer, desenhou na porta da casa alguns sinais misteriosos e
disse ao hospedeiro: “Fica tranqüilo. Um de meus irmãos pagará minha
dívida”. Um ano depois, passando pelo mesmo albergue, um estrangeiro
viu os sinais e disse ao hospedeiro: “Eu sou pitagórico. Um de meus
irmãos morreu aqui. Dize-me o quanto devo por ele”. A ordem
sobreviveu durante duzentos e cinqüenta anos. Quanto às idéias, às
tradições do mestre, elas vivem até nossos dias.
A influência regeneradora de Pitágoras sobre a Grécia foi imensa,
exercendo-se misteriosa mas seguramente, em todos os templos por
onde ele passara. Vimo-lo em Delfos dar nova força à ciência
divinatória, reafirmar a autoridade dos sacerdotes e formar uma
pitonisa-modelo. Graças a essa reforma interior que despertou o
entusiasmo no próprio coração dos santuários e na alma dos iniciados,
Delfos tornou-se mais do que nunca o centro moral da Grécia. Isso se
comprovou durante as guerras médicas.
Trinta anos apenas tinham decorrido desde a morte de Pitágoras
quando o ciclone da Ásia, predito pelo sábio de Samos, veio estourar
sobre as costas da Hélade. Nessa luta épica da Europa contra a Ásia
bárbara, a Grécia, que representa a liberdade e a civilização, tem à sua
retaguarda a ciência e o gênio de Apolo. É ele que, com seu sopro
patriótico e religioso, agita e faz calar a rivalidade nascente entre
Esparta e Atenas. É ele que inspira os Milcíades e os Temístocles. Em
Maratona, o entusiasmo é tal que os atenienses acreditam ver dois
guerreiros, claros como a luz, combater em suas fileiras. Uns
reconheceram neles Teseu e Equetos; outros, Castor e Pólux. (pag.316)
Quando a invasão de Xerxes, dez vezes mais formidável do que a de Dario,
avança pelas Termópilas e submerge a Hélade, é a Pítia que, do alto de
seu tripé, indica a salvação para os enviados de Atenas e ajuda
Temístocles a vencer a batalha de Salamina. As páginas de Heródoto
tremem com sua palavra ofegante:
“Abandonai as residências e as altas
colinas da cidade construída em círculo..., o fogo e o temível Marte,
montado em um carro sírio, arruinarão vossas torres... os templos
vacilam, de seus muros goteja um frio suor, de seu topo corre um
sangue negro... Devereis sair de meu santuário. Um bosque vos servirá
de muralha e de inexpugnável proteção. Fugi! Voltai as costas aos
infantes e aos cavaleiros inumeráveis! Oh! divina Salamina! Serás
funesta aos filhos da mulher!” (2)
No texto de Ésquilo, a batalha começa por um grito que se
assemelha ao peã, o hino de Apoio:
“Logo o dia, com os corcéis brancos,
espalhou sobre o mundo sua resplandecente luz.
Nesse instante, um clamor imenso,
modulado como um cântico sagrado,
elevase nas fileiras dos gregos.
Os ecos da ilha respondem
com mil vozes vibrantes”.
É
de se admirar, portanto, que, inebriados pelo vinho da vitória, os
helenos, na batalha de Micália, em face da Ásia vencida, tenham
escolhido como brado de reunir as palavras: Hebe, a Eterna Juventude?
Sim, o sopro de Apoio atravessa essas extraordinárias guerras dos
medas.
O entusiasmo religioso,
que produz milagres domina
os vivos e os mortos, ilumina os troféus
e doura os túmulos.
Todos
os templos foram saqueados, mas o de Delfos ficou de pé. A armada
persa aproximava-se para espoliar a cidade santa. Todos tremiam. Porém oDeus solar disse pela voz do pontífice:
“Eu mesmo me defenderei!”
Por ordem do templo, a cidade é evacuada. Os habitantes serefugiam nas grutas do Parnaso e só os sacerdotes permanecem à
entrada do santuário, com a guarda sagrada. A armada persa entra na
cidade silenciosa como um túmulo. Somente as estátuas olham-na
passar. Uma nuvem negra acumula-se no fundo do precipício. O trovão
ribomba e o raio cai sobre os invasores. Duas enormes rochas rolam do
cume do Parnaso e esmagam grande número de persas. Ao mesmo
tempo, clamores eclodem do templo de Minerva, chamas brotam do
solo sob os passos dos assaltantes. Diante destes prodígios, os bárbaros
apavorados recuam. Sua armada foge enlouquecida. O próprio Deus se
defendera (3).
Teriam estas maravilhas ocorrido, estas vitórias que a humanidade
conta como suas, teriam elas ocorrido se trinta anos antes Pitágoras não
tivesse surgido no santuário délfico para ali reacender o fogo sagrado? É
pouco provável. (pag.317)
Uma palavra ainda
a respeito da influência do mestre
sobre a filosofia.
Antes dele, houve físicos de um lado, moralistas de outro.Pitágoras fez entrar a moral, a ciência e a religião em sua vasta síntese.
Esta síntese não é senão a doutrina esotérica, cuja plena luz procuramos
encontrar no fundo da iniciação pitagórica. O filósofo de Crotona não
foi o inventor, mas o organizador luminoso destas verdades primordiais
na ordem científica. Portanto, escolhemos seu sistema como o quadro
mais favorável para uma exposição completa da doutrina dos Mistérios
e de verdadeira teosofia.
Aqueles que seguiram o mestre conosco terão compreendido que,
no fundo dessa doutrina, brilha o sol da Verdade-Una. Encontram-se
seus raios espalhados nas filosofias e nas religiões, mas o centro está lá.
O que será preciso para alcançá-lo? A observação e o raciocínio não são
suficientes. Necessita-se ainda, e acima de tudo, da intuição. Pitágoras
foi um adepto, um iniciado de primeira ordem. Possuiu a visão direta do
espírito, a chave das ciências ocultas e do mundo espiritual. Ele foi buscar, pois, na fonte primeira da Verdade. E como a essas faculdades transcendentes da alma intelectual e espiritualizada ele acrescentava a observação minuciosa da natureza física e a classificação magistral das idéias por sua elevada razão, ninguém melhor do que ele estava preparado para construir o edifício da ciência do Cosmo.
Na verdade,
este edifício jamais foi destruído.
Platão,
que tomou a Pitágoras toda sua metafísica, teve dele uma idéia global,
embora a tivesse exposto com menos rigor e nitidez. A escola
alexandrina ocupou-lhe os pavimentos superiores. A ciência moderna tomou-lhe o rés-do-chão e consolidou-lhe os fundamentos. Numerosas escolas filosóficas, seitas místicas ou religiosas habitaram diversos de seus compartimentos. Mas nenhuma filosofia jamais abrangeu o seu conjunto. É este conjunto que nos propusemos reencontrar aqui, em sua
harmonia e unidade.(pag.318)
(1). Esta é a versão de Diógenes de Laércio sobre a morte de Pitágoras.
Segundo Dicearco, citado por Porfírio, o mestre teria escapado ao massacre
com Arquipo e Lísis. Mas teria caminhado de cidade em cidade, até
Metaponto, onde se deixou morrer de fome no templo das Musas. Os
habitantes de Metaponto pretendiam, ao contrário, que o sábio, acolhido por
eles, tinha morrido pacificamente em sua cidade. Mostraram a Cícero sua
casa, sua cadeira e seu túmulo. É de se notar que, muito tempo depois da
morte do mestre, as cidades que mais perseguiram Pitágoras, por ocasião da
reviravolta democrática, reclamaram a honra de tê-lo abrigado e salvado. As
cidades do golfo de Tarento disputavam as cinzas do filósofo com a mesma
obstinação com que as cidades da Jônia disputavam a honra de serem a cidade natal de Homero. Estes fatos são discutidos no minucioso livro de M.
Chaignet: Pythagore et Ia philosophie pythagoricienne.
(2). Na linguagem dos templos, o termo filhos da mulher designava o
grau inferior da iniciação. A mulher significava a natureza. Acima havia os
filhos do homem ou iniciados no Espírito e na Alma, os filhos dos Deuses ou
iniciados nas ciências cosmogônicas e os filhos de Deus ou iniciados da
ciência suprema. A Pítia chama os persas de filhos da mulher, designando-os
pelo caráter de sua religião. Tomadas ao pé da letra suas palavras não teriam
sentido.
(3). “Vê-se ainda no recinto de Minerva”, diz Heródoto, VIII, 39. – A
invasão gaulesa, que teve lugar 200 anos mais tarde, foi repelida de maneira
análoga. Lá também forma-se uma tempestade, o raio cai várias vezes sobre
os gauleses, o solo treme sob seus pés. Eles vêem aparições sobrenaturais.
E o templo de Apolo fica incólume. Estes fatos parecem provar que os sacerdotes de Delfos possuíam a ciência do fogo cósmico e sabiam utilizar a eletricidade por meio de poderes ocultos, como os magos caldeus. – Vide Amédée Thierry, Histoire des Gaulois, I, 246.
Arquivado
no curso
de Ciências Sociais na UFMG
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Os-Grandes-Iniciados-Edouard-Schure.pdf
Pablo Picasso
Li-Sol-30
FonteS:
http://www.ebah.com.br/content/ABAAAACkgAD/nietzsche-a-filosofia-na-epoca-tragica-dos-gregos
http://www.entreirmaos.net/wp-content/uploads/2011/10/Os-Grandes-Iniciados-Edouard-Schure.pdf
http://www.ebah.com.br/content/ABAAAACkgAD/nietzsche-a-filosofia-na-epoca-tragica-dos-gregos
http://www.entreirmaos.net/wp-content/uploads/2011/10/Os-Grandes-Iniciados-Edouard-Schure.pdf