sábado, 3 de julho de 2010

LIBERDADE E ESTÉTICA



BERGSON 


 Bergsonismo, psicologia e liberdade

Carolina Laurenti

CAMINHANDO PARA UMA CONCEPÇÃO BERGSONIANA DE LIBERDADE

O que é esse progresso dinâmico?

Onde podemos encontrar essa imagem que retrata um processo de constante que expressa a liberdade? Bergson (1927/1988) encontra as respostas no campo da estética, mais especificamente, na análise dos sentimentos profundos. Trataremos, aqui, em especial, do sentimento da graça. Podemos encontrar na descrição desse sentimento o exemplar de maior perfeição da experiência da liberdade. Na exposição do sentimento da graça, Bergson (1927/1988) inicia um processo de depuração , mostrando que o aprofundamento do sentimento estético não significa um acréscimo de uma quantidade, mas sim uma transformação de natureza. A descrição do sentimento do gracioso dá-se através da apresentação de figuras, que consistem nos momentos, irredutíveis uns aos outros, do processo de qualitativa.

Inicialmente temos a figura da "facilidade do movimento", que busca retratar a ruptura das expectativas da percepção: "o movimento não parece estabelecer a relação normal de trabalho como seu ambiente" (Prado Jr., 1989, p. 81).

O movimento, no contexto da e das relações sociais cotidianas, muitas vezes aparece na forma de esforço, de luta ou resistência às imposições da vida material e social. Em contraste, na experiência estética, ele ocorre sem oposição ou embaraço, o que lhe confere toda a leveza e delicadeza de um gesto figurando na dança. Prado Jr. elucida: "o sentimento da graça é, neste contexto, inicialmente, a interrupção da relação laboriosa com o mundo, suspensão imaginária do reino da necessidade e da inércia" (p. 82).

A transformação do sentimento da graça é representada em uma segunda figura, "a suspensão do tempo". Nesse momento, a facilidade do movimento é transmudada em "previsibilidade" do gesto futuro. O gesto presente anuncia em sua estrutura os contornos do gesto futuro. Esse prelúdio do gesto futuro no gesto presente é, ao mesmo tempo, a possibilidade de reter o futuro no presente3. A "previsibilidade" aparece como suspensão do tempo, assim, nessa situação, a experiência estética mostra-se como a experiência peculiar de uma temporalidade.

Finalmente, o sentimento da graça caminha para uma terceira figura, a "simpatia física", em que o ritmo se apresenta como o elemento central unificando sujeito e objeto, ou melhor, dissolvendo a dicotomia sujeito-objeto. A separação entre o eu e o outro desvanece, estabelecendo uma relação indissociável entre espetáculo e espectador, entre a visão e o visível: "o espectador não é apenas o beneficiário inessencial e intercambiável que recebe passivamente a "graça" do espetáculo da graça, é ele o dispensador último, é ele que suspende provisoriamente a legislação do mundo profano do trabalho da exterioridade" (Prado Jr., 1989, p. 84). A simpatia física traveste-se de simpatia moral ou "comoção", que revela a libertação última do movimento dos ditames da exterioridade. A descrição do sentimento da graça, mediante a apresentação das três figuras, pretende mostrar um processo de interiorização, que culmina na experiência da simpatia moral, no qual o "outro" torna-se "ele mesmo", ou ainda, "uma identificação interna do presente com aquele para quem há presença, iluminação interna do ser para ele mesmo" (Prado Jr., 1989, p. 103).

Podemos buscar uma formulação positiva da liberdade na própria descrição do sentimento da graça, que exibe o processo de interiorização em que se opera um retorno da consciência a si mesma. Em última análise, podemos dizer que encontramos no sentimento da graça o paradigma da experiência da liberdade: "a análise de todos os demais níveis da realidade psicológica reproduz o esquema esboçado pela descrição do sentimento da graça" (Prado Jr., 1989, p. 87). A descrição do sentimento da graça permite captar o ato em vias de se fazer. Ora, é justamente esta a concepção de liberdade para Bergson (1927/1988), "o acto livre é a relação do eu concreto com o ato em vias de se fazer" (p. 152).

Na experiência da liberdade temos a experiência do tempo como continuidade, em que cada momento anuncia o momento futuro como possibilidade, ou melhor, virtualidade4. Em outras palavras, cada momento contém a presença virtual, e não atual, da figura posterior. Com efeito, temos uma progressão, em que a última figura ( simpatia moral, por exemplo) vem unir-se com aquelas que a anunciaram. Assim, ainda que cada momento seguinte seja considerado irredutível ao anterior, ou seja, a figura "facilidade do movimento" difere da figura "suspensão do tempo", cada uma sugere a forma da posterior "como se ela fosse o seu sentido". A realização da forma virtual é a realização do sentido da figura precedente. Temos, então, uma qualitativa a cada figura que se realiza em um novo sentimento. Mas a diferença não é uma ruptura de sentido, pois os sentimentos caminham para uma significação primeira sem conhecê-la de antemão. Podemos dizer que cada parte contém (virtualmente) o todo, que é essa a significação primeira ( Prado Jr., 1989)5.


Assim, a exposição do sentimento da graça parece tornar explícito um processo de totalização: a experiência da suspensão do tempo não significa um aumento de amplitude da experiência de facilidade do movimento, ao contrário, é um aprofundamento da anterior culminando em uma experiência que se radicaliza, cuja figura final expressa a essência do sentimento. A descrição do sentimento da graça revela não uma seriação de estados de consciência como instantes pontuais exteriores uns aos outros, mas um progresso qualitativo: é, portanto, progresso na medida em que a significação inicial se enriquece, e é qualitativo na medida em que suas etapas são heterogêneas e acessíveis à consciência imediata sem qualquer recurso ao pensamento de estilo causal, que postula uma realidade em si como fonte e razão do processo ( Prado Jr., 1989, p. 85).

A descrição do sentimento da graça, ao revelar a gênese qualitativa dos momentos que figuram no sentimento do belo, oferece-nos, a um só tempo, uma concepção dinâmica de liberdade, pois capta o ato no tempo que decorre e não no tempo , ou seja, o ato em vias de se fazer, e não o ato já feito. Em outras palavras, a descrição do sentimento do gracioso permite pensar a liberdade em termos de duração, colocando o problema da liberdade mais em função do tempo do que do espaço.


 Fonte:
Bergsonismo, psicologia e liberdade
Carolina Laurenti
Mestre em Filosofia. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação
em Filosofia da Universidade Federal de São Carlos


Endereço para correspondência:
Carolina Laurenti
Rua Rogério Mastrofrancisco, 71
bairro Castelo Branco, CEP 13571-130
São Carlos-SP
E-mail: carolinapsicologia@hotmail.com

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200 ANOS DE CINISMO

200 anos de cinismo
Em Eclipse da moral, Sílvio Rosa Filho, professor da Unifesp, 
interpreta a visão de Hegel sobre o declínio da moralidade moderna
e o nascimento do cinismo contemporâneo a partir de inversões da moral kantiana

200 anos de cinismo

Por Fábio de Castro

Agência FAPESP – O discurso moral da modernidade entrou em declínio após a Revolução Francesa, ao passo que um tipo específico de cinismo começava a emergir no cenário literário e filosófico do mundo contemporâneo. Durante esse momento crítico de passagem da idade Moderna para a Contemporânea, o filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), no auge de sua maturidade intelectual, investigou o problema da moralidade na nova era, revelando como o nascimento do cínico teve lugar no ninho de contradições formado pelos postulados da moral kantiana.

Esse é o tema central do livro Eclipse da moral – Kant, Hegel e o nascimento do cinismo contemporâneo, de Sílvio Rosa Filho, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A obra, lançada em maio com apoio da FAPESP na modalidade Auxílio à Pesquisa – Publicações, é fruto de mais de 15 anos de trabalho.
De acordo com Sílvio Rosa, o livro procura organizar o repertório que torna possível reformular o debate sobre o problema da moralidade naquele período de transição. Entre 1807 e 1817, Hegel estudou intensamente o processo de declínio do discurso moral da modernidade e estabeleceu conexões entre a abstração moral kantiana e outras abstrações conjunturais, oferecendo um depoimento histórico e conceitual de sua época.

A ideia do livro surgiu durante a graduação de Sílvio Rosa na Universidade de São Paulo (USP), a partir de uma proposta do professor Paulo Arantes, que ministrava um curso sobre Hegel na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas (FFLCH). Mais tarde, em seu doutorado, orientado por Arantes, Sílvio Rosa consolidou a pesquisa procedendo, segundo os termos de Arantes, à "remontagem de um dos passos mais vertiginosos da dialética hegeliana". Essa interpretação do pensamento de Hegel permite entrever uma galeria conceitual de microfiguras cínicas que surgiram a partir de uma inversão da moral kantiana.

O livro é organizado em duas partes: “Transição ao novo tempo” e “Reviravoltas do discurso moral”. “A primeira parte consiste em uma abordagem histórica, que estuda a maneira pela qual Hegel consegue abarcar a transição do moderno ao contemporâneo, concluindo que o discurso moral tende à inocuidade. A partir daí, na segunda parte, tento mostrar como Hegel trata cada um dos três pontos de incidência de sua crítica à moral kantiana: ela é formal, inefetiva e contraditória”, disse Sílvio Rosa à Agência FAPESP.
Na primeira parte, Sílvio Rosa trata a transição aos novos tempos em quatro níveis. O primeiro é o nível das representações que flutuam na superfície da época, oscilam e se alternam: a representação nostálgica, a exaltada, a moderada e a romântica.

“Essa camada superficial, feita de ondulações, é seguida de três outras. A segunda diz respeito à maneira como Hegel concebe a abstração da economia. A terceira corresponde à abstração política e a quarta se refere à abstração cultural”, explicou.
Em relação à segunda camada, Sílvio Rosa acompanhou o testemunho oferecido por Hegel – desde sua juventude até os manuscritos de Heidelberg, em 1817 – sobre a mudança de patamar da abstração da economia.
“Ao ter contato com a economia política britânica, ele se deu conta de que havia um tipo de abstração muito peculiar à economia moderna, entendida como divisão do trabalho. Entendeu que se tratava de uma mudança de patamar, cujo avanço iria redundar na Revolução Industrial. Esse é um abalo sísmico que o pensamento hegeliano documenta e eleva ao plano conceitual”, disse.
Outro “abalo sísmico” teria sido responsável pela chegada da abstração ao poder político: a Revolução Francesa. “Um dos capítulos debate esse tema: Hegel, leitor de Kant, testemunha a Revolução Francesa e coloca em debate a chegada da liberdade absoluta no exercício do poder com o terrorismo de Estado”, disse.

A abstração no plano da cultura é discutida em torno da primeira literatura romântica alemã, que iria se politizar aceleradamente, formando uma frente de resistência à Revolução Francesa. Um grupo de 70 intelectuais que incluía poetas como August Schlegel (1767-1845) e Novalis (1772-1801) se converteria em 1815 ao catolicismo monarquista, apostando na restauração e na contrarrevolução. Enquanto isso, Hegel mostra uma espécie de fidelidade estrutural à revolução, apostando na reforma alemã, tendo como horizonte os valores oriundos da Revolução.

Moralidade em xeque
“Com isso se completa o quadro de transição para a contemporaneidade. A moldura para esse quadro seria a ideia de Kant, exposta na Crítica da razão prática, segundo a qual seria possível calcular a conduta do homem no futuro como quem calcula um eclipse, afirmando, entretanto, que o homem é livre. Dessa forma, o debate que está em jogo trata de calcular as determinações políticas, econômicas e culturais como se fosse um fenômeno físico e, apesar disso, tenta afirmar a liberdade humana, colocando assim sobre o homem a responsabilidade histórica e moral por seus atos”, explicou Sílvio Rosa.
A partir desse quadro, com os tempos modernos assim constituídos, com tal conjunto de abstrações e contradições, a crítica de Hegel identifica a inocuidade do discurso moral. Essa crítica, segundo o professor da Unifesp, tem três pontos de incidência. Em primeiro lugar o discurso moral é formal e vazio, enquanto os tempos modernos avançam como um colosso avassalador que toma conta do planeta.

“O segundo ponto de incidência é que, se o colosso avança dessa maneira, a política tende a se tornar tão inefetiva como Dom Quixote diante dos moinhos de vento. Em terceiro lugar, essa moralidade formal kantiana é um ninho de contradições. A segunda parte do livro é uma tentativa de mostrar como Hegel aborda cada um desses pontos de incidência: o formalismo, a inefetividade e a contradição”, explicou.
No ponto de incidência da contradição aparecem as nove microfiguras concebidas por Hegel na interpretação de Sílvio Rosa como inversões da moral kantiana.
“Hegel não diz que Kant inverte a moral, mas que há uma espécie de transformação da matéria-prima do discurso moral. A maneira pela qual a moral é lida e estimada é que dissolve a própria moral em reviravoltas que correspondem as essas microfiguras. É desse ‘álbum de microfiguras’ da moral invertida que vai nascer o cinismo contemporâneo”, disse.

Coleção de microfiguras
Três microfiguras se situam na região do primeiro postulado kantiano, que diz respeito ao arbítrio: se a lei moral for escolhida por falta de opção, deixa de ser moral. Essas microfiguras são o “ativismo supérfluo”, o “protelacionismo” e o “ascetismo provisório”.
“Quando a moral enfrenta a realidade efetiva do mundo, o ativismo se mostra supérfluo. Quando não se consegue realizar com o ativismo o que se poderia realizar moralmente, a estratégia é adiar a ação, daí o ‘protelacionismo’. A última microfigura soluciona seu compromisso com a moral se aproximando de uma das duas anteriores: ou assume que o fim-último não pode ser levado a termo, ou sustenta que a consciência moral deve ser ‘para si’”, disse Sílvio Rosa.

O segundo bloco de microfiguras corresponde ao segundo postulado da moral kantiana, relacionado à imortalidade da alma: o “perfeccionismo interior”, o “amoralismo exterior” e o “attentisme permanente”.
“O perfeccionista interior é aquele que foi derrotado na tentativa de realização da liberdade e passa a cultivar um aperfeiçoamento moral restrito a sua própria alma. Quem veste a máscara do amoralista exterior diz que não há muito o que fazer. A última máscara ou microfigura tem o nome derivado do verbo francês ‘attendre’, que, significando 'esperar', expressa uma atitude política. Trata-se de um ‘expectacionismo’: essa microfigura fica na expectativa que as coisas mudem por si sós”, explicou.
O terceiro postulado kantiano – que afirma a existência de Deus – é o campo das três últimas microfiguras: o “sagracionismo secular”, o “sincretismo inefetivo” e a “hipocrisia externada”.
“A primeira máscara corresponde a uma teologia vulgar tendendo ao conformismo: ‘o curso do mundo é esse, Deus fez assim’. O sincrético inefetivo é aquele que tenta recompor uma realidade moral que há muito foi estilhaçada. A última microfigura coroa todo esse desenvolvimento, refazendo todos os deslocamentos da moral por cada uma dessas máscaras. Vale lembrar que a própria palavra ‘hipócrita’ significa ‘ator’ e ‘mascarado’ em grego”, disse.

Nasce o novo cínico
Mas essa última microfigura, segundo Sílvrio Rosa, não é um hipócrita qualquer. O atributo que o acompanha é a exteriorização dessa hipocrisia.
“Trata-se, desta vez, de um hipócrita curioso, que não dissimula sua hipocrisia. Aqui, estamos no ninho de nascimento do cinismo. Vamos entender cinismo como aquilo que exerce, por assim dizer, um tipo de sinceridade indesejada na simulação. Em um primeiro momento, esse cinismo ainda repassa por todas essas máscaras: é o cinismo nascente, ou ingênuo. Depois, o cínico chega à sua maioridade e seu discurso transforma-se em uma espécie de estilo que transfigura suas contradições”, disse.
Sílvio Rosa destaca que a definição de cinismo para os monges medievais é a pessoa que diz a verdade para causar danos aos outros. “Essa é uma noção até certo ponto vulgar sobre o cinismo. Mas é próxima da visão de Hegel sobre o que ocorreu quando se completava a transição para os tempos modernos. O resultado é um mundo amoral”, apontou.

O autor conta ter estudado como Hegel se viu às voltas com essas nove microfiguras abstratas. Mas, de certa forma, não há lugar para elas no sistema hegeliano, que defende uma vida não moralista, mas ética. "Por outro lado, elas se prestam a aprimorar o uso do discurso em níveis distintos de elaboração: primeiro sob o modo da mimesis; em seguida, sob o do amaneiramento; por fim, sob o do estilo."

“A partir de 1817, Hegel começa a integrar essas personagens à filosofia do direito e elas se dissolvem no interior de seu sistema. Hegel absorve, assimila, dissolve e, de certa maneira, abandona essas microfiguras. Procurei estudar esse momento em que ele não tinha ainda a certeza de integrá-las ao seu sistema. Por outro lado, o livro toma distâncias da imagem habitual de Hegel – como autor de uma filosofia da liberdade e do progresso na história – para enxergar no filósofo uma testemunha histórica e conceitual de sua época”, disse Sílvio Rosa.

Fonte:Agência FAPESP
  • Título: Eclipse da moral – Kant, Hegel e o nascimento do cinismo contemporâneo
    Autor: Sílvio Rosa Filho
    Lançamento: 2010- Preço: R$ 46-Páginas: 682
    Mais informações: www.editorabarcarolla.com.br/releases/1201
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MEMÓRIA E INCONSCIENTE COLETIVO

Os caminhos da memória e o inconsciente coletivo 

Alessandra Garrido Sotero da Silva 

Doutoranda em Teoria Literária / UFRJ
 
A memória é um tema muito estudado por diversos ramos da ciência; entre eles, a psicologia, a sociologia, a medicina e a literatura. Neste capítulo, faremos um apanhado dos diversos pareceres sobre o tema, de maneira interdisciplinar, sempre tendo como eixo norteador a literatura. Logo, faremos uma trajetória do conceito de memória e suas implicações. 

Observa-se que a temática memória não é nova, pois segundo registros, desde a antiga Grécia já se tratava disso. A palavra “Memória” vem do grego Mnemosyne , que se tratava de uma deusa que presidia a função memorialística. O poço de Mnemosyne fazia os mortos, que dele bebiam, relembrar suas vidas, o oposto do poço de Lethe , que os fazia esquecer. Na tese de doutorado do professor doutor Antônio Jardim, Música, vigência do pensar poético, encontramos algumas reflexões sobre a etimologia desta palavra (1997: 152):
A palavra memória provém do grego que diz, mais imediatamente, ação de lembrar, o lembrar ele mesmo, aquilo que permanece no espírito /.../ pode-se entender memória como instância de inventar, meditar, refletir e velar, no sentido de cuidar, a unidade.
 
Na página 152, Jardim lembra que devido à concepção ontológica, a memória pode ser vista como “um fator constituidor da tentativa de imortalização”. Logo, podemos dizer que nessa primeira visão relatada a memória tem o sentido de “vir à tona” o que estava submerso no espírito, com o efeito de cuidar, imortalizar.
Henri Bergson (1859-1941), filósofo francês, escreveu um livro indispensável para quem se detém nos estudos sobre memória, Matéria e memória ( 1896). Como o próprio define no prefácio da 7 a edição, o livro “afirma a realidade do espírito, a realidade da matéria, e procura determinar a relação entre eles sobre um exemplo preciso, o da memória” (1999: 01).
A sua proposta de reflexão começa a partir da leitura do mundo através de imagens e a apreensão desse mundo através do corpo. Assim, Bergson acredita que a totalidade do universo jamais pode ser completamente decifrada pelo homem, pois o seu instrumento de raciocínio é uma parte dele, como se observa nesse trecho (1999: 13-14):
/.../ o cérebro é uma imagem, os estímulos transmitidos pelos nervos sensitivos e propagados no cérebro são imagens também/.../ é o cérebro que faz parte do mundo material, e não o mundo material que faz parte do cérebro/.../ Nem os nervos nem os centros nervosos podem, portanto condicionar a imagem do universo.
 
Tendo como ponto de partida essas considerações, nota-se que Bergson não compartilhava de algumas correntes intelectualistas da ciência da época, que criam que o homem poderia conhecer tudo através de sua capacidade intelectual, pois o cérebro é uma parte do mundo material também. Logo, a sua visão sobre a memória também foi revolucionária, já que afirmava a realidade do espírito, ou algo além da matéria. Sobre o tema, Bergson faz aproximações com a lembrança, distinguindo entre elas dois tipos (1999: 91): 

A lembrança espontânea é imediatamente perfeita, o tempo não poderá acrescentar nada à sua imagem sem desnaturá-la; ela conservará para a memória seu lugar e sua data. Ao contrário, a lembrança aprendida sairá do tempo à medida que a lição for melhor sabida; torna-se-á cada vez mais impessoal/.../ Das duas memórias que acabamos de distinguir, a primeira parece portanto ser efetivamente a memória por excelência/.../
 
Portanto, constata-se que Bergson acreditava na existência de uma memória pura, inalterável, que se contrapõe à lembrança- imagem e à percepção, ainda que nenhuma se produza isoladamente, como ele afirma e em seguida as define(1999: 155-6):
A percepção não é jamais um simples contato do espírito com o objeto presente; está inteiramente impregnada das lembranças-imagens que a completam, interpretando-a. A lembrança-imagem, por sua vez, participa da lembrança-pura que ela começa a materializar e da percepção na qual tende a se encarnar.
 
Ainda sobre a memória, o filósofo afirma que o papel do corpo não é armazenar lembranças, mas simplesmente escolher, para trazê-la à consciência distinta. Assim, cria na existência de uma reserva memorialista que reside no nosso espírito e que o corpo tem o poder de acessá-la nunca de maneira completa, mas fragmentada. 

Ecléa Bosi, em seu livro Memória e sociedade, parte de pressupostos bergsonianos para compor a sua obra. Através dessa autora, pode-se entender de maneira clara a teoria de Bergson, como na seguinte afirmação (1999: 14): “Antes de ser atualizada pela consciência, toda lembrança vive em estado latente, potencial/.../”. Depois, ela completa, dizendo que: “o papel da consciência, quando solicitada a deliberar, é, sobretudo o de colher e escolher/.../“. E, finalmente, ela faz uma aproximação ao que Bergson considerava a verdadeira memória, ou lembrança-pura à arte (1999: 11):
/.../ a lembrança-pura, quando se atualiza na imagem-lembrança, traz à tona na consciência um momento único, singular, não repetido, irreversível, da vida/.../ Sonho e poesia são, tantas vezes, feitos dessa matéria que estaria latente nas zonas profundas do psiquismo, a que Bergson não hesita de dar o nome de inconsciente.
 
Através dessa concepção que Ecléa pontua, pode-se afirmar que a arte, assim como o sonho, retoma essa memória considerada verdadeira por Bergson, inatingível na sua extensão. A literatura, portanto, seria uma das “chaves” que abre a “fechadura” desse mundo oculto que vive em nosso espírito.
Outra leitura contundente que Ecléa nos traz é a caracterização da memória como força espiritual, como se lê no trecho reproduzido (1999: 16):
A memória é, para o filósofo da intuição, uma força espiritual prévia a que se opõe a substância material, seu limite e obstáculo. A matéria seria, na verdade, a única fronteira que o espírito pode conhecer.
 
Podemos chegar, dessa forma, ao seguinte raciocínio: se a literatura é um acesso para a memória pura e a memória é por essência espiritual, sendo a matéria uma oposição a ela; a literatura é, de certa forma, uma chave a uma categoria do espírito, ou para quem preferir, ao inconsciente.
O sociólogo Halbwachs escreveu uma obra célebre, que colaborou enormemente para os estudos memorialísticos: A memória coletiva. Nele, o autor defende, como o título sugere, que a memória é um fato puramente social. Ecléa Bosi, em alguns trechos de Memória e sociedade, discute sobre a teoria deste sociólogo (1983: 17-18): 

Halbwachs não vai estudar a memória como tal, mas os quadros sociais da memória. Nessa linha de pesquisa, as relações a serem determinadas já não ficarão adstritas ao mundo da pessoa (relações ente o corpo e o espírito), mas perseguirão a realidade interpessoal das instituições sociais. A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, coma escola, coma Igreja, com a profissão/.../
 
O caráter livre, espontâneo, quase onírico da memória é, segundo Halbwachs, excepcional. Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se é assim, deve-se duvidar da sobrevivência do passado tal como foi, e que se daria no inconsciente de cada sujeito.
 
Halbwacs amarra a memória da pessoa à memória do grupo; e esta última a esfera maior da tradição, que é a memória coletiva de cada sociedade.
 
Observa-se, então, que para ele, a memória individual, como estudado por Bergson, é quase inexistente. Tudo aquilo de que nos lembramos e pensamos ser algo subjetivo, na verdade, é determinado socialmente. Logo, nossa memória é condicionada pela sociedade em que vivemos. 

No livro A memória coletiva, Halbwachs parte do pressuposto que o homem é acima de tudo um ser estritamente social, assim, a memória não poderia se excetuar a este condicionamento, como se lê nas seguintes afirmações:
/.../ só temos capacidade de nos lembrar quando nos colocamos no ponto de vista de um ou mais grupos e de nos situar novamente em uma ou mais corrente do pensamento coletivo /.../ É por isto que quando um homem entra em sua casa sem estar acompanhado de alguém, sem dúvida durante algum tempo esteve só, segundo a linguagem comum.Mas lá não esteve só senão na aparência, posto que, mesmo nesse intervalo, seus pensamentos e seus atos se explicam pela sua natureza de ser social, e que nenhum instante deixou de estar confinado dentro de alguma sociedade. (1990: 36-7)
 
É difícil encontrar lembranças que nos levem a um momento em que nossas sensações fossem apenas o reflexo dos objetos exteriores, no qual não misturávamos nenhuma das imagens, nenhum dos pensamentos que nos prendiam aos homens e aos grupos que nos rodeavam. Se não nos recordamos da nossa primeira infância, é, com efeito, porque nossas impressões não se podem relacionar com esteio nenhum, enquanto não somos ainda um ser social. (1990: 38)
 
Em determinado momento do livro, a partir de seus pressupostos, Halbwachs fornece a sua definição de lembrança (1990: 71):
/.../ a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso, preparada pro outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada.
 
Segundo o nosso entendimento, não fica claro em Halbwachs a distinção entre lembrança e memória, mas o ponto de sua obra que discutiremos mais tarde é a idéia de que cada grupo social possui a sua memória específica. Nota-se, entretanto, que esse conceito é discutido pelo próprio autor (1990: 115) :
Mas a questão é então saber se os grupos, em si mesmos estão verdadeiramente separados. Poder-se-ia conceber, com efeito, não somente que eles sejam formados por numerosos empréstimos, mas que suas vidas se aproximam e se fundam geralmente, como se essas linhas de evolução se cruzassem incessantemente.
 
No trecho citado, Halbwachs se aproxima do que Jung chamou de inconsciente coletivo, do que trataremos no capitulo a seguir, buscando fazer uma aproximação desse termo jungiano ao que falaram Bergson e Halbwachs sobre a memória.
Carl Gustav Jung, cujo um de seus conceitos iremos tratar a seguir, foi um psicólogo colaborador de Sigmund Freud no início do século XX. Rompeu com Freud quando criou a sua “Psicologia Analítica”, que é muito complexa para ser explicada em poucas linhas, mas pode-se dizer que uma das diferenças básicas entre esta e a Psicanálise se dá no que diz respeito ao inconsciente. 

Freud descobriu o inconsciente e Jung percebeu que só o inconsciente pessoal não esgotaria as questões que surgiam nas suas pesquisas, logo concluiu que o ser humano teria o inconsciente pessoal e o coletivo. Essa teoria surgiu a partir de diversos indícios: muitos pacientes de Jung tinham visões ou sonhos (mitológicos) que não poderiam ter vivenciado e ele comparou ainda diversas sociedades tribais e não-tribais, que não tiveram nenhum contato e possuíam mitos e rituais idênticos ou muito similares. Então, concluiu que havia algo na mente do ser humano que não era individual e não poderia ser explicado só pelo grupo social em que vivia; assim, ele criou o termo inconsciente coletivo para designar uma camada mental relacionada com a totalidade, com o universo. 

Muitos estudiosos criticam Jung pelo interesse que tinha por assuntos cientificamente suspeitos. Na verdade, Jung valorizava o lado intuitivo do ser humano, supunha que o excesso de racionalidade poderia prejudicar o homem e assim, aproximava-se bastante da cultura oriental. À crítica relatada respondem Calvin Hall e Vernon Nordey, em Introdução à Psicologia Junguiana (1993: 19):
Jung não tratava esses assuntos como discípulo e sim como psicólogo. A questão fundamental para ele era descobrir o que esses temas revelavam a respeito da mente, sobretudo o nível da mente a que Jung dava o nome de inconsciente coletivo.
 
No livro O homem e seus símbolos, Jung discute a vulnerabilidade das teorias científicas, defendendo, de certa forma, o lado humano intuitivo (1964:92):
É uma ilusão comum acreditarmos que o que sabemos hoje é tudo o que poderemos saber sempre. Nada é mais vulnerável que uma teoria científica, apenas uma tentativa efêmera para explicar fatos, e nunca uma verdade eterna.
 
Pode-se afirmar que nesse ponto seu parecer é similar ao que lemos em Bergson, pois este também cria na incapacidade do ser humano em enquadrar tudo em esquemas experimentais. O filósofo diz, como citamos anteriormente, que o cérebro do homem, por ser uma parte do mundo material, é incapaz de esgotar a explicação do universo, que segundo ele, não se resume à matéria. 

Jung, como dissemos, privilegiava a porção intuitiva do homem, considerado como um acesso ao inconsciente. Esse é um ponto fundamental, que tangencia ainda a teoria bergsoniana, e, que se opõe a Psicanálise, como explica Dante M. Leite em Psicologia e Literatura (1967: 33) :
Se para Freud o inconsciente, sede dos instintos, é fonte de energia cega e destrutiva, para Jung, o inconsciente, sobretudo o inconsciente coletivo, é o depósito não apenas de impulsos, mas das idéias mais ricas e significativas da humanidade. Nesse sentido, se Freud e Jung pensam em conquistar o inconsciente, a sua intenção é oposta: para Freud, essa conquista supõe a possibilidade de estender o domínio racional às forças irracionais que tem dominado o homem; para Jung, a conquista do inconsciente não tem como objetivo o seu controle, mas a sua aceitação.
 
Como vimos anteriormente, para Bergson, a lembrança-pura era algo advindo do espírito e acessá-la era como se adentrássemos no domínio do espírito. Podemos comparar o inconsciente da psicologia ao que Bergson denominou espírito (ou uma parte dele) e a intuição, que Jung tanto admirava, às lembranças-puras. Portanto, a intuição ou a lembrança-pura é um acesso ao inconsciente, ou, ao espírito. Essa questão está muita associada à literatura, pois, se como lemos em Ecléa Bosi , a arte é uma forma de atingirmos a verdadeira memória, a literatura é fruto da intuição/ lembrança pura. Jung, em O homem e seus símbolos, faz uma associação entre a genialidade humana e a chamada intuição (1964: 38):
Muitos artistas, filósofos e mesmo cientistas devem suas melhores idéias a inspirações nascidas de súbito do inconsciente. A capacidade de alcançar um veio particularmente rico deste material e transformá-lo de maneira eficaz em filosofia, em literatura, em música ou em descobertas científicas é o que comumente chamamos genialidade.
 
O inconsciente abarcaria a verdadeira memória, possível de ser acessada por escritores em suas obras grandiosas. É importante ressaltar que, o conceito de inconsciente que se presta à analogia citada é o conceito junguiano, pois não é só individual, mas também coletivo. A literatura seria, portanto, obra do inconsciente coletivo. 

Pode-se afirmar que os estudos de Jung sobre o inconsciente e conseqüentemente sua descoberta do inconsciente coletivo constituem marco decisivo na história da Psicologia e das ciências humanas. Mas, afinal, como definir o inconsciente coletivo? Hall e Nordey, em Introdução à Psicologia junguiana, explica a terminologia da seguinte maneira (1993: 31):
A mente do homem é pré-figurada pela evolução. Desta maneira, o indivíduo está preso ao passado, não somente ao passado de sua infância, mas também, ao passado da espécie, e, antes disso, à longa cadeia da evolução orgânica. /.../ O inconsciente coletivo é um reservatório de imagens latentes, em geral denominadas imagens primordiais por Jung /.../
 
Logo, de acordo com o raciocínio estipulado até essas linhas, a nossa verdadeira memória, como chamou Bergson, aquela que sobrevive no espírito, não remonta somente as nossas experiências, mas as de nossa espécie. Assim como não podemos apreendê-la completamente, temos acesso às reminiscências dessa memória coletiva que vive em nós.
Em seu livro citado, Jung explica como chegou à terminologia inconsciente coletivo (1964: 47);
Fiz várias comparações deste tipo entre o homem moderno e o primitivo. São essenciais para compreendermos a tendência do homem de construir símbolos e a participação dos sonhos para expressá-los. Pois vamos descobrir que muitos sonhos apresentam imagens e associações análogas a idéias, mitos e ritos primitivos. Estas imagens oníricas eram chamadas por Freud resíduos arcaicos. A expressão sugere que estes resíduos são elementos psíquicos que sobrevivem na mente humana há tempos imemoriais. 

É um ponto de vista característico dos que consideram o inconsciente uma simples apêndice do consciente/.../ Constatei que associações e imagens deste tipo são parte integrante do inconsciente e podem ser observadas por toda parte- seja o sonhador instruído ou analfabeto, inteligente ou obtuso. Não são, de modo algum, resíduos sem vida ou significação.Têm, ao contrário, uma função e são, sobretudo valiosos /.../ Constituem uma ponte entre a maneira por que transmitimos conscientemente os nossos pensamentos e uma forma de expressão mais primitiva, mais colorida e pictórica. E é esta forma que apela diretamente à nossa sensibilidade e à nossa emoção. Essas associações históricas são o elo entre o mundo racional da consciência e o mundo do instinto.
 
Segundo Jung o inconsciente coletivo é formado por arquétipos, que são manifestados pelos símbolos com os quais nos defrontamos na nossa experiência humana. Arquétipo para Jung é um modelo original, um protótipo, mas não são entidades fechadas, pois segundo ele existem tantos arquétipos quanto às situações típicas da vida (1964: 69): 

O arquétipo é, na realidade, uma tendência instintiva, tão marcada como o impulso das aves para fazer seu ninho ou o das formigas para se organizarem em colônias/.../ Chamamos instinto aos impulsos fisiológicos percebidos pelos sentidos. Mas, ao mesmo tempo, estes instintos podem também manifestar-se como fantasias e revelar, muitas vezes, a sua presença apenas através de imagens simbólicas. São a estas manifestações que chamo arquétipos. A sua origem não é conhecida; e eles se repetem em qualquer época e em qualquer lugar do mundo- mesmo quando não é possível explicar a sua transmissão por descendência direta ou por fecundações cruzadas resultantes da migração.
 
Podemos também confirmar a idéia junguiana da existência de um inconsciente coletivo e o seu conteúdo (os arquétipos) através do que lemos em Halbwachs sobre a memória. Segundo o sociólogo, somos seres estritamente sociais e as nossas lembranças são sempre coletivas, grupais. Jung comprovou essa tese e foi além: percebeu que há uma universalidade entre as nossas lembranças e estas não se restringem a uma vivência pessoal, nem de um grupo, mas da espécie humana e pré-humana [1[

Falamos no capítulo anterior sobre a lacuna que propositalmente deixa Halbwachs em seu livro na última citação feita. Ele questiona se os grupos estão verdadeiramente separados, evidentemente por causa das diversas misturas culturais existentes. Entretanto, o sociólogo crê que são resultantes de empréstimos provocados com possíveis convivências e Jung anula, através de suas pesquisas, essa possibilidade, pois constata que algumas recordações não eram passíveis de algum contato, advinham verdadeiramente de um elo que concatena os seres, chamado por Freud de resíduos arcaicos. 

 Como lemos na afirmação de Jung, essas imagens não eram resíduos sem uma delimitada origem como disse Freud, mas advinham do inconsciente coletivo. Essa idéia preenche exatamente a lacuna deixada por Halbwachs, evidenciando que o nosso inconsciente é pessoal e coletivo. Portanto, o que lembramos pode ser fruto de nossa vivência individual, social ou de reminiscências de vivências de outros da nossa espécie, havendo, portanto, o liame da evolução. 

 Fonte:

Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

PHILIPPE THOMAS - Ragnarok


Que delícia de diálogo Melódico
.

Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

SONHO E REALIDADE

O Devaneio - O sono - O sonho
   Existe um número de estados em que a consciência parece estar como que submergida numa onda de imagens. Estes estados são os do devaneio, do sono e do sonho.

1. O devaneio. — Por devaneio se designa o fato de deixar caminhar a vida interior em seu concurso espontâneo, numa semi-inconsciência do mundo exterior circundante, e no relaxamento das funções de controle e de inibição.

Tem-se querido distinguir, por vezes, um devaneio passivo, que deixaria caminhar a vida interior à deriva, e produziria uma espécie de desagregação da consciência, — e um devaneio ativo, cuja característica seria a de construir um mundo imaginário, seja por gosto da ficção (crianças e primitivos), seja por necessidade de escapar ao real (casos de sonhadores despertos). — Com efeito, esta distinção define mais as direções que os estados. Não existe devaneio completamente passivo, pois do contrário se confundiria com o sono. Quanto ao "devaneio ativo", reduz-se ao ato da imaginação criadora, — ou atinge certamente os confins da demência, em que a função do real é abolida. O devaneio é, pois, um estado intermediário difícil de classificar. Ao mesmo tempo ativo e passivo, assemelha-se a um sonho dirigido e vigiado.

2.    O sono.
a)     Psicologicamente, o estado de sono pode ser caracterizado como um estado de desorganização das funções psíquicas (especialmente das faculdades da atenção, da vontade e de crítica), no qual a consciência de si é extremamente ensurdecida e fraca e parece mesmo que se perde inteiramente, no sono profundo. Dorme-se na exata medida em que nos desinteressamos do real.

b)     Fisiològicamente, o sono se caracteriza pela reversão das funções vegetativas, quer dizer, por um abaixamento da excitabilidade, pela supressão da inervação voluntária e o relaxamento da respiração e da circulação.

c)     Biològicamente, o sono se apresenta como o repouso do cérebro, não no sentido de que djurmamos pelo efeito de uma intoxicação dos centros cerebrais/mas antes para não sermos intoxicados.

  3.    O sonho.
a) Insuficiência das teorias somatogênica e associativa. Pretendeu-se explicar o sonho, quer pelas impressões’ que sobrevêm ao que dorme, sob forma de excitações sensoriais ou de sensações internas (teoria somatogênica) ; quer pela combinação das excitações sensoriais do sono com os materiais da vigília, combinação que resultaria da ação das leis clássicas da associação (teoria associacionista). Mas estas duas teorias são insuficientes: de uma parte, com efeito, se as excitações sensoriais fossem a causa específica do sonho, haveria uma relação constante entre a excitação física e seu efeito, o que não é o caso (a campainha do despertador, por exemplo, provoca ora o sonho com um sino de igreja, ora o de uma pilha de pratos quebrando-se no chão, ora o de um chamado telefônico etc.) ; — de outra parte, a teoria associativa não consegue levar em conta que o sonho tem um sentido.

b)     O simbolismo onírico. Diremos, então, que a consciência onírica parece caracterizar-se pelo que chamamos a função simbólica. Os materiais do sonho são todos tomados da experiência da vigília e das impressões internas e externas que influem em quem dorme. Mas não entram no sonho a não ser como símbolos ou ficções. Pela dupla eliminação do sujeito (quer dizer, na consciência refletida) e do objeto (quer dizer, do mundo da percepção) tudo o que se passa de real (impressões, mal-estares, inquietações, lembranças, desejos) no sonho, não pode ter seguimento a não ser sob as espécies da imagem e da ficção.

c)     O sonho como ficção. Partamos, para compreender o sonho, do estado de fascinação que provoca a leitura de um apaixonante romance de aventuras; creio no que leio, entro na ação, sou envolvido pela história, apesar da inverossimilhança que possa existir para a consciência refletida e crítica. Assim é no sonho: a consciência onírica é uma consciência que se deixa envolver por seu próprio jogo; é ela que faz a história fascinante e que a vê ao mesmo tempo desenvolver-se.

Assim, o sonho tem um sentido, mesmo que pareça incoerente. É uma história irrealmente vivida, que obedece à lógica da ficção. na qual o ilógico entra como elemento e, como tal, tem sua coerência própria, irredutível à coerência da vigília.

d)     Finalidade do sonho. O sonho parece ter por fim proteger o sono, fazendo passar ao regime da ficção, com o que ele tem de encantatório, a massa das impressões e lembranças que, se ocorressem no estado de vigília com sua realidade própria, seriam um obstáculo ao sono e ao repouso que lhe cumpre assegurar,

 5.   Pedagogia e a imaginação
     Ocorre com a imaginação o mesmo que com as outras faculdades: ela é útil e necessária, produz obras-primas da arte e da ciência. Mas também pode ser desregrada e ter efeitos funestos. Não é esta uma razão suficiente para condená-la, como se faz freqüentemente. Uma vez que se tenham reconhecido os males que pode acarretar, é necessário esforçar-se para corrigi-la e não lançar-lhe os anátemas. Bem dirigida, só pode dar resultados de capital importância.


1.    Perigos da imaginação.
Malebranche a chama "a louca da casa" e Pascal escreve que é uma "mestra de erro e falsidade". Não devemos negá-lo: a imaginação pode ser uma e outra coisa.

a)     A imaginação pode, de fato, acarretar muitos males. Gera o pessimismo, esse estado de morna tristeza, que faz ver todas as coisas sob cores sombrias, descolora todas as alegrias, e torna a vida um peso. — A imaginação alimenta as paixões, apresentando o prazer sob cores enganadoras e de maneira por vezes tão viva que a razão fica paralisada e a vontade aniquilada. É a isto que se chama a vertigem moral, de onde provêm muitas quedas.

b)     A imaginação produz os devaneios românticos, desvia o espírito da realidade e de suas exigências e prepara assim os despertares desencantados, que gastam energia e geram o desencorajamento.

Todos estes perigos podem surgir. Mas não é necessário, contudo, atribuí-los à imaginação, pura e simplesmente, mas antes a uma imaginação malsã ou desregrada. Uma viva imaginação é sempre uma riqueza, sob a condição de ser bem governada. Por isso, aquele que, após verificar quaisquer desvios da imaginação, se aplicasse a arruinar o impulso dessa faculdade, se assemelharia ao cirurgião que quisesse cortar as pernas de um doente, sob o pretexto de que ele sofre de reumatismo. Não se trata de amputar, mas de curar.  

2.    Benefícios da imaginação.           
Esses benefícios existem e são numerosos. O que dissemos acima quanto à arte, à ciência e à vida prática, é suficiente para mostrá-lo. Insistamos aqui apenas no papel da imaginação na formação do espírito e do coração.

a)     Do ponto-de-vista intelectual. As idéias são abstratas e experimentamos dificuldades, enquanto nos falta uma cultura bastante sólida, para assimilá-las diretamente. Por isso é que a criança não as compreende bem, a não ser que sejam ilustradas pela imagem. Sabe-se, a este propósito, que importância adquiriram as imagens nos livros clássicos, e é daí, ainda, que derivam as lições de coisas, que, rigorosamente, nada mais são do que lições de imagens. Guardadas as devidas proporções, a criança, bem dotada, quanto à imaginação, fará progressos mais rápidos que a criança que dela seja desprovida, porque terá à sua disposição mais material em que apoiar seu pensamento e aplicar seu espírito.

b)     Do ponto-de-vista moral, a imaginação é também de grande auxílio. Desenvolve na criança o gosto de aprender e o desejo de sucesso, nela representando em cores vivas as alegrias de seu êxito, a satisfação de seus pais e de seus mestres e as promessas de seu futuro. — Ela alimenta a esperança, porque, infatigável, não cessa de abrir novas perspectivas. Ε até, em certo grau, cria o futuro, orientando-lhe o espírito e fixando-o numa direção sonhado-Ta, de início, e depois, se a vontade for forte, seguida com perseverança. Quando se trata — coisa importante — de descobrir uma vocação, é à imaginação que se torna necessário dirigir-se, o mais das vezes: podem-se obter, assim, preciosas indicações.

Benefício maior ainda: a imaginação ajuda a amar o bem e o belo, apresentando-os sob uma forma viva que acalenta o coração e facilita o esforço cotidiano. — É a imaginação que nos torna sensíveis às misérias do outro, apresentando-as a nós com vivacidade: ela sustenta assim o espírito de devotamento e da caridade. Cria a simpatia e desenvolve a sociabilidade, ajudando a compreender e partilhar os sentimentos alheios. Freqüentemente, os "corações áridos" nada mais são do que imaginações pobres.

Poderemos concluir, então, desta rápida exposição, que a imaginação é um bem muito precioso. Não se deve, jamais, tentar sufocá-la. Mas é necessário restringi-la ou dirigi-la quando tende a consumir-se em quimeras ou devaneios malsãos, excitá-la, acalorá-la, quando naturalmente lenta e fria. Posta a serviço da razão, regulada e vigiada por ela, a imaginação só pode contribuir para tornar a vida mais fecunda, mais virtuosa e mais bela.






Fonte: Fragmento da Aula _ N.15
A VIDA SENSÍVEL ,de Curso de Filosofia – Régis Jolivet
CONSCIENCIA.ORG

SONHOS CENAS

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