sábado, 3 de julho de 2010

LIBERDADE E ESTÉTICA



BERGSON 


 Bergsonismo, psicologia e liberdade

Carolina Laurenti

CAMINHANDO PARA UMA CONCEPÇÃO BERGSONIANA DE LIBERDADE

O que é esse progresso dinâmico?

Onde podemos encontrar essa imagem que retrata um processo de constante que expressa a liberdade? Bergson (1927/1988) encontra as respostas no campo da estética, mais especificamente, na análise dos sentimentos profundos. Trataremos, aqui, em especial, do sentimento da graça. Podemos encontrar na descrição desse sentimento o exemplar de maior perfeição da experiência da liberdade. Na exposição do sentimento da graça, Bergson (1927/1988) inicia um processo de depuração , mostrando que o aprofundamento do sentimento estético não significa um acréscimo de uma quantidade, mas sim uma transformação de natureza. A descrição do sentimento do gracioso dá-se através da apresentação de figuras, que consistem nos momentos, irredutíveis uns aos outros, do processo de qualitativa.

Inicialmente temos a figura da "facilidade do movimento", que busca retratar a ruptura das expectativas da percepção: "o movimento não parece estabelecer a relação normal de trabalho como seu ambiente" (Prado Jr., 1989, p. 81).

O movimento, no contexto da e das relações sociais cotidianas, muitas vezes aparece na forma de esforço, de luta ou resistência às imposições da vida material e social. Em contraste, na experiência estética, ele ocorre sem oposição ou embaraço, o que lhe confere toda a leveza e delicadeza de um gesto figurando na dança. Prado Jr. elucida: "o sentimento da graça é, neste contexto, inicialmente, a interrupção da relação laboriosa com o mundo, suspensão imaginária do reino da necessidade e da inércia" (p. 82).

A transformação do sentimento da graça é representada em uma segunda figura, "a suspensão do tempo". Nesse momento, a facilidade do movimento é transmudada em "previsibilidade" do gesto futuro. O gesto presente anuncia em sua estrutura os contornos do gesto futuro. Esse prelúdio do gesto futuro no gesto presente é, ao mesmo tempo, a possibilidade de reter o futuro no presente3. A "previsibilidade" aparece como suspensão do tempo, assim, nessa situação, a experiência estética mostra-se como a experiência peculiar de uma temporalidade.

Finalmente, o sentimento da graça caminha para uma terceira figura, a "simpatia física", em que o ritmo se apresenta como o elemento central unificando sujeito e objeto, ou melhor, dissolvendo a dicotomia sujeito-objeto. A separação entre o eu e o outro desvanece, estabelecendo uma relação indissociável entre espetáculo e espectador, entre a visão e o visível: "o espectador não é apenas o beneficiário inessencial e intercambiável que recebe passivamente a "graça" do espetáculo da graça, é ele o dispensador último, é ele que suspende provisoriamente a legislação do mundo profano do trabalho da exterioridade" (Prado Jr., 1989, p. 84). A simpatia física traveste-se de simpatia moral ou "comoção", que revela a libertação última do movimento dos ditames da exterioridade. A descrição do sentimento da graça, mediante a apresentação das três figuras, pretende mostrar um processo de interiorização, que culmina na experiência da simpatia moral, no qual o "outro" torna-se "ele mesmo", ou ainda, "uma identificação interna do presente com aquele para quem há presença, iluminação interna do ser para ele mesmo" (Prado Jr., 1989, p. 103).

Podemos buscar uma formulação positiva da liberdade na própria descrição do sentimento da graça, que exibe o processo de interiorização em que se opera um retorno da consciência a si mesma. Em última análise, podemos dizer que encontramos no sentimento da graça o paradigma da experiência da liberdade: "a análise de todos os demais níveis da realidade psicológica reproduz o esquema esboçado pela descrição do sentimento da graça" (Prado Jr., 1989, p. 87). A descrição do sentimento da graça permite captar o ato em vias de se fazer. Ora, é justamente esta a concepção de liberdade para Bergson (1927/1988), "o acto livre é a relação do eu concreto com o ato em vias de se fazer" (p. 152).

Na experiência da liberdade temos a experiência do tempo como continuidade, em que cada momento anuncia o momento futuro como possibilidade, ou melhor, virtualidade4. Em outras palavras, cada momento contém a presença virtual, e não atual, da figura posterior. Com efeito, temos uma progressão, em que a última figura ( simpatia moral, por exemplo) vem unir-se com aquelas que a anunciaram. Assim, ainda que cada momento seguinte seja considerado irredutível ao anterior, ou seja, a figura "facilidade do movimento" difere da figura "suspensão do tempo", cada uma sugere a forma da posterior "como se ela fosse o seu sentido". A realização da forma virtual é a realização do sentido da figura precedente. Temos, então, uma qualitativa a cada figura que se realiza em um novo sentimento. Mas a diferença não é uma ruptura de sentido, pois os sentimentos caminham para uma significação primeira sem conhecê-la de antemão. Podemos dizer que cada parte contém (virtualmente) o todo, que é essa a significação primeira ( Prado Jr., 1989)5.


Assim, a exposição do sentimento da graça parece tornar explícito um processo de totalização: a experiência da suspensão do tempo não significa um aumento de amplitude da experiência de facilidade do movimento, ao contrário, é um aprofundamento da anterior culminando em uma experiência que se radicaliza, cuja figura final expressa a essência do sentimento. A descrição do sentimento da graça revela não uma seriação de estados de consciência como instantes pontuais exteriores uns aos outros, mas um progresso qualitativo: é, portanto, progresso na medida em que a significação inicial se enriquece, e é qualitativo na medida em que suas etapas são heterogêneas e acessíveis à consciência imediata sem qualquer recurso ao pensamento de estilo causal, que postula uma realidade em si como fonte e razão do processo ( Prado Jr., 1989, p. 85).

A descrição do sentimento da graça, ao revelar a gênese qualitativa dos momentos que figuram no sentimento do belo, oferece-nos, a um só tempo, uma concepção dinâmica de liberdade, pois capta o ato no tempo que decorre e não no tempo , ou seja, o ato em vias de se fazer, e não o ato já feito. Em outras palavras, a descrição do sentimento do gracioso permite pensar a liberdade em termos de duração, colocando o problema da liberdade mais em função do tempo do que do espaço.


 Fonte:
Bergsonismo, psicologia e liberdade
Carolina Laurenti
Mestre em Filosofia. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação
em Filosofia da Universidade Federal de São Carlos


Endereço para correspondência:
Carolina Laurenti
Rua Rogério Mastrofrancisco, 71
bairro Castelo Branco, CEP 13571-130
São Carlos-SP
E-mail: carolinapsicologia@hotmail.com

Sejam felizes todos os seres. 
Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

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