sábado, 4 de dezembro de 2010

A MEMÓRIA - RÉGIS JOLIVET

ART.    IV.    A MEMÓRIA

Curso de Filosofia – Régis Jolivet

A.    Natureza da memória.

113      1. O que ela não é. — Define-se muitas vezes a memória como a faculdade de reviver o passado. Mas esta definição, tomada ao pé da letra, não é exata, ão existe, e não poderá reviver.
A memória tampouco é a facilidade de conservar e evocar os conhecimentos adquiridos, pois seu objeto é muito mais extenso. A memória pode conservar e evocar os sentimentos e as emoções experimentadas, e, de fato, todo estado de consciência pode ser fixado, conservado e evocado pela memória.

2. O que ela é. — Definiremos, então, a memória: a faculdade de conservar e de evocar os estados de consciência anteriormente experimentados. Esta definição se aplica propriamente ao que se chama memória sensível, ou memória propriamente dita. Quanto à memória intelectual-, ou memória das idéias como tais, é apenas uma função particular da inteligência.

B.    Análise do ato da memória.

Um ato de memória parece, de início, ser simples. De fato, é um ato complexo em que se podem distinguir quatro momentos: a fixação e a conservação — a evocação — o reconhecimento — a localização dos estados de consciência anteriores.

1.    A fixação e a conservação das lembranças.

a) O fato da conservação. É um fato que as lembranças subsistem em nós. Elas não estão sempre presentes, mas, uma vez que possamos evocá-las, é necessário admitir que os nossos estados de consciência, depois de experimentados, são conservados pela memória. O mesmo se aplica àqueles que as circunstâncias não nos dão jamais ocasião de fazer reviver, e citam-se os casos dos asfixiados que, no momento de desfalecer, vêem desdobrar-se sob seus olhos, com uma precisão impressionante, os acontecimentos
Ora, essa conservação das lembranças pela memória está submetida a condição que devemos conhecer, se quisermos tirar proveito da memória.

b) Condições da ficção e da conservação. Essas condições são a um tempo fisiológicas e psicológicas,
Condições fisiológicas.A capacidade de fixar e de conservar as lembranças depende de certas condições orgânicas, que variam consideravelmente de indivíduo para indivíduo: uns são dotados naturalmente de uma "boa memória", outros têm a memória rebelde por natureza. Em geral, as crianças, dotadas de uma grande plasticidade orgânica, fixam mais facilmente as lembranças do que os velhos. Se não conservam uma tenacidade igual, isto advém sobretudo da falta de certas condições psicológicas (atenção e organização lógica, principalmente), que compensam no adulto a inferioridade dos meios orgânicos. Todavia, quando as impressões sensíveis têm uma intensidade especial, as lembranças são fixadas e conservadas pelas crianças com uma notável tenacidade: é o que explica o fato de que o velho possa evocar com uma exata fidelidade as lembranças relativas a sua infância, enquanto que não é quase capaz de fixar e de conservar as lembranças dos acontecimentos recentes. — Notar-se-á aqui, ainda, a influência do estado físico geral: a fadiga, a debilidade nervosa prejudicam mais ou menos a aptidão de fixar e conservar as lembranças. Em certos casos (psicastenias), as impressões que vêm de fora já chegam tão atenuadas que não deixam, por assim dizer, traços de sua passagem.

Condições psicológicas.Existem, contudo, poucas faculdades a que se possa melhorar o funcionamento, tão facilmente, e de uma maneira tão extensa, como se faz com a memória, de modo que as condições psicológicas são bastante mais importantes.
Estas condições podem ser reduzidas a duas principais: a intensidade : uma lembrança se fixa e se conserva tanto mais facilmente, quanto seja mais viva a impressão. É esta condição que se procura satisfazer pela atenção e repetição, — a organização das idéias: as idéias (e os sentimentos) se fixam e se conservam tanto melhor quanto estejam ligados uns aos outros de maneira mais lógica. É por isso que a intervenção da inteligência na organização das lembranças é um fator importante de sua conservação.

2. A evolução das lembranças.

— A evocação pode ser espontânea ou voluntária.
a) A evocação espontânea é aquela em que uma lembrança se apresenta à consciência como que por si mesma, sem que nada pareça evocá-la. Contudo, se houver cuidado em bem analisar o conteúdo da consciência, no momento dessa evocação espontânea, verificaremos que a lembrança evocada áligada a algum dos elementos deste conteúdo.

b) A evocação voluntária supõe um esforço mais ou menos longo e mais ou menos difícil. Põem em jogo as associações de idéias ou de imagens, até que, de aproximação em aproximação, por eliminação sucessiva de respostas falsas da memória, a lembrança procurada surja finalmente.

3.    O reconhecimento das lembranças. — Não existe lembrança verdadeira, a não ser quando a lembrança é reconhecida como evocadora de um estado anteriormente experimentado, e experimentado por mim, quer dizer, como um dos elementos de meu passado.
A lembrança, assim evocada e reconhecida, distingue-se da percepção, como um estado débil se distingue de um estado forte, — e da imaginação, pelo fato de que a imagem pode ser modificada por nós; ao contrário da lembrança, que podemos sem dúvida afastar, mas não modificar à vontade.

4.    Localização das lembranças. — É necessário, enfim, situar a lembrança em seu lugar no passado. A memória, para chegar até lá, percorre a extensão dos acontecimentos antigos para então encontrar o lugar preciso da lembrança evocada. Ela se serve, para isto, destes marcos que são, na linha do passado, as lembranças de acontecimentos importantes em torno dos quais se classificam e se ordenam as lembranças de menor intensidade.

C.    Importância da memória.

114      Falamos, mais acima, da importância do hábito. Ora, tudo o que dissemos do hábito pode aplicar-se à memória, que não é mais do que uma espécie de hábito, da mesma forma que o hábito não é mais do que uma espécie de memória. Veremos que papel exerce a memória, sobretudo intelectual, na formação do espírito e na educação moral.

1. Papel da memória na educação intelectual. — Este papel é muito grande; é o que vamos mostrar. Mas notemos inicialmente que a potência da memória não é um fim, mas apenas um meio. Trata-se menos de armazenar numerosos conhecimentos do que formar o juízo e dar-lhe segurança e retidão, e a palavra tantas vezes citada de Montaigne permanece sempre verdadeira: "Cabeça bem feita vale mais do que cabeça bem cheia." Com tais reservas, é perfeitamente verdadeiro que para aprender a pensar o exercício da memória é indispensável. Com efeito:

a)     A memória intervém em todos os atos do espírito. — No raciocínio, devemos utilizar idéias e juízos já formados, e, além disso, à medida que avançamos no raciocínio, devemos recordar o que precede.
A própria linguagem, que nos parece tão natural, não é mais do que uma vasta memória de palavras e idéias, que elas exprimem. Como poderíamos ainda pensar, se a memória não nos fornecesse, de algum modo a propósito, as idéias e as palavras que nos são necessárias?

b)     A memória é a condição do progresso intelectual. — Seria, para nós, inteiramente impossível realizar qualquer progresso, se os conhecimentos que adquirimos se fossem consumindo. Tudo estaria perpetuamente por recomeçar.
Por outro lado, esta observação de simples bom-senso se aplica do mesmo modo à própria sociedade. As gerações que se sucedem não podem pretender retomar, desde o princípio, todas as ciências e todas as artes que lhes são necessárias. Em uma parte imensa, elas são tributárias do passado, e não o são nem podem ser senão pela memória. É por ela que se conserva e se transmite de idade a idade o capital intelectual e moral dos séculos passados e, portanto, é por ela que se torna possível o progresso da civilização. Por isto, Pascal observa muito justamente que "a humanidade é como um só homem que aprende continuamente".

2.    Papel da memória na educação moral. — A memória exerce aqui um papel análogo ao que exerce na educação intelectual. Povoa o espírito de máximas e de exemplos que formam uma espécie de atmosfera moral. É utilíssimo que se nos recomende com insistência, que nos informemos, de uma maneira que possa ser atraente, sobre a vida dos homens ilustres e a vida dos santos. Estes altos exemplos de heroísmo ou de santidade, de devotamento à ciência e à humanidade, são retidos com surpreendente fidelidade e não é raro que, nas lutas da vida, sua lembrança sirva de ponto de apoio, de luz e encorajamento às almas inquietas ou tentadas.

D.    Meios de exercitar a memória.

115      Pode-se e deve-se exercitar a memória metòdicamente, e os meios de exercitá-la decorrem das condições psicológicas de que falamos.

1.    A atenção. — Se a condição capital para fixar e conservar a lembrança é a intensidade da primeira impressão, não caberia exagerar o papel da atenção. Quer isto dizer quanto é medíocre o processo de ensino, tão comum na criança, da repetição maquinai. A experiência, por outro lado, a faz logo admitir que o número de repetições está na razão inversa da atenção que ela presta ao sentido da lição que deve reter.

2.    Á memória das idéias. — Acima de tudo, é essencial, não tentar aprender nada de cor que não tenha sido, de início, perfeitamente compreendido, a fim de ajudar a memória verbal pela memória das idéias, que é evidentemente a mais importante. O melhor meio de reter as coisas é ligá-las segundo sua ordem natural. Deste ponto-de-vista, o exercício da memória se confunde com o exercício do juízo e se torna diretamente uma formação do espírito.

3.    O método dos conjuntos. — Pela mesma razão, quer dizer, para penetrar de inteligência a memória, devemos preferir o método dos conjuntos ao método dos fragmentos. Alguma coisa que se aprende constitui normalmente um todo cujas partes estão ligadas logicamente e, portanto, evocam-se mutuamente. É claro que se aprenderá tanto mais facilmente quanto se haja de início apreendido o encadeamento das idéias, dos sentimentos, das imagens, coisa que se não pode fazer quando se recorre aos pequenos fragmentos.

4.    O concurso das diversas memórias. — Cumpre também, para fazer a memória dar todo o seu rendimento, apelar para a colaboração das diversas memórias: memória visual das palavras lidas, memória auditiva das palavras ouvidas, memória das imagens evocadas, memória dos gestos realizados.   O   ponto   capital, neste domínio, consistirá em descobrir qual é a memória preponderante e utilizá-la no exercício e desenvolvimento da memória total.
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5.  O esquecimento, auxiliar da memória. — Enfim, devemos aprender a esquecer. Esta regra, que parece tão paradoxal, é, contudo, importante. Porque a memória não deve ser embaraçada, e, para que permaneça alerta e fresca, é necessário que as lembranças venham agregar-se a algumas idéias fundamentais e muito gerais, e que tudo que for inútil seja rejeitado e esquecido.

A educação da memória não se faz facilmente, por falta de experiência. Queremos tudo reter, porque não sabemos classificar as idéias. Aprendei a esquecer é, então, aprender a por ordem nas lembranças, esforçando-se por distinguir no seu todo o essencial do acessório. E ainda assim e de maneira eficaz, formar seu juízo e sua razão.

 Fonte:
CONSCIENCIA:ORG
http://www.consciencia.org/cursofilosofiajolivet15.shtml
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Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

MEMÓRIA E IDENTIDADE : BERGSON





MEMÓRIA, LINGUAGEM E IDENTIDADE – MEMÓRIA HOJE

Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros
Antropóloga, professora do PPCis 
e coordenadora do Laboratório de Dinâmicas Societárias,
IFCH - UERJ

Resumo: A discussão teórica sobre memória se faz num cruzamento de idéias sobre linguagem, calcadas principalmente nas perplexidades desencadeadas pelas modernas tecnologias da sociedade da informação. Privilegiando o enfoque de Henri Bergson sobre memória nesta comunicação, apresento estudos de caso em que suas teorias sobre matéria, memória e suas relações com o corpo explicam fenômenos como a violência e seus efeitos. Nos exemplos apresentados analiso a memória da violência iluminando reflexões cientificas (Dra. Nise Magalhães da Silveira) e, em outras circunstâncias, produzindo forte reação à dor, enquanto gera ações de largo alcance social – combate ao cangaço. 

Abstract:(...)

De espectro muito abrangente, o título da mesa desafia a possibilidade de se falar, em vinte minutos, de temas tão complexos, responsáveis por vasta bibliografia nestes tempos de informática, onde o que mais se pratica é "deletar" material para abrir espaços a novos descartáveis.

É possível à memória humana a preservação da carga midiática de que se alimenta a sociedade da informação? A linguagem do computador é acessível à grande massa da população do planeta? Quais os critérios para se escolher o que deve ser deletado e o que se preservará em tecnologias mais avançadas? Um disquete ou um CD tem o mesmo tempo de vida que o livro de papel, o papiro e o pergaminho?

Como no palimpsesto utilizado pelos destruidores de memórias mais remotas para nele se implantar outras mais recentes, a linguagem do computador, não mais pela pobreza de material de que padeceram os antigos escribas, mas pela própria lógica de mercadorização do mundo, foi programada para deletar de sua memória "mercadorias" superadas por outras mais "modernas", numa voracidade ímpar na história, de oferecer "novas chances de compra ao consumidor". Afinal, o principal princípio dos direitos individuais, é o de "poder consumir o que se pode comprar". A sofreguidão maior da mídia é a produção, na linguagem mais sintética e rápida do mundo, de "novas notícias". Qual o lugar das "velhas notícias"?

Essas preliminares, que podem ser desenvolvidas em outros tempo e espaço, ficam "guardadas na memória do disco rigído", junto com a discussão sobre ‘identidade’, limitando-me nesses vinte ou trinta minutos de fala programada, a considerações sobre o debate teórico do tema "memória", um dos tantos "musts" dos mundos acadêmico e jornalístico dos últimos vinte anos. 

Aliás, programação dos tempos de fala, determinação de número de toques por artigos e de laudas por dissertação de mestrado e tese de doutorado, são inequivocamente submissão às imposições da mídia que calcula sempre o preço do espaço por centímetro ocupado nas páginas de jornais e revistas, e os custos dos segundos e minutos consumidos em rádio e televisão. Em defesa dessa pressão argumenta-se com tabelas de custos de material, energia, tempo dos profissionais, em outras palavras, compatibilização entre custos e lucro envolvidos na "oferta do produto" ao "consumidor". Até as agências de financiamento público à pesquisa e à capacitação de pessoal – "formação de recursos humanos", discutem "bolsas de balcão" ou "programas de incentivo à pesquisa grupo". Esta linguagem é outra representação de subsídios, investimentos no "varejo" ou no "atacado"?

Retendo fatos, transmitindo-os, reelaborando-os, criando-os, em suma, representando-os pela linguagem (falada, gestual - prelúdio da imagética, escrita, e hoje virtual e áudio-visual), a espécie humana brinca, com um caleidoscópio de infinitas possibilidades, com a tentação de ser Deus manipulando a natureza, recriando-a, transformando-a, inventando-a, isto é, faz cultura. Em todo esse processo, a memória é o mecanismo de apoio, o elemento diferencial que evita à humanidade partir sempre do zero, das primeiras regras de vida associativa ou de técnicas de domesticação da natureza e de produção tecnológica, lançando-se no mecanismo cumulativo de saber transmitido intra e inter-gerações. 

Com origem desconhecida num tempo sem registro de linguagem perceptível às modernas gerações, a cultura (criação das linguagens, de regras de parentesco, primeiras classificações e tecnologias), essencial à sobrevivência humana, pelo processo de socialização se torna "patrimônio", direito de qualquer nascido em todos os tempos e espaços particulares da sociedade humana universal.
Recorrendo ao mito, segundo Lévy-Strauss, tão universal quanto a regra do tabu do incesto, a cultura, perpassando todas as metalinguagens de alteridades sociais mais amplas ou restritas, universaliza como direitos do homem, as conquistas que garantiram a espécie, até contra a lei da seleção natural.

A singularidade da metalinguagem, como a científica por exemplo, sem a escrita e longo processo de aprendizagem se perde no universo ágrafo, enquanto o mito, alimentado principalmente pelas emoções e ritualizações, é a linguagem universalmente acessível à humanidade. O recurso à memória emocional é largamente utilizado no ensino X aprendizagem desde a infância, num processo de recorrência que integrará a personalidade dos indivíduos constituindo-se marca na memória das coletividades de que esses fazem parte, ao mesmo tempo em que influencia, como o afirma Bergson, o caráter dos portadores dessa memória.

A preocupação com o estudo da memória, incorporada mais recentemente às ciências humanas, esteve há décadas (ainda no século XIX) no centro das discussões entre neurologistas, anatomistas e outros estudiosos das ciências naturais, como por exemplo, a Teoria de Broca sobre a localização da zona de memória no lobo frontal do cérebro (zona de Broca). Por esse viés, a busca de compreensão da memória ocupou-me períodos de estudo de neuroanatomia na década de 60, quando teoricamente se estudava nas áreas médicas a existência material da memória, nos tratamentos de afasias de expressão ou compreensão. Conclusões eram tiradas a partir de comparações entre a zona de Broca de um profissional da fala, como um radialista, e alguém pouco falante (sempre portador de zona de memória menos volumosa). Por essa perspectiva, o avanço que me orientou inicialmente em busca de outras abordagens, levou-me a Henri Bergson, em seu "Matéria e Memória: Ensaio sobre a Relação do Corpo com o Espírito".

Esse autor voltaria a minhas reflexões na década de 90, nas discussões, já no Doutorado, sobre Trabalho de Campo e significado da memória registrada nos depoimentos dos informantes. Nesse período, as discussões sobre História Oral já apareciam em rica bibliografia incorporando Halbwachs, Pierre Nora, Ecléa Bosi, Michael Pollak e os debates sobre Memória e História, que culminariam no conceito de cultura como memória.

Trabalhando a oralidade do material etnográfico, tanto na pesquisa de mestrado (catolicismo popular – décadas de 70, 80) quanto no doutorado (violência no Nordeste – 92 a 97), evidenciava-se a importância da memória não só para as reconstituições de época, como para as representações e construção de identidade. Principalmente na análise de violência, privilegiei os significados da percepção, consciência, representação e "memória como sobrevivência das imagens passadas" (BERGSON, 1990: 49).

Diferentemente dos autores que priorizam o papel do esquecimento, da invenção e construção da memória e das representações, Bergson trata da "realidade das coisas já não construída ou reconstruída, mas tocada, penetrada, vivida" (1990:51).

Analisando os depoimentos de vítimas do cangaço, como homens castrados e mulheres estupradas e ferradas a fogo, percebe-se a atualidade desse autor tratando a percepção: "tal como a entendemos, mede nossa ação possível sobre as coisas e por isso inversamente, a ação possível das coisas sobre nós" (1990:41). Nos depoimentos coletados, essas pessoas, todas elas de vida truncada, são vítimas do opróbio, num processo inexorável de memória dolorosa. 

Segundo Bergson nessa mesma página 41, "toda dor consiste portanto num esforço, e num esforço impotente". Enquanto revivescência de momentos de profundo terror com dor física e moral, cada lembrança da violência vivida há 30 ou 40 anos, não importa o tempo transcorrido, cada flash de memória do fato reedita todas as sensações do momento de humilhação da dignidade humana, demarcando a impotência do sujeito à dominação da violência. Em sentido oposto, as vítimas dos cangaceiros que superaram a impotência da dor transformando-a em estímulo ao combate e à supressão do cangaço, representam-na como um acontecimento datado, circunscrito ao momento vivido (perda de parentes vitimados, ataques sofridos). 

Revivendo aquela lembrança, completam-na com a memória dos sentimentos de reação subseqüentes, tornando-se o reviver de fatos uma seqüência de dor, reação, organização para o combate, logo, potência, em lugar de impotência. 

Em termos de caráter, são pessoas fortes que marcam a comunidade onde vivem com uma memória coletiva de embates, a ponto de elementos distantes se referirem àquela comunidade a partir de traços identitários de "povo valente, homens de sangue no olho"! Em todo o sertão do Nordeste eram freqüentes as referências aos Nazarenos (grupo familiar que combateu Lampião e todo o cangaço) como "povo onde até as mulheres são valentes"! A representação que os Nazarenos fazem de si, logo a auto-imagem, corresponde à percepção de milhares de outros sertanejos sobre os efeitos da violência.

Entendendo a memória como lembranças de fatos vividos, percebidos e sentidos pelas pessoas, Bergson não atribui importância única ao esquecimento como estratégia de sobrevivência, de criatividade.

Lembrando-se dos efeitos das torturas do choque elétrico sobre companheiros de prisão em 1936, anos depois, já em liberdade, Dra. Nise Magalhães da Silveira reflete sobre o chamado "tratamento por eletro-choque", imposto aos portadores de distúrbios mentais. Associando as duas imagens, estabelece conexões emocionais e científicas, elaborando teorias e técnicas psiquiátricas que a levam a condenar as práticas manicomiais. Não recorrendo ao esquecimento das más experiências vividas na prisão, a Doutora reveste-as de reflexões analíticas preservando-as como exemplos de atentado à dignidade humana, convertendo seu repúdio, revivido a cada evocação dos torturados da cadeia e dos hospícios, em corpo teórico-prático capaz de lançá-la internacionalmente na luta pela reversão dos métodos terapêuticos dominantes em meados do século XX.

Considerando porém a capacidade de criação e recriação da memória (entendida como representação), as técnicas de história oral, aprofundando procedimentos da etnografia, exigem do pesquisador apuradas metodologias de tratamento do material recolhido. Estabelecendo redes de informantes, é possível cruzar informações, memórias de fatos entre os membros de uma mesma rede, compará-las com os relatos de membros de outras redes, além dos recursos de pesquisa documental e de hemerotecas, tudo submetido à plausibilidade, aos crivos de teorias e técnicas científicas. 

Reservando-se ao jornalismo o simples relato factual, as ciências históricas e sociais exigem do pesquisador pacientes modalidades de aplicação de questionários abertos e fechados, descrição do ambiente onde são feitas as entrevistas, submissão das transcrições aos entrevistados, retorno a esses em diferentes ocasiões para testar a boa compreensão das falas. Distanciando-se do sensacionalismo, ao dar voz aos homens comuns, os modernos métodos não objetivam transformá-los em historiadores e cientistas sociais, mas em conhecer sua visão de mundo, enquanto também sujeitos de uma história até então entendida como "feitos dos grandes homens".

A própria idéia de "grande homem" de nosso modelo explicativo do passado e do presente é analisada como uma modalidade específica de olhar a vida social, característica da visão ocidental do mundo. Como ilustração desse raciocínio, cito a expressão de Euclides da Cunha, em Os Sertões, quando sintetiza sua avaliação sobre Antônio Conselheiro: "É um grande homem às avessas". Não cabia em seu modelo positivista de grande homem a figura esquálida, de roupas rasgadas e sandálias rústicas, a pé, apoiado num cajado (bordão). Faltava ao Conselheiro o cavalo branco, a espada e as roupas engalanadas, ou a sobrançaria intelectual que o constituiriam, na visão urbana – heroicizante do escritor, "um grande homem". Escapou a Euclides da Cunha a percepção das representações que faziam Conselheiro símbolo e signo de vinte e cinco mil pessoas oferecendo-lhe a vida de lutas e pobreza. 

Ele é o grande homem enquanto substrato, representação e esperança de milhares de homens que o viam como o melhor e mais santo entre eles. São duas concepções díspares de "grande homem", representações de mundo que se cruzavam na luta contra e a favor das desigualdades sociais entre homens de mesma língua, com linguagens diferentes na percepção do que é vida, do que é grandeza. Na linguagem dos conselheiristas, "pequeno não existe e grande só Deus"!

O criar e recriar inerentes aos mecanismos de atuação da memória, ligam-se à força do presente, do qual "parte o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório motores da ação presente que a lembrança retira o calor que lhe confere a vida"(1990:125). Embora altamente impregnadas de presente, as lembranças do passado podem subsistir, enquanto revivescência de imagens anteriormente registradas. Essa capacidade cerebral de fixação de imagens como em programas de computador, discussão diferenciada dos elementos da memória entre ciências naturais e sociais, leva à afirmação de Bergson: "sustentamos contra o materialismo que a percepção supera infinitamente o estado cerebral; mas procuramos estabelecer contra o idealismo que a matéria ultrapassa por todos os lados a representação que temos dela, representação que o espírito, por assim dizer, colheu aí através de uma escolha inteligente" (1990:148).

Considerando-se porém os imperativos da vida social, conclui-se que a noção de "fato" não corresponde à realidade de uma intuição imediata. Numa perspectiva de duração, espaço e experiência do sujeito, se daria uma adaptação do real filtrado por esses fatores. Logo, a memória para Bergson não é também uma emanação da matéria, o que aponta para a complexidade de seu estudo. A existência do sistema neuro-cerebral humano imbrica-se inseparavelmente com a complexidade das exigências sociais e do transcorrer da vida em relações classificatórias de tempo, espaço, emoção e controle racional do homem e da sociedade, elementos esses constitutivos das representações.

Discutir a categoria memória é evocar debates sobre liberdade a partir da idéia bergsoniana de passado desempenhado pela matéria, imaginado pelo espírito.


 Fonte:
Morpheus -
Morpheus - Revista Eletrônica em Ciências Humanas 
- Ano 02, número 03, 2003 - ISSN 1676-2924
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PERCEPÇÃO HUMANA : BERGSON



A importância da percepção humana na relação entre transcendente e imanente: Bergson

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Rodrigo Artur Medeiros da Silva

Embora Henri Bergson (1859-1941) talvez não seja muito conhecido e, consequentemente, comentado nas cadeiras filosóficas discentes da contemporaneidade, trata na sua obra “Matéria e memória” de um dos principais problemas enfrentados pela filosofia: a relação do transcendente com o imanente, através do corpo com o espírito.

A obra “Matéria e memória”, sobretudo na primeira parte cujo objetivo principal é mostrar o papel do corpo na seleção e, posteriormente, na representação das imagens, privilegia a memória[1]. Esta, segundo o autor, é estudada como uma ponte para a compreensão da relação corpo-espírito; deste modo, a superação das dificuldades do dualismo clássico, como pretende o autor sem, porém, descartar as dificuldades de um mo­nismo simplificador[2], pode ser concebida e até mesmo aceita mais facilmente.

Bergson não conceitua a matéria como algo misterioso, como ideia que transcende a representação humana[3]. Matéria, nesta obra, é entendida como conjunto de imagens existentes que podem ser vistas a olho nu; haja visto que começa seus escritos propondo uma seleção de imagens para que, posteriormente, o cérebro as represente. Para selecioná-las, o autor parte do pressuposto de que não conhece nada acerca das teorias da matéria bem como do espírito. Ora, para que algo seja selecionado, necessariamente, deve ser cognoscível. Logo, a seleção de imagens começa de seu próprio corpo devido, para este poder ser conhecido até mesmo em se tratando das “doenças interiores[4]”.

Todavia, o modo como essas doenças instauram-se no corpo humano deve ser examinado a fim de que, posteriormente, seja descoberto como elas se intercalam entre estímulos extrínsecos e movimentos que ainda serão executados visto que, segundo Bergson “o corpo pode e consegue causar mudanças nas imagens que o circundam[5]”. “O corpo é uma imagem que atua como todas as outras no mundo das matérias(…) Contudo, é uma imagem que se difere das demais por poder desenvolver o que recebe[6]”.

É possível que Bergson, ao defender este ponto de vista, esteja enfatizando a dimensão da racionalidade humana; isto se confirma, pois ao que parece, o autor tem traços racionalistas. Tanto é que o mesmo faz uma divisão e, ao mesmo tempo, uma distinção do conceito de memória: “a memória pura que é entendida como atividade espiritual, e a memória-hábito, de essência mecânica e material”[7]. A última tem como função primar pela adaptação dos comportamentos humanos em seu ambiente de vivência, enquanto a primeira conscientiza cada indivíduo sobre a importância do voltar ao passado.

E arraigado à totalidade do conceito de memória, Bergson ressalta a importância do cérebro. Este, segundo o autor, “não é – de modo simplista – o órgão da memória; em primeiro lugar porque não existe a memória (existem duas), e em segundo lugar porque Bergson acha inválida uma teoria das localizações”[8].

Se o cérebro se tornar algo análogo, em sua essência, não haveria representação de nenhuma imagem da matéria, pois “não há como buscar no movimento outra coisa além daquilo que não se vê”[9]. Dito isto, fica perceptível que “um dos papéis do cérebro é selecionar, conduzir ou inibir o corpo a movimentos”[10]. Também são confiadas às responsabilidades do cérebro as percepções, visto que estas dependem indubitavelmente dos nervos cerebrais – centrípetos e centrífugos – cujas funções são, respectivamente, o impulso de estímulos[11] para o centro[12] e a filtração, a absorção desses estímulos na razão.

Daí percebe-se, por hora, que as percepções humanas não dependem somente dos movimentos cerebrais, mas também da percepção da matéria: “a matéria compõe a memória”[13]. Porém, partindo do pressuposto bergsoniano de que o corpo é o centro de toda matéria, e não se podendo negar a existência de vários corpos, poderia então ser dito que cada corpo ao relacionar-se consigo mesmo influiria na forma comportamental dos outros corpos; diga-se de passagem: uma relação entre causa e efeito, sendo este proporcional a causa.

“Como se explica que as mesmas imagens possam entrar no mesmo tempo em dois sistemas diferentes, um onde cada imagem varia em função dela mesma e na medida bem definida em que sofre a ação real das vizinhas, o outro onde todas variam em função de uma única, e na medida variável em que elas refletem a ação possível dessa imagem privilegiada?”[14]

Trata-se de uma problemática do bergsonismo acerca da seleção das imagens. Bergson, como já fora citado, tenta combater uma dualidade entre o idealismo – matéria da memória – e o realismo – memória da matéria – uma vez que ao entender o primeiro, se voltado para o subjetivismo como aquele que tenta fazer com que a ciência seja causa da consciência, e o segundo como a separação desta causalidade, consequentemente a problemática da dualidade consegue ser decifrada, entendendo que simplesmente um tenta deduzir o outro.

O realista, apesar de partir do universo de imagens, de certa forma negando a centralidade de cada humano, é obrigado a constatar o “centro”, ao constatar as percepções. Daí parte o idealista, o qual centraliza as imagens a partir do seu corpo. Se o idealista quiser se remeter ao passado ou programar o futuro, terá que abandonar a idéia de corpo como centro das imagens e, ademais, deixar que a estrutura corpórea viva em função das demais matérias. Porém, pensando-se desta forma, poderia inferir como conclusão que tanto o pensamento idealista quanto o realista bastar-se-iam por si próprios.

Daí percebe-se, pois, que estas duas doutrinas – idealismo e realismo – exigem sobremaneira a percepção a qual, para Bergson, é entendida como conhecimento puro. É o que dá a entender o exemplo dos movimentos corpóreos, tratado em “Matéria e memória”: “(…) para que o corpo se movimente, é necessário o cérebro conhecer cada movimento a seu devido tempo, independentemente de conhecer a estrutura corpórea em sua totalidade”[15].

Esta argumentação se fundamenta, visto que ao partir do pressuposto de que o cérebro, tendo a função de comunicar, capta o que percebe. Ora, se uma ação pensante for indeterminada, pode ser justificada num erro de percepção do cérebro. E se percepção implicar lembranças, para que uma determinada coisa seja percebida, é necessário ao cérebro remeter-se ao passado. Logo, percepção será uma forma de explicar o presente através do passado. 

E é exatamente contra este tipo de argumentação que Bergson trabalha.
“Matéria e memória” propõe ao cognoscente no ato da seleção de imagens, que não se trabalhe apenas com a percepção no sentido de remeter-se ao passado, mas com a percepção pura, capaz de perceber, sobretudo, o presente, o momento do ato intelectivo. Para que a percepção se fite na imagem em sua totalidade, é necessário que, paulatinamente, o sujeito cognoscente faça as devidas críticas e diferenciações no objeto cognoscível.

Ainda com relação à percepção, Bergson trata de fazer uma diferenciação pedagógica acerca da conceituação da mesma; difere-as em percepção consciente e inconsciente. Como fora dito, essa diferenciação é dada apenas a título de maturação de conceito e aprofundamento de pesquisa sobre a importância da relação corpo e espírito a partir da seleção de imagens.

A visão bergsoniana sobre percepção consciente não é muito otimista. Há, segundo o autor, um empobrecimento considerável em se tratando de percepção consciente, uma vez que esta vislumbra a princípio o exterior, descartando a parte interior da matéria, na qual pode estar a essência, guardadas as suas devidas proporções. Logo, a percepção inconsciente é opostamente analisada à primeira.

Porém, o autor em sua análise positivifica algo no empobrecimento da percepção consciente, visto que através desta é que pode ser feito um discernimento sobre algo[16]. Enxerga uma correspondência rigorosa entre “percepção consciente e modificação cerebral”[17]: o cérebro sofre modificações no momento em que percebe algo de conturbado na matéria selecionada. E dessa correspondência é que advêm a indeterminação do querer.

E ainda, já quase fundamentando o seu pensamento acerca do papel do corpo na seleção das imagens, Bergson tenta desmistificar uma possível confusão psicológica que, a seu ver, pode existir entre a percepção pura e a memória. Parte do ponto de que os sentidos humanos têm necessidade de uma educação arraigada, referindo-se à percepção da matéria. Esta educação é que diferenciaria a memória no ato da percepção.
Tendo em vista que nenhum sentido consegue perceber imediatamente as coisas, chega-se às seguintes conclusões: somente com uma educação maturada é que os sentidos conseguirão perceber cada objeto em sua totalidade; alguns dos sentidos só conseguirão funcionar mais facilmente, captar o cognoscível, a partir do momento em que os nervos ópticos captarem, sobretudo, a essência da imagem e, por fim, que cada um dos sentidos tem a sua ação própria.

Conclui-se, portanto, que “percepção e matéria não devem simplesmente ser pos­tos em paralelo”[18].  Ao contrário, o cérebro e a matéria devem relacionar-se, intrinsecamente, pois de outra forma, não haveria como classificar sequer o corpo como matéria, visto que para esta ser entendida e, posteriormente, classificada de antemão deve ser percebida.


Referências
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
G. Deleuze, Le bergsonisme, P.U.F, 1989. Disponível em www.acafif.com.br. Acesso em: 24.mar.2010.


o blog de Filosofia da FAM – Mariana, MG
Posted on 03/09/2010 by Mauro
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a-importancia-da-percepcao-humana-na-relacao-
entre-transcendente-e-imanente-bergson/ 
Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

HENRI -LOUIS BERGSON - PENSAMENTOS


HENRI BERGSON
por 
J. M. Bochenski

       A.PROCEDÊNCIA E PARTICULARIDADES.
HENRI BERGSON (1859-1941) é o representante mais conceituado e originalda nova "filosofia da vida", a qual dele recebeu a forma mais acabada.Contudo, embora mais tarde se tenha posto à testa do movimento, não se podedizer que tenha sido ele o seu fundador. Na própriaFrança, a Action de BLONDEL precedeu o Essai sur lesdonnées immédiates deIa conscience de BERGSON. e também LEROY, que mais tarde seria discípulo de BERGSON, já anteriormente se haviamanifestado contra o mecanicismo.

Todo este movimento está em relação coma tendência espiritualista, voluntarista e personalista da filosofia francesa,que, iniciada por MAINEDE BIRAN, foiem seguida representada por Félix RAVAISSON-MOLLIEN (1813-1900),JULES LACHELIER (1832-1918) e ÉMILE BOUTROUX (1845-1921), de quem BERGSON foi discípulo. Contudo,BERGSONnão se deixou ifluenciar somente por estes filósofos,mas também pela "critica da ciência". Além disso, tomou igualmentemuitas idéias das teorias evolucionistas e utilitaristas inglesas; ele próprioconfessa que, de início, só a filosofia de HERBERT SPENCER lhe parecia ajustar-seà realidade, e sua própria filosofia proveio da tentativa de aprofundar osfundamentos do sistema spenceriano.

Contudo,semelhante tarefa levou-o finalmente a repudiar completamente o spencerismo, que não cessou de combater daí em diante. A atividade especulativa de BERGSONexerceu-se,sobretudo, em quatro obras que mostram claramente sua evolução espiritual.O Essai sur les données immédiatesde Ia conscience (1889) contém a sua teoriado conhecimento; Matière et Mémoire (1896) sua psicologia,L’Évolution créatrice(1907) sua metafísica fundada na biologia especulativa, Lesdeux sources de la Morale etde la Religion (1932)sua ética e filosofia da religião. Todas estas obras tiveram êxitoextraordinário, que se explica não só porque BERGSON expunha uma filosofiarealmente nova e que correspondia às necessidades mais prementes da época,mas também porque a exprimia numa linguagem de rara beleza. Por esse motivo lhe foi atribuído, em 1927, o prêmio Nobel de literatura. 

A uma prodigiosa clareza, a uma artística matização das expressões e a uma impressionante potênciade imaginação, alia ele extraordinária gravidade filosófica e uma acuidadedialética sem par. Além disso, suas obras apóiam-se em conhecimentos sólidos,adquiridos à custa de amplas e árduas pesquisas. Por tudo isto, BERGSONfoi capazde superar, a um tempo, o positivismo e o idealismodo século XIX. É um dos pioneiros do espírito novo de nosso tempo.

B. DURAÇÃOE INTUIÇÃO.
Segundoa concepção do senso comum, admitida igualmente pela ciência, as propriedadesdo mundo são a extensão, a multiplicidade numérica e o determinismocausal. O mundo compõe-se de corpos sólidos extensos, cujas partes seencontram espacialmente justapostas; é caracterizado por um espaço totalmentehomogêneo e por separações precisas, e todos os acontecimentos sãode antemão determinados por leis invariáveis. 

A ciência da natureza nuncaconsidera o movimento, mas só as posições sucessivas dos corpos; nunca asforças, mas só os seus efeitos; a imagem do mundo traçada pela ciência naturalcarece de dinamismo e de vida; o tempo, tal como o encara a ciência, não é,em última instância, senão espaço; e quando a ciência natural pretende mediro tempo, na realidade não mede senão o espaço.

Todavia,podemos descobrir em nós mesmos, embora com esforço, uma realidade inteiramentediferente. Esta realidade possui uma intensidade puramente qualitativa,compõe-se de elementos absolutamente heterogêneos,que, entretanto, se interpenetram, de sorte que não é possível discriminá-losclaramente uns dos outros; e, por último, esta realidade interior é livre.Não é espacial nem calculável; de fato, não somente ela dura, senão que é duração pura,e, como tal, completamente diferente do espaço e do tempo das ciências danatureza. É um agir único e indivisível, umalor (élan) e um .devir que não pode ser medido. Esta realidadeencontra-se, em principio, em constante fluir, nunca é, mas perpetuamentedevém.

A faculdade humana que corresponde à matéria espacial é a inteligência, e esta caracteriza-se por sua exclusiva orientação para a ação.É a ação que comanda, sem mais, a forma da inteligência.Como para a ação necessitamos de coisas exatamente definidas, o objeto principalda inteligência é o fixo corpóreo, inorganizado,fragmentário; a inteligência não concebe claramente senão o imóvel. Seu domínioé a matéria. Ela a capta para transformar os corpos em instrumentos; é o órgãodo homo faber e subordinado, essencialmente,à construção de instrumentos. 

Dentro do domínio da matéria e graças à sua afinidade essencial com a matéria, a inteligência não só capta os fenômenos,como também a essência das coisas. BERGSON abandonao fenomenismo de KANTe dospositivistas, e confere à inteligência, no domínio do corpóreo, a capacidadede penetrar na essência das coisas. Segundo ele, a inteligência é também analítica,ou seja, capaz de decompor segundo qualquer lei ou sistema e de recompor de novo. Suas características são a clareza e a capacidade de distinguir.

Mas, ao mesmotempo, a inteligência caracteriza-se igualmente pelo fato de, por natureza,lhe ser impossível compreender a duração real, a vida. Constituída de acordocom a matéria, ela transfere as formas materiais, extensivas, calculáveis,claras e determinadas, ao mundo da duração; interrompe a corrente vital únicae introduz nela a discontinuidade, o espaço e anecessidade. Não pode sequer comprender o simplesmovimento local, como o provam os paradoxos de ZENÃO.

Só podemosconhecer a duração graças à intuição;mas com ela conhecemo-ladiretamente e como algo íntimo. A intuição distingue-se por característicasque se contrapõem às características da inteligência. Órgãodo homo sapiens, a intuição não está ao serviço da prática; seuobjeto é o fluente, o orgânico, o que está em marcha; só ela pode captar aduração. Enquanto a inteligência analisa, decompõe, para preparar a ação,a intuição é uma simples visão, que não decompõe nem compõe, mas vive a realidadeda duração. Não se adquire facilmente a intuição; tão habituados estamos aouso da inteligência que se torna necessária uma viragemíntima violenta, contrária a nossas inclinações naturais, para podermos exercitara intuição, e só em momentos favoráveis e fugazes somos capazes de o fazer.

Em resumo, existem doisdomínios: de um lado, o domínio da matéria espacial e rígida, subordinadoà inteligência prática; de outro lado, o domínio da vida e da consciênciaque dura, ao qual corresponde a intuição. Sendo aatitude da inteligência exclusivamente prática, a filosofia não pode utilizarsenão a intuição. Os conhecimentos, obtidos por este meio, não podem ser expressosem idéias claras e precisas, nem tampouco são possíveis asdemonstrações. A só coisa, que o filósofo pode fazer, é ajudar os outros aexperimentarem uma intuição semelhante à dele. Assim se explica a riquezade imagens sugestivas que as obras de BERGSON oferecem.

      C. TEORIADO CONHECIMENTO E PSICOLOGIA.
BERGSON aplicou seu método intuitivo em primeiro lugar aos problemasda teoria do conhecimento. Tais problemas, diz ele, receberam até ao presentetrês soluções clássicas: o dualismo corrente, o kantismo e o idealismo.

Contudo,estas três soluções estribam totalmente na falsa afirmação de que a percepçãoe a memória são puramente especulativas, independentes da ação, quando narealidade são completamente práticas, subordinadas à ação. Por suavez, o corpo não é mais do que um centro de ação. Destes princípios se infereque a percepção não abarca senão uma parte da realidade; ela consiste, defato, numa seleção de imagens, das que são necessárias para cumprir a ação.

O idealismo engana-se; os objetos, de que o mundo se compõe, são "imagens verdadeiras" e não únicamente elementos da consciência. Tanto o realismo habitualcomo o de KANT cometemerro ainda maior, ao situarem entre a consciência e a realidade exterior oespaço homogêneo, que consideram como indiferente.De fato, o espaço é só uma forma subjetiva, em correspondência unicamentecom a ação humana.

BERGSON consolida sua teoria do conhecimento
mediante uma psicologia definida. 

Em primeiro lugar, repudia o materialismo, quetira toda sua força do fato de a consciência depender do corpo – como se,do fato de um vestido oscilar e cair com o gancho a que está suspenso, tivéssemosde concluir que o vestido e o gancho são idênticos. Entre os fenômenospsicológicos e os fisiológicos não existe sequer um paralelismo, o qual, aliás,nada provaria.

A prova disto é a memória pura. Com efeito, importa distinguirdois tipos de memória: umamemória mecânica, corporal, que consiste unicamente na repetição de umafunção tornada automática, e a memória pura, que reside nas imagens da lembrança.Neste caso, não se pode falar de uma localização no cérebro, argumentoprincipal aduzido pelos materialistas. Se houvesse uma tal localização exata,deveriam perder-se porções inteiras da memória por causa de certas lesõescerebrais; na realidade muitas vezes só se verifica um enfraquecimento geralda memória.

Mais acertadamente talvez se pudesse comparar o cérebro a umaespécie de gabinete destinado a transmitir sinais. Sua função não é a vidapropriamente espiritual. Por seu turno, a memória não é uma percepção atenuada,mas um fenômeno essencialmente diferente.

A psicologia associacionista estriba no duplo erro de concebera duração como um espaço e o eu como um conjunto de coisas decalcadas pelamatéria. Estes mesmos erros conduzem ao determinismo psicológico, queconcebe os motivos como coisas simultâneas e o tempo como um caminho no espaço,donde se infere, naturalmente, a negação da liberdade. Na realidade, nossasações provêm de nossa personalidade toda; a decisão cria algo de novo, o atosai do eu, unicamente do eu e, portanto, é inteiramente livre. O fato de aliberdade ser negada tão freqüentemente, apesar de sua evidência imediata,deve-se a que a inteligência forma um eu superficial, análogo ao corpo, eencobre dessa maneira o eu real mais profundo, que não é senão criaçãoe duração.

     D.VIDA E EVOLUÇÃO.
As duas doutrinas clássicas, pelas quais se pretendeu explicara vida, a mecanicista e a teleológica, erram por igual, vistoambas negarem radicalmente a duração. Segundo a primeira, o organismo é umamáquina de antemão determinada porleis calculáveis, e, de acordo com a segunda, existe um plano acabado do mundo.Ambas, sob certo aspecto, ampliam demasiado a noção de inteligência;a inteligência é para operar e não para conhecer a vida. A filosofia precisasuperar estas duas doutrinas, especialmente o mecanicismo que nega simplesmentefatos evidentes.

      Do mesmo modo que no problemapsicofísico, também no problema da vida é possível observar um fenômeno quemostra a falsidade do mecanicismo. Este fenômeno consiste na produção de órgãosestruturalmente análogos em linhas evolutivas muito diferentes; assim, porexemplo, o olho nos moluscos e nos vertebrados, cujas linhas de evolução devemter-se separado muito antes do momento em que adquiriram a vista. Servindo-sedeste fato e de muitas outras observações, BERGSONrepele o mecanicismo darwinistae neodarwinista e, em geral, a concepção mecanicistado órgão vivo. 

O órgão vivo deve ser considerado como a expressão complexade uma função simples; pode ser comparado a um quadro composto demilhares de traços, mas que expressa a inspiração simples do artista. Sem dúvida, o organismo contém um mecanismo, parece até ser um mecanismo. Mas assim como num arco dividido em minúsculos segmentos, estes segmentos coincidemaparentemente com a tangente, assim também a vida examinada em suas minúcias com os métodos das ciências da natureza parece ser um mecanismo, mas não o é.

      A vida como um todo não é nenhuma abstração.
Em determinado momento surgiu em certos lugares do espaçouma corrente vital que, através dos organismos desenvolvidos, vai passandode um germe a outro. A corrente vital procura vencer os obstáculos que a matérialhe opõe; a materialidade de um organismo representa a totalidade dos obstáculoscontornados pela vida. 

A vida não procede logicamente, erra de quando em quando,acumula-se em becos sem saída ou até volta para trás. Contudo, o ímpeto vitalgeral persiste. A fim de poder desdobrar-se, o alorvital (élan vital) divide-se em várias direções. Assim, surgiu, emprimeiro lugar, a grande divisão do reino vegetal e do reino animal: as plantasacumulam diretamente a energia, para que os animais possam hauri-la nelase disponham da mesma como de matéria explosiva para a ação livre. As plantasestão ligadas à terra e, nelas, a consciência aindase encontra entorpecida; só desperta no mundo animal.

O élanvital subdivide-se ainda no mundo animal em duas direções diferentes,como se experimentasse dois métodos: numa direção culmina nos insetos sociais,na outra encontra seu acabamento no homem. Na primeira direção, a vida buscamobilidade e flexibilidade mediante oinstinto, ou seja, mediante a capacidadede utilizar ou até mesmo de criar instrumentos orgânicos; o instinto conheceseus objetos por simpatia, desde dentro, e age de modo infalível mas sempreuniforme. Ao invés, nos vertebrados desenvolve-se a inteligência, isto é, a faculdade de fabricar e utilizar instrumentosanorgânicos. 

Por sua essência profunda, a inteligência não se orienta para as coisas, mas para as relações, para as formas; conhece seu objeto só porfora. Contudo, suas formas vazias podem encher-se de inumeráveis objetivose indefinidamente. A Inteligência perfeita ultrapassa suas fronteiras primitivase pode até encontrar aplicação fora do campo prático, para o qual foi propriamentecriada.

Finalmente,aparece no homem, embora só em forma de fugazes arranques, a intuição, na qual o instinto se tornou desinteressadoe capaz de refletir sobre si mesmo. Além disso, o homem é livre. Todo estecurso evolutivo conduz, portanto, a libertação da consciência do homem, eeste aparece como o fim último da organização vital sobre o nosso planeta.

E. METAFÍSICA
Se o filósofo consente em mergulhar no oceanode vida que nos cerca, pode tentar conceber a gênese dos corpos e da inteligência.Esta intuição mostra que não só a vida e a consciência, mas a realidadeinteira é um devir. Não existem coisas, mas somenteações, e o ser é essencialmentedevir. "O devir encerra mais do que o ser". 

Só a nossa inteligência e , por conseguinte, a ciência nos representam os corpos como rígidos. Na realidade, o próprio mundo material é movimento, alor, embora certamente em descensoe dispersão. Com efeito existem no mundo duas espécies de movimento, ummovimento ascendente – o da vida – e outro movimento descendente – o da matéria.A lei da matéria é a lei da degradação da energia; a vida luta contra estalei, sem contudo poder aboli-la; quando muito, consegueretardar-lhe os efeitos.

Poderíamos compreender este processo, comparando-oao vapor que sai em jatos pelas fendas de um vaso. Este vapor em contato como ar livre condensa-se em pequenas gotas que caem. Mas uma pequena parte dovapor não se condensa imediatamente e esforça-se por elevar as gotas que caem.De modo idêntico, do imenso reservatório da vida saem incessantemente unscomo que jatos, cada um dos quais caindo forma um mundo; as gotas que caemsão a matéria. Ou, para empregar outra imagem, o mundo com o movimento vitalé comparável a um braço erguido que torna a cair, em conseqüência do relaxamentodos músculos: a matéria é como que um gesto criador que se desfaz. Mas estasimagens são insuficientes, porque a vida é do domínio psicológico e é inespacial.

Processoidêntico se passa na consciência. A Intuição tem a mesma direção que a vida,a inteligência tem a direção contrária. Por isso a inteligência está essencialmentecoordenada à matéria. A intuição, pelocontrário, mostra-nos a verdadeira realidade, na qual aparece a vida comoonda gigantesca que se espraia e logo em seguida é contida em quase toda suaamplitude. Só num ponto foi vencido o obstáculo e o impulso encontra livresaída. Esta liberdade aparece na forma humana. Pelo que, não sem razão, afilosofia afirmou a liberdade do espírito em geral, sua independência relativamentea matéria e sua provável sobrevivência após a morte.

Entretanto, a filosofia extraviou-se, por haver utilizado a inteligência e seus conceitos. Valendo-sede minuciosas análises, BERGSON mostracomo surgiu a idéia da desordem (a saber, da contingência das duasordens possíveis, a vital e a geométrica)e como se formou a idéia do nada, que é propriamente uma pseudo-idéia.BERGSON investe contra os maisimportantes sistemas filosóficos do passado.

A metafísica de PLATÃO e de ARISTÓTELES, seguindo a propensão naturalda inteligência, conseqüência dos conceitos que não fazem mais do que imitar a linguagem, subjugou a duração. Outro tanto acontece fundamentalmente, embora com diferenças de pormenor, nos sistemasmodernos, como os de DESCARTES, SPINOZA, LEIBNIZ, no criticismode KANTe principalmente em SPENCER. Neste último é onde semanifesta com particular evidência ocaráter cinematográficode nosso pensamento: pretendecaptar e representar a evolução por uma sucessão de estados do ser que sedesenvolve, e desconhece assim totalmente a verdadeira duração.

F. ÉTICA.
Segundo BERGSON, há duas espécies de moral,a moral fechada e a moral aberta. A moral fechada deriva dos fenômenosmais gerais da vida; consiste numa pressão exercida pela sociedade, e as açõesque lhe correspondem são levadas a cabo de modoautomático, instintivamente. Só em casos excepcionais se trava luta entreo eu individual e o social. A moral fechada é impessoal e triplamente fechada:visa a conservação dos costumes sociais, faz coincidir quase inteiramenteo individual com o social, de sorte que a alma se move constantemente dentrodo mesmo círculo, e, por último, é sempre função de um grupo limitado e nuncapode ser válida para a humanidade inteira, porque a coesão social, da qualé função, repousa em grande parte na necessidade de autodefesa.

A par destamoral fechada, que obriga absolutamente, existe amoral aberta. Esta aparece encarnada em personalidades. eminentes,em santos e heróis, e não é moral social, mas humana e pessoal. Não consistenuma pressão, mas num apelo; não é fixa, mas essencialmente progressiva ecriadora. É aberta no sentido que abarca a vida inteira no amor, proporcionaaté o sentimento da liberdade e coincide com o próprio princípio da vida.Procede de uma emoção profunda que, do mesmo modo que o sentimento provocadopela música, carece de objeto.

Todavia,na realidade nem a moral fechada nem a moral aberta se apresentam em formapura; toda aspiração procura consolidar-se numa obrigação e esta, por suavez, procura captar a aspiração. Estas duas forças, das quais uma é infra-intelectuale outra supra-intelectual, operam no campo da inteligência, e por isso omoral é uma vida racional.Como quer que seja, a moral fechada e a aberta constituem duas manifestaçõescomplementares do mesmo valor vital.

G. FILOSOFIA DA RELIGIÃO.
A mesma divisão que se fez na moral se aplica igualmentea religião: há uma religião estática e uma religião dinâmica. A religiãoestática consiste numa reação defensiva da natureza contra os efeitosda atividade da inteligência, que ameaçam oprimir o indivíduo ou dissolvera sociedade. A religião estática prende o homem à vida e o indivíduoà sociedade mediante fábulas que se assemelham a canções de berço.A religião é obra da "função fabuladora" da inteligência. 

A inteligência,em sentido estrito, ameaça desfazer a coesão social, e a natureza não podeopor-lhe o instinto, cujo lugar foi precisamente substituído no homem pelainteligência. Mas a natureza ajuda-se mediante a produção da função fabuladora.Se o homem sabe, pela inteligência,que tem de morrer, coisa que o animal não sabe, e se a inteligêncialhe ensina que entre a tentativa e o êxito desejado existe o espaçodesanimador do insondável, a natureza volta a ajudá-lo a suportareste conhecimento amargo, fabricando, graças a sua função fabuladora,deuses. O papel da função fabuladora nas sociedades humanas corresponde ao do instinto nas sociedades animais.

A religião dinâmica, o misticismo,é algo inteiramente diferente.Resulta deum retorno na direção donde procede o élan vital, enasce da pressentida captação do inacessível a quea vida aspira. Estemisticismo é próprio somente de homens extraordinários. Não se manifestou ainda entre os velhosgregos, como nem em forma perfeita na Índia, ondenão deixoude ser puramente especulativo. Contudo surgiu entreos grandes místicos cristãos, que possuíam uma saúde espiritual que se pode qualificar de perfeita. 

A religião cristã aparece como a cristalização deste misticismo, mas, por outro lado,constitui o seu fundamento, porque os místicos são todos imitadores originais, embora imperfeitos, daquele que nos deixou o Sermão da Montanha.

A experiência das místicos permite-nos defender não só aprobabilidade das concepções relativas à origem do élanvital, como também a afirmação da existênciade Deus, que não se pode provar com argumentos lógicos. Osmísticos ensinam também que deus é o amor, e nada impede queos filósofos desenvolvam a idéia, sugerida por eles, de o mundonão ser mais do que um aspecto palpável deste amor e da necessidadedivina de amor.

A base da experiência dos místicos, corroborada pelas conclusões da psicologia, pode igualmente afirmar-se, com uma probabilidade que toca nas raias da, certeza, a sobrevivência após a morte.

***


Fonte:
CONSCIENCIA:ORG
http://www.consciencia.org/bergsonbochenski.shtml
Tradução de Antônio Pinto de Carvalho.
in A Filosofia Contemporânea Ocidental.
Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

A MEMÓRIA E O INCONSCIENTE COLETIVO



Alessandra Garrido Sotero da Silva
Doutoranda em Teoria Literária / UFRJ
 
A memória é um tema muito estudado por diversos ramos da ciência; entre eles, a psicologia, a sociologia, a medicina e a literatura. Neste capítulo, faremos um apanhado dos diversos pareceres sobre o tema, de maneira interdisciplinar, sempre tendo como eixo norteador a literatura. Logo, faremos uma trajetória do conceito de memória e suas implicações. 

Observa-se que a temática memória não é nova, pois segundo registros, desde a antiga Grécia já se tratava disso. A palavra “Memória” vem do grego Mnemosyne , que se tratava de uma deusa que presidia a função memorialística. O poço de Mnemosyne fazia os mortos, que dele bebiam, relembrar suas vidas, o oposto do poço de Lethe , que os fazia esquecer. Na tese de doutorado do professor doutor Antônio Jardim, Música, vigência do pensar poético, encontramos algumas reflexões sobre a etimologia desta palavra (1997: 152):
A palavra memória provém do grego que diz, mais imediatamente, ação de lembrar, o lembrar ele mesmo, aquilo que permanece no espírito /.../ pode-se entender memória como instância de inventar, meditar, refletir e velar, no sentido de cuidar, a unidade.
 
Na página 152, Jardim lembra que devido à concepção ontológica, a memória pode ser vista como “um fator constituidor da tentativa de imortalização”. Logo, podemos dizer que nessa primeira visão relatada a memória tem o sentido de “vir à tona” o que estava submerso no espírito, com o efeito de cuidar, imortalizar.
Henri Bergson (1859-1941), filósofo francês, escreveu um livro indispensável para quem se detém nos estudos sobre memória, Matéria e memória ( 1896). Como o próprio define no prefácio da 7 a edição, o livro “afirma a realidade do espírito, a realidade da matéria, e procura determinar a relação entre eles sobre um exemplo preciso, o da memória” (1999: 01). 

A sua proposta de reflexão começa a partir da leitura do mundo através de imagens e a apreensão desse mundo através do corpo. Assim, Bergson acredita que a totalidade do universo jamais pode ser completamente decifrada pelo homem, pois o seu instrumento de raciocínio é uma parte dele, como se observa nesse trecho (1999: 13-14):
/.../ o cérebro é uma imagem, os estímulos transmitidos pelos nervos sensitivos e propagados no cérebro são imagens também/.../ é o cérebro que faz parte do mundo material, e não o mundo material que faz parte do cérebro/.../ Nem os nervos nem os centros nervosos podem, portanto condicionar a imagem do universo.
 
Tendo como ponto de partida essas considerações, nota-se que Bergson não compartilhava de algumas correntes intelectualistas da ciência da época, que criam que o homem poderia conhecer tudo através de sua capacidade intelectual, pois o cérebro é uma parte do mundo material também. Logo, a sua visão sobre a memória também foi revolucionária, já que afirmava a realidade do espírito, ou algo além da matéria. Sobre o tema, Bergson faz aproximações com a lembrança, distinguindo entre elas dois tipos (1999: 91): 

A lembrança espontânea é imediatamente perfeita, o tempo não poderá acrescentar nada à sua imagem sem desnaturá-la; ela conservará para a memória seu lugar e sua data. Ao contrário, a lembrança aprendida sairá do tempo à medida que a lição for melhor sabida; torna-se-á cada vez mais impessoal/.../ Das duas memórias que acabamos de distinguir, a primeira parece portanto ser efetivamente a memória por excelência/.../
 
Portanto, constata-se que Bergson acreditava na existência de uma memória pura, inalterável, que se contrapõe à lembrança- imagem e à percepção, ainda que nenhuma se produza isoladamente, como ele afirma e em seguida as define(1999: 155-6): 

A percepção não é jamais um simples contato do espírito com o objeto presente; está inteiramente impregnada das lembranças-imagens que a completam, interpretando-a. A lembrança-imagem, por sua vez, participa da lembrança-pura que ela começa a materializar e da percepção na qual tende a se encarnar.
 
Ainda sobre a memória, o filósofo afirma que o papel do corpo não é armazenar lembranças, mas simplesmente escolher, para trazê-la à consciência distinta. Assim, cria na existência de uma reserva memorialista que reside no nosso espírito e que o corpo tem o poder de acessá-la nunca de maneira completa, mas fragmentada. 

Ecléa Bosi, em seu livro Memória e sociedade, parte de pressupostos bergsonianos para compor a sua obra. Através dessa autora, pode-se entender de maneira clara a teoria de Bergson, como na seguinte afirmação (1999: 14): “Antes de ser atualizada pela consciência, toda lembrança vive em estado latente, potencial/.../”. Depois, ela completa, dizendo que: “o papel da consciência, quando solicitada a deliberar, é, sobretudo o de colher e escolher/.../“. E, finalmente, ela faz uma aproximação ao que Bergson considerava a verdadeira memória, ou lembrança-pura à arte (1999: 11): 

/.../ a lembrança-pura, quando se atualiza na imagem-lembrança, traz à tona na consciência um momento único, singular, não repetido, irreversível, da vida/.../ Sonho e poesia são, tantas vezes, feitos dessa matéria que estaria latente nas zonas profundas do psiquismo, a que Bergson não hesita de dar o nome de inconsciente.
 
Através dessa concepção que Ecléa pontua, pode-se afirmar que a arte, assim como o sonho, retoma essa memória considerada verdadeira por Bergson, inatingível na sua extensão. A literatura, portanto, seria uma das “chaves” que abre a “fechadura” desse mundo oculto que vive em nosso espírito.
Outra leitura contundente que Ecléa nos traz é a caracterização da memória como força espiritual, como se lê no trecho reproduzido (1999: 16):
A memória é, para o filósofo da intuição, uma força espiritual prévia a que se opõe a substância material, seu limite e obstáculo. A matéria seria, na verdade, a única fronteira que o espírito pode conhecer.
 
Podemos chegar, dessa forma, ao seguinte raciocínio: se a literatura é um acesso para a memória pura e a memória é por essência espiritual, sendo a matéria uma oposição a ela; a literatura é, de certa forma, uma chave a uma categoria do espírito, ou para quem preferir, ao inconsciente.
O sociólogo Halbwachs escreveu uma obra célebre, que colaborou enormemente para os estudos memorialísticos: A memória coletiva. Nele, o autor defende, como o título sugere, que a memória é um fato puramente social. Ecléa Bosi, em alguns trechos de Memória e sociedade, discute sobre a teoria deste sociólogo (1983: 17-18): 

Halbwachs não vai estudar a memória como tal, mas os quadros sociais da memória. Nessa linha de pesquisa, as relações a serem determinadas já não ficarão adstritas ao mundo da pessoa (relações ente o corpo e o espírito), mas perseguirão a realidade interpessoal das instituições sociais. A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, coma escola, coma Igreja, com a profissão/.../
 
O caráter livre, espontâneo, quase onírico da memória é, segundo Halbwachs, excepcional. Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se é assim, deve-se duvidar da sobrevivência do passado tal como foi, e que se daria no inconsciente de cada sujeito.
 
Halbwacs amarra a memória da pessoa à memória do grupo; e esta última a esfera maior da tradição, que é a memória coletiva de cada sociedade.
 
Observa-se, então, que para ele, a memória individual, como estudado por Bergson, é quase inexistente. Tudo aquilo de que nos lembramos e pensamos ser algo subjetivo, na verdade, é determinado socialmente. Logo, nossa memória é condicionada pela sociedade em que vivemos.
No livro A memória coletiva, Halbwachs parte do pressuposto que o homem é acima de tudo um ser estritamente social, assim, a memória não poderia se excetuar a este condicionamento, como se lê nas seguintes afirmações:
/.../ só temos capacidade de nos lembrar quando nos colocamos no ponto de vista de um ou mais grupos e de nos situar novamente em uma ou mais corrente do pensamento coletivo /.../ É por isto que quando um homem entra em sua casa sem estar acompanhado de alguém, sem dúvida durante algum tempo esteve só, segundo a linguagem comum.Mas lá não esteve só senão na aparência, posto que, mesmo nesse intervalo, seus pensamentos e seus atos se explicam pela sua natureza de ser social, e que nenhum instante deixou de estar confinado dentro de alguma sociedade. (1990: 36-7)
 
É difícil encontrar lembranças que nos levem a um momento em que nossas sensações fossem apenas o reflexo dos objetos exteriores, no qual não misturávamos nenhuma das imagens, nenhum dos pensamentos que nos prendiam aos homens e aos grupos que nos rodeavam. Se não nos recordamos da nossa primeira infância, é, com efeito, porque nossas impressões não se podem relacionar com esteio nenhum, enquanto não somos ainda um ser social. (1990: 38)
 
Em determinado momento do livro, a partir de seus pressupostos, Halbwachs fornece a sua definição de lembrança (1990: 71):
/.../ a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso, preparada pro outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada.
 
Segundo o nosso entendimento, não fica claro em Halbwachs a distinção entre lembrança e memória, mas o ponto de sua obra que discutiremos mais tarde é a idéia de que cada grupo social possui a sua memória específica. Nota-se, entretanto, que esse conceito é discutido pelo próprio autor (1990: 115) :
Mas a questão é então saber se os grupos, em si mesmos estão verdadeiramente separados. Poder-se-ia conceber, com efeito, não somente que eles sejam formados por numerosos empréstimos, mas que suas vidas se aproximam e se fundam geralmente, como se essas linhas de evolução se cruzassem incessantemente.
 
No trecho citado, Halbwachs se aproxima do que Jung chamou de inconsciente coletivo, do que trataremos no capitulo a seguir, buscando fazer uma aproximação desse termo jungiano ao que falaram Bergson e Halbwachs sobre a memória. 

Carl Gustav Jung, cujo um de seus conceitos iremos tratar a seguir, foi um psicólogo colaborador de Sigmund Freud no início do século XX. Rompeu com Freud quando criou a sua “Psicologia Analítica”, que é muito complexa para ser explicada em poucas linhas, mas pode-se dizer que uma das diferenças básicas entre esta e a Psicanálise se dá no que diz respeito ao inconsciente. 

Freud descobriu o inconsciente e Jung percebeu que só o inconsciente pessoal não esgotaria as questões que surgiam nas suas pesquisas, logo concluiu que o ser humano teria o inconsciente pessoal e o coletivo. Essa teoria surgiu a partir de diversos indícios: muitos pacientes de Jung tinham visões ou sonhos (mitológicos) que não poderiam ter vivenciado e ele comparou ainda diversas sociedades tribais e não-tribais, que não tiveram nenhum contato e possuíam mitos e rituais idênticos ou muito similares. Então, concluiu que havia algo na mente do ser humano que não era individual e não poderia ser explicado só pelo grupo social em que vivia; assim, ele criou o termo inconsciente coletivo para designar uma camada mental relacionada com a totalidade, com o universo. 

Muitos estudiosos criticam Jung pelo interesse que tinha por assuntos cientificamente suspeitos. Na verdade, Jung valorizava o lado intuitivo do ser humano, supunha que o excesso de racionalidade poderia prejudicar o homem e assim, aproximava-se bastante da cultura oriental. À crítica relatada respondem Calvin Hall e Vernon Nordey, em Introdução à Psicologia Junguiana (1993: 19):
Jung não tratava esses assuntos como discípulo e sim como psicólogo. A questão fundamental para ele era descobrir o que esses temas revelavam a respeito da mente, sobretudo o nível da mente a que Jung dava o nome de inconsciente coletivo.
 
No livro O homem e seus símbolos, Jung discute a vulnerabilidade das teorias científicas, defendendo, de certa forma, o lado humano intuitivo (1964:92):
É uma ilusão comum acreditarmos que o que sabemos hoje é tudo o que poderemos saber sempre. Nada é mais vulnerável que uma teoria científica, apenas uma tentativa efêmera para explicar fatos, e nunca uma verdade eterna.
 
Pode-se afirmar que nesse ponto seu parecer é similar ao que lemos em Bergson, pois este também cria na incapacidade do ser humano em enquadrar tudo em esquemas experimentais. O filósofo diz, como citamos anteriormente, que o cérebro do homem, por ser uma parte do mundo material, é incapaz de esgotar a explicação do universo, que segundo ele, não se resume à matéria.
Jung, como dissemos, privilegiava a porção intuitiva do homem, considerado como um acesso ao inconsciente. Esse é um ponto fundamental, que tangencia ainda a teoria bergsoniana, e, que se opõe a Psicanálise, como explica Dante M. Leite em Psicologia e Literatura (1967: 33)

Se para Freud o inconsciente, sede dos instintos, é fonte de energia cega e destrutiva, para Jung, o inconsciente, sobretudo o inconsciente coletivo, é o depósito não apenas de impulsos, mas das idéias mais ricas e significativas da humanidade. Nesse sentido, se Freud e Jung pensam em conquistar o inconsciente, a sua intenção é oposta: para Freud, essa conquista supõe a possibilidade de estender o domínio racional às forças irracionais que tem dominado o homem; para Jung, a conquista do inconsciente não tem como objetivo o seu controle, mas a sua aceitação.
 
Como vimos anteriormente, para Bergson, a lembrança-pura era algo advindo do espírito e acessá-la era como se adentrássemos no domínio do espírito. Podemos comparar o inconsciente da psicologia ao que Bergson denominou espírito (ou uma parte dele) e a intuição, que Jung tanto admirava, às lembranças-puras. Portanto, a intuição ou a lembrança-pura é um acesso ao inconsciente, ou, ao espírito. Essa questão está muita associada à literatura, pois, se como lemos em Ecléa Bosi , a arte é uma forma de atingirmos a verdadeira memória, a literatura é fruto da intuição/ lembrança pura. Jung, em O homem e seus símbolos, faz uma associação entre a genialidade humana e a chamada intuição (1964: 38):
Muitos artistas, filósofos e mesmo cientistas devem suas melhores idéias a inspirações nascidas de súbito do inconsciente. A capacidade de alcançar um veio particularmente rico deste material e transformá-lo de maneira eficaz em filosofia, em literatura, em música ou em descobertas científicas é o que comumente chamamos genialidade.
 
O inconsciente abarcaria a verdadeira memória, possível de ser acessada por escritores em suas obras grandiosas. É importante ressaltar que, o conceito de inconsciente que se presta à analogia citada é o conceito junguiano, pois não é só individual, mas também coletivo. A literatura seria, portanto, obra do inconsciente coletivo.
Pode-se afirmar que os estudos de Jung sobre o inconsciente e conseqüentemente sua descoberta do inconsciente coletivo constituem marco decisivo na história da Psicologia e das ciências humanas. Mas, afinal, como definir o inconsciente coletivo? Hall e Nordey, em Introdução à Psicologia junguiana, explica a terminologia da seguinte maneira (1993: 31): 

A mente do homem é pré-figurada pela evolução. Desta maneira, o indivíduo está preso ao passado, não somente ao passado de sua infância, mas também, ao passado da espécie, e, antes disso, à longa cadeia da evolução orgânica. /.../ O inconsciente coletivo é um reservatório de imagens latentes, em geral denominadas imagens primordiais por Jung /.../
 
Logo, de acordo com o raciocínio estipulado até essas linhas, a nossa verdadeira memória, como chamou Bergson, aquela que sobrevive no espírito, não remonta somente as nossas experiências, mas as de nossa espécie. Assim como não podemos apreendê-la completamente, temos acesso às reminiscências dessa memória coletiva que vive em nós.
Em seu livro citado, Jung explica como chegou à terminologia inconsciente coletivo (1964: 47);
Fiz várias comparações deste tipo entre o homem moderno e o primitivo. São essenciais para compreendermos a tendência do homem de construir símbolos e a participação dos sonhos para expressá-los. Pois vamos descobrir que muitos sonhos apresentam imagens e associações análogas a idéias, mitos e ritos primitivos. Estas imagens oníricas eram chamadas por Freud resíduos arcaicos. A expressão sugere que estes resíduos são elementos psíquicos que sobrevivem na mente humana há tempos imemoriais. É um ponto de vista característico dos que consideram o inconsciente uma simples apêndice do consciente/.../ Constatei que associações e imagens deste tipo são parte integrante do inconsciente e podem ser observadas por toda parte- seja o sonhador instruído ou analfabeto, inteligente ou obtuso. 

Não são, de modo algum, resíduos sem vida ou significação.Têm, ao contrário, uma função e são, sobretudo valiosos /.../ Constituem uma ponte entre a maneira por que transmitimos conscientemente os nossos pensamentos e uma forma de expressão mais primitiva, mais colorida e pictórica. E é esta forma que apela diretamente à nossa sensibilidade e à nossa emoção. Essas associações históricas são o elo entre o mundo racional da consciência e o mundo do instinto.
 
Segundo Jung o inconsciente coletivo é formado por arquétipos, que são manifestados pelos símbolos com os quais nos defrontamos na nossa experiência humana. Arquétipo para Jung é um modelo original, um protótipo, mas não são entidades fechadas, pois segundo ele existem tantos arquétipos quanto às situações típicas da vida (1964: 69):
O arquétipo é, na realidade, uma tendência instintiva, tão marcada como o impulso das aves para fazer seu ninho ou o das formigas para se organizarem em colônias/.../ Chamamos instinto aos impulsos fisiológicos percebidos pelos sentidos. Mas, ao mesmo tempo, estes instintos podem também manifestar-se como fantasias e revelar, muitas vezes, a sua presença apenas através de imagens simbólicas. São a estas manifestações que chamo arquétipos. A sua origem não é conhecida; e eles se repetem em qualquer época e em qualquer lugar do mundo- mesmo quando não é possível explicar a sua transmissão por descendência direta ou por fecundações cruzadas resultantes da migração.
 
Podemos também confirmar a idéia junguiana da existência de um inconsciente coletivo e o seu conteúdo (os arquétipos) através do que lemos em Halbwachs sobre a memória. Segundo o sociólogo, somos seres estritamente sociais e as nossas lembranças são sempre coletivas, grupais. Jung comprovou essa tese e foi além: percebeu que há uma universalidade entre as nossas lembranças e estas não se restringem a uma vivência pessoal, nem de um grupo, mas da espécie humana e pré-humana [1[. Falamos no capítulo anterior sobre a lacuna que propositalmente deixa Halbwachs em seu livro na última citação feita. Ele questiona se os grupos estão verdadeiramente separados, evidentemente por causa das diversas misturas culturais existentes. Entretanto, o sociólogo crê que são resultantes de empréstimos provocados com possíveis convivências e Jung anula, através de suas pesquisas, essa possibilidade, pois constata que algumas recordações não eram passíveis de algum contato, advinham verdadeiramente de um elo que concatena os seres, chamado por Freud de resíduos arcaicos. 

 Como lemos na afirmação de Jung, essas imagens não eram resíduos sem uma delimitada origem como disse Freud, mas advinham do inconsciente coletivo. Essa idéia preenche exatamente a lacuna deixada por Halbwachs, evidenciando que o nosso inconsciente é pessoal e coletivo. Portanto, o que lembramos pode ser fruto de nossa vivência individual, social ou de reminiscências de vivências de outros da nossa espécie, havendo, portanto, o liame da evolução.
 


 Fonte:
www.letras.ufrj.br/
http://www.letras.ufrj.br/ciencialit/garrafa11/v1/alessandragarrido.html
Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.