sábado, 4 de dezembro de 2010

MEMÓRIA E IDENTIDADE : BERGSON





MEMÓRIA, LINGUAGEM E IDENTIDADE – MEMÓRIA HOJE

Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros
Antropóloga, professora do PPCis 
e coordenadora do Laboratório de Dinâmicas Societárias,
IFCH - UERJ

Resumo: A discussão teórica sobre memória se faz num cruzamento de idéias sobre linguagem, calcadas principalmente nas perplexidades desencadeadas pelas modernas tecnologias da sociedade da informação. Privilegiando o enfoque de Henri Bergson sobre memória nesta comunicação, apresento estudos de caso em que suas teorias sobre matéria, memória e suas relações com o corpo explicam fenômenos como a violência e seus efeitos. Nos exemplos apresentados analiso a memória da violência iluminando reflexões cientificas (Dra. Nise Magalhães da Silveira) e, em outras circunstâncias, produzindo forte reação à dor, enquanto gera ações de largo alcance social – combate ao cangaço. 

Abstract:(...)

De espectro muito abrangente, o título da mesa desafia a possibilidade de se falar, em vinte minutos, de temas tão complexos, responsáveis por vasta bibliografia nestes tempos de informática, onde o que mais se pratica é "deletar" material para abrir espaços a novos descartáveis.

É possível à memória humana a preservação da carga midiática de que se alimenta a sociedade da informação? A linguagem do computador é acessível à grande massa da população do planeta? Quais os critérios para se escolher o que deve ser deletado e o que se preservará em tecnologias mais avançadas? Um disquete ou um CD tem o mesmo tempo de vida que o livro de papel, o papiro e o pergaminho?

Como no palimpsesto utilizado pelos destruidores de memórias mais remotas para nele se implantar outras mais recentes, a linguagem do computador, não mais pela pobreza de material de que padeceram os antigos escribas, mas pela própria lógica de mercadorização do mundo, foi programada para deletar de sua memória "mercadorias" superadas por outras mais "modernas", numa voracidade ímpar na história, de oferecer "novas chances de compra ao consumidor". Afinal, o principal princípio dos direitos individuais, é o de "poder consumir o que se pode comprar". A sofreguidão maior da mídia é a produção, na linguagem mais sintética e rápida do mundo, de "novas notícias". Qual o lugar das "velhas notícias"?

Essas preliminares, que podem ser desenvolvidas em outros tempo e espaço, ficam "guardadas na memória do disco rigído", junto com a discussão sobre ‘identidade’, limitando-me nesses vinte ou trinta minutos de fala programada, a considerações sobre o debate teórico do tema "memória", um dos tantos "musts" dos mundos acadêmico e jornalístico dos últimos vinte anos. 

Aliás, programação dos tempos de fala, determinação de número de toques por artigos e de laudas por dissertação de mestrado e tese de doutorado, são inequivocamente submissão às imposições da mídia que calcula sempre o preço do espaço por centímetro ocupado nas páginas de jornais e revistas, e os custos dos segundos e minutos consumidos em rádio e televisão. Em defesa dessa pressão argumenta-se com tabelas de custos de material, energia, tempo dos profissionais, em outras palavras, compatibilização entre custos e lucro envolvidos na "oferta do produto" ao "consumidor". Até as agências de financiamento público à pesquisa e à capacitação de pessoal – "formação de recursos humanos", discutem "bolsas de balcão" ou "programas de incentivo à pesquisa grupo". Esta linguagem é outra representação de subsídios, investimentos no "varejo" ou no "atacado"?

Retendo fatos, transmitindo-os, reelaborando-os, criando-os, em suma, representando-os pela linguagem (falada, gestual - prelúdio da imagética, escrita, e hoje virtual e áudio-visual), a espécie humana brinca, com um caleidoscópio de infinitas possibilidades, com a tentação de ser Deus manipulando a natureza, recriando-a, transformando-a, inventando-a, isto é, faz cultura. Em todo esse processo, a memória é o mecanismo de apoio, o elemento diferencial que evita à humanidade partir sempre do zero, das primeiras regras de vida associativa ou de técnicas de domesticação da natureza e de produção tecnológica, lançando-se no mecanismo cumulativo de saber transmitido intra e inter-gerações. 

Com origem desconhecida num tempo sem registro de linguagem perceptível às modernas gerações, a cultura (criação das linguagens, de regras de parentesco, primeiras classificações e tecnologias), essencial à sobrevivência humana, pelo processo de socialização se torna "patrimônio", direito de qualquer nascido em todos os tempos e espaços particulares da sociedade humana universal.
Recorrendo ao mito, segundo Lévy-Strauss, tão universal quanto a regra do tabu do incesto, a cultura, perpassando todas as metalinguagens de alteridades sociais mais amplas ou restritas, universaliza como direitos do homem, as conquistas que garantiram a espécie, até contra a lei da seleção natural.

A singularidade da metalinguagem, como a científica por exemplo, sem a escrita e longo processo de aprendizagem se perde no universo ágrafo, enquanto o mito, alimentado principalmente pelas emoções e ritualizações, é a linguagem universalmente acessível à humanidade. O recurso à memória emocional é largamente utilizado no ensino X aprendizagem desde a infância, num processo de recorrência que integrará a personalidade dos indivíduos constituindo-se marca na memória das coletividades de que esses fazem parte, ao mesmo tempo em que influencia, como o afirma Bergson, o caráter dos portadores dessa memória.

A preocupação com o estudo da memória, incorporada mais recentemente às ciências humanas, esteve há décadas (ainda no século XIX) no centro das discussões entre neurologistas, anatomistas e outros estudiosos das ciências naturais, como por exemplo, a Teoria de Broca sobre a localização da zona de memória no lobo frontal do cérebro (zona de Broca). Por esse viés, a busca de compreensão da memória ocupou-me períodos de estudo de neuroanatomia na década de 60, quando teoricamente se estudava nas áreas médicas a existência material da memória, nos tratamentos de afasias de expressão ou compreensão. Conclusões eram tiradas a partir de comparações entre a zona de Broca de um profissional da fala, como um radialista, e alguém pouco falante (sempre portador de zona de memória menos volumosa). Por essa perspectiva, o avanço que me orientou inicialmente em busca de outras abordagens, levou-me a Henri Bergson, em seu "Matéria e Memória: Ensaio sobre a Relação do Corpo com o Espírito".

Esse autor voltaria a minhas reflexões na década de 90, nas discussões, já no Doutorado, sobre Trabalho de Campo e significado da memória registrada nos depoimentos dos informantes. Nesse período, as discussões sobre História Oral já apareciam em rica bibliografia incorporando Halbwachs, Pierre Nora, Ecléa Bosi, Michael Pollak e os debates sobre Memória e História, que culminariam no conceito de cultura como memória.

Trabalhando a oralidade do material etnográfico, tanto na pesquisa de mestrado (catolicismo popular – décadas de 70, 80) quanto no doutorado (violência no Nordeste – 92 a 97), evidenciava-se a importância da memória não só para as reconstituições de época, como para as representações e construção de identidade. Principalmente na análise de violência, privilegiei os significados da percepção, consciência, representação e "memória como sobrevivência das imagens passadas" (BERGSON, 1990: 49).

Diferentemente dos autores que priorizam o papel do esquecimento, da invenção e construção da memória e das representações, Bergson trata da "realidade das coisas já não construída ou reconstruída, mas tocada, penetrada, vivida" (1990:51).

Analisando os depoimentos de vítimas do cangaço, como homens castrados e mulheres estupradas e ferradas a fogo, percebe-se a atualidade desse autor tratando a percepção: "tal como a entendemos, mede nossa ação possível sobre as coisas e por isso inversamente, a ação possível das coisas sobre nós" (1990:41). Nos depoimentos coletados, essas pessoas, todas elas de vida truncada, são vítimas do opróbio, num processo inexorável de memória dolorosa. 

Segundo Bergson nessa mesma página 41, "toda dor consiste portanto num esforço, e num esforço impotente". Enquanto revivescência de momentos de profundo terror com dor física e moral, cada lembrança da violência vivida há 30 ou 40 anos, não importa o tempo transcorrido, cada flash de memória do fato reedita todas as sensações do momento de humilhação da dignidade humana, demarcando a impotência do sujeito à dominação da violência. Em sentido oposto, as vítimas dos cangaceiros que superaram a impotência da dor transformando-a em estímulo ao combate e à supressão do cangaço, representam-na como um acontecimento datado, circunscrito ao momento vivido (perda de parentes vitimados, ataques sofridos). 

Revivendo aquela lembrança, completam-na com a memória dos sentimentos de reação subseqüentes, tornando-se o reviver de fatos uma seqüência de dor, reação, organização para o combate, logo, potência, em lugar de impotência. 

Em termos de caráter, são pessoas fortes que marcam a comunidade onde vivem com uma memória coletiva de embates, a ponto de elementos distantes se referirem àquela comunidade a partir de traços identitários de "povo valente, homens de sangue no olho"! Em todo o sertão do Nordeste eram freqüentes as referências aos Nazarenos (grupo familiar que combateu Lampião e todo o cangaço) como "povo onde até as mulheres são valentes"! A representação que os Nazarenos fazem de si, logo a auto-imagem, corresponde à percepção de milhares de outros sertanejos sobre os efeitos da violência.

Entendendo a memória como lembranças de fatos vividos, percebidos e sentidos pelas pessoas, Bergson não atribui importância única ao esquecimento como estratégia de sobrevivência, de criatividade.

Lembrando-se dos efeitos das torturas do choque elétrico sobre companheiros de prisão em 1936, anos depois, já em liberdade, Dra. Nise Magalhães da Silveira reflete sobre o chamado "tratamento por eletro-choque", imposto aos portadores de distúrbios mentais. Associando as duas imagens, estabelece conexões emocionais e científicas, elaborando teorias e técnicas psiquiátricas que a levam a condenar as práticas manicomiais. Não recorrendo ao esquecimento das más experiências vividas na prisão, a Doutora reveste-as de reflexões analíticas preservando-as como exemplos de atentado à dignidade humana, convertendo seu repúdio, revivido a cada evocação dos torturados da cadeia e dos hospícios, em corpo teórico-prático capaz de lançá-la internacionalmente na luta pela reversão dos métodos terapêuticos dominantes em meados do século XX.

Considerando porém a capacidade de criação e recriação da memória (entendida como representação), as técnicas de história oral, aprofundando procedimentos da etnografia, exigem do pesquisador apuradas metodologias de tratamento do material recolhido. Estabelecendo redes de informantes, é possível cruzar informações, memórias de fatos entre os membros de uma mesma rede, compará-las com os relatos de membros de outras redes, além dos recursos de pesquisa documental e de hemerotecas, tudo submetido à plausibilidade, aos crivos de teorias e técnicas científicas. 

Reservando-se ao jornalismo o simples relato factual, as ciências históricas e sociais exigem do pesquisador pacientes modalidades de aplicação de questionários abertos e fechados, descrição do ambiente onde são feitas as entrevistas, submissão das transcrições aos entrevistados, retorno a esses em diferentes ocasiões para testar a boa compreensão das falas. Distanciando-se do sensacionalismo, ao dar voz aos homens comuns, os modernos métodos não objetivam transformá-los em historiadores e cientistas sociais, mas em conhecer sua visão de mundo, enquanto também sujeitos de uma história até então entendida como "feitos dos grandes homens".

A própria idéia de "grande homem" de nosso modelo explicativo do passado e do presente é analisada como uma modalidade específica de olhar a vida social, característica da visão ocidental do mundo. Como ilustração desse raciocínio, cito a expressão de Euclides da Cunha, em Os Sertões, quando sintetiza sua avaliação sobre Antônio Conselheiro: "É um grande homem às avessas". Não cabia em seu modelo positivista de grande homem a figura esquálida, de roupas rasgadas e sandálias rústicas, a pé, apoiado num cajado (bordão). Faltava ao Conselheiro o cavalo branco, a espada e as roupas engalanadas, ou a sobrançaria intelectual que o constituiriam, na visão urbana – heroicizante do escritor, "um grande homem". Escapou a Euclides da Cunha a percepção das representações que faziam Conselheiro símbolo e signo de vinte e cinco mil pessoas oferecendo-lhe a vida de lutas e pobreza. 

Ele é o grande homem enquanto substrato, representação e esperança de milhares de homens que o viam como o melhor e mais santo entre eles. São duas concepções díspares de "grande homem", representações de mundo que se cruzavam na luta contra e a favor das desigualdades sociais entre homens de mesma língua, com linguagens diferentes na percepção do que é vida, do que é grandeza. Na linguagem dos conselheiristas, "pequeno não existe e grande só Deus"!

O criar e recriar inerentes aos mecanismos de atuação da memória, ligam-se à força do presente, do qual "parte o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório motores da ação presente que a lembrança retira o calor que lhe confere a vida"(1990:125). Embora altamente impregnadas de presente, as lembranças do passado podem subsistir, enquanto revivescência de imagens anteriormente registradas. Essa capacidade cerebral de fixação de imagens como em programas de computador, discussão diferenciada dos elementos da memória entre ciências naturais e sociais, leva à afirmação de Bergson: "sustentamos contra o materialismo que a percepção supera infinitamente o estado cerebral; mas procuramos estabelecer contra o idealismo que a matéria ultrapassa por todos os lados a representação que temos dela, representação que o espírito, por assim dizer, colheu aí através de uma escolha inteligente" (1990:148).

Considerando-se porém os imperativos da vida social, conclui-se que a noção de "fato" não corresponde à realidade de uma intuição imediata. Numa perspectiva de duração, espaço e experiência do sujeito, se daria uma adaptação do real filtrado por esses fatores. Logo, a memória para Bergson não é também uma emanação da matéria, o que aponta para a complexidade de seu estudo. A existência do sistema neuro-cerebral humano imbrica-se inseparavelmente com a complexidade das exigências sociais e do transcorrer da vida em relações classificatórias de tempo, espaço, emoção e controle racional do homem e da sociedade, elementos esses constitutivos das representações.

Discutir a categoria memória é evocar debates sobre liberdade a partir da idéia bergsoniana de passado desempenhado pela matéria, imaginado pelo espírito.


 Fonte:
Morpheus -
Morpheus - Revista Eletrônica em Ciências Humanas 
- Ano 02, número 03, 2003 - ISSN 1676-2924
Sejam felizes todos os seres.
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