quinta-feira, 15 de abril de 2010

O INCONSCIENTE - C.G.JUNG


INCONSCIENTE - Carl Gustav Jung
Página viva
INCONSCIENTE
Como Freud, Jung usa o termo “inconsciente” tanto para descrever conteúdos mentais que são inacessíveis ao ego, como para delimitar um lugar psíquico com seu caráter, suas leis e funções próprias.

Jung não considerava o inconsciente exclusivamente como um repositório da experiência pessoal, reprimida e infantil, mas também como um lugar central da atividade psicológica que difere da experiência pessoal e era mais objetiva que ela, desde que se referia diretamente às bases filogenéticas, instintivas, da raça humana. O primeiro, o inconsciente pessoal, era visto como fundando-se no segundo, o inconsciente coletivo. Os conteúdos do inconsciente coletivo jamais estiveram na consciência e refletem processos arquetípicos (ver ARQUÉTIPO). 

Tanto quanto o inconsciente é um conceito psicológico, seus conteúdos, como um todo, são de natureza psicológica, não importa que conexão suas raízes possam ter com o instinto. Imagens, símbolos e fantasias podem ser designados como a linguagem do inconsciente (ver FANTASIA; IMAGEM; METÁFORA; SÍMBOLO). O inconsciente coletivo opera independentemente do EGO por causa de sua origem na estrutura herdada do CÉREBRO. Suas manifestações aparecem na CULTURA como motivos universais que possuem graus de atração próprio (ver NUMINOSO).

Foi apontado que essa distinção de Jung é um tanto acadêmica, pois os conteúdos do inconsciente coletivo exigem o envolvimento de elementos do inconsciente  pessoal para sua manifestação no comportamento; os dois tipos de inconscientes são, portanto, indivisíveis (Williams, 1963a). Por outro lado, o conceito do inconsciente coletivo pode ser usado na análise para discriminá-lo da experiência pessoal, e se avaliarem suas conexões não-pessoais (ver AMPLIFICAÇÃO; ASSOCIAÇÃO). O ego então pode se relacionar com estas de modo diferente (Hillman, 1975). O diálogo no âmbito da psicologia analítica se verifica entre uma perspectiva pessoal e a realidade de uma perspectiva não-pessoal (ver PSIQUE OBJETIVA).

Em termos de estrutura psíquica, concebem-se a anima ou o animus como ligando o ego com o inconsciente (ver ANIMA E ANIMUS; PSIQUE; PSICOPOMPO). A relação entre a consciência e o inconsciente é expressa usualmente por Jung em termos de COMPENSAÇÃO.

A REFLEXÃO sobre o inconsciente conduz a uma consideração da razão por que algumas partes se tornam conscientes e algumas não. A conclusão tentada por Jung era de que (a) o quantum de energia é variável e (b) a força do ego determina o que pode passar para a CONSCIÊNCIA. Com respeito ao ego, o fator crucial é sua capacidade de manter um diálogo e interagir com possibilidades reveladas pelo inconsciente. Se o ego é relativamente forte, ele permitirá a passagem seletiva de conteúdos inconscientes para a consciência (ver FUNÇÃO TRANSCENDENTE). Com o passar do tempo, tais conteúdos podem ser considerados intensificadores do desenvolvimento da personalidade de um modo único e individual (ver INDIVIDUAÇÃO; TRANSFORMAÇÃO). Pode-se verificar que existe uma diferença em ênfase entre Freud e Jung com relação ao inconsciente. A opinião de Jung é de que o inconsciente é, primariamente ou potencialmente, criativo, funcionando a serviço do indivíduo e da espécie. (Sobre uma discussão quanto aos pontos de vista de Freud sobre os aspectos filogenéticos do inconsciente, ver ARQUÉTIPO.)

Até aqui mencionou-se que o inconsciente tem seu lugar na estrutura psíquica, tem sua própria estrutura interna, sua linguagem e uma disposição geral da criatividade. Além disso, embora alguma decodificação possa ser necessária, Jung atribui ao inconsciente uma forma de  conhecimento, até de pensamento. Pode-se expressar esse fato na linguagem da filosofia dizendo-se que contém a “causa final” de uma tendência psicológica ou linha de desenvolvimento psicológico. Poderíamos julgar isso como a razão ou o propósito para alguma coisa acontecer, a “finalidade” para a qual acontece ou se realiza. Na consciência, uma causa final seria uma esperança, aspiração ou intenção. É difícil denominar as causas finais que operam no inconsciente, mas estas podem ser experimentadas pela pessoa como promovendo a expressão e o SIGNIFICADO de sua vida individual. Este aspecto do inconsciente encerra o chamado PONTO DE VISTA TELEOLÓGICO. Dever-se-ia observar que Jung não está nem dizendo que o inconsciente causa a ocorrência de coisas, nem que sua atuação e influência são necessariamente benéficas (ver SINCRONICIDADE).

Para uma discussão do pensamento inconsciente, ver PENSAMENTO DIRIGIDO E DE FANTASIA.
 Fonte:
http://www.rubedo.psc.br/dicjung/verbetes/inconsci.htm


Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

CONSCIÊNCIA - C.G.JUNG

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CONSCIÊNCIA - Carl Gustav Jung

Carl Gustav Jung , em 1906
Este é um dos mais importantes conceitos para compreensão da psicologia junguiana. A distinção entre consciente e INCONSCIENTE já tinha sido centro da atenção nos primeiros tempos da investigação psicanalítica, mas Jung favoreceu e refinou a teoria 

(1) postulando a existência de um inconsciente coletivo como de um pessoal, 

(2) atribuindo ao inconsciente uma função compensatória em relação à consciência (ver COMPENSAÇÃO) e 

(3) reconhecendo a consciência como pré-condição para a humanidade, bem como para o tornar-se um indivíduo. Consciente e inconsciente foram identificados como OPOSTOS primordiais da vida psíquica.

A definição de consciência, de Jung, realçou a dicotomia entre o consciente e o inconsciente e enfatizou o papel do EGO na percepção consciente.
Por consciência entendo a relação de conteúdos psíquicos com o ego, desde que essa relação seja percebida pelo ego. Relações com o ego não percebidas como tais são inconscientes. A consciência é a função da atividade que mantém a relação de conteúdos psíquicos com o ego (CW 6, parág. 700).
Como conceito útil, a consciência foi amplamente aplicada e, conseqüentemente, se presta a incompreensões. A percepção, neste sentido, não é resultado da intelectualização e não pode ser obtida apenas pela mente. É o resultado de um processo psíquico em contraste com um processo de pensamento. Em várias ocasiões Jung equiparava a consciência com conscientização, intuição e APERCEPÇÃO, ressaltando a função de REFLEXÃO em sua consecução. 

A obtenção da consciência pareceria ser o resultado da recognição, reflexão sobre a experiência psíquica e retenção desta, possibilitando ao indivíduo combiná-la com o que ele havia aprendido, a sentir emocionalmente sua relevância e seu significado para sua vida. Em contraste, os conteúdos inconscientes são não-diferenciados e não há esclarecimento sobre o que pertence ou não pertence à própria pessoa de um indivíduo. DIFERENCIAÇÃO “é a essência, o sine que non da consciência” (CW 7, parág. 339). SÍMBOLOS são vistos como produtos inconscientes que se referem a conteúdos capazes de entrarem na consciência.
Jung considerava a mente natural como não-diferenciada. 

A mente consciente era capaz de discriminação. Portanto, a consciência começa com o controle dos INSTINTOS, possibilitando ao homem adaptar-se de uma forma ordenada. Porém, a ADAPTAÇÃO e o controle de comportamentos naturais e instintivos podem apresentar perigos, levando a uma consciência unilateral fora de contato com componentes mais obscuros e mais irracionais (ver SOMBRA).
Desde que qualquer coisa dissociada se torna autônoma e incontrolável, afirmando-se negativamente a partir dos recessos da SOMBRA, Jung percebia uma unilateralidade da consciência como sendo a atual condição do homem ocidental, identificável nas neuroses de seus próprios pacientes, mas também nas epidemias psíquicas COLETIVAS, tais como guerras, perseguição e outras formas de repressão em massa (ver NEUROSE). 

A chamada Era do Iluminismo, enfatizando, como fez, a atitude racional de uma mente consciente e considerando a iluminação intelectual como a mais elevada forma de discernimento e, por isso mesmo, do máximo valor, pôs em sério perigo a existência humana em sua totalidade. “Uma consciência inflada é sempre egocêntrica e consciente apenas de sua própria existência” (CW 12, parág. 563). Paradoxalmente, isso leva a uma REGRESSÃO da consciência para a inconsciência. O equilíbrio só pode ser restabelecido se a consciência então levar em conta o inconsciente (ver COMPENSAÇÃO).
Contudo, apesar do risco, a consciência não deve e não pode ser dispensada. Isso acarretaria uma inundação por forças inconscientes, solapando ou obliterando o ego civilizado (ver ENANTIODROMIA). A marca oficial da mente consciente é a discriminação; quando é necessário estar cônscio das coisas, devem ser separados os OPOSTOS, pois na natureza os opostos se fundem um com o outro. Todavia, uma vez separados, os dois devem ser conscientemente relacionados um com o outro.

Chegando à conclusão de que a coisa mais individual do homem era sua consciência e baseada na suposição de que a INDIVIDUAÇÃO é uma necessidade psíquica, a psicologia junguiana ficou equiparada com o aumento da consciência, e na ANÁLISE a suposição era de que a consciência se deslocaria da centralização pelo ego para um ponto de vista mais consistente com a totalidade da personalidade (ver SELF). 

Assim, a “consciência” da psicologia de Jung esbarrava em todos os perigos identificados com a busca da própria consciência: unilateralidade, inundação, desintegração, INFLAÇÃO, REGRESSÃO, alienação, DISSOCIAÇÃO, divisão (ver POSIÇÃO ESQUIZOPARANÓIDE), egocentrismo e NARCISISMO, lado a lado com a intelectualização. É neste contexto que as proliferações e os cismas da psicologia analítica podem ser vistos (Samuels, 1985a).
Numa tentativa de apresentar paralelismos entre processos individuais e coletivos de se chegar à consciência, Neumann escreveu The Origins and History of Consciousness (1954). Singer (1972) produziu a esse respeito uma obra já considerada clássica. Hillman (1975) define a consciência como “reflexão psíquica do mundo psíquico sobre nós e parte de adaptação àquela realidade”. Ele critica a Psicologia Analítica por se limitar a uma visão demais estreita da consciência.

"Não posso provar a você que Deus existe, mas meu trabalho provou
empiricamente que o "padrão de Deus" existe em cada homem, e que esse
padrão (pattern) é a maior energia transformadora de que a vida é capaz
de dispor ao indivíduo. 

Encontre esse padrão em você mesmo e a vida será
transformada
."

(C.G. Jung)
Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

terça-feira, 13 de abril de 2010

A RELIGIÃO E O RISO

FAQ (Frequently Asked Questions)

Q: Can I get free sheet music for this piece?
A: Yes, you can download the score shown in the video from here:
http://www.musanim.com/pdf/BeethovenMoonlightSonata_mvt1.pdf

A RELIGIÃO E O RISO

Surgiu um mundo de qualidades sem homem, de vivências sem quem as vive, e quase parece que, num caso ideal, o ser humano já não vive mais nada pessoalmente, e o amável peso da responsabilidade pessoal se dilui num sistema de fórmulas de significados possíveis. Provavelmente a diluição do comportamento antropocêntrico que julgou o homem centro do universo, mas há séculos está desaparecendo, por fim chegou ao próprio eu;[...] (Musil, 2006, p.173)

INTRODUÇÃO

A idéia de escrever este ensaio sobre o tema da religião e do riso me ocorreu há cerca de um ano, quando assisti no Youtube a um vídeo do humorista americano George Carlin, falecido por aquela época. No filme, Carlin faz uma engraça crítica à religião (Religion is bullshit -Religião é besteira), que arrancou muitas gargalhadas da audiência em Nova York. Ator, humorista e comediante, George Carlin (1937­2008) sempre foi um grande crítico do “American way of living” (o jeito americano de viver). Ridicularizava o excessivo patriotismo dos americanos, seu impulso consumista e até o exagerado engajamento ambiental. O maior alvo de Carlin, no entanto, sempre foram as religiões; em tudo o que elas têm de autoritário, obscurantista e fanático. O comediante era um ardoroso defensor da democracia, da liberdade individual e dos valores seculares.
A peça humorística de Carlin coloca a seguinte questão: por que em alguns países com uma forte base religiosa, onde ainda hoje as igrejas têm grande influência na sociedade, como nos Estados Unidos, o humor com a religião é praticado e tolerado, ao passo que em sociedades aparentemente mais liberais e informais, como a brasileira, existe pouco humor com temas religiosos? Analisando o assunto com mais rigor, chegamos ao enfoque principal deste trabalho, ou seja, de que o riso da religião é só um aspecto superficial, um sintoma de todo um processo cultural e social, no que se refere à relação da sociedade com o fenômeno religioso e com tudo o que ele implica. É, pois, necessário estudar alguns aspectos do pensamento crítico sobre a religião, o passado e o atual; procurar entender estas idéias e compreender para o que elas apontam, o que parecem nos mostrar para além da crítica. Ou seja, analisar, por exemplo, por que Platão vê na religião o mais sublime jogo que o homem pode jogar (apud Huizinga) e por que os Goliardos queriam indicar com sua crítica à religião para algo além dela (apud Minois)? São estes os questionamentos principais com os quais se preocupa e ocupa o presente texto. Trata-se, todavia, apenas de uma análise pontual que não pretende ser um estudo sistemático. Mesmo porque, outros autores, utilizados neste trabalho como fonte de pesquisa de conteúdo e método – Huizinga, Minois, Campbell, Febvre e Bakhtin, entre outros –, tiveram muito mais talento e conhecimentos para a empreitada.

CAPÍTULO 1
INTRODUÇÃO AO TEMA

O trabalho A religião e o riso, abordará o tema inicialmente em sua dimensão propriamente dita, descrevendo o significado do riso e sua relação com a religião ao longo do tempo. O período considerado neste estudo vai aproximadamente da Pré-História ao Renascimento, já que é neste espaço de tempo que a influência da religião sobre as sociedades é mais acentuada. O texto, entretanto, não esgota o assunto; apresenta apenas alguns fatos e análises que caracterizaram a relação do riso com a religião durante este período histórico.

Em seguida, serão descritos alguns aspectos da relação entre a religião e o riso, sob ponto de vista filosófico e cultural. É fato que pouquíssimos filósofos se ocuparam especificamente do fenômeno do riso, menos ainda do riso em relação à religião, o que fez com que as fontes de pesquisa para este trabalho fossem bastante reduzidas e tivessem que ser encontrados subsídios em um universo bibliográfico mais amplo e não dirigido exclusivamente para este tema. Assim, o estudo se vale das contribuições de filósofos e escritores que abordaram o assunto da religião sob um aspecto crítico, mas que também olharam além do simples fenômeno religioso, tentando apontar-lhe outros significados. A análise filosófica e cultural, todavia, não coincidirá necessariamente com os períodos históricos focados, já que as informações disponíveis sobre a história da religião e da filosofia, no que se refere ao riso, não são necessariamente de períodos históricos coincidentes.
Ao final o estudo apresenta uma conclusão, na qual se pretende demonstrar que a crítica da religião, seja através do riso ou da argumentação, longe de ter como alvo principal a divindade e sua instituição é, na realidade, um estudo crítico da sociedade e do homem. Examinar o fenômeno religioso, seja sob que aspecto for – inclusive o riso – é analisar o homem e sua cultura, tentando entendê-los através de uma abordagem diferente.

CAPÍTULO 2
O RISO, O QUE É?

Em sua própria visão o homem sempre imaginou ocupar um lugar único no universo. Apesar de reverenciar os deuses com mais ou menos temor, o homem sempre enxergou a si mesmo (e ainda assim se considera) como o interlocutor privilegiado dos céus. No entanto, por sua própria posição no universo não poderia ser diferente. Os animais eram, quando muito, bestas de carga, alimento e fonte de matéria prima. Mas, o desenvolvimento das ciências ao longo da história foi gradualmente mudando esta visão antropocêntrica. Todavia, mesmo até há pouco tempo, o homem se considerava diferente dos outros animais, por ter aptidões que lhe eram únicas, como criar uma cultura, fazer instrumentos, possuir uma linguagem; aparentemente não partilhados por nenhuma outra espécie. Entrementes, descobrimos que os Neanderthais, ramo evolutivo da espécie Homos com os quais não temos ligação genética direta, também tinham uma cultura primitiva, desenvolveram instrumentos, detinham rudimentos de linguagem e talvez até enterrassem os seus mortos – covas encontradas não atestam definitivamente um rito fúnebre. O golpe final no nosso antropocentrismo foi dado quando, nos últimos trinta ou quarenta anos, cientistas descobriram que macacos antropóides também utilizavam técnicas para se alimentar com o uso de ferramentas, que não eram herdadas, mas foram desenvolvidas ao longo do tempo através da “tentativa e erro” e transmitidas aos seus semelhantes. Em outras palavras: possuíam uma rudimentar cultura. Além disso, descobriu-se que espécies como os macacos e golfinhos conseguem comunicar-se com um grau de complexidade na mensagem, que até então era desconhecido. O zoólogo Frans de Waal em seu livro “O macaco em nós – por que somos como somos” (no original alemão “Der Affe in uns – Warum wir sind, wie wir sind”), escreve:
Mais tarde, a elaboração de ferramentas era tido como algo tão importante, que foi escrito um livro com o título O homem como construtor de ferramentas. Esta definição tinha fundamento, até se descobrir que chimpanzés selvagens fazem esponjas, ao mastigarem folhas até que se transformem em algo parecido a um chumaço de algodão ou ao arrancarem as folhas de um galho, transformando-o em vara para cutucar. (DE WAAL, 2006, p. 246, tradução nossa).
Assim, pouco ou quase nada sobrou de único para a espécie humana. Todas as aptidões que temos em grau altamente desenvolvido e que a ciência havia sempre considerado como únicas de nossa espécie, os outros animais também possuem em estado rudimentar. O que então permaneceu especificamente humano? Qual é a característica que a nossa espécie, Homo Sapiens Sapiens, tem de única na natureza?
A maior parte dos antropólogos, paleontólogos, zoólogos e demais especialistas que se dedicam ao estudo do tema, dizem – concordando com Aristóteles – que o homem é talvez a única espécie que ri, que tem senso de humor. Isto, porém, só permanecerá válido até que a ciência não avance mais um pouco e nos tire também esta pequena vantagem evolutiva. Mas, mesmo nesse ponto a posição dos pesquisadores não é unânime. Frans de Waal afirma que os chimpanzés e os bonobos (espécie aparentada dos chimpanzés) quando jovens, abrem suas bocas de uma maneira que se parece com a risada humana. O assunto permanece inconcluso, mas certamente por ora não afetará esta pesquisa.
Atendo-nos apenas ao nosso universo humano, temos informações suficientes para afirmar que entre 40 e 60 mil anos passados, ocorreu com nossa espécie aquilo que o arqueólogo Steven Mithen descreve como o big bang da cultura humana. Referindo-se a este período, escreve Mithen:
É muito fácil pensar que a transição entre o Paleolítico Médio e o Superior é uma explosão, ou um big bang – das origens do universo da cultura humana.” [...] “notaremos que não existe um único big bang e sim uma série de faíscas culturais que acontecem em momentos diferentes e partes diferentes do mundo, entre sessenta e trinta mil anos atrás. (MITHEN, 1998, p. 248).
Acompanhando a gradual evolução da cultura humana, também ocorre o desenvolvimento da consciência e da nossa capacidade de achar certas coisas risíveis, engraçadas. Assim o humor, associado ao riso, deve ter se aprimorado bastante ao longo dos últimos 60 mil anos, período no qual a cultura humana se desenvolveu muito mais rapidamente do que nos três ou quatro milhões de anos anteriores na existência da espécie Homo. É bem provável que sentados a cada noite ao redor das fogueiras, durante dezenas de milhares de anos, contando histórias de grandes animais, aparições de criaturas mágicas ou fazendo troça de um companheiro desastrado durante a caça, nossos antepassados devam ter lentamente contribuído para aguçar o senso de humor da nossa espécie e para desenvolver a cultura.
Não muito longe do exemplo dos nossos antepassados sentados ao redor do fogo, rindo com o azar de um companheiro, está a descrição feita por Sigmund Freud (1856-1939) em O Humor, relatando que:
Há duas maneiras pelas quais o processo humorístico pode realizar-se. Ele pode dar-se com relação a uma pessoa isolada, que, ela própria, adota a atitude humorística, ao passo que uma segunda pessoa representa o papel de expectador que dela deriva prazer; ou pode-se efetuar entre duas pessoas, uma das quais não toma parte alguma no processo humorístico, mas é tornado objeto de contemplação humorística pela outra. (FREUD, 2006, p. 165).
Nossos antepassados devem ter tido muitas oportunidades para desenvolver seu senso de humor, que mais tarde terá um importante papel na cultura humana. O riso sempre teve a função de reduzir tensões (individuais ou grupais) e deve ter se aprimorado junto com outras duas atividades humanas, com a mesma característica de atenuar o sofrimento humano: a cultura, através da arte e das ferramentas; e a religião, com práticas de cura, aconselhamento e adivinhação. Ainda é Freud que escreve:
Como os chistes e o cômico, o humor tem algo de libertador a seu respeito, mas possui também qualquer coisa de grandeza e elevação, que faltam às outras duas maneiras de obter prazer da atividade intelectual. Essa grandeza reside claramente no triunfo do narcisismo, na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego. O ego se recusa a ser afligido por provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões de obter prazer. Esse último aspecto constitui um elemento inteiramente essencial do humor. (ibid., p. 166).
E conclui dizendo:
Além disso, a pilhéria feita por humor não é o essencial. Ela tem apenas o valor de algo preliminar. O principal é a intenção que o humor transmite, esteja agindo em relação quer ao eu quer as outras pessoas. Significa: “Olhem! Aqui está o mundo, que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria!”(ibid., p. 169).
Quantas brincadeiras e piadas não teriam inventado os nossos antepassados do Paleolítico, contando histórias sobre caçadas de renas e mamutes, algumas mau sucedidas? O riso com certeza contribuiu para desafiar a realidade, atenuar o medo daquelas forças da natureza, que pareciam tão fortes e perigosas àqueles homens.
Na filosofia, foi o filósofo Henri Bergson (1859-1941) um dos poucos a tentar uma explicação do riso. Iniciando com a definição do objeto do riso, a comicidade, Bergson escreve que:
Não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano. Uma paisagem poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia; nunca será risível. Rimos de um animal, por termos surpreendido nele uma atitude humana ou uma expressão humana. Rimos de um chapéu; mas então não estamos gracejando com o pedaço de feltro ou de palha, mas com a forma que os homens lhe deram, com o capricho humano que lhe serviu de molde. (BERGSON, 2007, p. 3).
Avançando em sua análise do riso, Bergson se admira que até a sua época tão poucos filósofos tenham tratado do tema; “como um fato tão importante, em sua simplicidade, não chamou mais a atenção dos filósofos?”, pergunta. O filósofo também descreve várias situações nas quais transparece o aspecto engraçado. Em especial ressalta a rigidez do lado cerimonioso da vida, das cerimônias em si, que tem uma “comicidade latente, que só precisará de uma oportunidade para vir à luz.” (BERGSON, 2007, p. 33).
Mas o que pensamos quando rimos? Rimos de alguém, de algum fato envolvendo pessoas, rimos de idéias ou até de uma instituição. Não rimos de algo inanimado, como uma montanha ou um rio, como escreveu Bergson. Rimos quando um rosto humano, de feições grotescas, é representado em uma nuvem. Mas o esboço da silhueta de uma águia ou da face de um gato, observados na mesma nuvem, desperta admiração, não o riso. Só aquilo que se refere ao humano, que tem ligação com o humano – o pingüim mimetizando um homem de fraque – nos faz realmente rir. Imagens de animais, em diversas situações, podem nos suscitar sentimentos de compaixão, simpatia, admiração, nojo, medo; mas nunca o riso. Filhotes de animais, como os mamíferos, mais perto de nós na aparência e na convivência, fazem-nos rir porque nos lembram crianças pequenas.
Rimos de uma situação ou de alguém que a nós parece engraçado. E o que é risível é o inesperado ou o paradoxal, aquilo que está fora de lugar, representado  por um acontecimento, uma situação ou uma palavra. O filósofo Quentin Skinner (1940), citando o pensador renascentista Nicander Jossius, escreve:
Ele propõe que consideremos como reagiríamos “se uma mulher colocasse roupas masculinas, ou pusesse a espada à cintura e se dirigisse à praça pública, ou se um soldado cheio de glórias sentasse com meninos na escola para aprender gramática, ou se o príncipe se vestisse como um camponês”. Certamente iríamos rir, mas a razão da nossa hilaridade seria a completa incongruência dessas coisas, o fracasso em se dar o devido respeito “ao tempo, ao lugar, à moderação ou à adequação”. Embora estas situações sejam, sem dúvida, ridículas, Jossius parece sugerir que iríamos rir delas menos por desprezo do que por pura perplexidade. (SKINNER, 2002, p. 46).
No entanto, o engraçado só pode ser aquilo que para nós não representa perigo e o que está dentro dos nossos limites morais de respeito e consideração com o próximo. Não achamos engraçado o assalto ao banco, no qual quase fomos atingidos por um tiro, mesmo que os assaltantes usassem máscaras de palhaço.
Também não desperta nosso riso a notícia de que o vizinho, bêbado, tenha caído, e agora se encontra internado no hospital. Ainda em relação ao que é considerado risível, existe uma tênue diferença, que varia de pessoa para pessoa, dependendo de sua origem social, do meio cultural onde vive, do seu nível de instrução, sua idade, a religião a que pertence, o sexo, entre outros fatores. A corrida atrás do touro percorrendo as estreitas ruas de certas localidades da Espanha, pode ser muito engraçada para indivíduos daquela cultura, mas não deve despertar a mesma risada em membros de uma entidade protetora de animais de outro país. O quadro humorístico mostrado pela televisão leva às gargalhadas o expectador médio, mas é visto como pantomima grotesca pela elite mais instruída. Assim também deve ter sucedido como as muitas festas populares que aconteciam nas cidades européias da Alta Idade Média. A hierarquia eclesiástica e social era ridicularizada, o que proporcionava um espetáculo hilário para o povo que delas participava. As vítimas das chacotas e brincadeiras, no entanto, não deviam gostar das festividades – e assim fizeram de tudo para bani-las.
Outro aspecto é que rimos de algo ou alguém porque acreditamos que o fato de nos divertirmos à custa deste sujeito ou desta situação não terá uma represália contra nós; admitimos que o alvo ou sujeito de nosso riso não nos punirá nem reagirá pelo fato de estarmos rindo – pelo menos é o que consideramos naquele momento. Seja pelo motivo de não haver razão para tal reação ao nosso riso (que culpa temos nós, por ter ele caído na poça de água?) ou porque nosso suposto delito não será descoberto (como o ditador saberá que rimos de suas imagens na TV, tentando aparentar bondade, abraçando criancinhas na praça?). No entanto, nestes exemplos, parte-se do pressuposto de que o riso é, em algumas situações, algum tipo de ofensa. Dependendo das condições, o riso pode representar efetivamente uma ofensa, uma humilhação, um ato de prepotência e opressão em relação a alguém mais fraco. Em outras circunstâncias também pode ser considerado ofensivo criticar e fazer piadas sobre crenças, instituições e ideologias, sobre pessoas que ocupam altos postos na hierarquia social; todos considerados mais importantes e, por isso, investidos de mais poder do que o sujeito individual, aquele mesmo que ousa rir ou criticar.
Assim, nas situações hilárias tudo também dependerá de quem é detentor do poder. Muitas vezes, o poder de calar o riso é exercido abertamente: quantas pessoas ousaram rir dos ditadores e permaneceram sem punição? Os comediantes, os trovadores satíricos e os imitadores sempre foram alvos de perseguições e suas piadas e críticas eram proibidas. O grande ditador (1940), filme de Charles Chaplin ridicularizando o ditador Adolf Hitler, teve sua exibição proibida no Brasil, durante parte do governo Vargas. O humor de Chaplin na película era bastante crítico, mas não suscitava o tipo de riso descrito pelo filósofo Quentin Skinner, ao referir-se a um texto de Descartes:
A conexão do riso com o ódio e o desprezo é algo a que Descartes dá uma particular atenção; ele retorna mais tarde a esse ponto em sua discussão de la moquerie. “O escárnio ou a zombaria é um tipo de alegria misturada com ódio, e quando este sentimento surge inesperadamente, o resultado é que desatamos a rir.” (ibid., p. 54).
Outras vezes, o riso crítico não é frontalmente reprimido, mas rechaçado de maneira sutil, ao se afirmar que a instituição ou a idéia criticada é inatacável, por representar algum valor muito elevado e respeitado. Este posicionamento transforma os críticos em transgressores aos olhos do resto do grupo social e atua como uma defesa contra a crítica, já que disseminam o medo e a submissão, apoiados na ignorância.

CAPÍTULO 3
O RISO E A RELIGIÃO

Por que não é comum rir-se da religião? Por que são tão poucas as piadas sobre este tema tão influente na história da cultura brasileira, a erudita e a popular? Para analisar este quadro, partimos da hipótese de que quanto à relação do riso com a religião existem três tipos de posicionamentos. O primeiro inclui as pessoas que tem pouco contato com a religião e para as quais as piadas e a crítica sobre o assunto pouca graça tem, já que o tema não lhes diz respeito. Este grupo de indivíduos é bastante reduzido no Brasil, porque existem poucas pessoas completamente indiferentes à religião e que no decorrer de suas vidas não tiveram nenhum contato com a instituição. O segundo grupo é constituído por pessoas que praticam alguma religião, ou possuem forte preocupação religiosa. Para estes, a piada ou crítica sobre suas crenças é quase sempre considerada ofensiva. O tipo de reação que terão à crítica vai depender muito de seu nível educacional e cultural e até do tipo de igreja ou religião a que pertencem. Em uma pesquisa informal que fizemos, constatamos a existência de um terceiro perfil. Trata-se do indivíduo não­praticante, mas que ainda se apega a algum tipo de crença. É bastante liberal em assuntos de religião e geralmente não é contra piadas sobre o tema, desde que certos limites, geralmente subjetivos e diferentes de indivíduo para indivíduo, não sejam ultrapassados.
Já no âmbito da religião é preciso fazer uma distinção: existem piadas de padres, de sacerdotes, de santos, onde estes quase sempre são retratados de maneira simpática ou em posição de vantagem nos relatos. No entanto, nada ou pouco se ri sobre os dogmas, a divindade e de personagens de grau mais elevado na hierarquia das religiões. Será deste tipo de riso que este trabalho tratará: o riso da religião. Que fique claro que o propósito deste estudo não é desrespeitar quaisquer valores religiosos e muito menos seus praticantes. Trata-se de uma reflexão crítica sobre o riso em relação à religião, através da abordagem de alguns aspectos históricos e culturais.

Se bem que a situação na maior parte do mundo não seja mais a mesma do passado, ainda hoje, em nome da religião, são cometidos crimes contra pessoas, a liberdade individual, a autonomia do Estado, contra a liberdade de pesquisa científica, liberdade de imprensa e de criação, e contra a própria liberdade religiosa. Assim, mesmo em uma sociedade bastante secularizada, ainda estamos em uma situação na qual as pessoas têm medo de rir das divindades (ou do conceito que delas fazem as diversas religiões), de sua igreja e de seus representantes. Neste campo ainda persiste uma espécie de tabu, uma proibição implícita no inconsciente coletivo; como uma barreira contra o riso e contra quase todo tipo de crítica séria baseada em argumentos. Cabe aqui perguntar a quem as religiões estão defendendo contra os críticos: se à instituição religiosa criada pelos homens ou a uma divindade, supostamente todo-poderosa e que por isso não precisaria de advogados.

3.1 PRINCIPAIS ASPECTOS HISTÓRICOS : DA PRÉ-HISTÓRIA ATÉ O SÉCULO XVI

O homem, parece, não se sustenta no universo sem uma crença em algum pacto com a herança geral do mito. Na verdade, a plenitude de sua vida pareceria estar na relação direta entre profundidade e extensão, não do seu pensamento racional, mas de sua mitologia local. De onde provêm a força desses temas impalpáveis, força que lhes dá o poder de galvanizar populações, fazendo delas civilizações cada uma com sua beleza e destinos próprios? E por que, sempre que o homem procurou algo sólido sobre o qual fundar sua vida, ele escolheu não os fatos, que são abundantes no mundo, mas os mitos de uma imaginação imemorial – preferindo mesmo transformar a vida num inferno – para si e para seus vizinhos, em nome de algum deus violento, a aceitar agradecido a generosidade do mundo? (CAMPBELL, 2005, p. 16).

O riso, reação humana a um estímulo e característico de uma sociedade humana com sofisticado grau de comunicação (através do uso de uma linguagem) surgiu junto com a religião, já que ambos requerem uma elevada capacidade de pensamento simbólico. Os primeiros mitos foram possivelmente relatos sobre personagens sobrenaturais, que nas sociedades caçadoras da pré-história eram representados por espíritos da natureza, ligados às práticas mágicas e xamanistas. As pinturas em cavernas como as de Lascaux, na França, e de Altamira, na Espanha, e as esculturas em marfim de Hohlenstein-Stadel, do sudeste da Alemanha (datados de 35 a 17 mil anos atrás), são belos exemplares da arte deste período, representando animais e personagens híbridos (homem-rena, homem­ leão), provavelmente figurando feiticeiros. Nesta época, provavelmente, apareceram grupos humanos que haviam elaborado uma estrita relação entre o riso e o sagrado.

Escreve o historiador José Rivair Macedo sobre o assunto:
Em certos grupos tribais cuja sobrevivência fundamenta-se na caça, por exemplo, os gestos risíveis indicam com relativa clareza aspectos da relação da comunidade com a esfera mágica do sagrado. Deste modo, é permitido quase rebentar de rir ao matar ou enterrar homens e/ou animais. De acordo com Vladimir Propp, a suposição plausível para este comportamento é a de que os caçadores rissem a fim de que os mortos renascessem para uma nova vida. De fato, em determinados rituais de iniciação dos jovens púberes era proibido rir. Nesses rituais, que correspondiam, no plano simbólico, à entrada e saída da região da morte, o riso era velado porque sua manifestação denunciaria algo próprio dos vivos. (MACEDO, 1990, p. 89 e 90).
Este tipo de riso, usual entre estes grupos humanos, sem dúvida não tinha o mesmo sentido humorístico que damos ao riso atualmente. Além disso, não existem dados empíricos para provar que há 20 ou 10 mil anos estes fatos efetivamente ocorriam desta maneira. Para formular estas hipóteses, os antropólogos basearam-se em estudos de campo, feitos pela observação das culturas de povos chamados de primitivos, como as tribos indígenas das Américas, os povos africanos e da Oceania.

Mais recentemente, em torno de 7.000 a.C., coincidindo com a invenção da agricultura e do estabelecimento das primeiras cidades na Mesopotâmia, surgiram os primeiros deuses, cercados de relatos mitológicos bastante elaborados. O homem, com o desenvolvimento crescente da cultura espiritual e material, torna a religião cada vez mais sofisticada. Esta deixa de ter o caráter mágico que possuía na era Paleolítica. Nesta nova fase do desenvolvimento das sociedades, os deuses são personagens que – diferentemente dos espíritos da natureza do período dos feiticeiros – passam a ter um interesse maior na vida das sociedades humanas, protegendo e patrocinando a agricultura, a construção de templos, a cultura religiosa e a guerra contra outros agrupamentos. O santuário (construção menor de uma fase histórica mais antiga) ou templo (construção mais ampla, característica de aglomerações urbanas maiores), junto com os servidores do deus, os sacerdotes, passam a ter um papel cada vez mais preponderante nas sociedades. Esta estrutura investe-se de uma importância e seriedade muito maior, do que a do feiticeiro das tribos de caçadores. Pode-se dizer que alguns valores culturais e religiosos que permanecem vivos até nas sociedades atuais foram criados nestas Cidades-Estado agrícolas, dirigidas pela religião, no final do período Neolítico. Don Cupitt, filósofo e teólogo inglês analisa esta fase da história da seguinte forma:
Na visão que estou apresentando, as antigas mitologias acertam ao dizer que os deuses foram os primeiros reis, os primeiros senhores da terra e a primeira classe alta. É razoável postular que a crença nos deuses desse tipo essencial se desenvolveu lentamente no período após 7.500 a.C., quando tiveram início as atividades agrícolas e a fixação ao solo. Os deuses corporificavam, e eram as concentrações maciças de autoridade sagrada e poder disciplinar necessárias para a evolução das primeiras sociedades estatais. A única maneira de transformar um nômade em um cidadão era induzir nele o temor a um deus. (CUPITT, 1999, p. 21).

Não sabemos, já que não temos documentos específicos em relação ao tema, se os povos do Levante – sumérios, acádios, assírios, caldeus, babilônios, hebreus e dezenas de outros que transitaram ou se estabeleceram na região entre o quinto e primeiro milênios antes de nossa era, tinham deuses que riam, ou se estes povos dispunham de textos com alguma crítica religiosa, que se manifestasse pelo riso. É provável que aqui ou acolá, nas ruínas ainda por escavar na região, entre milhares de tabuinhas de barro cobertas com textos religiosos, ainda se encontre alguma onde um deus esteja gargalhado, ou algum sacerdote tenha escrito algo com certo senso de humor. No entanto, apesar da (aparente) ausência de crítica, as sociedades enfrentaram muitos problemas. Por volta de 2.000 a.C., segundo o historiador das religiões Mircea Eliade (1907-1986), crises espirituais assolaram a Babilônia e outras regiões, resultado da revolta contra a injustiça generalizada na qual “os maus triunfam, as orações não surtem efeito; os deuses parecem indiferentes aos problemas humanos”. (ELIADE, 1978, p. 106). Os judeus, inseridos na tradição do Oriente Médio até pelo menos o século I d.C., quando ocorreu a destruição do templo de Jerusalém e a dispersão de parte da população pelo mundo, são ricos em piadas de humor religioso.

O humor judaico zomba de todos – inclusive de Deus. Muitas vezes satiriza personalidades e instituições religiosas, assim como os rituais e os dogmas. Ao mesmo tempo afirma as práticas e tradições religiosas, buscando uma nova compreensão entre o sagrado e o mundano. (SCLIAR, FINZI e TOKER, apud SILVA, 2006, p. 2)
Este humor possui anedotas interessantes, de grande profundidade e que foram incorporadas ao patrimônio da cultura ocidental. A história a seguir é contada pelo historiador Jean-Claude Carrière:
Uma clássica história judaica, que poderia acontecer em qualquer país europeu e que recoloca Deus no devido lugar, conta que, determinada noite, dois rabinos iniciaram subitamente uma discussão sobre a existência de Deus.

Eles trocaram os argumentos conhecidos sobre este assunto e finalmente, lá pelas quatro ou cinco horas da madrugada, concluíram que Deus não existe. Sobre isto estavam totalmente de acordo.
No dia seguinte, pela manhã, um dos rabinos – que havia convidado o outro, de passagem pela cidade, a pernoitar em sua própria casa – procura o colega e o encontra num canto do jardim recitando suas preces habituais.
Ele se espanta e pergunta: -Mas o que você está fazendo?  -Bem, como você vê, estou recitando minhas preces matinais. -Mas, lembre-se: discutimos a noite inteira e chegamos juntos à conclusão de que Deus não existe. E então? Pode me dizer por que está fazendo as suas preces?  O outro rabino lhe diz, muito simplesmente:  -Mas o que Deus tem a ver com isso? (CARRIÈRE, 2008, p. 175 ­176)
 O espírito crítico da religião, aliado ao humor e à chacota, não é uma exclusividade da cultura ocidental – se pudermos chamar de ocidental toda a tradição do Oriente Médio, além da Grécia. Também da antiga Índia existem relatos sobre uma crítica engraçada à religião. Dispomos de evidências históricas de que entre 600 e 500 antes de nossa era, a vida cultural e religiosa do norte da Índia estava em grande efervescência. O hinduísmo vinha se desenvolvendo desde aproximadamente 2.000 a.C., dando espaço para muitas seitas e dissidências, como o jainismo e o budismo, ambos de tendência atéia. A sociedade culturalmente avançada e em franco crescimento econômico, propiciou o aparecimento de diversos tipos de pensadores: fatalistas, materialistas radicais, ascetas, céticos, pragmáticos, místicos e de monges de todo o tipo e tendência. Apesar da imagem de “terra da espiritualidade religiosa”, os estudiosos admitem que o materialismo ateu foi uma força importante no universo cultural da antiga Índia, antes até do surgimento do budismo. Carvaka é uma das primeiras escolas materialistas da Índia, tendo tomado o nome de um de seus maiores professores, mas tendo sido fundada pelo filósofo Brhaspati. O outro nome dado á escola, Lokayata, significa “o sistema filosófico que tem sua base na vida comum, no mundo profano”, “a arte da sofística” e também “a filosofia que nega de que existe outro mundo além deste”. Os Carvakas também negavam a autoridade das escrituras religiosas indianas. Estas, diziam, eram caracterizadas por três erros: a falsidade, a autocontradição e a tautologia. “Ajita Keshakambalin, um filósofo Carvaka famoso contemporâneo de Buda, declarou que os humanos literalmente vão da terra para a terra, cinzas para as cinzas, pó para o pó” (SHUNYA´S NOTES, 2009: 2, tradução nossa).

O pensamento Carvaka também consta do Ramayana. Neste poema épico
Rama não é o deus que se tornará mais tarde, mas sim um herói épico que tem muitas qualidades e algumas fraquezas – incluindo a de cultivar suspeitas sobre a fidelidade de sua esposa, Sita. No poema um pundit (guerreiro) chamado Javali, não somente deixa de tratar Rama como um deus, mas classifica suas ações como insanas, especialmente sob a ótica de um homem velho e sábio (Javali se referia a si mesmo). Utilizando a doutrina Carvaka, Javali afirma que não há outro mundo, nem prática religiosa para lá chegar e que as injunções sobre a adoração dos deuses, os sacrifícios e as penas, foram incluídos nas escrituras por pessoas espertas, somente para legislar sobre outras pessoas. (SHUNYA´S NOTES, 2009, p. 3, tradução nossa).

Os Carvakas representam, com certa dose de humor, uma das primeiras críticas à religião em toda a história, baseada em princípios filosóficos.
O riso tem acompanhado a religião grega desde seus primórdios. Já na Ilíada de Homero, um dos mais antigos relatos sobre os deuses da Grécia antiga ao lado da Teogonia de Hesíodo, a vida dos deuses, convivendo de perto com os homens, é contada em muitos detalhes, focando diversos aspectos da vida dos imortais. Os deuses brigavam, traiam, enganavam, furtavam, se apaixonavam e com isso expressavam todas as reações humanas possíveis, inclusive o riso. Percorrendo os dois poemas destes dois bardos gregos, aprendemos que os deuses também riem por vários motivos, muitas vezes por acontecimentos dos quais eles próprios são os protagonistas. Georges Minois (1946) escreve:
Todos, (os deuses) um dia ou outro conheceram acessos de hilaridade, e por motivos que não eram sempre dignos, palavra de Homero! Zeus não é o último, ele que assiste hilário, ao tumulto geral dos olímpicos: “Eles caem uns em cima dos outros com grande estrépito; a vasta terra treme; em volta, o grande céu faz soar as trombetas. Zeus o escuta, sentado no Olimpo, e seu coração ri de alegria quando ele vê os deuses entrarem nesta briga. (MINOIS, 2003, p. 23).

Num outro texto, um historiador escreve:
No Canto VIII da Odisséia, Homero narra a infidelidade conjugal de Afrodite com Ares, ambos surpreendidos pelo deus enganado: Hefestos. A revelação do adultério, e as circunstâncias em que veio a ser descoberto, produziram a gargalhada dos demais. (MACEDO, 1997, p. 91).
Em outras passagens, os deuses fazem troça uns dos outros, riem com o que sucede com seus pares e com os homens. Os relatos míticos sobre os deuses gregos – e foi assim em todas as tradições indo-européias; dos hindus aos romanos, passando pelos gregos, germanos, celtas e persas – atendiam à mentalidade da maioria do povo da época. Ainda com relação aos gregos, eram comum que durante os festivais religiosos a população se entregasse ao riso e ao humor irreverente. A vida das divindades, com suas brigas e intrigas, suas histórias de amor, sua maldade e sua bondade, deviam impressionar e entreter as populações da época, assim como os divertimentos de massa das mídias atuais – as novelas, os seriados, os filmes e a apresentação de artistas famosos – divertem grande parte da população do mundo eletronicamente globalizado.
As comédias de Aristófanes (447-385 a.C.) não eram encenadas em qualquer dia do ano em Atenas, mas apenas por ocasião das festas em homenagem a Dioniso: as Lenéias e as Antestérias. Nesta última, os homens ficavam em pé sobre carroças e zombavam dos passantes. Durante as procissões dos atenienses para a localidade de Elêusis, a fim de que fossem iniciados nos mistérios de Deméter, a procissão passava pela ponte sobre o rio Kéfisos, na qual uma prostituta disfarçada ou um homem se postava para zombar dos cidadãos mais importantes da cidade, chamando-os pelo nome. Em relação a este costume, escreve Jan Bremmer:
Tanto Dioniso quanto Deméter eram deuses intimamente ligados à inversão da ordem social e ambos ocupavam uma posição “excêntrica” no panteão grego. O humor podia ser perigoso, e seu lugar na cultura tinha de ser limitado a ocasiões estritamente definidas. Os gregos sabiam muito bem que o riso poderia conter um lado muito desagradável. (BREMMER, 2000, p. 30).
Não existe certeza se o povo acreditava em todos os relatos da tradição religiosa e mítica na antiga Grécia. O que se sabe, entretanto, é que a partir do século VI a. C., as elites intelectuais passaram a perder a crença nos relatos sobre seus deuses. Estes tornaram-se então o que as narrações bíblicas são para os estratos instruídos da civilização ocidental nos dias atuais: relatos incorporados à cultura e que algumas vezes tem um significado simbólico, mas sem qualquer fundamento real. Representantes desta elite intelectual da população grega dirigiam suas críticas aos mitos, principalmente com relação aos aspectos grotescos dos relatos. Entre estes críticos estava o filósofo e poeta Xenófanes de Colofão (ca. 570­528 a.C.) quem, segundo o filósofo Hegel, foi o primeiro pensador a determinar o ser absoluto como o um, Deus presente em todas as coisas. Sexto Empírico, filósofo cético do século II d. C., atribui ao pensador a seguinte crítica aos bardos gregos:
Tudo aos deuses atribuíram Homero e Hesíodo, tudo quanto entre os homens merece repulsa e censura, roubo adultério e fraude mútua. (SOUZA, 1996, p. 70)
Em Roma a alegria e a diversão coletiva também faziam parte dos cultos ao deus romano Baco (o grego Dioniso); deus do vinho e das representações teatrais. Havia rituais onde o riso era parte integrante da cerimônia. Nas festas chamadas de Hilárias, realizadas a 25 de março de cada ano, celebrava-se a ressurreição do deus oriental Attis e qualquer manifestação de tristeza ou pesar em proibida. Ainda em Roma ocorriam outras celebrações de origem agrária, as Vinalia, realizadas durante os festejos chamados Liberalia, Saturnais e Lupercais. Estas festas foram as precursoras do atual Carnaval, tendo sofrido diversas modificações ao longo do período medieval. As festividades que celebravam a fertilidade, a orgia sexual e ao mesmo tempo a alegria, faziam parte da cultura popular de todo o império romano. Para finalizar esta análise do período greco-romano sob aspecto da religião e do riso, apresentamos as palavras de Ernst Cassirer (1874-1945), um dos pensadores que melhor analisaram a relação do homem com a cultura e com os deuses:
O que o homem retrata em seus deuses é ele mesmo, em toda a sua variedade e multiformidade, sua disposição mental, seu temperamento e até suas idiossincrasias. Mas não é tal como na religião romana o lado prático de sua natureza que o homem projeta na deidade. Os deuses homéricos não representam ideais morais, mas exprimem idéias mentais muito característicos. Não são deidades funcionais e anônimas que devem assistir a uma atividade especial do homem: estão interessadas em homens individuais, e favorecem-nos. Cada deus ou deusa tem os seus favoritos, que são apreciados, amados e auxiliados, não com base em uma mera predileção pessoal, mas em virtude de um tipo de relação mental que liga o deus ao homem. Mortais e imortais não são corporificação de ideais morais, mas de talentos e tendências mentais especiais. Nos poemas homéricos encontramos com frequência expressões muito claras e características desse novo sentimento religioso. (CASSIRER, 2005, p. 163).
Há uma grande mudança na visão de mundo da religião greco-romana para a religião cristã. Os deuses clássicos eram imortais, mas ao mesmo tempo trafegavam constantemente pelo mundo humano; apaixonavam-se e tinham filhos com os humanos, tomavam partido em suas guerras, apoiavam alguns preferidos em detrimento de outros. Já o deus judaico-cristão era único, não partilhava seu poder com outros deuses. As atividades do judeu Jahvé ou do cristão Deus-Pai eram ignoradas pelos humanos – diferente dos deuses clássicos, cujas vidas eram literalmente um livro aberto. A vida do Deus-Pai cristão passou a se tornar mais conhecida dos homens depois que a nascente Igreja, no Concílio de Nicéia (325 d.C.), apoiou a proposta do bispo Eusébio de Cesaréia, declarando Jesus homem, Deus e Filho de Deus – tudo ao mesmo tempo. Outro aspecto importante é que para a nascente religião cristã a vida dos homens e a história tinham um sentido, dado por Deus. O Deus cristão era o condutor da história, diferente dos gregos, para os quais a história humana e a do universo eram cíclica, dividida em períodos ou Idades: Idade do ouro, Idade da Prata, Idade do Bronze e Idade do Ferro, às quais os próprios deuses estavam sujeitos.
Da mesma forma, a moral do nascente cristianismo não era mais a mesma da já então decadente civilização greco-romano. No entanto, muito da cultura e dos hábitos do mundo clássico continuavam permeando a nascente civilização; agora de uma outra maneira, sob uma nova ótica, muitas vezes sem que as pessoas tivessem o conhecimento do significado e das origens de certos hábitos. Festas pagãs, como a festa da colheita e do solstício do verão europeu, foram transformadas em festas de santos cristãos (João e Pedro). O solstício de inverno, data significativa para a antiga astrologia, foi mudado para a festa do nascimento de Jesus. Sob este aspecto escreve o folclorista e historiador Câmara Cascudo:
Imenso número de nossos hábitos atuais foram gestos religiosos comuns e rituais. Evaporou-se a essência, perdendo-se a função sagrada, ficou-nos o ato indispensável e natural às necessidades modernas. Dançamos sem música na cadência do velho bailado, seguindo simples notas perdidas de uma melodia interior e silenciosa. (CÂMARA CASCUDO, 1971, p. 176).
No âmbito político, a Pax Romana garantia a ausência de conflitos maiores e permitia devido em parte à mobilidade de pessoas e idéias, ampla concorrência neste grande mercado religioso que era o então império romano. Neste ambiente, os membros do nascente culto cristão tinham que disputar as mentes e corações dos fiéis com outros cultos – o culto de Mani, o culto a Ísis, de Serápis, de Atagártis, o de Mitra, os adoradores da Grande Mãe e de Apolônio de Tiana, entre outros – e ainda combater dissensões dentro das próprias fileiras: valentinianos, marcionistas, montanistas, gnósticos, arianos e outros. Com relação à doutrina, ainda não havia unidade dentro do cristianismo nascente e esta só começou a ser estabelecida em seus contornos principais após o Concílio de Nicéia, quando parte importante da doutrina foi definitivamente estabelecida. Em 367, para unificar os textos da Escritura (Evangelhos, Atos e Cartas), Atanásio de Alexandria estabelece o cânon oficial e proíbe a leitura das outras cerca de 50 diferentes versões dos Evangelhos – muitas delas restritas a uma só comunidade – que então circulavam pela bacia do Mediterrâneo.
Este período histórico, com sua profusão de textos religiosos sobre o nascente cristianismo, mostra a diferença de mentalidade e de visões do novo culto, que persistiram até que o catolicismo – uma das várias correntes de pensamento dentro da nascente religião – conseguiu eliminar gradualmente os concorrentes e tornar-se a corrente oficial, com o apoio do poder secular. Muitos textos apócrifos mostram aspectos da variedade doutrinária entre as diferentes comunidades cristãs. No exemplo a seguir, trata-se de um comentário sobre o texto Pistis Sophia, do século III, de inspiração gnóstica. Chama atenção a hilária descrição do comportamento do apóstolo Pedro:
[...] É interessante notar que aqui reaparecem a mesma inimizade e antipatia entre Maria e Pedro que já constam do Evangelho de Tomé e do Diálogo do Salvador – provavelmente refletindo a disputa de duas congregações. Pedro é invariavelmente retratado como truculento, estúpido e fanfarrão. Fica enciumado porque Maria monopoliza a atenção de Jesus e lidera o grupo e manda que ela cale a boca; o que lhe vale (como sempre) uma tremenda descompostura, pois Jesus diz que, entre os inspirados, não há diferença de sexo. (FIORILLO, 2008, p. 240).

Outro exemplo interessante é sobre o Evangelho da Infância, atribuído a Tomé e datando provavelmente do século VI. O texto tem um aspecto engraçado, pois
[...] relata as diabruras do Jesus criança, dos cinco aos 12 anos. Capaz de raciocínios que deixam estarrecidos os adultos, é também capaz das crueldades próprias da idade. Num dos episódios, seca a mão de outro garoto. Opera milagres marotos e vingativos, como cegar ou fazer cair duro seu rival nas brincadeiras para, claro, depois restituí-lo são e salvo. (ibid., p. 241).
O ambiente cultural do final da Antiguidade e início do período medieval havia mudado completamente a maneira dos intelectuais encararem a herança da cultura clássica ainda presente. As referências aos cultos do passado eram feitas com o maior cuidado possível, evitando qualquer menção mais detalhada aos cultos da fertilidade. Eusébio de Cesaréia, Arnóbio e Clemente de Alexandria escrevem sobre o mito de Deméter e Perséfone/Kóre, sem entrarem em detalhes quanto aos seus aspectos sexuais. Ainda com relação a este mito, os autores cristãos enfatizam o aspecto nefasto do riso, que com o tempo acaba se transformando em gesto obsceno, passando a ser associado à falta de pudor, à idolatria e ao pecado. Com isso os teólogos cristãos desenvolveram uma visão crítica e até aversão pelo risível. Sobre este posicionamento em relação ao riso, escreve o historiador Jacques Le Goff:
Vê-se, portanto, que em torno do riso travou-se um grande debate, que vai longe, porque, se Jesus não riu uma única vez em sua vida humana, ele é o grande modelo humano, [...] o riso torna-se estranho ao homem, ou pelo menos ao homem cristão. Inversamente, se é dito que o riso é próprio do homem, é certo que, ao rir, o homem estará exprimindo melhor sua natureza. (LE GOFF apud SILVA, 2006, p.1)

O humor perdeu qualquer relação com o sagrado, com os deuses, e transformou-se em um gesto puramente profano, revestido de conotações negativas, associado com a desordem e o caos. Clemente de Alexandria preocupou-se tanto com o tema, que decidiu escrever um longo texto, intitulado Paedagogus, no qual Cristo é colocado como professor dos fiéis, ajudado por textos das Escrituras, de Platão, Aristóteles e Sêneca. A obra reunia diversos preceitos de conduta cristã, destinados a ajudar o cristão na vida do dia-a-dia. Referindo-se ao riso, Clemente afirma que este deve ser reduzido na vida do fiel e que as pessoas dadas à derrisão não poderiam ser incluídas na comunidade dos fiéis. O riso dentro dos limites ajudaria no equilíbrio da alma; fora de controle, o riso seria perigoso e indicaria desregramento espiritual, sendo comparado ao riso despudorado de prostitutas e proxenetas. No entanto, com relação à sua aversão ao riso e humor, Clemente ainda foi considerado um moderado. No início do século V esta posição foi sendo substituída por uma atitude muito mais severa, como a do bispo de Constantinopla, São João Crisóstomo. Vivendo no período da dissolução final do império romano, época de crise social, econômica, política e espiritual, Crisóstomo tornou-se um pessimista e passou a defender a renúncia radical aos prazeres. Em seus sermões e homilias o bispo se opunha veementemente ao riso e à diversão, pregado que a via da purificação seria “chorar no mundo, para que pudéssemos rir na vida eterna”. Os cenobitas que viviam em mosteiros e que viriam a exercer uma grande influência sobre o ascetismo medieval também estabeleceram o mesmo posicionamento rígido em relação ao riso. A Regra de São Basílio, escrita em 365 em Cesaréia, traz os primeiros argumentos contra a derrisão; os mesmos que viriam a influenciar as regras das outras ordens religiosas – a começar pela de São Bento – e que exerceriam uma grande influência sobre toda a vida religiosa medieval. Na regra, o riso imoderado é considerado sinal de falta de controle e relaxamento espiritual. Em uma passagem, o texto da regra diz:
Como o Senhor condena os que riem agora, é evidente não haver para o fiel tempo algum próprio ao riso, principalmente sendo tão grande a multidão dos que ofendem a Deus, por violação da lei, e morrem no pecado; por todos eles devemos contristar-nos e gemer. (apud MACEDO, 1997, p.105).

Foi o mesmo São Basílio, autor da regra monástica, que com sua influência estabeleceu as bases para o posicionamento da Igreja – e assim em grande parte da sociedade medieval – no que concerne a maneira como daqui em diante a instituição lidará com o riso. Em suas Grandes Regras, Basílio escreve que [...] “Os relatos evangélicos o atestam, jamais ele (Jesus) cedeu ao riso. Pelo contrário, ele chama de infelizes aqueles que se deixam dominar pelo riso” (apud MINOIS, 2003: 121). A mesma reação de oposição ao riso se encontra em Santo Agostinho, fundador da Patrística, a filosofia oficial da Igreja durante pelo menos 800 anos na Idade Média, e o mais importante filósofo do período. Referindo-se ao riso e às brincadeiras o filósofo afirma que estes atos são o que há de mais ínfimo no homem. A exceção à regra são apenas alguns intelectuais cristãos, grandes satiristas como Minucius, Felix, Tertuliano, Arnóbio, Lactâncio e Prudêncio, que fazendo chacotas e sátiras – algumas bastante vulgares – utilizam-se do riso para combater os deuses e mitos pagãos, junto com os seus sacerdotes.

Foi, sobretudo na Idade Média que a religiosidade percorreu um longo caminho, no qual esteve exposta tanto a fatores favoráveis como a influências perigosas. A elite intelectual orientava-se geralmente pela evolução da teologia, que por sua vez era animada e cheia de conflitos. Ao lado disso, as devoções populares costumavam seguir seus próprios rumos, com a tendência de se ramificar num grande numero de fenômenos isolados. Toda essa evolução fascinava cada vez mais os fiéis individualmente, mas de modo geral o povo não se afastava da doutrina fundamental da Igreja. (LENZENWEGER et al., 2006, p. 200).
A citação resume muito bem a situação da Igreja e dos fiéis a partir dos séculos XI e XII. A retomada do comércio entre as cidades, o desenvolvimento de novas tecnologias e a maior disseminação da cultura, principalmente através das escolas dominicais e das universidades, dão à sociedade medieval um novo impulso. O sistema feudal começa a perder sua solidez, em parte devido aos servos fugidos, que irão exercer atividades artesanais nas cidades, aumentando assim a oferta de produtos manufaturados, mas desfalcando os campos senhoriais de mão­-de-obra. Surgem as grandes heresias, para cujo combate a Igreja criará a Inquisição, estabelecida em 1231 pelo Papa Gregório IX e consolidada por Inocêncio IV em 1252.

A Idade Média, principalmente a Alta Idade Média a partir do século XII, foi um dos períodos da história ocidental em que a religião e as festas populares – seculares ou religiosas – tiveram mais influência na vida social. As festividades, realizadas nas igrejas e ao ar livre, reuniam autores, atores, comediantes, músicos, malabaristas e poetas em um pequeno espaço no interior das cidades. Estes acontecimentos, além de ser a ocasião para encenação de peças teatrais, também eram local para outras atividades culturais como a leitura de poesias, manifestos, apresentação de canções e pregações religiosas. Toda esta atividade atraia diversos tipos de pessoas para as cidades, promovendo a troca de idéias e a elaboração de novos projetos humanos (era divulgada uma nova heresia, apresentava-se um novo tipo de arado, o aldeão arranjava um casamento, o camponês vendia seu melhor leitão). Esta intensa interação social em torno destas festividades foi possivelmente um dos fatores impulsionadores do desenvolvimento da sociedade humana da época. Bakhtin, referindo-se ao papel social da praça pública neste período, escreve:
A praça pública no fim da Idade Média e no Renascimento formava um mundo único e coeso onde todas as “tomadas de palavra” (desde as interpelações em altos brados até os espetáculos organizados) possuíam alguma coisa em comum, pois estavam impregnados do mesmo ambiente de liberdade, franqueza e fraternidade. (BAKHTIN, 2008, p. 132).

Neste ambiente cultural forma-se uma cultura do riso, baseada nas festas populares, nas peças cômicas, nas apresentações artísticas. A característica destes eventos, chamados genericamente de carnavais, é a participação geral do povo. Representantes de quase todas as classes – servos, artesãos, membros do baixo clero e da baixa nobreza, pequenos comerciantes, padres, monges, estudantes e todo tipo de outsiders; todos são envolvidos na brincadeira. Durante estas festas eram apresentadas paródias da liturgia, paródias das leituras evangélicas, das orações (inclusive das mais sagradas como o Pai-Nosso, a Ave-Maria, etc.), das litanias, dos hinos sagrados, dos Salmos e das diferentes passagens dos Evangelhos. Os personagens colocados em cena nestas paródias representam desde as autoridades eclesiásticas (o bispo, o papa), passando por animais (o asno, o porco) até os bufões, os malandros e os tolos. Muitas destas festas também estavam misturadas com movimentos heréticos. Um texto de uma farsa de 1300, a Farsa do Perdoador explora um tema cômico recorrente na época: as falsas relíquias. Nesta farsa vê-se um charlatão apresentar ao povo metade de uma prancha da Arca de Noé e uma pena da asa de um dos serafins. Temas como este, serão muito usados pelos membros de seitas heréticas, para criticar e ridicularizar a atuação da igreja católica.

Outro grupo medieval, constituído por ex-clérigos, estudantes, intelectuais pobres e vagabundos foi chamado de Goliardos. A etimologia do nome permanece desconhecida, mas parece derivar de gula em latim, goela, talvez relacionado com o fato de que gritavam quando declamavam suas falas em praça pública. Outras fontes informam que seu nome é derivado do gigante filisteu Golias, o adversário que foi derrotado por Davi, revelando assim uma origem ruim. Em todo caso, a reputação dos Goliardos não era boa. Eram acusados de utilizarem idéias dos cultos pagãos e de rituais satânicos. Suas críticas e blasfêmias contra o clero e seus vícios, contra as cerimônias do culto e contra as crenças fundamentais da religião levantam suspeita de ateísmo. Os Goliardos riem de tudo, em particular do sagrado. Mas suas brincadeiras e piadas não ultrapassam o que normalmente ocorre nas festas de Carnaval. O aspecto subversivo do grupo, no entanto, é o fato de serem vagabundos, de não terem lugar fixo de morada. Segundo Minois,
O Goliardo, vagabundo semidelinquente, pretende reativar e personificar a idéia do Cristo-palhaço, do saltimbanco de Deus, que ri de tudo porque o verdadeiro sagrado está além do sensível, fora do alcance dos gracejos humanos.” [...] “É exatamente isso que o torna insuportável. O riso do Goliardo é o único riso subversivo da Idade Média clássica, porque não se contenta em zombar: ele vive de maneira diferente e sugere, com isso, que é possível existir outro sistema de valores. O riso da festa dos bobos ou do Carnaval mostra a loucura do mundo às avessas; o riso do Goliardo mostra a loucura do mundo do lado direito. E isso não é mais jogo. (MINOIS, 2003, p. 187 e 188).

O Goliardo foi tão perseguido à sua época pela Igreja e depois estranhamente esquecido pela história. Sua função social de crítico e de humorista intelectualizado deve ter assustado os detentores do poder e defensores da visão de mundo da época. O especialista no tema Antonio Ozaí da Silva escreve:
O riso suspende a razão, desarma-a. Na linguagem religiosa do bibliotecário Jorge de Burgos (do romance O nome da rosa), o riso liberta o indivíduo do medo do demônio. Se o homem tiver liberdade de rir o que o impedirá de afrontar a autoridade instituída e, no limite, o próprio Deus, com o seu riso?
Toda religião se fundamenta no temor. Paradoxalmente, o crente ama e teme a divindade; aceita-a e voluntariamente submete-se. Em alguns contextos históricos o medo chega mesmo a se tornar terror – como escapar de um Deus onipresente e onisciente? (SILVA, 2006, p. 5).

Análise semelhante é feita pelo teólogo e antropólogo americano Harvey Cox, a partir de um texto do filósofo polonês Leszek Kolakowski, onde este último discute duas posições perante a teologia: a do padre e a do folião medieval. O padre mantém a posição do sistema, do (aparentemente) imutável contido na tradição. O folião, por outro lado – poderia ter sido um Goliardo? – é o questionador daquilo que é considerado evidente e para o qual, assim dizem, não existem alternativas. No entanto, a atividade do folião não é apenas a de divertir o público e provocar o riso da audiência – isto qualquer humorista medíocre também poderia fazer. O que o folião está efetivamente fazendo é expor ao ridículo justamente aquelas coisas que a audiência insiste em não examinar criticamente.

Todavia, era persistente a oposição das elites religiosas e políticas a estas festas; consideradas como pagãs e influenciadas por Satã, que sorrateiramente havia se introduzido nestes divertimentos, paganizando-os e utilizando-se deles para confundir o povo e subverter a ordem instituída. Assim,
Todos os que exerciam o ofício da paródia eram considerados profanadores dos sacramentos e dos dignatários eclesiásticos e estavam fazendo troça dos assuntos sagrados, segundo um comunicado da Faculdade de Teologia de Paris, em um édito de 1444. (DELUMEAU, 1978, p. 404, tradução nossa).
A Alta Idade Média foi marcada por grandes eventos sociais como as Cruzadas (nove entre os anos de 1096 e 1272), fome generalizada em certas regiões, seguido da Peste Negra (1347-1350) que vitimou quase um terço da população européia. Ao final deste período, o sistema feudal já não oferecia mais proteção aos camponeses; estes eram cada vez mais explorados e procuravam fugir para as cidades. Norman Cohn nos pinta o quadro social desta nova Europa, campo fértil para o desenvolvimento de todo tipo de oposição ao status quo:

O milenarismo revolucionário tira a sua força de uma população vivendo à margem da sociedade – camponeses sem terra ou cuja terra não chega para a subsistência; jornaleiros e trabalhadores sem qualificação vivendo sob a ameaça constante do desemprego; pedintes e vagabundos – de fato a massa amorfa do povo que além de pobre era incapaz de encontrar um lugar assegurado e reconhecido na sociedade. A essa gente faltava o apoio material e emocional garantido pelos grupos sociais tradicionais; os seus grupos de parentesco tinham-se desintegrado e estavam efetivamente organizados em comunidades de aldeia ou corporações; para eles não existiam métodos regulares, institucionalizados, de fazer ouvir as suas queixas ou adiantar as suas reclamações. Esperavam então a vinda de um propheta para uni-los em um grupo específico. (COHN, 1981, p. 232).

Formou-se assim um clima ideal para as revoltas populares, apoiadas nas inúmeras heresias e grupos itinerantes que vagavam pela Europa. Um deles era o movimento dos Flagelantes, formado por pessoas sem posses que percorriam vastas regiões mendigando, pregando o arrependimento e a autoflagelação para expiação dos pecados. No outro extremo, estavam os Irmãos do Livre Espírito, que advogavam uma total liberdade para seus fiéis. Estes, efetivamente acreditavam que podiam agir como queriam, pois “estavam sempre na presença de Deus”. Uma das características desta seita era a total promiscuidade de seus membros, praticando o sexo livre, a poligamia, a poliandria, além de roubos e outros crimes. A Igreja Católica, sempre atenta a movimentos contestatórios, combatia tais grupos através da Inquisição (que havia sido criada para combater outro grupo de heréticos, os cátaros, do sul da França), com a ajuda do braço secular.

O fim do período medieval coincide com o movimento cultural do Renascimento e o início da revolução religiosa, iniciada pela Reforma Protestante. Ainda se trata de um período bastante conturbado, de grandes mudanças sociais, culturais e tecnológicas. Por esta época também tem início as Grandes Navegações (aprox. entre 1450 e 1530), através das quais, em pouco mais de 80 anos, os habitantes da Europa mudariam toda a sua visão de mundo; de sua extensão e da quantidade de povos e culturas que existiam no globo. Copérnico divulga o seu sistema planetário heliocêntrico, tendo o Sol como centro do universo conhecido da época. Tal descoberta, encontrando resistência de parte da Igreja Católica, representaria o primeiro golpe no antropocentrismo cultural, já que tirava do homem seu lugar especial na hierarquia da criação. “Por que”, perguntavam-se muitos, “se somos o ápice da Criação, feitos à imagem de Deus, moramos em um planeta que ocupa uma posição secundária na eterna ordem cósmica?”.

Todos estes questionamentos terão, evidentemente, uma forte influência sobre a religião. Por um lado, surgem as igrejas protestantes, a igreja anglicana se separa de Roma e uma profusão de pequenas seitas de tendência protestante se espalha pela Europa. Por outro, cada igreja cristã tem a pretensão de ser a única detentora da verdade e classifica as concorrentes de heréticas. Na prática, as igrejas protestantes sobrevivem porque a católica já não tem mais a força para impor sua exclusividade. Com isso, dada a diversidade de correntes, sobra pouco para ser criticado no novo cristianismo. As opções a escolher eram tantas, desde as igrejas principais como a luterana, calvinista e anglicana, até os grupos menores, como os menonitas, anabatistas, seekers, quackers, etc. As perseguições religiosas que ocorriam, era muito mais o resultado da disputa entre as diversas igrejas, do que da ação contra dissidentes. Não havia heréticos; todos o eram. O novo dissidente não tem mais o perfil do cátaro, valdense ou bogomilo medieval, que partilhava muitas crenças com a religião oficial, o catolicismo. O novo crítico tem agora três caminhos a seguir: 1) aderir à outra igreja diferente da sua; 2) fundar uma nova igreja, opondo­se a todas as outras; ou 3) assumir uma atitude de oposição a qualquer igreja, o que o tornava o crítico especialmente perigoso, porque passava a criticar o cristianismo; talvez até qualquer teísmo. Este dissidente tem muito pouco em comum com as igrejas cristãs, aproximando-se do panteísmo, de Bernardo Telesio (1508-1588), Giordano Bruno (1548-1600), Thomas Campanella (1568-1639) e Baruch de Spinoza (1632-1677) ou do epicurismo e atomismo, como Pierre Gassendi (1592­1655).

Inicia-se assim um novo período na história religiosa do Ocidente. Os Estados, dada a diversidade de igrejas e de crentes, se colocarão gradativamente  ao largo da questão religiosa. A igreja católica se manterá ainda com certa influência até a Revolução Francesa; muito mais como instituição política do que religiosa, disputando espaço institucional com as outras igrejas cristãs. Depois da Revolução Francesa – e da tradição política criada pela independência americana – é definitivamente estabelecido o paradigma da separação entre a Igreja e o Estado. Sobre este processo religioso e político, cultural e social, que em última instância iria levar à moderna sociedade secularizada, escreve Wilhelm Dilthey:
E à medida que, em seguida, se foi estendendo século para século o panorama da distribuição geográfica das formas humanas de existência, dos costumes e modos de pensamento, até abarcar toda a terra, alastrou irresistivelmente, face àquele dogma, na maioria dos homens uma atitude cética; foi diminuindo incessantemente a força da fé num saber transcendente, primeiro, nas condições do investigador científico, em seguida, nas classes cultas, por último, até a massa dos trabalhadores, e nenhuma metafísica transcendente conseguia já o tipo de autoridade, como a que outrora possuíra a de Platão ou de Aristóteles ou de Santo Tomás. (DILTHEY, 1992, p. 16).

3.2 ASPECTOS FILOSÓFICOS E CULTURAIS AO LONGO DA HISTÓRIA

Xenofonte (430-350 a.C.), discípulo de Sócrates, escreveu sua obra Simpósio em 380 a.C. e com ela pretendia oferecer a sua própria visão do venerado mestre. No texto, descrevendo um jantar oferecido pelo rico Calias, do qual também participa Sócrates, o autor utiliza um interessante recurso literário, introduzindo na trama a figura de um gelotopoios, literalmente, um “produtor de riso”. O comediante ou bufão participa de todo o banquete e ao final é advertido por Sócrates de que “fosse reticente em assuntos sobre os quais não se deveria falar” e “assim acabar com este desconforto entre os convivas”. (apud Bremmer, 2000, p. 28). Que assuntos seriam estes sobre os quais, a pedido de Sócrates, o bufão não deveria falar? As palavras de Sócrates no Simpósio refletiam com certeza a posição do próprio autor, Xenofonte, que, no entanto, estava apresentando as idéias de seu mestre retratado, Sócrates. Bremmer cita uma frase que Estobeu (séc. V d.C.) atribuiu a Sócrates: “Deve-se usar o riso como se usa o sal – com parcimônia”, mostrando o modo como o riso era visto por este filósofo. Nesse ponto Sócrates se coloca junto com Pitágoras e Anaxágoras, os quais, segundo menciona Diógenes Laércio (200-250 d.C.) em Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, tinham fama de nunca ou raramente rirem.

A atitude de Sócrates perante o riso parece ter feito escola, já que Platão também se opunha à hilaridade grosseira e vulgar, enfatizando a necessidade do riso contido, inofensivo. Na República, Platão proíbe o riso em diversas passagens; os guardiões são proibidos de se entregarem e ele, porque em exagero é seguido de reação violenta. A comédia, por outro lado, pode fazer com que as pessoas queiram imitar suas situações na vida real. Em sua outra obra As Leis, o fundador da Academia recomenda que a comédia seja completamente abolida e a bufonaria deixada apenas para os escravos e estrangeiros. Aparentemente Platão também era pouco afeito ao riso no ensino, já que o proibia na Academia. Seus inimigos se vingaram de sua falta de humor, representando-o nas comédias como um charlatão. O filósofo Simon Blackburn, se referindo a Platão, escreve:

Sabemos muito pouco sobre Platão e o que há para saber não é, de um modo geral, atraente. Integrado em seu contexto histórico, podemos encontrar um velho azedo típico, um aristocrata desiludido, odiando a democracia ateniense, convencido de que governam as pessoas erradas, com um medo profundo da própria democracia, constantemente escarnecendo dos artesãos agricultores e, afinal, de qualquer trabalho produtivo, desprezando radicalmente todo o anseio dos trabalhadores pela educação, e em última análise, manifestando um apelo indefectível ao regime intolerável de Esparta. (BLACKBURN, 2007).

Já com relação à religião, Platão tem uma visão própria, bastante diferente da maior parte de seus contemporâneos. O filósofo vê a vida e a relação com a divindade como se fosse um grande jogo. Este aspecto da filosofia de Platão, analisado pelo filósofo Johan Huizinga (1872-1945), parte do pressuposto de que sempre houve uma identificação da cerimônia religiosa com o jogo, já que ambos dividem uma série de características, como: ocorrerem em espaço fechado ou restrito, serem isolados do cotidiano; terem delimitação da duração temporal; disporem de regras, atitudes e vestimentas diferentes às da vida cotidiana; terem vocabulário específico, entre outras. Em sua obra Leis, Platão escreve que
É preciso tratar com seriedade aquilo que é sério. [...] Só Deus é digno da suprema seriedade e o homem não passa de um joguete de Deus, e é esse o melhor aspecto da natureza. Portanto, todo homem e mulher devem viver a vida de acordo com essa natureza, jogando os jogos mais nobres, contrariando suas inclinações atuais… [...] Qual é, então, a maneira mais certa de viver? A vida deve ser vivida como jogo, jogando certos jogos, fazendo sacrifícios, cantando e dançando, e assim o homem poderá conquistar o favor dos deuses e defender-se de seus inimigos, triunfando no combate. (PLATÃO apud HUIZINGA, 1980, p. 22).

Esta idéia da vida como um jogo também é, coincidentemente, comum ao pensamento religioso indiano, mais especificamente o bramanismo. Este enxerga o universo, sua formação, desenvolvimento e destruição como um grande jogo eternamente repetido, envolvendo Brahma, a divindade máxima da trindade hinduísta: Brahma, Vishnu e Shiva. Este conceito da eterna repetição dos universos se aproxima também das concepções elaboradas pela moderna cosmologia, na teoria do universo cíclico, de Steinhardt e Turok. Sobre este antiqüíssimo mito religioso escreve o estudioso von Glasenapp:
No final de mil grandes Períodos do Mundo, finda também um Dia de Brahma. Segue-se então uma destruição parcial do universo, seguida por um período de inatividade, chamado de Noite de Brahma. Dessa forma, se sucedem Dias e Noites de Brahma, até que a Vida de Brahma também tem um fim. Então, sucede uma destruição total do universo, seguida por uma Grande Noite. A seguir, inicia-se novamente o eterno Jogo de Criação Divino e nasce um novo Brahma, que assumirá exatamente as mesmas funções de seu antecessor. (VON GLASENAPP, 1926, p. 137, tradução nossa).

Resta acrescentar que a idéia de encarar tudo como um jogo, proporciona uma visão diferente da vida do homem e da organização das sociedades. Se toda a vida humana e o próprio universo é um grande jogo, sério, mas não de uma importância absoluta, nossas alegrias, sofrimentos, opiniões e crenças – sob aspecto individual ou social – perdem sua excessiva seriedade, seu valor definitivo. Assim, o soberano perde um pouco de sua imponência, porque esta não é absoluta. Ele apenas é o personagem de um jogo (um “joguete de Deus”, como escreveu Platão), do qual também participam o rico e ocupado executivo, a pobre mulher negra, o pedreiro ignorante e o professor universitário; o doente terminal e o recém nascido, o índio isolado na floresta e o palhaço no circo, o crente e o ateu. O tema da eterna repetição dos universos e de sua implicação como um jogo, será retomado inúmeras vezes na cultura ocidental, por intelectuais tão díspares quanto Shakespeare, Nietzsche e Spengler.

No final de sua vida Platão pode ter se dado conta da dimensão cósmica do jogo. Sempre tão sério inimigo do riso, dizem os registros que Platão, em seu leito de morte, estava lendo Aristófanes, o autor cômico. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), comentando o fato, escreveu:
[...] nada me fez meditar tanto na natureza secreta e esfíngica de Platão do que o felizmente conservado episódio de que, debaixo da almofada de seu leito de morte não havia uma bíblia, nem nada de egípcio, pitagórico ou platônico – mas um livro de Aristófanes. Como poderia Platão ter suportado a existência – uma existência grega que ele repudiou – sem Aristófanes? (NIETZSCHE apud BLACKBURN, 2007)
Aristóteles escreveu todo um livro dedicado ao humor, Sobre a Comédia, que infelizmente se perdeu.
Discutindo a fisiologia dos animais, o filósofo formulou um paradigma que até hoje ainda em parte é válido, ao escrever que “o homem é o único animal que ri”. Uma síntese da galhofa e do riso Aristóteles apresenta na Ética a Nicômaco, na qual se refere ao bufão, aquele que tem um humor mais pesado e faz de tudo para conseguir o riso; seja fazendo galhofas sobre os outros, ou sobre si próprio. Ao bufão, Aristóteles antepõe o cavalheiro, o homem de humor fino, na linha do humor preconizado por Platão – o riso contido e inofensivo. Alguns autores falam de um “aburguesamento” da vida social ateniense no século IV a.C. Bremmer informa que os aristocratas passam a freqüentar os simpósios, as discussões culturais na forma de banquetes; a vida social se sofistica e ocorre um refinamento moral: saber contar piadas de uma forma refinada era sinal de “agudeza de espírito” (eutrapelia). Caracterizando bem o tipo humano, Aristóteles escreve:
Aqueles que levam a jocosidade ao excesso são considerados bufões vulgares; são os que procuram provocar o riso a qualquer preço, e na sua ânsia de fazer rir, não se preocupam com a inconveniência do que dizem, nem em evitar o mal-estar daqueles que elegem como objeto de seus chistes; (ARISTÓTELES, 2002, p. 100).

Por outro lado, Aristóteles parece não ver uma função contestatória no humor, ao contrário:
Por conseguinte, há gracejos que este homem (o cavalheiro refinado) nunca fará, pois o gracejo é uma espécie de insulto, e há coisas que os legisladores nos proíbem insultar, e talvez devessem também proibir-nos de gracejar a respeito delas. (ibid., p.101, itálico nosso).
Não satisfeito em valorizar o aristocrata refinado, detentor de um humor fino – longe da bufonaria apreciada pela massa -, Aristóteles ainda propõe a censura para si mesmo e para os outros. Há também o fato de que existiam coisas que os magistrados proibiam que fossem insultadas, ou seja, o riso em certas circunstâncias era considerado um insulto. Mas que coisas seriam estas e porque o riso seria um insulto?

O cinismo, a filosofia cínica, foi iniciada pelo filósofo grego Antístenes aproximadamente em 400 a.C. Mas foi seu discípulo, Diógenes de Sinope (413-323 a.C.), o maior divulgador do movimento. Não Platão, mas o cinismo e a escola cirenaica (fundada por Aristipo de Cirene, 435-355 a. C.) seriam os verdadeiros sucessores de Sócrates, segundo o filósofo francês Michel Onfray. Esta interpretação também é defendida pelo filósofo alemão Malte Hossenfelder (1935). No prefácio de sua obra Antike Glückslehren (Antigas doutrinas da felicidade) o autor escreve que Platão só alcançou certa divulgação no final da Antiguidade, com o platonismo, e Aristóteles somente na Idade Média. Herdeiros da mesma informalidade do mestre Sócrates, cirenaicos e cínicos percorreram caminhos diferentes e na posteridade não tiveram a mesma influência que o mestre da Academia. É verdade que a doutrina platônica das Idéias e a simpatia que o filósofo tinha pela religião aproximaram seu pensamento – através de Plotino – do nascente cristianismo, servindo de base para a formação da filosofia cristã. Os cínicos – nos quais se concentra esta análise – não tiveram a mesma influência, já que sua doutrina era voltada para objetivos práticos, com pouca valorização da teoria.

O objetivo principal da filosofia cínica é a felicidade, a tranqüilidade de alma, alcançada através de uma ascese sobre o corpo e a mente. Levando uma vida errante em Atenas e arredores, Diógenes ficou famoso pelas várias histórias sobre suas atitudes peculiares. Na longa lista de anedotas sobre o filósofo, autores posteriores separaram-nas em alguns grupos: a crítica das autoridades; a crítica do comportamento dos seus concidadãos; e a crítica da sociedade em geral. Um dos principais alvos das críticas de Diógenes e de outros cínicos – sempre na forma de anedotas – é a religião. Diógenes Laércio, a maior fonte que temos sobre Diógenes, relata várias histórias engraçadas sobre o filósofo. Em uma delas, escreve que Diógenes disse também que, quando viu a vida de timoneiros, médicos e filósofos, achou que o homem era o ser vivo mais inteligente. Por outro lado, quando viu intérpretes de sonhos, adivinhos e aqueles que os ouviam, ou aqueles envaidecidos de orgulho e riquezas, achou que não havia nada mais tolo que o homem” [...] “Da mesma forma, ele zombava dos que eram ingênuos a ponto de acreditar que os iniciados dos Mistérios tinham direito aos melhores lugares no Hades. “Quero rir! Argesilau e Epaminondas ficarão agachados na lama, enquanto qualquer bobalhão, desde que seja um iniciado, estará nas Ilhas dos Bem-Aventurados! (DIÓGENES LAÉRCIO apud GOULET-CAZÉ, 2007, p. 72).

Com relação à crítica à religião popular, o cinismo seguia uma linha que também era compartilhada por diversas outras correntes filosóficas do período. Epicuristas, cirenaicos, sofistas, céticos, estóicos; nenhuma dessas correntes filosóficas compartilhava as crenças religiosas do povo. Se não eram essencialmente ateístas,negando a existência dos deuses da tradição, não acreditavam que esses pudessem exercer qualquer influência sobre a vida dos mortais. Os cínicos, além de não compartilharem as crenças do povo, não faziam nenhum tipo de concessão com relação à religião, como sacrifícios ou visitas aos templos. Em relação à ação dos deuses, há outra anedota sobre Diógenes:
Diógenes vendo algumas pessoas fazendo sacrifícios aos deuses para terem um filho, disse-lhes: Vocês não fazem sacrifício pelo tipo de pessoa que seu filho vai se tornar? [...] É esse mesmo Diógenes que faz piada com as placas comemorativas de Samotrácia, oferecidas em agradecimento aos cabires, protetores dos viajantes durante as tempestades do mar. Com sua agudeza habitual, ele comentou com alguém que estava impressionado com as placas: Haveria muito mais se elas fossem oferecidas por aqueles que não se salvaram. (GOULET-CAZÉ, 2007, p. 72).[...]

Para todos os cínicos, escreve Goulet-Cazé, a religião popular é parte das convenções sociais, e é por isso que eles a criticavam. Foi isso que levou aos comentários desrespeitosos de Diógenes, que devem ter chocado seus contemporâneos. Ele disse, por exemplo, que não havia nada impróprio em roubar um templo. Para Diógenes, a partir do momento em que os templos são uma instituição humana, o respeito pelos deuses dentro deles torna-se mera convenção social. (ibid., p. 73),
A crítica do cinismo à religião e à cultura continua atual. Não se trata, porém de repetir as críticas exatamente no contexto nas quais elas foram feitas há 2.300 anos. A atualidade da filosofia cínica consiste essencialmente em levantar novas questões e colocá-las da mesma forma contundente, como os cínicos o faziam. Nosso mundo não é mais uma Atenas do período do helenismo, com seus cerca de 150.000 habitantes. No entanto, temos a grande vantagem da globalização dos sistemas de comunicação, que pode levar mensagens e críticas a todos os pontos do planeta. Assim, como os antigos cínicos afirmavam, hoje mais ainda “somos cidadãos do mundo”.

Os Goliardos são dignos de menção quanto aos aspectos de sua contribuição para a crítica da cultura da Idade Média. Opositores em um sistema social dominado pela Igreja e pela nobreza medieval, os Goliardos contribuíram decisivamente para a divulgação de idéias modernas e seculares. Eram formados originalmente por grupos de estudantes universitários medievais, muitos deles com dons poéticos. Nos séculos XII e XIII fizeram parte do intercâmbio de estudantes entre as universidades de Paris, Bolonha, Oxford, Cambridge, Colônia e Pádua e formaram uma das primeiras comunidades internacionais da Europa fora do âmbito da Igreja. O objetivo destes intercâmbios era o aprimoramento da carreira universitária, ouvindo novos professores. Quanto à língua, não tinham dificuldades, já que o latim era a língua internacional da época, falado pelas classes instruídas. Alguns destes poetas­estudantes posteriormente se transformaram em grandes escolásticos. Com o passar do tempo, muitos clerigi vagantes, como também eram chamados na França, abandonaram os estudos e transformaram-se em vagabundos, vivendo como jogadores, mendigos e ladrões. A eles juntaram-se clérigos fugidos da rígida disciplina religiosa, e criminosos comuns, dos quais as estradas medievais estavam cheias. No decorrer do século XIII os Goliardos se envolveram em diversas arruaças e em 1227 organizaram uma verdadeira revolta em Paris. A Igreja reagiu e no Concílio de Colônia de 1300 os vagantes foram proibidos de fazer sermões nos púlpitos das igrejas. Entre estes intelectuais errantes surgiram muitos menestréis, que estabeleceram as bases da poesia dos Goliardos.

A poesia dos Goliardos é antiascética e aborda temas satíricos, dirigidos contra a Igreja, seus sacramentos e dignatários, apresentada muitas vezes na forma de paródias maldosas de hinos latinos ou de trechos da liturgia. As poesias, escritas sempre em latim e rimadas, tratam do amor, inclusive físico, do vinho, da fortuna, da natureza e da alegria das tavernas e dos bordéis. O surpreende nestes poetas, anônimos em sua maioria, é seu estilo completamente diferente do resto da poesia medieval, bastante aproximado das canções populares. Parte dos textos dos Goliardos, deixados para a posteridade, constam do manuscrito Carmina Burana (do latim carmen, canto, cantiga e buram, pano grosseiro de lã, designando um hábito de um frade ou uma freira), encontrado no início de século XIX na Alemanha. A obra reúne poesias anônimas e descreve a vida diária das pessoas comuns; suas alegrias, dissabores e prazeres. O texto é formado por 315 composições poéticas, das quais apresentamos alguns exemplos interessantes, relacionados com os temas mencionados anteriormente:

Fortuna (Fortuna no original latim)


Ó Fortuna És como a Lua
mutável,
sempre aumentas
e diminuis;
a detestável vida ora escurece
e ora clareia [...] (CARMINA BURANA, libreto original)



Eis a cara da primavera (Ecce gratum)

Eis a cara
e desejada
primavera que traz de volta a alegria
flores púrpuras
cobrem os prados
o sol a tudo ilumina já se dissipam as tristezas [...] (CARMINA BURANA, libreto original) 


Queimando por dentro (Estuans interius)

[...] Se é este o caminho
do homem sábio,
construir sobre a pedra
as fundações da casa,
então sou um louco comparável
ao rio que corre,
e que em seu curso
nunca se altera. [...] (CARMINA BURANA, libreto original) 







Quando estamos na taberna (In taberna quando sumus) 
 
Quando estamos na taberna,
não pensamos na morte,
corremos a jogar,
o que nos faz sempre suar.
O que se passa na taberna,
onde o dinheiro é hospedeiro,
podeis querer saber,
escutais pois o que digo
. Uns jogam, uns bebem,
uns vivem licenciosamente [...]
[...] Oito aos irmãos desgarrados,
nove monges errantes,
dez aos navegantes,
onze aos brigões,
doze aos penitentes,
treze aos viajantes.
Tanto ao Papa quanto ao Rei
bebem todos sem lei. (CARMINA BURANA, libreto original) 




O amor voa por toda parte (Amor volat undique)
 
O amor voa por toda parte,
prisioneiros do desejo.
Rapazes, raparigas
unem-se como devem.
Se a jovem não tem parceiro,
Desaparece-lhe toda a alegria. [...] (CARMINA BURANA, libreto original) 


Poetas Goliardos famosos foram magister Hugo de Orléans (1093-1160) que escreveu poesias sobre o amor e o vinho, contendo lamentos sobre a pobreza, a velhice e a brevidade da vida. Outro poeta conhecido é o inglês Walter Mapes (1140-1209) autor de versos violentos contra o celibato clerical e da blasfêmia “mihi est propositum in taberns mori” (meu propósito é morrer em uma taberna). No aspecto filosófico os Goliardos, apesar de não constituírem uma escola de pensamento estruturada, mantêm uma posição de crítica e desafio à Igreja e seus dogmas. A atuação destes grupos deixou vestígios posteriores na cultura européia. François Villon, o últimos dos Goliardos, condenado à morte no início do século XVI, é considerado um dos maiores poetas franceses – moderno, apesar do tempo que nos separa de suas poesias. Referindo-se a um trecho de suas composições, Lucien Febvre (1878-1956) escreve sobre
A incredulidade do desespero, aquela traduzida pelo clamor do pobre homem sofredor, o grito de angústia do pobre Villon, Em meu país estou em terra distante, Perto um braseiro estremece todo ardente, Nu como um verme, vestido como presidente, Rio em prantos e espero sem esperança… (FEBRVE, 2009 p. 390)
Escrevendo sobre sua incredulidade, os Goliardos, perseguidos pela Igreja e pelo poder secular, contribuíram para o riso da religião e, sem o saber, abriram novas perspectivas para o pensamento humano.

CAPÍTULO 4 DE ONDE VIEMOS, ONDE ESTAMOS

Neste estudo foram percorridos alguns períodos da história humana, nos quais se procurou identificar a relação da religião com o riso, em seus aspectos históricos e culturais. É a partir do início da civilização moderna, no século XVI, que a importância social da religião começa gradualmente a diminuir, devido a vários fatores sociais e culturais já mencionados anteriormente. A doutrina e a instituição religiosa passam a ocupar um lugar secundário, comparado ao destaque que tinham nas culturas anteriores. Deus, a salvação da alma, o cumprimento dos sacramentos, ainda continuavam a ser temas que preocupavam o homem, mas equiparam-se agora aos outros, como o comércio, as ciências e a política. Em relação a este processo, escreve o teólogo e antropólogo Harvey Cox (1929) em A cidade do homem:

As forças da secularização não tem nenhum interesse sério em perseguir a religião. A secularização simplesmente contorna a religião e avança rumo a outras coisas. Relativizou as concepções religiosas do mundo e as tornou inócuas. A religião passou a ser privativa. Tem sido aceita como a prerrogativa e o ponto de vista particular de uma pessoa ou de certo grupo. A secularização conseguiu o que a fogueira e a cadeia não conseguiram: convenceu o crente de que podia estar errado e persuadiu o devoto de que há coisas mais importantes do que morrer pela fé. Os deuses das religiões tradicionais sobrevivem como fetiches particulares ou como patronos de grupos congeniais, mas não desempenham nenhuma função significativa na vida pública da metrópole secular (COX, 1971, p.13).

A diminuição da importância da religião na sociedade é um processo que, iniciado na Renascença, se estenderá pelos próximos 400 anos, passando pela Reforma, pela Revolução Francesa, para chegar ao século XIX, quando sua influência torna-se cada vez mais diminuta, inclusive nos países de forte tradição católica. É evidente que esta evolução histórica não foi um processo simples, como também não são simples as forças que atuam no interior das sociedades e nas vidas dos indivíduos. Este gradual processo de secularização das sociedades foi chamado pelo sociólogo e economista Max Weber (1864-1920) de “desencantamento do mundo”. Sobre este conceito escreve a acadêmica Silvia E. de Oliveira Basso:
[...] Weber denomina todo este processo de apropriação mundana e racional de conceitos sagrados ou mágicos como desencantamento do mundo. [...] Processo iniciado no monoteísmo judaico, o desencantamento do mundo pode ser definido como desmagificação no campo religioso, ruptura com as formas mágicas e sacramentais pelas quais o homem buscava salvação. Para Weber, os profetas judaicos iniciaram o que ele chama de eticização do mundo, ao estabelecer a crença em um único Deus, que é ético e assim leva um sentido religioso para dentro do dia-a-dia, uma condução do agir na vida ordinária [...] Por vezes, desavisados, desinformados, ou ainda, pretensamente sabidos, somos levados a crer que Weber dedicava-se ao estudo da religião, ou ao racionalismo filosófico, quando na verdade seu campo de interesse, e o nosso neste artigo, é como este processo de desencantamento do mundo, esta desmagificação da busca da salvação, levou a uma racionalização do agir, a racionalização prático-ética e prático-técnica, definidora cultural da mentalidade capitalista moderna. Weber está tentando nos mostrar a construção histórica do agir do homem moderno, construção esta iniciada pelos profetas bíblicos e consumida pelos reformadores do séculos XVI e XVII. (BASSO, s/d, p.3)

O próprio desenvolvimento da filosofia durante este período já não permite mais falar da religião nos termos usados na escolástica medieval. A evolução das outras ciências, principalmente a física, a astronomia, a medicina e o estudo dos textos clássicos antigos permitiram, já a partir do século XVII, elaborar uma crítica a muitos aspectos da religião cristã. A iniciativa começou na filosofia, onde os filósofos se julgavam modernos por terem rompido com a antiga tradição filosófica e a autoridade da igreja, afirmando que só o que pudesse ter o crivo da razão era julgado possível de conhecimento. Supunham os filósofos que com a nova metafísica, elaborada por Descartes, o mundo poderia ser todo racionalizado em suas relações. Com isso, toda a metafísica se tornou mais simples e passou a operar basicamente com três idéias:
A idéia do ser infinito como causa eficiente da natureza e do homem; a idéia do ser pensante finito como causa eficiente dos pensamentos, dos conceitos e das ações humanas; a idéia do ser extenso ou natureza como causa eficiente que, pelas relações de movimento produz todos os corpos. Deus, homem e natureza são objetos da metafísica. (CHAUÍ, 2006, p.197).

No início do século XVIII surge o filósofo David Hume, que efetua uma crítica radical a este racionalismo, negando três princípios de sua estrutura: o princípio de identidade, o de não-contradição e o da razão suficiente. Partindo desta argumentação, Hume consegue colocar em cheque toda a filosofia cartesiana e com isso corroer toda a base da metafísica. A solução ao impasse criado por Hume foi dada anos depois por Kant, que estabeleceu uma nova base para o conhecimento e tirou de vez a racionalidade da metafísica. Com isso, conceitos da religião como Deus, alma, infinito, eterno e muitos outros, perderam sua base racional, apesar das várias tentativas de filósofos posteriores a Kant tentarem revalidá-los novamente. No entanto, a derrota da metafísica em seus termos clássicos, com vinha sendo praticada desde os gregos, era irreversível.
E hoje, no que se transformou a crítica e o riso da religião? Muitos autores consideram que tais idéias já não tem mais apelo intelectual, pelo menos para as classes mais instruídas. Depois do iluminismo (final do século XVIII), do ceticismo radical de David Hume (1711-1776), da Crítica da Razão Pura de Kant (1724-1804), da crítica à religião formulada por Ludwig Feuerbach (1804-1872) e Karl Marx (1818­1883), da teoria da evolução de Darwin (1809-1882), da negação da metafísica de Friedrich Nietzsche (1844-1900), da teoria do inconsciente de Freud (1856-1939); da evolução da física (primeiras décadas do século XX), do neoevolucionismo (a partir da década de 1940), da moderna cosmologia (segunda metade do século XX), da biologia genética (a partir da década de 1970) e da neurologia (a partir da década de 1980), não resta mais muito espaço para a religião – pelo menos aquela com pretensões de explicar o mundo em todos os seus aspectos – e menos ainda para seus dogmas, baseados em uma metafísica ainda nos moldes pré-kantianos. Uma grande parte dos indivíduos instruídos em todo o mundo é indiferente em relação ao sentimento religioso e o que sobra é um sentimento difuso, como escreve o filósofo Marcel Gauchet (1946):

Deus desantropomorfiza-se, em seguida, no terreno moral. Deixa de ser um prescritor (que prescreve) e retribuidor que leva em conta com exatidão as condutas. Ele tem mais o que fazer além de castigar e recompensar as boas e más obras. As investigações sobre a evolução das crenças religiosas registram bem esse deslocamento. O inferno não faz mais sucesso, o paraíso não é mais plausível como um lugar de delícias prometido aos justos. A crença na sobrevida pessoal, que permanece forte, desconecta-se da passagem por um tribunal de virtudes e vícios. A imagem de Deus e a esfera do divino, que a morte permite reintegrar, se impessoaliza. É aqui, aliás, que se opera o encontro com o budismo. (FERRY e GAUCHET, 2008, p.53).
Ao mesmo tempo em que parte da população mundial tem uma atitude indiferente em relação à religião, correntes fundamentalistas continuam em expansão, e não se vê, em curto prazo, um arrefecimento deste entusiasmo religioso. Como causas do crescimento deste fundamentalismo – seja cristão, muçulmano ou judaico – está a dificuldade na divulgação da idéia de uma sociedade laica e democrática, o desafios em entender as novas descobertas da ciência e a desestruturação cultural e social em várias sociedades; tudo gerando uma reação de medo e apego a valores do passado. As profundas mudanças pelas quais o mundo passou nos últimos 50 anos, ampliadas pela globalização, causam temor perante o novo em muitos indivíduos e sociedades. A tendência então é de fuga, através da  negação. Como exemplo, podemos considerar os Estados Unidos, a nação mais rica e tecnologicamente desenvolvida do mundo.

Segundo o filósofo americano Sam Harris em Carta a uma nação cristã, uma pesquisa recentemente realizada pelo Instituto Gallup em todo o país, concluiu que somente 12% dos cidadãos acreditam que a vida na Terra tenha evoluído através de um processo natural, sem interferência de nenhuma divindade. A mesma enquête constatou que para 31% da população americana a evolução foi “guiada por Deus”. Com relação especificamente à fé cristã, “nada menos que 44% dos americanos estão convencidos de que Jesus vai voltar para julgar os vivos e os mortos, em algum momento dos próximos cinqüenta anos.” (HARRIS, 2007, p. 17, itálico do autor).
Todavia, mesmo com a aceleração do processo de secularização, é provável que o homem nunca abandone completamente seu interesse e sua procura pelo mito. Este não se manifesta somente na religião, já que esta é uma atividade relativamente recente da mente humana, enquanto que a crença em mitos, no sagrado, no “além do homem”, existe desde que começamos a usar nosso cérebro como Sapiens Sapiens – talvez até antes. A vida humana completamente secularizada, como algumas correntes teológicas do início dos anos 1960 defendiam com a teologia da morte de Deus, não é possível.

Como contraposição a este processo de “dessacralização” surgem diversos grupos sociais, para os quais a Natureza tomou o lugar da divindade e a vida voltada para a preservação do ambiente seja talvez o mais novo substituto da ascese medieval cristã. Em relação a este assunto, escreve Mircea Eliade em O sagrado e o profano:
É preciso acrescentar imediatamente: uma tal existência profana jamais se encontra em estado puro. Seja qual for o grau da dessacralização do mundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o comportamento religioso. [...] até a existência mais dessacralizada conserva ainda traços de uma valorização religiosa do mundo. (ELIADE, s/d, p.37)

CONCLUSÃO

Como conclusão e resultado deste estudo sobre a relação da religião com o riso, foram identificados três tipos de crítica da religião, de “riso da religião”, na acepção que vem sendo dada ao termo no decorrer de todo este texto. A cada tipo de posicionamento crítico em relação à religião com a ajuda do humor, associaremos aqui o perfil de um intelectual de um período histórico específico e representando um tipo de atitude em relação à religião, exteriorizada através do riso, do humor. A forma através da qual cada autor tratou da religião utilizando-se do riso, esclarece – indiretamente – a maneira como a religião influenciou aquela sociedade e como o fato religioso era encarado pelos homens daquele período. Por suas características de estilo, temas abordados e período histórico em que viveram, foram escolhidos três escritores e grandes intelectuais em seu tempo: Gregório de Mattos, H. L. Mencken e Machado de Assis. Cada um deles representa um determinado nível de “riso da religião”, de crítica à religião, que foram identificados no decorrer deste estudo.

Gregório de Matos: o riso satírico e a crítica cuidadosa
O Brasil, colônia de Portugal no século XVII, estava fortemente influenciado pela religião. O catolicismo era a religião oficial do país e outras crenças eram proibidas e ferozmente perseguidas. A Inquisição não estava estabelecida no território brasileiro, mas seus agentes visitavam regularmente as principais cidades, principalmente no nordeste. Isto não quer dizer que todos os habitantes tivessem um conhecimento da doutrina católica, seus dogmas e seus ritos. Fora dos centros urbanos desenvolvia-se uma religiosidade simples, mais baseada no culto aos santos, já que a presença do padre não era constante. Esta falta de apoio da igreja oficial também propiciava a formação de um sincretismo religioso, fruto da mistura das crenças dos indígenas, dos negros e do camponês português emigrado. O ambiente cultural, mesmo na capital da colônia, a cidade de Salvador, era bastante atrasado em relação às cidades européias. A primeira faculdade brasileira e o primeiro jornal editado no país, só viriam a existir quase 150 anos depois de Gregório de Matos ter falecido. Os poucos cidadãos instruídos eram geralmente membros da Igreja ou representantes das elites econômicas locais, que tinham ido estudar em Portugal. A vida cultural no Brasil do século XVII não era nada atrativa. Neste ambiente surge o poeta Gregório de Matos (1636-1696), apelidado de Boca do Inferno por sua crítica ferina à sociedade baiana da época e aos membros do clero. Gregório de Matos é considerado o primeiro poeta autenticamente brasileiro, usando temas e expressões características da cultura local. Grande satírico, envolvia-se constantemente em disputas judiciais, pelos excessos praticados por sua pena. Foi denunciado ao tribunal da Inquisição “por não descobrir a cabeça à passagem da procissão”, mas foi absolvido. Apesar de ser oriundo da elite local, Gregório de Matos viveu constantemente em conflito com os representantes do poder político e religioso. Foi exilado para Angola e retornou de lá já doente, morrendo logo depois em sua Salvador da Bahia. Conta a história que estando prestes a morrer, mandou chamar dois padres para que ficassem um de cada lado de sua cama. Assim, segundo suas palavras, “poderia morrer como Jesus Cristo: cercado por dois ladrões”. Esta passagem – cuja veracidade é discutível – dá uma amostra da atitude de Gregório de Matos em relação à hierarquia eclesiástica da Bahia da época, o que lhe deve ter trazido muitos inimigos dentro do clero. Em um de seus poemas, que provavelmente circulavam através de panfletos, o autor satirizava um padre, que já o havia atacado anteriormente:

Ao mesmo clerigo appellidando asno ao poeta
Padre Frisão se vossa Reverência
Tem licença do seu vocabulário
Para me pôr um nome incerto, e vário,
Pode fazê-lo em sua consciência.
Mas se não tem licença em penitência,
De ser tão atrevido, e temerário
Lhe quero dar com todo o Calendário,
Mais que a testa lhe rompa, e a paciência.
Magano, infame, vil alcoviteiro,
Das fodas corretor por dous tostões,
E enfim dos arreitaços alveitar.
Tudo isso é notório ao mundo inteiro,
Se não seres tu obra dos culhões
De Duarte Garcia de Bivar. (site O CORONISTA REÇUSITADO







O ponto importante da crítica à religião, do “riso da religião” em Gregório de Matos é que esta era dirigida a indivíduos: clérigos, bispos e leigos, mas nunca aos princípios da religião católica. A doutrina da Igreja era plenamente aceita pelo poeta e são vários os poemas nos quais o autor declara se arrepender de seus pecados, de seus escritos, esperando obter o perdão de Deus. Por isso, Gregório de Matos dedica poemas à Virgem, ao Santíssimo Sacramento, ao menino Jesus, escrevendo poemas como:

Ofendi-vos, Meu Deus, bem é verdade
É verdade, meu Deus, que hei delinqüido
Delinquido vos tenho, e ofendido,
Ofendido vos tem minha maldade [...] (site O CORONISTA REÇUSITADO) 


A posição de Gregório de Matos é a de um crítico de pessoas, membros de uma instituição religiosa; ataca padres e demais religiosos em suas atitudes individuais. A instituição, no entanto, não era atacada em seus poemas satíricos; muito menos a doutrina cristã. O poeta, apesar de tanto festejado como contestador, era menos incisivo em suas críticas do que a maior parte dos dissidentes medievais analisados em outras passagens deste estudo.

Henry Louis Mencken: critica tudo, depois ri
O segundo tipo de crítica da religião, de “riso da religião” que consideraremos é o do jornalista e escritor norte-americano Henry Louis Mencken (1880-1956). Filho de um abastado comerciante alemão imigrado para os Estados Unidos, Mencken não chegou a terminar seus estudos universitários, tendo muito cedo entrado para a carreira jornalística, ocupando posições de destaque nos melhores jornais da época. Lia de tudo e era informado sobre as novidades em todas as áreas do conhecimento humano de sua época. Escrevia sobre qualquer assunto que interessasse ao grande público dos jornais Sun e Evening Sun e das revistas Smart Set e American Mercury, para os quais regularmente contribuía. Seu estilo era simples, claro e crítico – às vezes satírico. Falava sobre o governo, a democracia, a economia, a psicologia, a moral, a morte a moda e sobre a religião; tudo que fosse de alguma forma interessante era comentado pelo jornalista. Mencken viveu grande parte de sua vida em Baltimore, na costa leste dos Estados Unidos, região em franco desenvolvimento econômico à época. A sociedade em que convivia era rica, moderna, sofisticada, secular, intelectualizada e livre de qualquer influência religiosa. Tratando sobre a religião, Mencken escreveu textos que devem ter divertido bastante parte de seus leitores. Quanto aos ministros da religião escreveu em 1924:
Nenhuma outra categoria parece tão apinhada de falsas suposições como as que cercam os reverendíssimos padres e pastores, nossos legítimos delegados junto ao Trono da Graça. Começo imediatamente por um exemplo crasso: a suposição de que os clérigos são necessariamente religiosos. Óbvio, esta suposição é vastamente alimentada, até pelos próprios clérigos. O mais irreverente de todos nós, na presença de um funcionário da fé, adota uma atitude grave. [...] Na realidade, ele é muito menos pio do que um honesto americano médio, e duvido seriamente que as bruxarias a que ele se entrega como profissional no dia a dia lhe despertem qualquer emoção mais sublime do que o enfado. (MENCKEN, 2009, p.54).
Já em outro texto, Mencken vai mais longe e escreve com humor sutil, tratando das instituições religiosas e de seus ministros:

O aprendizado (religioso), na verdade, não é tido em alta estima pelo sectarismo evangélico, e qualquer matuto que saiba ler, se inflamado pelo Espírito Santo, é declarado apto a sair pregando. Mas eles são mandados antes para um treinamento numa universidade? Sim, mas que universidade! Aquela lá no fundo de um vale, com seu único edifício rodeado de pastagens, e com um corpo docente formado por pedagogos semi-idiotas e pregadores gagás. Tais homens, numa faculdade dessas, ensinam oratória, história antiga, aritmética e a exegese do Velho Testamento. O aspirante sai da estrebaria e volta à sua cidade em um ano ou dois. Sua bagagem de conhecimentos é a mesma de um chofer de ônibus ou a de um ator de circo. (MENCKEN, 2009, p. 68-69).

A crítica e o humor de Mencken vão tão longe que nem Deus escapa de sua língua (pena) ferina:
[...] A exata natureza de tal alma vem sendo discutida há milhares de anos, mas é possível falar com autoridade a respeito de sua função. A qual seria a de fazer o homem entrar em contato direto com Deus, torná-lo consciente de Deus e, principalmente, torná-lo parecido com Deus. Bem, considere o colossal fracasso desta tentativa. Se presumimos que o homem realmente se parece com Deus, somos levados à inevitável conclusão de que Deus é um covarde, um idiota e um pilantra (MENCKEN, 2009, p.14).
Mencken em sua crítica à religião, seu “riso da religião”, já vai muito além de Gregório de Matos. Enquanto este último ataca um ou outro membro da instituição – eximindo esta de sua crítica –, Mencken é muito mais demolidor, não poupando o religioso, a igreja e nem o próprio Deus, muitas vezes de uma maneira bastante contundente. Tal crítica só seria possível em uma sociedade gozando de total liberdade de expressão e de crítica, sem qualquer interferência de outros poderes – sejam políticos ou religiosos – ou grupos de pressão.
 
Machado de Assis e a sutileza do bruxo
O terceiro exemplo de crítica à religião, de “riso da religião” não é tão direto quanto os apresentados acima. Trata-se de uma abordagem muito mais sutil, feita em um nível de sofisticação intelectual bem acima dos autores anteriores. Esta é a crítica de Joaquim Maria Machado de Assis, o Machado de Assis, maior escritor brasileiro, comparável aos cem maiores escritores da literatura universal, segundo o crítico americano Harold Bloom. Mulato, nascido em uma sociedade ainda escravocrata, Machado de Assis assim como Mencken não chegou a freqüentar a faculdade, tendo adquirido os seus vastos conhecimentos através do próprio esforço. Trabalhando em uma gráfica, iniciou sua carreira escrevendo pequenos artigos para a imprensa, o que lhe valeu uma grande prática no uso de sua ferramenta, a linguagem. Alcança sua maturidade literária com a publicação do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881, inaugurando sua fase Realista. Até lá o escritor já havia percorrido um longo caminho, iniciado no Romantismo, com a obra Ressurreição (1872). Escreve o filósofo Benedito Nunes sobre a suposta influência filosófica recebida por Machado:

Pascaliano sem o consolo jansenista da Graça distribuída aos eleitos da Salvação, schopenhaueriano que substituiu pelo ódio à vida a moral de renúncia da vontade de viver, e cético radical, pirrônico, derivando para o niilismo – eis os traços fisionômicos-doutrinários, carregados nas tintas do negativismo, com os quais a tradição crítica revestiu o perfil filosófico de Machado de Assis que fez chegar até nós, emoldurando-o na autoridade das fontes principais que o criador de Dom Casmurro teria abeberado seu pensamento. (NUNES, 1993, p.129).
Em sua fase realista Machado demonstrou uma forte influência do pessimismo e do ceticismo, que soube misturar com pitadas de fino humor, aliado a um profundo conhecimento da índole humana. A obra na qual desenvolve toda a sua visão cética da vida, entranhada nos diálogos e na própria trama do romance, é no Memorial de Aires, (1908) a última obra do artista.

Apesar de descrente, Machado em nenhum de seus escritos elaborou uma crítica direta e clara à religião e a seus ministros, como o fizeram Gregório de Matos e Mencken. Talvez quisesse evitar um embate direto com a instituição, que àquela época ainda tinha forte influência nos assuntos políticos do país, era aliada histórica das elites econômicas e ainda mantinha o monopólio quase absoluto da crença. Conhecia as condições da sociedade onde vivia e o quanto havia sido difícil ascender socialmente, já que provinha dos níveis mais pobres da população. Um confronto direto com a Igreja poderia ter-lhe custado a já estabelecida carreira de escritor. Além disso, como bom pirrônico, Machado sabia que o embate não mudaria nada, já que nada havia a mudar. Cumpria observar a humanidade e escrever, já que...(?)

Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cotejo de sistemas, de idéias novas, de novas ilusões; em cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva [...] (MACHADO DE ASSIS, 1997, p.32)
A crítica em Machado – quando acontece – tem uma sutileza única, dando-nos uma visão muito mais ampla do problema, apontando a árvore e ao mesmo tempo mostrando toda a floresta para aqueles que querem ver, como diz a anedota budista.

Um dos melhores exemplos é o seu conto A igreja do diabo, publicado em uma coletânea de textos curtos (Histórias sem Data, 1884). Neste relato o Diabo decide fundar uma igreja, pois “sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânone, sem ritual, sem nada.“ (MACHADO DE ASSIS, 1996, p.11). [...] Diz ainda o Diabo: [...]“E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.” (ibid. p. 12, itálico nosso). Antes de partir para sua empreitada o Diabo ainda tem um diálogo com Deus, explicando-lhe seu intento. Então, parte para a Terra para fundar sua igreja. Esta estabelecida, o Diabo consegue converter muitas pessoas e aumentar bastante o tamanho de seu rebanho. [...] “O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloquência, toda a nova ordem de causas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.” (Ibid., p.18). Tudo corria às mil maravilhas e a religião do Diabo havia ficado conhecida em todo o mundo, sendo fielmente praticada por multidões. [...] “Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes” (ibid., p. 21). Até seus melhores discípulos, os que haviam cometido as maiores falcatruas e maldades, estavam praticando o bem às escondidas; se confessavam, rezavam. Desiludido, o Diabo abandona tudo, vai para o céu e conta toda a história para Deus. Este escuta o Diabo sem interrompê-lo, sem repreendê-lo, “com infinita complacência”. Ao final, Deus olha para o Diabo e diz:[...] “Que queres? É a eterna contradição humana” (Ibid., p. 22, itálico nosso).

Poucas vezes na literatura um texto tão conciso consegue transmitir tantas idéias ao mesmo tempo. Com este conto, o “velho bruxo do Cosme Velho” nos dá uma lição de profunda sutileza filosófica. Machado não faz críticas, não ri às gargalhadas, daquilo que seriam os alvos usuais: a igreja, seus ministros, suas doutrinas ou Deus. Como um velho e experiente mestre zen-budista – e aqui fazemos uma referência às incontáveis anedotas envolvendo tais sábios – Machado nos deixa desconcertados; sua crítica tem outro endereço e é muito mais profunda. O filósofo Plínio Smith escreve que “o que distinguiria o cético do não-cético não seriam as crenças, mas sua atitude em relação a elas” (SMITH, 2007, p.12). Machado com sua descrição cria uma história onde ambos, Deus e o Diabo, se vêem às voltas com a “eterna contradição humana”. Não critica ou ridiculariza os dois personagens, Deus e o Diabo, ao contrário. Descreve-os como dois conhecidos, quase amigos, mas que tem lá as suas desavenças. O mais importante é que ambos têm um problema em comum: a humanidade. Machado, em outras palavras, quer dizer que o tema central da religião não é Deus ou o Diabo, nem as igrejas e todos os seus dogmas e sacramentos. O problema central da religião é o homem. A crítica à religião é, pois, a crítica ao homem. O homem, com suas eternas contradições, das quais a religião é uma delas. Sobre esta idéia, escreve o filósofo Ludwig Feuerbach:
Deus tem seu nascimento na miséria do homem. Só do homem Deus tira todas as suas finalidades, Deus é aquilo no qual o homem quer se transformar – sua própria individualidade, seu próprio objetivo, apresentado como um ser real. (FEUERBACH, 1967, P. 84, tradução nossa).

Esta a grande sutileza do “riso” de Machado de Assis. Com A igreja do Diabo concluímos que a crítica e o riso da religião é, na realidade, a crítica do homem; de sua atuação na história através da religião.
Ao final, fazendo um retrospecto de tudo aquilo que foi pesquisado para realizar este trabalho; os diversos períodos históricos, os personagens e as idéias, enfim, fragmentos da história humana, terminamos este estudo com o pensamento do teólogo e filósofo inglês Don Cupitt:
E aqui estou eu, para dizer que apesar de nossos melhores esforços não podemos planejar, conhecer controlar ou avaliar clara e conscientemente o que fizemos ou qual foi o valor de nossa contribuição. Podemos ficar felizes de termos dito a nossa fala e de termos nos manifestado. Mas o que dissemos, o que fomos e o valor disso tudo, nós não sabemos e não poderemos saber. Não existe qualquer lugar onde se encontre a Real Verdade sobre nós e não chegará o dia em que ela será proclamada. Assim, não existe um Ser real e nunca saberemos o que alcançamos com nossa vida e nosso trabalho. (CUPITT, 1998, p 142, tradução nossa)
domingo, 11 de abril de 2010
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 Data do post: 12/7/09
Ricardo Ernesto Rose, Jornalista e Licenciado em Filosofia



Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.