sábado, 5 de março de 2016

ENCANTAMENTO COMO PSICOTERAPIA - PAULO URBAN





Encantamento como psicoterapia para encontrar o mito pessoal.
 Entrevista Paulo Urban no Salutis - 53 min.

Como encontrarmos nossa mitologia pessoal e ser quem é. Linha de busca do Salutis e da prática da psicoterapia do encantamento, linha de tratamento do Dr. Paulo Urban, médico psiquiatra que foi entrevistado no programa de 23 de setembro de 2013. Formado em medicina pela Santa Casa de São Paulo, especialista em Psiquiatria pelo Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, Paulo Urban foi Diretor Clínico do Hospital Psiquiátrico Casa de Saúde de São João de Deus e articulista da Revista Planeta, Editor-chefe da Revista Medicina Atual, 2003/2004 e Diretor Geral de Redação da Revista Nova Consciência, 2007/2008. 


É professor em curso de pós-graduação 
em Psicologia Transpessoal desde 2004. Confira.



Dr. Paulo Urban
Paracelsus: Alquimia e a própria Pedra Filosofal - 54 min.


Dr. Paulo Urban
Consciência Próspera - 24 min.




Mestre Eckhart - o Silêncio e a Escuta


O monge dominicano alemão, Eckhart de Hochheim (1260-1327), que viveu seus últimos anos perseguido pela Santa Inquisição, dizia que “nada importa muito se não se trata de descobrir em nós o Absoluto”. O sábio valorizava a introspecção como meio de ascese espiritual e considerava que nada podia assemelhar-se tanto a Deus quanto o silêncio.
Eckhart recebera seu título de mestre ao concluir, em 1302, sua formação escolástica na Universidade de Paris. Destacara-se como um dos mais agudos debatedores. No ano seguinte retornaria à Alemanha e passaria a peregrinar por seu país até 1307, quando se estabeleceu como Vigário Geral da Boêmia. O religioso decididamente rompeu os protocolos eclesiásticos ao decidir-se por pregar seus sermões dominicais, do alto de seu púlpito, não em latim, mas em alemão comum, língua acessível ao povo ao qual falava.
Acusado por aqueles que muito lhe invejavam a coragem e a serenidade de espírito, de assim “expor aos ingênuos certas coisas que poderiam induzir os fiéis ao erro”, retorquiu dizendo que assim o fazia por cumprimento às palavras do Evangelho, segundo as quais “o Espírito sopra onde lhe aprouver”, julgando ser de suma importância semear ao sabor do vento para que num sempre crescente número de pessoas maiores chances de germinação houvesse.
Embora dotado de uma verve torrencial, ao mesmo tempo lúcida e comovente, não eram tanto as palavras, senão o silêncio contemplativo o moto de vida deste sábio monge, um místico que dedicou sua vida a perscrutar a alma em sua natureza eterna, em sua qualidade oculta e numinosa.
De fato, é o silêncio um dos melhores amigos da alma, posto ser ele prerrogativa necessária à escuta de nossos próprios anseios, da verdadeira voz interior. A propósito, como escutar aos outros se não estivermos minimamente treinados a escutar a nós mesmos?
Nesse sentido, a introspecção é sempre uma prática valiosa a cumprir o papel da genuína oração. Por meio dela podemos aplacar as inquietudes da mente, abandonar os enganos que cotidianamente nos absorvem e, com natural inclinação, ouvir a doce poesia de nossos murmúrios internos, também a voz da intuição indicando-nos novas portas de ascese em direção a experiências que nos aguardam numa realidade transcendente, que nos ensina a comungar no altar da catedral anímica, em nosso sagrado templo interior. Nesse silencioso deleite, prestando atenção aos acordes divinos, podemos ouvir as sinfonias das esferas, o som vocálico do Verbo criador.
Mas de nada nos adiantaria esta experiência arrebatadora de escuta se não a pudéssemos aplicar em nossas vidas, no intuito de dirimir o intempestivo ruído das relações humanas. Procurar perceber o não dito, o interdito, ou ainda o inaudito que perpassa por todo relacionamento humano é uma grande prova de amizade e de abertura à voz do coração alheio; pois há sempre segredos e detalhes que se escondem no silêncio entre as palavras, assim como a música é tanto mais sublime quando percebemos as pausas de seu andamento harmônico entre as notas reverberantes do caminho.
Também na verdadeira amizade entre pessoas que se amam e se respeitam, há cenas que somente podem ser apreendidas na cumplicidade do silêncio, talvez a mais elevada maneira de dizermos uns aos outros tudo aquilo que as palavras não alcançam, de nos alçarmos juntos em direção à inefável condição daqueles que aprenderam a orar e a sorrir sem fazer qualquer barulho.
(*) Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento
e-mail: urban@paulourban.com.br

Hipócrates e a Medicina Chinesa

Passa despercebido por quase a totalidade dos médicos e historiadores, que o grego Hipócrates (460-370 a.C.), pai da medicina ocidental, tenha professado sua arte e fundamentado seu conhecimento científico em axiomas que guardam profunda semelhança com a filosofia oriental, mais especificamente o taoísmo, base do pensamento médico chinês.

A medicina tem raízes perdidas num passado longínquo. Evidências de práticas ritualísticas combinando o pensamento mágico a técnicas primitivas de cura datam de meio milhão de anos, e o instinto de medicar pode ser encontrado mesmo nas espécies inferiores. Animais silvestres, por exemplo, chegam a viajar grandes distâncias em busca de plantas que contenham princípios ativos capazes de tratar suas afecções; as corujas livram suas penas dos piolhos tomando banhos de areia; e o ato de lamber as próprias feridas, a promover assepsia local pelas propriedades germicidas da saliva, é traço comum do comportamento animal, encontrado também entre as crianças.

Desde o alvorecer das civilizações, a preocupação com a saúde é inerente à condição humana que, testemunha do próprio sofrimento, procura prevenir-se das doenças e curar seus males. Universalmente presente nas culturas primitivas está a figura do xamã, ou sacerdote feiticeiro, dotado de poderes mágicos endossados pelo mundo espiritual que o orienta em sua prática de cura. Seu saber ancestral perpetua-se ao longo das gerações por meio da tradição oral e pelos ritos de iniciação destinados a selecionar esses raros indivíduos.

Crânios pré-históricos coletados em várias regiões do mundo, incluindo o Peru, revelam a prática da trepanação, cirurgia pela qual se chega ao cérebro através de aberturas feitas na calota craniana por instrumento cortante de pedra. Espanta-nos saber que tais intervenções eram praticadas em pacientes vivos; mais incrível é a evidência de que parte deles sobrevivia, como nos mostram achados arqueológicos de crânios trepanados nos quais há margens arredondadas de calcificação óssea, crescidas após a cirurgia. Impressionante também é a imagem rupestre do feiticeiro-cervo gravada a cinco metros do chão na câmara subterrânea da caverna de Trois Frères, sul da França, datada do Paleolítico Superior (30.000 a 10.000 mil a.C.). É o retrato do mais antigo médico até hoje revelado. O xamã de Trois Frères tem barba e pernas de homem, patas dianteiras de urso, cobre-lhe o rosto uma máscara de veado com chifres, e está dançando, como se executasse um ritual misto de caça e cura.

Escavações realizadas pelo inglês Sir Leonard Wooley, em 1929, em tumbas reais na Mesopotâmia, revelaram que os sumérios, por volta de 5.000 a.C., valiam-se de bebidas depressoras do sistema respiratório, com as quais sacerdotes de ambos os sexos sacrificavam voluntariamente suas vidas. Uma vez dormentes, eram enterrados vivos ao lado dos corpos de seus reis mortos. Além disso, instrumental de cobre, de 4.200 a.C., escavado nas cidades de Ur, Kish, e Lagash, sugere que os sumérios também dominavam a técnica do escalpo.

Também os egípcios detinham uma pródiga medicina. O que dela sabemos provém de dois grandes fragmentos de escrita hierática, os papiros Ebers e Smith. Ambos são datados de 1.600 a.C., mas o segundo, descoberto em Tebas, em 1862, copia textos médicos que datam de 2.500 a.C. O Papiro Ebers traz desde fórmulas mágicas para debelar pestes e curar doenças até imprecações para o rejuvenescimento. O papiro Smith, por outro lado, inclui condutas cirúrgicas até hoje válidas, como o uso de compressas nas hemorragias; apresenta seções dedicadas a oftalmologia e aos órgãos internos, e comenta casos clínicos, prognósticos e tratamento. Um dos maiores médicos da Antigüidade egípcia foi Imhotep, sacerdote e arquiteto que serviu ao faráo Djoser (2.630 a.C.) da terceira dinastia, construtor da primeira pirâmide em degraus, em Saqara. Imhotep, cujo nome significa “aquele que veio em paz”, devido a seus extraordinários dotes, foi divinizado após a sua morte. Sua figura mesclou-se à imagem de Thot, deus da sabedoria, o mesmo que devolveu a Hórus seu olho perdido na luta empreendida contra Seth, assassino de seu pai, Osiris. Thot seria ainda assimilado pelos gregos, sob o nome de Asclépio.

De acordo com a versão mais aceita, Asclépio era filho de Apolo e da ninfa Corônis, filha de Flégias, rei dos Lápitas. Seu nascimento dera-se por parto cesariana, procedimento que os gregos registram desde 1.200 a.C. Originalmente, era Apolo quem afastava as epidemias com suas flechas, até confiar seu filho ao cuidados do centauro Quíron, médico formado no saber de Apolo, cujo nome grego Kheíron provém de kheirurgós (aquele que trabalha com as mãos), de onde saiu o nome “cirurgião”.

O personagem mítico aqui também se confunde com o histórico, visto que Asclépio, cujo nome significa “o bom e o simples”, deva de fato ter vivido por volta do século XIII a.C, até porque o vemos na expedição dos argonautas ao lado de heróis como Jasão, Héracles, Peleu e outros. Insuperável em sua arte, o bom médico teria até mesmo conseguido ressuscitar alguns de seus amigos mortos nessa viagem. O feito lhe rendeu a ira de Hades, rei dos mortos, que o acusava de sonegar almas aos infernos e, assim, perverter o cosmos, razão pela qual foi fulminado pelos raios de Zeus. Desde então, Asclépio encontra-se divinizado.

Fixando-se em Epidauro, domínio de Apolo, o sábio fundou uma escola de medicina, também hospital; na verdade um templo destinado a receber doentes de toda a parte que vinham se submeter a tratamentos mágicos. Com a cotidiana observação dos casos e mediante larga prática clínica, a arte médica dos gregos pôde dar seu primeiro passo no universo do “espírito científico”, base de toda a medicina acadêmica do mundo ocidental. 

Asclépio era chefe de uma família dedicada à medicina. Tinha um verdadeiro corpo clínico em sua casa. Seus filhos, Podalírio e Macaón, surgem como médicos da Ilíada, além de Higéia e Panacéia, que cuidavam das serpentes no templo; a primeira, dedicada à higiene (medicina preventiva); a segunda, à cura das doenças.

Com os séculos a escola alcançou fama desmedida. Os discípulos de Asclépio migraram por toda a Grécia, fundando novas escolas, as Asclepíades, sendo famosas a de Pérgamo, a de Cós, e a de Cnido, esta a mais antiga, do séc. VII a.C. Nelas se praticava, além das preces e oferendas aos deuses, a ausculta dos pulmões com os ouvidos colados ao tórax, incisões renais e outros feitos, longe, porém, do rigor científico. Nelas moravam também os escribas, cuja função era registrar em “tábuas votivas” o que lhes contavam os pacientes curados.

Hipócrates nasceu em Cós; seu pai, um médico, mandou-o estudar em Atenas. Ao regressar, funda a Asclepíade de Cós. Imprimindo seu gênio, cria o método de observação ao pé do leito, descrevendo cada um dos casos, sentindo o operar tênue ou abrupto dos sintomas. Hipócrates formaliza assim uma extensa obra, maior parte dela escrita por seus alunos, que cristalizava o saber empírico das tábuas votivas num pensamento sistematizado e notável, desligando a medicina das crenças mágicas. Nascia assim a ciência médica ocidental, marcada pelo rompimento de Cós com a medicina religiosa praticada pela escola rival de Cnido, bem como por todo o restante da Grécia.

À coleção de 53 tratados que compõem 72 livros médicos - conforme se organiza a edição francesa, por Emile Littré (1801-1881) - escritos em Cós, dá-se o nome Corpus Hipocraticum. Seu nó fulcral é o livro de Aforismos de Hipócrates, composto de sete seções, que lhe valeu o epíteto de “pai da medicina”. Centrado no homem e atento à observação da natureza, o pensamento hipocrático guarda íntimas semelhanças com a cosmogonia chinesa. E podemos começar aqui as comparações a que nos propusemos desde o início.

O primeiro aforismo de Hipócrates, imortalizado na máxima latina ars longa vita brevis observa que a vida é curta para que aprendamos toda sua arte. Ora, esta preocupação não é outra senão a do Imperador Amarelo, Huang Ti, personalidade extraordinária que governou a China há mais de 4.500 anos.

Conta a lenda que em 2697 a.C., Huang Ti tomou o leme da China, sucedendo a Shen Nung. Dotado de sabedoria, e preocupado com a longevidade, iniciou diálogos com seu ministro Chi Po (Mestre Celeste), seu astrônomo Gui Yu Chi, e um de seus discípulos, Lei Gong, a respeito do porquê de seu povo estar morrendo por volta dos 50 anos, ao passo que os antigos sabidamente viviam mais de cem.

Toda a discussão que se seguiu, a envolver as “questões simples” da vida, que em chinês se diz Su Wen, restou imortalizada e revela um profundo conhecimento clínico, conhecido por Nei Ching, a compor o texto sagrado da medicina chinesa, intitulado Huang Ti Nei Ching Su Wen, ou “Questões simples de medicina interna do Imperador Amarelo”. Transmitidos oralmente, os diálogos só vieram a ser escritos originalmente por Chun Yu Yi, nascido em 216 a.C., que, recebendo a tradição da boca de Yang Shin, resolveu tatuá-lo em ideogramas sobre dezoito pergaminhos. No século seguinte, o conjunto dividiu-se em dois volumes; nove manuscritos compunham o Su Wen, e outros nove o Ling Shu, que se traduz por “Portal Mágico”, destinado a ensinar a arte de inserir agulhas.

Transpassa por todo Nei Ching a cosmovisão taoísta que situa o homem como elo entre o Céu e a Terra, animado desde a primeira inspiração por chi, energia primordial que dos pulmões se espalha por todo o corpo. Exatamente como pensava Hipócrates, que fora aluno em Atenas do sofista Protágoras, o qual o ensinara a ver o homem como a medida de todas as coisas. O médico grego igualmente aceitava que o segredo da vida estivesse no sopro vital, ao qual o jônico Anaxímenes chamara de pneuma.

O chi expressa-se por duas polaridades opostas e ao mesmo tempo complementares entre si, chamadas yang (o cheio) e yin (o vazio), que em tudo se manifestam. A saúde é resultado do equilíbrio dinâmico entre essas duas energias. Yang e yin estão em todas as células, em todas as partículas, e predominam alternadamente um sobre o outro, como se fossem dois cajados a apoiar os passos do Universo. O desacerto entre yin e yang leva aos excessos ou às estagnações, também aos vazios, e se revela sob a forma de doenças. Por isso, a função do acupuntor é dissipar as pletoras, tonificar os vazios e mobilizar as estagnações.

Hipócrates diz o mesmo em seu aforismo 22, Seção II, afirmando que as moléstias causadas por repleção curam-se pela depleção e vice-versa, ao que ele chama de “cura pelos opostos”. Expande esse conceito nos aforismos 39, 40 e 48 da Seção IV; também do 16º ao 25º da Seção V. Influenciado pela filosofia de Empédocles, seu contemporâneo, via a natureza composta por quatro elementos (água, fogo, terra e ar) definidos pela mistura, duas a duas, das quatro propriedades básicas: seco ou úmido, frio ou quente. De novo desvelamos na medicina ocidental o binômio yin/yang que impera por trás de todo movimento. Hipócrates relacionou os elementos aos quatro humores do corpo humano (sangue, bile negra, bile amarela e fleugma), determinando assim quatro temperamentos segundo os quais respondemos às vicissitudes, aos fatores climáticos causadores de doenças e, principalmente, aos nossos sentimentos.

Os chineses concordam em absoluto. Embora admitam cinco elementos (água, madeira, fogo, terra e metal), no movimento desse conjunto está a metamorfose da vida, aproximando mais uma vez o taoísmo do pensamento grego. E os chineses vêem o corpo humano como imagem do Universo, e associam par a par os dez órgãos nobres a cada um dos cinco elementos. Pulmões e intestino grosso, por exemplo, estão ligados ao metal, e são respectivamente as principais vias de entrada e saída para a passagem de chi pelo organismo. A medicina taoísta atribui ainda um sentimento (medo, cólera, alegria, preocupação e tristeza) a cada víscera, e os traduz em temperamento, capazes que são de influir em nossas reações ao meio interno ou externo. É a mais antiga referência a uma medicina psicossomática. Fazem contraponto aos sentimentos seis agentes perversos externos deflagradores de doenças em organismos previamente desarmônicos: a secura, a umidade, o fogo, o vento, o frio e o calor.

Hipócrates, por sua vez, escreveu um tratado inteiro sobre o tema. Em Sobre os Ares, Águas e Lugares, observa os fenômenos climáticos e geográficos como propiciadores de moléstias. Em seus Aforismos faz ampla menção aos agentes apontados pelos chineses.

E pasmemos juntos: quase não há diferença nos métodos terapêuticos propostos por hipocráticos e chineses. Ambas as medicinas propõem exercícios respiratórios, ginástica, dietas e jejuns, massagens e sangrias como tratamento. Divergem pouca coisa no exame clínico; os chineses procuram ler na tomada do pulso o prognóstico, e observam a língua como um mapa de todo o corpo. Há ainda uma rica farmacopéia herbárea própria de cada cultura, mas seus princípios estão em mútua sintonia. E a medicina chinesa propõe o diferencial uso das agulhas como forma de restabelecer o equilíbrio entre yang/yin, a prevenir ou curar situações patológicas, detalhando a técnica no Ling Shu.

O distanciamento entre essas duas cosmovisões ocorreu, sem dúvida, devido a Galeno (131-200 d.C.), o último médico grego afamado que a história fez servir ao último dos grandes romanos, Marco Aurélio. Galeno não sorvera da fonte ateniense em que bebera Hipócrates, e jamais pôde compreender o sentido da doutrina hipocrática. Dela deteve, sobretudo, a técnica, jamais sua sabedoria. Chegou a provar que a urina se forma nos rins, realizou certos feitos cirúrgicos e escreveu 300 livros dos quais 118 sobrevivem, eivados de superstição misturada a uma boa técnica e confessa arrogância. Ao contrário de Hipócrates, só relatou seus sucessos terapêuticos, nunca suas falhas; e ao curar a úlcera gástrica de Marco Aurélio disse de si que fora brilhante ao tratá-lo, que jamais diagnosticara tão bem.

Galeno era monoteísta na acepção mais reducionista do termo, só aceitando um deus e uma verdade, o que facilitou bastante para que suas idéias ganhassem força, propagadas pelo cristianismo que se alastrou pelo Império Romano desde o Edito de Milão, assinado por Constantino, em 313 d.C.

Galeno foi tão prestigiado quanto Aristóteles (384-322 a.C.) pela Escolástica, que encontrava em ambos as provas de que a doutrina cristã era a única verdade sobre a Terra. Paracelso (1493-1541), indignado por razões desse tipo, comemorou seu doutorado na Universidade de Medicina da Basiléia de modo original, queimando livros de Galeno em praça pública, acusando-o de não compreender Hipócrates. Corruptela da hipocrática, a medicina galênica estruturou-se com o passar dos séculos num terreno dominado pela lógica aristotélica, que desembocou vitoriosa no século XVII sob o nome de ciência moderna, marcada pelas idéias de Galileu e Newton. Neste exato ponto renasce a serpente de Asclépio como pensamento médico ocidental, tendo há muito perdido, entretanto, o fio da meada que lhe permitia fazer o diagnóstico sindrômico e energético das moléstias, conforme rogavam as antigas tradições.  A alopatia, desde então nada mais é que o aprimoramento científico da medicina galênica, ao mesmo tempo um mero equívoco conceitual sobre aquilo que Hipócrates chamara ciência dos opostos.

Curiosamente, a alopatia sempre ofereceu resistência ao saber médico oriental. Compreensível que a rejeite, posto que aceitamos mal o que pouco entendemos. Entretanto, desde que a acupuntura entrou no Ocidente pela França, no século XIX, vem sendo aceita em muitos países e tem se revelado eficiente terapia. Só recentemente, em 1995, foi reconhecida no Brasil pelo Conselho Federal de Medicina. E agora aí estão os médicos querendo a prerrogativa exclusiva de sua prática, alegando que nem os enfermeiros possam exercê-la, por falta de conhecimentos anatômicos, principalmente. Fico pensando o que ocorreria se os enfermeiros levassem a lógica ao pé da letra e deixassem de aplicar as injeções, já que o fazem com agulhas até maiores do que as de acupuntura. E minha consciência manda declarar: aprendi acupuntura inicialmente com o Dr. Lino Menzato Filho (1946-1987), médico neurologista que, por praticar acupuntura numa época em que ela não estava reconhecida, chegou a causar incômodos ao douto saber tanto quanto Paracelso o fizera no passado. Hoje, pratico a arte, mas não me furto ao aprendizado que recebo de uma senhora oriental, que não é médica mas detém a técnica pelo número de anos que eu tenho de vida. Mas é ela quem corre o risco de perder seu direito de exercer a arte de inserir agulhas por conta de decisões políticas de um Senado que vive pressionado por interesses corporativistas da classe médica, por medicinas de grupo e indústrias farmacêuticas dispostas a dominar todo esse mercado.

O que fazer? Por mais que Galeno me autorize cometer o pecado da soberba diante de qualquer cura que porventura aconteça, tenho suficiente ética para reconhecer que por mais que eu estude acupuntura, ainda estou muito longe da experiência alcançada pela citada senhora oriental, que nunca se formou na alopatia. Reflitamos todos sobre os pequenos equívocos que, com o respaldo da ciência, podem promover as maiores injustiças!

Paulo Urban - 02/01/2010

Jung e a Parapsicologia

                “A relação médico-paciente, principalmente quando intervém uma transferência deste último ou uma identificação mais ou menos inconsciente entre médico e doente, pode conduzir ocasionalmente a fenômenos de natureza parapsicológica”, afirmou o renomado psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) em sua autobiografia intitulada Memórias, Sonhos e Reflexões.

                      A vida de Jung, podemos constatar, esteve toda ela marcada por experiências pessoais a envolver fenômenos de clarividência, sonhos premonitórios e psicocinesia (ação do psiquismo sobre o meio e a matéria), que obrigatoriamente se constituem em peças fundamentais a servir na composição de toda sua psicologia. Jung considerava tão importante a parapsicologia como ciência emergente e revolucionária de seu tempo, capaz de investigar os inúmeros fenômenos que desafiavam (e ainda desafiam) a psicologia acadêmica, que chegou a propor o nome do estadunidense Dr. Joseph Banks Rhine (1895-1980) para o Prêmio Nobel, visto que seus trabalhos experimentais desenvolvidos nos anos 50 no laboratório da Universidade de Duke, em Durham, na Carolina do Norte, E.U.A., provavam estar o ser humano dotado de capacidades “extra-sensoriais” que exigiam maior atenção da comunidade científica.

                      Jung cita, por exemplo, o caso de um paciente seu cuja depressão severa ele tratara. Havendo o rapaz se casado logo após o tratamento, Jung orientou sua esposa quanto às prováveis recidivas da doença, pedindo a ela que o avisasse prontamente caso observasse alguma piora no estado psíquico do marido. Mas, conforme nos relata o médico suíço, a tal mulher não o via com bons olhos, tomando-o mesmo por “uma pedra em seu sapato”, talvez enciumada, explica Jung, pela influência que ela percebia existir por parte dele sobre seu esposo. Pois bem, precisamente dali a um ano, aquele casamento se transformara em carga insuportável sobre o rapaz, e sua mulher era fonte de constantes tensões. Deprimiu-se tanto o paciente que nem forças encontrava para deixar o leito, ao passo que a esposa, pouco se importando com o humor depressivo do marido, não se preocupou em avisar seu médico.

                      Por essa época Jung estava viajando, ministrando conferências em outras cidades. Ao regressar de um desses eventos ao seu hotel, por volta da meia-noite, embora se sentindo exausto, não conseguia pegar no sono. Só adormeceu às duas da madrugada para, sobressaltado, acordar dali a pouco, repentinamente. Havia tido a nítida impressão de que alguém entrara em seu quarto, e que a porta fora aberta precipitadamente. Acendeu a luz, mas nada percebeu. Imaginou que algum outro hóspede houvesse se enganado de porta e que, constatando o erro, dali tivesse saído rapidamente. Jung levantou-se, observou o corredor, mas nada havia além do silêncio. “Estranho, pensou, podia ter a certeza de alguém ter entrado em meu quarto”. Procurando avivar suas lembranças, percebeu que acordara em verdade com nítida sensação de uma dor surda, assim ele a descreve, como se alguma coisa houvesse ricocheteado em sua testa para depois bater na parte posterior de seu crânio. Sem solução para o mistério, voltou à cama e adormeceu. No dia seguinte, para seu espanto, logo cedo recebeu um telegrama que lhe comunicava a morte daquele seu paciente deprimido: ele dera um tiro em sua própria cabeça. Soube mais tarde que a hora do suicídio conferia com a de seu estranho sonho, e que o projétil entrara pela fronte para alojar-se em região occipital.
                     
 Jung explica:

 “Tratava-se, neste caso, de um verdadeiro fenômeno de sincronicidade, tal qual se pode observar freqüentemente numa situação arquetípica - no caso, a morte. Dada a relatividade do tempo e do espaço no inconsciente, é possível que eu tenha percebido o que se passara, em realidade, num outro lugar. No caso em questão, meu inconsciente conhecia o estado de meu doente. Durante a noite inteira eu experimentara um nervosismo e uma inquietação espantosos, muito diferente de meu humor usual”.

                      Mas esta não foi a primeira nem seria a última experiência parapsicológica a permear a sua vida. Desde criança, Jung, que nascera em Kesswil, interior da Suíça, ouvira contar casos de fantasmas e histórias folclóricas extraordinárias da região campesina do Cantão. Em sua própria genealogia encontrava raízes fortes da crença nos espíritos. Seu avô materno, por exemplo, o pastor presbiteriano Samuel Preiswerk, que Jung não chegou a conhecer, era casado em segundas núpcias com Augusta Preiswerk e mantinha regularmente, para infelicidade desta, conversas com sua falecida esposa. Reservava em seu gabinete de trabalho um sofá onde diariamente, em hora sempre a mesma, recebia o espírito da finada Madalena, com quem dialogava secretamente. Outra de suas manias era a de pedir à sua filha Emilie, mãe de Jung, que se sentasse atrás dele enquanto escrevia sua gramática de hebraico ou seus sermões, isto porque agindo assim, segundo ele, os espíritos não o perturbariam pelas costas. 

A respeito de sua segunda esposa, avó de Jung, conta-se que aos dezoito anos caíra enferma gravemente, tendo contraído a escarlatina de seu irmão, e que permanecera em estado cataléptico por 36 horas. Já diante do caixão em que seria enterrada, sua mãe, não acreditando que Augusta Preiswerk estivesse morta, aplicou-lhe um ferro de passar roupas em brasa sobre a nuca, chamando-a assim de volta à vida. Apelidada de “Gustele”, a avó de Jung era respeitada como clarividente dotada de estranhos poderes, capaz que era de profetizar em estado sonambúlico.

                      O próprio Jung recorda-se de suas primeiras experiências inquietantes quando contava apenas três anos de idade. Dormia por essa época no quarto de seu pai, já que o casal vivia em regime de separação de corpos. Todas as noites, percebia que a natureza de sua mãe se modificava, e ela se tornava, diz ele, temível e perigosa. Certa noite, pôde observar que do quarto dela saía “uma figura luminosa, cuja cabeça se despregou do pescoço e planou no ar, como pequena lua”. A amedrontadora visão repetiu-se por umas seis ou sete noites. Fértil imaginação de uma criança aflita pelo ambiente tenso de relacionamento conjugal de seus pais? Possivelmente sim, mas o fato é que tantas outras experiências inusitadamente fortes se seguiram em sua vida, que só restou mesmo a Jung procurar estudar esses fenômenos e interpretá-los à luz de sua revolucionária psicologia.

                      Sua dissertação de mestrado, importante que se diga, intitulava-se Sobre os Fenômenos Assim Chamados Ocultos. Foi apresentada em 1902, e analisava detalhadamente a suposta mediunidade da senhorita S.W. (pseudônimo de Helena Preiswerk, em verdade uma prima sua em primeiro grau) durante sessões espíritas, bastante em moda na virada para o século XX, realizadas no âmago de sua família e em presença de outros convidados. O estudo fora feito entre 1899 e 1900; a médium era pessoa introvertida, franzina, de natureza frágil e não muito inteligente; apresentara problemas de aprendizado na escola e contava quinze anos quando se iniciaram as sessões. Morreria mais tarde, aos 26 anos, de tuberculose e “infantilizada”, assumindo comportamento de uma criança de pouco mais de 10 anos. Os fenômenos desenvolvidos por Helena iam desde automatismos, como a psicografia e a movimentação rápida de um copo sobre as chamadas “mesas giratórias”, até estados de incorporação em semi-sonambulismo, incluindo mudanças grotescas da voz, da maneira de falar, e alterações surpreendentes do caráter. Também ocorriam as chamadas comunicações com os “desencarnados”, mediante golpes que provinham das paredes e da própria mesa de trabalhos.

                      Jung, interessado na fenomenologia, passou a organizar sessões aos sábados em sua própria casa; decepcionou-se, entretanto, ao flagrar por diversas vezes sua prima fraudando os fenômenos. Acabou concluindo sua análise como um caso complexo de “dissociação histérica”, facilitado e prestigiado pelo meio cultural-religioso em que ocorria. Seu trabalho, interessantíssimo, e escrito com agudo senso de investigação, compõe o 1o volume de suas Obras Completas, editado em português pela editora Vozes, sob o título Estudos Psiquiátricos.

                      Não apenas Helena, porém, chamaria a atenção de Jung para os eventos parapsicológicos; ele próprio vivenciou algumas situações que nos dão muito o que pensar.

                      Num curto espaço de exatas duas semanas do ano de 1898, durante as férias de verão da Faculdade de Medicina da Basiléia, dois curiosos acontecimentos no estilo Poltergeist vieram servir de alimento para suas indagações futuras. Estando a sós com sua mãe em sua casa, em Zurique, Jung estudava em seu escritório enquanto ela fazia tricô na sala contígua. De repente, o silêncio foi quebrado por forte estampido, semelhante a um tiro de revólver! Sobressaltados, ambos procuravam saber o que havia acontecido; olhavam à sua volta quando deram com a mesa de madeira inteiriça da sala principal que havia se partido, rachando-se ao meio misteriosamente. Era nogueira sólida que secara há setenta anos e, segundo Jung, naquelas condições climáticas de umidade relativamente elevada tal rachadura nem poderia ter ocorrido.

                      Quatorze dias mais tarde, Jung viveria outro episódio de psicocinesia, tão estranho quanto o primeiro. Havendo entrado em sua casa por volta das dezoito horas, encontrara sua mãe e sua irmã, esta com 14 anos, extremamente agitadas e nervosas. Há uma hora haviam escutado outro barulho ensurdecedor, vindo da direção de um pesado móvel do século XIX, no qual se dispunham os pratos e talheres. Numa de suas gavetas, onde se guardava a cesta de pão, além das migalhas, Jung encontrou a faca que há pouco fora usada no café da tarde com sua lâmina rompida em três pedaços. No dia seguinte, Jung levou o material quebrado a um dos melhores cuteleiros da cidade. Este lhe teria garantido, 

“É faca de boa qualidade, não há defeito no aço, 
quem a partiu deve tê-la forçado contra a fenda de uma gaveta 
ou martelado com ela sobre pedras. Alguém está querendo lhe pregar uma peça!”.

A faca, inexplicavelmente partida, foi cuidadosamente guardada por Jung durante toda a sua vida. Por que se estilhaçara? E como explicar a rachadura da mesa de nogueira maciça? “A hipótese do acaso para explicar o ocorrido, diz Jung, tinha a mesma probabilidade que a do Reno correr em direção a sua nascente”. Ele já suspeitava por essa época que forças inconscientes consteladas, isto é, reunidas em potenciação, a ocorrer em momentos específicos de nossas vidas, em situações que Jung mais tarde batizaria como “arquetípicas”, poderiam ter energia suficiente para desencadear fenômenos físicos perceptíveis à nossa volta, ainda que de forma repentina e quase nunca sob o controle de nossa vontade. 

                      Digo quase nunca, pois, ao que parece, Jung acabaria desencadeando mais ou menos conscientemente um dos mais curiosos fenômenos psicocinéticos de sua vida. Deu-se em presença daquele que para ele foi, desde quando se conheceram pessoalmente em 1906, em Viena, primeiramente um mestre, depois quase um pai, para mais tarde, em 1913, desentenderem-se e terem rompida a amizade. Estamos falando de Freud, o pai da Psicanálise, que quis ver em Jung um de seus melhores discípulos, nele projetando toda a esperança de fazê-lo herdeiro de seu saber psicanalítico. Mas esta sua vontade não se concretizou. Tendo divergido de Freud, principalmente no tocante à questão da libido e quanto às bases de interpretação do material onírico, Jung acabou por estruturar seu próprio sistema de compreensão do psiquismo humano ao qual denominaria de “Psicologia Analítica”. Além disso, pensava: “Retribui-se muito mal aos mestres se nos tornamos para sempre seus discípulos!”.

                      Jung visitou Freud em 1909 justamente com o intuito de questioná-lo a respeito dos fenômenos psi. Perguntando a Freud o que ele pensava acerca da precognição e da nova ciência, a parapsicologia, ouviu do mestre que não deveria estar se preocupando com tolices desse gênero. (*) E enquanto Freud discursava, Jung ia sofrendo uma estranha sensação; sentia seu diafragma como ferro ardente, parecia haver dentro dele energia capaz de abaular seu abdômen. Foi quando algumas pancadas misteriosas passaram a ser ouvidas pelo consultório, culminando num estalido forte como se a estante de Freud (curiosamente, símbolo de seu saber) fosse desabar sobre os dois. Jung gritou: “É o que eu chamo de fenômeno catalítico de exterioração!” Ao que Freud respondeu: “Ora, isto é puro disparate!”. Jung, atestando sua razão, profetizou: “Pois estou tão certo do que falo que afirmo que igual fenômeno se reproduzirá neste exato instante!” E, pou!, outro estalido bem sonoro explodiu ali mesmo na estante. Freud olhou-o emudecido e horrorizado. Tinha acontecido!

                      Em carta datada de 16 de abril daquele ano, Freud diz a Jung, falando sobre o assunto, que poderia dar inúmeras “explicações naturais” para os “espíritos golpeantes”. Não podemos deixar de observar que na fala do “mestre” estava a suposição de que no discurso dos que se interessavam por “tolices desse gênero” estivesse a crença de que seriam “espíritos sobrenaturais” os agentes causadores destes estampidos. Mas Freud estava bem distante das interpretações que Jung proporia para os fenômenos psi, para ele explicáveis de forma natural e sempre relacionados com nosso psiquismo mais profundo, individual ou coletivo, mas humano.

                      Poderíamos narrar muitos outros episódios parapsicológicos na vida de C. G. Jung, boa parte deles encontra-se descrita na citada autobiografia. Mas fugiríamos das dimensões deste texto, cuja pretensão é apenas a de revelar o quanto de mistério ainda existe em nosso mundo psicológico mais profundo, passível de interação não mecânica com o meio físico à nossa volta, psiquismo esse também capaz de transpor as barreiras impostas quer pelas malhas do tempo, quer pela rede do espaço.

                      No apêndice de sua obra póstuma, O Homem e seus Símbolos, traduzida pela editora Nova Fronteira, voltada ao público leigo, esboça-se uma relação entre a Psicologia Analítica e as descobertas relativísticas da física quântica. Jung julgava imprescindível uma complementaridade à sua psicologia para que a humanidade encontrasse modelos mais satisfatórios para a explicação dos fenômenos psi. Sonhava Jung que os físicos, a começar por seu analisando e amigo Wolfgang Pauli (1900-1958), um dia pudessem emprestar à sua obra um auxílio enorme, para que uma teoria interdisciplinar mais consistente se firmasse sobre novos e revolucionários paradigmas, transcendendo a maneira encontrada pela física clássica para explicar o Universo e seus fenômenos. Mais uma vez o médico da Basiléia profetizara, pois é isto justamente o que vem ocorrendo no discurso científico contemporâneo.

(*) Na verdade, dali a alguns anos Freud abriria publicamente sua mente, ainda que com reservas, para inteirar-se dos eventos parapsicológicos, chegando a escrever interessantes e reveladores artigos sobre sua pia crença no fenômeno telepático. São os trabalhos “Psicanálise e telepatia” (1921), “Sonho e telepatia” (1922), “O significado oculto dos sonhos” (1925) e “Sonho e ocultismo” (1933), textos estes, lamentavelmente, pouco lidos pela maioria dos psicanalistas.

* Paulo Urban é médico psiquiatra e psicoterapeuta do Encantamento
        e-mail: urban@paulourban.com.br

Paulo Urban - 28/02/2010


A Natureza dos Elementos e os Elementos da Natureza

       ENQUANTO A TRADIÇÃO GREGA NOS ENSINA QUE SÃO QUATRO OS ELEMENTOS: ÁGUA, FOGO, TERRA E AR, OS CHINESES AFIRMAM QUE ESTES SÃO CINCO:  MADEIRA, FOGO, TERRA, METAL E ÁGUA.   
AFINAL, QUEM TEM RAZÃO, OCIDENTE OU ORIENTE?

Saber quem tem razão quanto ao número de elementos que compõem a natureza é tarefa sem sentido. Quanto ao que eles representam, entretanto, parece haver uma aproximação de conceitos entre gregos e chineses. Os elementos são a essência das forças existentes na natureza, forças estas que interagem entre si, regendo por meio de suas variadas combinações todos os fenômenos da vida, em escala tanto primária quanto complexa.

Os antigos gregos identificaram quatro elementos primordiais, que se contrastavam dois a dois: água e fogo, ar e terra. Cada um deles, entretanto, era dedução óbvia da combinação de duas qualidades distintas, espécie de essência por detrás da essência que, misturadas, geravam as manifestações elementares. Assim, da mesma forma que a água era fruto da combinação do frio com a umidade, o fogo seria resultado da interação entre o quente e o seco; já o ar, traria em si a reunião de outras duas qualidades, quente e úmido, distinguindo-se assim da terra que, embora sendo seca, preferiu ser fria.

Indo além, os primeiros filósofos gregos, nomeados pré-socráticos, indagavam-se sobre aquilo que pudesse haver por detrás destas qualidades primevas que explicasse as diferentes manifestações da natureza e pudesse solucionar o sempiterno mistério da vida. Os gregos perscrutavam a physis (a natureza) no intuito de alcançar a origem do Cosmos. Para Tales de Mileto (séc. VI a.C.), por exemplo, a vida provinha da água (e muitos cientistas assim o crêem em nossos tempos); Anaximandro, seu discípulo, imaginou o apeiron (o ilimitado) como fonte primordial da natureza, e Anaxímenes (séc.V a.C.), o terceiro grande nome da Escola de Mileto, dizia ser o pneuma, isto é, o ar, a causa primeira por detrás de toda existência. Já o mestre Pitágoras (580-489 a.C.), primeiro dos pré-socráticos a intitular-se filósofo, fazendo-o entretanto na acepção literal do termo, já que não se julgava sábio mas declarava-se com afinidade pela sabedoria, acreditava ser o fogo o elemento sutil a alimentar todo o Universo (e não estava errado, já que as estrelas todas, além do Sol que nos mantém, são naturalmente fogo). Por detrás de sua "mônada" ou princípio estrutural e organizador da vida, estaria o fogo interior ou invisível, substância etérea, distinta do fogo comum que nossos sentidos percebem queimar, a servir de fonte de energia do Universo.

Até então os elementos eram tidos apenas isoladamente como agentes primordiais da vida. Quem primeiro os relacionou em seu conjunto a todas as manifestações da natureza foi Empédocles (492-435 a.C.). O sábio defendia entusiasticamente sua doutrina cosmogônica considerando os elementos como rhizomata, isto é, raízes permanentes da vida. Misturando-se entre si em diferentes proporções, produziriam todas as coisas temporais. Os quatro elementos seriam, portanto, forças perenes a sustentar todas as condições mutáveis e passageiras. Anaxágoras de Clazômena (500-428 a.C.) assimilou esta doutrina, mas, aprofundando-se nela, chegou ao conceito de homeomerias, para ele substâncias primárias infinitas em número e em qualidades, descritas como partículas infinitesimais de matéria. Homogêneas e invisíveis, as homeomerias, a despeito de sua exiguidade, seriam responsáveis por tudo aquilo que podemos ver, capazes que são de se aglutinar em coacervados para formar todas as coisas, desde as mais simples às mais complexas. Neste raciocínio, todas as coisas existentes trariam potencialmente, em sua essência, todas as possibilidades de desdobramento e combinações permitidas às homeomerias, de modo que uma simples lasca de madeira, intrinsecamente, teria um pouco de tudo aquilo que há no Universo. Apresentar-se-ia como madeira porque as homeomerias deste material estariam nela mais concentradas do que todas as demais. Talvez tenha sido Anaxágoras o primeiro homem a imaginar algo próximo do conceito de fractais. Sua concepção holográfica do mundo intriga até hoje os cientistas da mecânica quântica. Que escritor de ficção científica ele não daria! Mas isto é assunto para outra matéria.

Fato concreto é que a teoria dos quatro elementos influiu sobremaneira sobre o pensamento médico de Hipócrates (460-370 a.C.), que associou a cada um deles um temperamento, classificando a partir daí os indivíduos. Afinal, as qualidades primevas não poderiam deixar de estar presentes também na alma humana, decretando traços de nosso comportamento, e da mesma forma relacionadas a toda uma série de doenças próprias de cada um dos quatro tipos de caráter assim determinados. Segundo o pai da medicina, o sangue era quente; a fleuma, fria; a bile negra, úmida; e bile amarela, seca. Isto distinguia quatro tipos de indivíduos: sanguíneos, fleumáticos, melancólicos e coléricos. Hipócrates propunha tratar o estado fleumático ou de deficiência (frio) excessiva pela estimulação (massagens) e administração de alimentos ou remédios quentes, bem como para os estados febris (quente) preconizava o resfriamento corporal, por meio de banhos ou bebidas.

Mas enxergar a dicotomia inerente a todos os fenômenos naturais não era privilégio da medicina hipocrática. No Oriente, possivelmente alguns milhares de anos antes da Antiguidade clássica, encontramos exatamente o mesmo princípio de dualidade existente por detrás de todos os seres, animados ou inanimados. Estamos falando de yin e yang, forças de naturezas completamente opostas mas paradoxalmente complementares entre si, conforme o expressa o taoísmo, concepção religiosa e cosmogônica dos chineses que repercutiu por toda a vida prática desta milenar cultura, influenciando obviamente o pensamento médico oriental.

Assim como os filósofos pré-socráticos, os chineses se perguntavam acerca da essência última do Universo, e há tempos já haviam batizado de Chi a energia vital onipresente e eterna. Os japoneses a denominam Ki, os hindus a chamam de Prana, os egípcios da Antiguidade a representavam em seus hieróglifos pela cruz ansata, ou Ankh, a significar o "sopro de vida", e o grego Aristóteles discorreu amplamente sobre tal instância primordial em sua Metafísica, colocando-a em seu complexo conceito de "substância".

Embora se atribua ao sábio Lao-Tse, (séc. VI a.C.) a base filosófica do taoísmo, escrita que está nos 81 aforismos de seu poema sagrado intitulado Tao Te King (traduzível por "Caminho de Sabedoria"), milhares de anos antes dele o pensamento chinês já admitia uma energia única a permear todas as coisas do Universo. Huang Ti, o Imperador Amarelo, personagem ao mesmo tempo real e lendário que teria vivido e governado a China por volta de 2700 a.C. já expressava este conceito em seu famoso Tratado de Medicina Interna, conhecido por Nei Ching Su Wen. As doenças todas seriam nada mais que conseqüência da falta de harmonia ou do desequilíbrio entre yang, o quente, e yin, o frio. Também seriam resultado de condições debilitantes causadas quer por excesso quer por deficiência de Chi, conforme sua instabilidade, devido ao predomínio acentuado de uma destas polaridades sobre a outra.

O Cosmos inteiro, segundo a concepção taoísta, estaria exercitando uma eterna dança harmônica e cíclica, resultado da perfeita interação dinâmica destas duas forças. O lado claro das montanhas, parte sul, que recebe o Sol, os chineses denominaram yang, cuja tradução aproximada seria "estandartes tremulando sob o Sol"; ao lado norte e sombrio das cordilheiras, deram o nome yin, cujo sentido mais próximo nos dá a ideia de "sombras, repouso ou tranqüilidade". Yang é, assim, o princípio masculino que se contrasta ao feminino yin; é atividade e movimento em oposição à passividade e ao repouso. Enquanto yang se exterioriza, yin se compenetra. Yang é extrovertido e consciente; yin, além de inconsciente, é a própria introversão.

Curiosamente, Empédocles, do outro lado do mundo chegou a dizer praticamente a mesma coisa quando afirmou que duas forças antagônicas, Amor e Luta, eram os princípios ativos existentes por detrás dos quatro elementos, e que de sua interação dependia o equilíbrio do Cosmos. Amor unia os elementos, conquanto a Luta os separava. Deste jogo permanente de forças, tudo se cria e se transforma.

A criatividade chinesa associou ainda números a estas duas naturezas; yang, por ser ativo, símbolo do Céu, criador em sua natureza, é quem começa o jogo da vida; por isso recebe o número 1. Yin, que infalivelmente responde ao chamado de yang com sua receptividade; representa a Mãe-Terra, e recebe o número 2 a expressar a dualidade presente nos números pares. Daí por diante, yang será sempre ímpar; yin, par. Se representarmos a base estrutural da vida pelo primeiro ciclo de números naturais, teremos então yang como a soma dos ímpares 1+3+5+7+9 = 25. Este é o número do Céu. Yin, de mesma forma, será o montante dos pares: 2+4+6+8+10 = 30, o número da Terra. Para que o Universo permaneça fechado em si mesmo e, portanto, perfeito, sem começo nem fim, a diferença entre Céu e Terra deve ser preenchida. Intuíram então os chineses que seriam cinco os elementos a cumprir esse papel, capazes de entregar a Terra o Universo inteiro em suas mãos, dinamicamente equilibrado. Reciprocamente, é por meio deles que nos reportamos ao Céu (30-25 = 5). E foram batizados de madeira, fogo, terra, metal e água.

Guardadas as diferenças entre as duas concepções, a grega e a taoísta, o que de semelhante há entre elas é que tanto Ocidente quanto Oriente valem-se dos elementos quando querem representar o todo integrado em que se traduz a natureza. Se os cinco elementos dos chineses permitem a ligação entre o Céu e a Terra (o divino e o humano), os gregos, por sua vez se inspiraram nas quatro estações climáticas como forma de expressar a perfeição divina, já que o conjunto de seus quatro elementos nos confere a sensação de algo completo, cujo transcorrer é cíclico, permitindo-nos a cada ano observar o Cosmos desfilando à nossa volta. Sejam quatro ou cinco os elementos concebidos, o principal está em sua função, que é a mesma para estas diferentes tradições. Eles resgatam uma verdade que paira acima dos limites entre Ocidente e Oriente, já que não nos deixa esquecer de que o Cosmos, além de íntegro e perfeito, permite-nos a transcendência, a relação com instâncias que se situam além de nossa consciência, da mera condição humana. Ademais, nem Hipócrates nem os chineses em sua milenar medicina deixaram de frisar: os elementos estão também dentro de nós, pois somos nós a natureza, e nosso comportamento pode ser classificado conforme suas qualidades intrínsecas.

Também para os chineses era evidente a relação entre as estações e os elementos, ainda que o problema fosse fazer caber 5 elementos em 4 estações. Bem, a sabedoria oriental logo encontrou uma simples e perfeita solução para o dilema, e ainda associou a cada um dos elementos um órgão e uma víscera, um animal, uma cor, um sabor, uma nota musical, um temperamento etc.., assinalando assim que tudo na natureza encontra-se intrinsecamente entrelaçado. Isto é, cada uma das partes do Universo reflete o todo absoluto. Em suma, apenas outra forma de se dizer a mesma verdade a que chegara Anaxágoras com seu conceito de homeomerias.

Por analogia, maneira particularmente oriental de se observar os fenômenos da natureza, a madeira foi associada à primavera, período em que a energia Chi é ascendente, já que as árvores e as plantas brotam e crescem facilmente nesta estação. Na prática médica, madeira corresponde ao fígado e à vesícula biliar. Ao fogo relacionaram o calor do verão, quando a energia cósmica é predominantemente yang. Este elemento liga-se ao coração e ao intestino delgado. O outono foi associado ao metal; nele, Chi está em sentido descendente, por isso os frutos caem e são colhidos. Em nós, metal encontra-se nos pulmões e intestino grosso, já que a função básica do primeiro é recolher o Chi pela respiração para que o intestino despreze seu excesso pelas excreções. Ao inverno relacionaram o elemento água, fortemente ligado aos rins e à bexiga, órgãos que retêm os líquidos corporais. Água é elemento passivo, receptáculo de reservas e fonte de energia ancestral; e Tales de Mileto mais uma vez ficaria contente em saber disso, pois a água para os chineses é o elemento mais antigo, aquele que "entrega" o Chi a todo o restante do sistema. Bem, e o elemento terra, onde fica? Ora, os chineses perceberam que o final das estações, precisamente os últimos 18 dias de cada uma delas, está marcado por uma época de transição, de passagem de Chi para a estação seguinte. A estes períodos incaracterísticos, quando por vezes traços de todas as estações se mostram presentes num único dia, os taoístas relacionaram o elemento terra, de onde vem a nossa força, alicerce de toda a vida. Chi nestes períodos se recolhe e se fortalece antes de estar pronto para alimentar o próximo elemento. Terra seria, portanto, o elemento que sustenta e abriga todos os demais, razão pela qual foi associado ao estômago e ao sistema baço-pâncreas, órgãos relacionados à proteção do sangue, ao controle do tônus corporal, bem como aos processos digestivos e de nutrição.

Muito originais, os orientais ainda estabeleceram uma relação cíclica perene de geração e dominação entre os elementos. O "Ciclo de Geração", também denominado ciclo "Mãe-Filho", atesta que os elementos geram-se uns aos outros, de modo que sua interdependência é constante. Madeira, por exemplo, é mãe de fogo, já que lhe serve de alimento. Dessa queima, produz-se cinzas, isto é, terra, filha portanto do fogo. Terra, por sua vez, gera em seu seio o metal, os minérios todos que, por se liquefazerem dão origem à água, elemento filho de metal e ao mesmo tempo mãe de madeira, posto que água faz crescer a vegetação. Isto garante a mutabilidade da vida e o eterno retorno da energia primordial à sua origem, quando então se reinicia todo o ciclo.

Outra relação que se estabelece entre os elementos é o "Ciclo de Dominação", igualmente fechado e perfeito em si mesmo. Água domina o fogo, pois tem o poder de apagá-lo; este domina o metal, pois pode fundi-lo; metal domina a madeira, por ser mais forte e mais denso que ela; madeira controla a terra, já que tem o poder de retirar dela seus nutrientes todos; e terra controla a água, já que dela absorve sua umidade. Destarte, o ciclo volta ao seu começo. Estes dois ciclos, de geração e de domínio, permitem aos chineses tecer infinitas relações entre os órgãos e as vísceras de nosso corpo, sempre dentro de uma relatividade das partes com o todo. A teoria dos cinco elementos constitui-se numa das mais interessantes formas de pensamento da medicina oriental, assunto este que também nos levaria a uma outra matéria em que possamos melhor discuti-lo.

Finalizando, se são quatro ou cinco elementos a compor toda a natureza, pouco importa... o fundamental continua sendo o inexpugnável e doce mistério da vida, ao menos em parte, por ocidentais e orientais, em conjunto decifrado!


Dr. Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento.


Paulo Urban - 25/11/2009



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Fontes:
João Carlos Baldan 
Publicado em 24 de set de 2013- Licença padrão do YouTube
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