sábado, 4 de dezembro de 2010

A MEMÓRIA - RÉGIS JOLIVET

ART.    IV.    A MEMÓRIA

Curso de Filosofia – Régis Jolivet

A.    Natureza da memória.

113      1. O que ela não é. — Define-se muitas vezes a memória como a faculdade de reviver o passado. Mas esta definição, tomada ao pé da letra, não é exata, ão existe, e não poderá reviver.
A memória tampouco é a facilidade de conservar e evocar os conhecimentos adquiridos, pois seu objeto é muito mais extenso. A memória pode conservar e evocar os sentimentos e as emoções experimentadas, e, de fato, todo estado de consciência pode ser fixado, conservado e evocado pela memória.

2. O que ela é. — Definiremos, então, a memória: a faculdade de conservar e de evocar os estados de consciência anteriormente experimentados. Esta definição se aplica propriamente ao que se chama memória sensível, ou memória propriamente dita. Quanto à memória intelectual-, ou memória das idéias como tais, é apenas uma função particular da inteligência.

B.    Análise do ato da memória.

Um ato de memória parece, de início, ser simples. De fato, é um ato complexo em que se podem distinguir quatro momentos: a fixação e a conservação — a evocação — o reconhecimento — a localização dos estados de consciência anteriores.

1.    A fixação e a conservação das lembranças.

a) O fato da conservação. É um fato que as lembranças subsistem em nós. Elas não estão sempre presentes, mas, uma vez que possamos evocá-las, é necessário admitir que os nossos estados de consciência, depois de experimentados, são conservados pela memória. O mesmo se aplica àqueles que as circunstâncias não nos dão jamais ocasião de fazer reviver, e citam-se os casos dos asfixiados que, no momento de desfalecer, vêem desdobrar-se sob seus olhos, com uma precisão impressionante, os acontecimentos
Ora, essa conservação das lembranças pela memória está submetida a condição que devemos conhecer, se quisermos tirar proveito da memória.

b) Condições da ficção e da conservação. Essas condições são a um tempo fisiológicas e psicológicas,
Condições fisiológicas.A capacidade de fixar e de conservar as lembranças depende de certas condições orgânicas, que variam consideravelmente de indivíduo para indivíduo: uns são dotados naturalmente de uma "boa memória", outros têm a memória rebelde por natureza. Em geral, as crianças, dotadas de uma grande plasticidade orgânica, fixam mais facilmente as lembranças do que os velhos. Se não conservam uma tenacidade igual, isto advém sobretudo da falta de certas condições psicológicas (atenção e organização lógica, principalmente), que compensam no adulto a inferioridade dos meios orgânicos. Todavia, quando as impressões sensíveis têm uma intensidade especial, as lembranças são fixadas e conservadas pelas crianças com uma notável tenacidade: é o que explica o fato de que o velho possa evocar com uma exata fidelidade as lembranças relativas a sua infância, enquanto que não é quase capaz de fixar e de conservar as lembranças dos acontecimentos recentes. — Notar-se-á aqui, ainda, a influência do estado físico geral: a fadiga, a debilidade nervosa prejudicam mais ou menos a aptidão de fixar e conservar as lembranças. Em certos casos (psicastenias), as impressões que vêm de fora já chegam tão atenuadas que não deixam, por assim dizer, traços de sua passagem.

Condições psicológicas.Existem, contudo, poucas faculdades a que se possa melhorar o funcionamento, tão facilmente, e de uma maneira tão extensa, como se faz com a memória, de modo que as condições psicológicas são bastante mais importantes.
Estas condições podem ser reduzidas a duas principais: a intensidade : uma lembrança se fixa e se conserva tanto mais facilmente, quanto seja mais viva a impressão. É esta condição que se procura satisfazer pela atenção e repetição, — a organização das idéias: as idéias (e os sentimentos) se fixam e se conservam tanto melhor quanto estejam ligados uns aos outros de maneira mais lógica. É por isso que a intervenção da inteligência na organização das lembranças é um fator importante de sua conservação.

2. A evolução das lembranças.

— A evocação pode ser espontânea ou voluntária.
a) A evocação espontânea é aquela em que uma lembrança se apresenta à consciência como que por si mesma, sem que nada pareça evocá-la. Contudo, se houver cuidado em bem analisar o conteúdo da consciência, no momento dessa evocação espontânea, verificaremos que a lembrança evocada áligada a algum dos elementos deste conteúdo.

b) A evocação voluntária supõe um esforço mais ou menos longo e mais ou menos difícil. Põem em jogo as associações de idéias ou de imagens, até que, de aproximação em aproximação, por eliminação sucessiva de respostas falsas da memória, a lembrança procurada surja finalmente.

3.    O reconhecimento das lembranças. — Não existe lembrança verdadeira, a não ser quando a lembrança é reconhecida como evocadora de um estado anteriormente experimentado, e experimentado por mim, quer dizer, como um dos elementos de meu passado.
A lembrança, assim evocada e reconhecida, distingue-se da percepção, como um estado débil se distingue de um estado forte, — e da imaginação, pelo fato de que a imagem pode ser modificada por nós; ao contrário da lembrança, que podemos sem dúvida afastar, mas não modificar à vontade.

4.    Localização das lembranças. — É necessário, enfim, situar a lembrança em seu lugar no passado. A memória, para chegar até lá, percorre a extensão dos acontecimentos antigos para então encontrar o lugar preciso da lembrança evocada. Ela se serve, para isto, destes marcos que são, na linha do passado, as lembranças de acontecimentos importantes em torno dos quais se classificam e se ordenam as lembranças de menor intensidade.

C.    Importância da memória.

114      Falamos, mais acima, da importância do hábito. Ora, tudo o que dissemos do hábito pode aplicar-se à memória, que não é mais do que uma espécie de hábito, da mesma forma que o hábito não é mais do que uma espécie de memória. Veremos que papel exerce a memória, sobretudo intelectual, na formação do espírito e na educação moral.

1. Papel da memória na educação intelectual. — Este papel é muito grande; é o que vamos mostrar. Mas notemos inicialmente que a potência da memória não é um fim, mas apenas um meio. Trata-se menos de armazenar numerosos conhecimentos do que formar o juízo e dar-lhe segurança e retidão, e a palavra tantas vezes citada de Montaigne permanece sempre verdadeira: "Cabeça bem feita vale mais do que cabeça bem cheia." Com tais reservas, é perfeitamente verdadeiro que para aprender a pensar o exercício da memória é indispensável. Com efeito:

a)     A memória intervém em todos os atos do espírito. — No raciocínio, devemos utilizar idéias e juízos já formados, e, além disso, à medida que avançamos no raciocínio, devemos recordar o que precede.
A própria linguagem, que nos parece tão natural, não é mais do que uma vasta memória de palavras e idéias, que elas exprimem. Como poderíamos ainda pensar, se a memória não nos fornecesse, de algum modo a propósito, as idéias e as palavras que nos são necessárias?

b)     A memória é a condição do progresso intelectual. — Seria, para nós, inteiramente impossível realizar qualquer progresso, se os conhecimentos que adquirimos se fossem consumindo. Tudo estaria perpetuamente por recomeçar.
Por outro lado, esta observação de simples bom-senso se aplica do mesmo modo à própria sociedade. As gerações que se sucedem não podem pretender retomar, desde o princípio, todas as ciências e todas as artes que lhes são necessárias. Em uma parte imensa, elas são tributárias do passado, e não o são nem podem ser senão pela memória. É por ela que se conserva e se transmite de idade a idade o capital intelectual e moral dos séculos passados e, portanto, é por ela que se torna possível o progresso da civilização. Por isto, Pascal observa muito justamente que "a humanidade é como um só homem que aprende continuamente".

2.    Papel da memória na educação moral. — A memória exerce aqui um papel análogo ao que exerce na educação intelectual. Povoa o espírito de máximas e de exemplos que formam uma espécie de atmosfera moral. É utilíssimo que se nos recomende com insistência, que nos informemos, de uma maneira que possa ser atraente, sobre a vida dos homens ilustres e a vida dos santos. Estes altos exemplos de heroísmo ou de santidade, de devotamento à ciência e à humanidade, são retidos com surpreendente fidelidade e não é raro que, nas lutas da vida, sua lembrança sirva de ponto de apoio, de luz e encorajamento às almas inquietas ou tentadas.

D.    Meios de exercitar a memória.

115      Pode-se e deve-se exercitar a memória metòdicamente, e os meios de exercitá-la decorrem das condições psicológicas de que falamos.

1.    A atenção. — Se a condição capital para fixar e conservar a lembrança é a intensidade da primeira impressão, não caberia exagerar o papel da atenção. Quer isto dizer quanto é medíocre o processo de ensino, tão comum na criança, da repetição maquinai. A experiência, por outro lado, a faz logo admitir que o número de repetições está na razão inversa da atenção que ela presta ao sentido da lição que deve reter.

2.    Á memória das idéias. — Acima de tudo, é essencial, não tentar aprender nada de cor que não tenha sido, de início, perfeitamente compreendido, a fim de ajudar a memória verbal pela memória das idéias, que é evidentemente a mais importante. O melhor meio de reter as coisas é ligá-las segundo sua ordem natural. Deste ponto-de-vista, o exercício da memória se confunde com o exercício do juízo e se torna diretamente uma formação do espírito.

3.    O método dos conjuntos. — Pela mesma razão, quer dizer, para penetrar de inteligência a memória, devemos preferir o método dos conjuntos ao método dos fragmentos. Alguma coisa que se aprende constitui normalmente um todo cujas partes estão ligadas logicamente e, portanto, evocam-se mutuamente. É claro que se aprenderá tanto mais facilmente quanto se haja de início apreendido o encadeamento das idéias, dos sentimentos, das imagens, coisa que se não pode fazer quando se recorre aos pequenos fragmentos.

4.    O concurso das diversas memórias. — Cumpre também, para fazer a memória dar todo o seu rendimento, apelar para a colaboração das diversas memórias: memória visual das palavras lidas, memória auditiva das palavras ouvidas, memória das imagens evocadas, memória dos gestos realizados.   O   ponto   capital, neste domínio, consistirá em descobrir qual é a memória preponderante e utilizá-la no exercício e desenvolvimento da memória total.
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5.  O esquecimento, auxiliar da memória. — Enfim, devemos aprender a esquecer. Esta regra, que parece tão paradoxal, é, contudo, importante. Porque a memória não deve ser embaraçada, e, para que permaneça alerta e fresca, é necessário que as lembranças venham agregar-se a algumas idéias fundamentais e muito gerais, e que tudo que for inútil seja rejeitado e esquecido.

A educação da memória não se faz facilmente, por falta de experiência. Queremos tudo reter, porque não sabemos classificar as idéias. Aprendei a esquecer é, então, aprender a por ordem nas lembranças, esforçando-se por distinguir no seu todo o essencial do acessório. E ainda assim e de maneira eficaz, formar seu juízo e sua razão.

 Fonte:
CONSCIENCIA:ORG
http://www.consciencia.org/cursofilosofiajolivet15.shtml
Sejam felizes todos os seres.
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Sejam abençoados todos os seres.

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