domingo, 5 de agosto de 2012

A ORIGEM DO UNIVERSO-COSMOLOGIA CONTEMPORÂNEA COM A FÉ




 ISSN nº 1676-7748
REVISTA MAGIS
CADERNOS DE FÉ E CULTURA
Número 07 – ano 1995

DIÁLOGOS
ENTRE A FÉ E A CIÊNCIA
2
A ORIGEM DO UNIVERSO
PONTO DE ENCONTRO DA COSMOLOGIA CONTEMPORÂNEA COM A FÉ

Marcelo Ribeiro
José Sande Lemos
Luiz Alberto de Oliveira
Pe. Paul Shweitzer, SJ (coord.)
Prof. Marcelo Ribeiro

O objetivo de minha apresentação é dar uma idéia de como, a partir das teorias da
física, é possível elaborar a idéia da cosmologia como disciplina científica. Começarei
tentando dar uma definição, um sumário do que seria a cosmologia. É muito difícil conseguir
uma definição simples de uma área tão ampla e com tantas nuances como a cosmologia.
Mas, de qualquer maneira, creio que isso é importante, no sentido de procurar
situar esta apresentação.

De maneira simplificada, podemos pensar que a cosmologia é a física do universo
observável, tratado como único objeto de estudos. Antes de prosseguir, vejamos como
esses termos são entendidos pelos físicos. A cosmologia nasce como parte da física,
quando, em 1916, Einstein propôs a teoria da relatividade geral. Pode-se marcar o nascimento da cosmologia como disciplina científica nesse momento. Por que essa data em
particular? Porque a teoria da relatividade geral é basicamente uma teoria da gravidade,
particularmente capaz de lidar com sistemas infinitos, e uma das características da cosmologia é justamente trabalhar com espaços infinitos. Pelo menos podemos pensar sobre
espaços infinitos do ponto de vista da física. A teoria da gravidade anterior, a Lei de
Newton, tinha dificuldades em lidar com esses espaços, e a teoria da relatividade geral
supera esses problemas.

Quais são as hipóteses básicas que estabelecemos para fazer cosmologia, a partir
das quais podemos pensar no problema? Uma das hipóteses básicas da cosmologia é a
de que as leis da física que entendemos serem válidas em nosso sistema solar, ou seja,
as que somos capazes de observar ou de reproduzir em laboratório, também sejam válidas
para sistemas remotos, De maneira simplificada, assumimos que essas leis são válidas
não apenas totalmente, mas em escalas muito maiores, muito mais distantes do que 3
somos capazes de verificar. Isso é uma hipótese, evidentemente, mas é a única maneira
que temos, na física, de co-sintonizar o problema.

A segunda hipótese básica que a cosmologia utiliza é o chamado princípio cosmológico.
Princípio cosmológico é, essencialmente, uma maneira de simplificar a forma de
encarar o problema cosmológico. Diz que não existem pontos privilegiados no espaço.
Empregamos, no princípio cosmológico, a idéia copernicana de que não estamos num
centro, de que qualquer ponto é tão bom quanto o outro, em outras palavras, que não
estamos no centro do universo. Esse é o segundo princípio.

O terceiro é, evidentemente, sermos capazes de estabelecer uma teoria de gravidade.
Na física utilizamos uma teoria para explicar fenômenos de gravidade - queda de
corpos etc. A teoria que se usa em cosmologia é justamente a relatividade geral. Não é a
única, mas é a mais usada.

Há uma quarta hipótese, a de que, num aspecto um pouco mais técnico, consideramos
que a matéria distribuída pelo universo observável é um fluido perfeito. O que isto quer
dizer? Do ponto de vista da física, significa que não consideramos Interações entre as
partículas. Como se não houvesse nenhum tipo de atrito no interior desse fluido. Isto é,
evidentemente, uma hipótese simplificadora, mas que é bastante útil, bastante conveniente,
porque nos permite conceitualizar e lidar com o problema. Com a hipótese do fluido
perfeito, consideramos que as galáxias são os elementos desse fluido, as moléculas
que pendem nesse fluido. Tratamos o universo observável como sendo um fluido.

Vamos agora tentar explicar essa hipótese, Para que possamos fazer essa aproximação,
precisamos pensar que existe uma escala de distância suficientemente grande, de
maneira que a idéia de densidade (massa medida pelo volume) tenha sentido, porque
queremos trabalhar com a idéia de um fluido, Pensamos então que possa existir uma
escala mínima, a partir da qual podemos fazer essas hipóteses. No fundo, é isso que estamos
fazendo.

Essa é uma maneira simples de apresentar a cosmologia, mas que é bastante poderosa,
porque, embora exista uma série de problemas, até o momento não existem inconsistências
internas suficientemente fortes, que nos façam duvidar de que essas hipóteses
sejam realmente válidas. Existem enigmas, problemas, mas até o momento nada indica
que devamos abandonar essas hipóteses.4

Apresentadas as hipóteses básicas, vou apresentar o chamado modelo padrão, o
modelo chamado FLRW, nome que vem de seus fundadores - Frigman, Lemet, Robertson
e Walker -, que começaram a trabalhar a partir dos anos vinte. O que é esse modelo
considerado padrão, como o mais apropriado para descrever o universo? Ele utiliza,
digamos assim, a seguinte "receita". Em primeiro lugar, assume uma teoria da gravidade,
que, no caso, são as chamadas equações de campo de Einstein, propostas em 1916,
quando Einstein apresentou a teoria da relatividade geral. Tomamos essas equações e
utilizamos uma hipótese de simetria, ou seja, consideramos a idéia de que não haja variação.
A idéia de que, se olharmos para uma região no espaço, vamos ver a outra região.

É a idéia de se pensar em termos de uma esfera. Essa é a chamada hipótese da simetria
esférica. Os físicos usam essas equações, essa hipótese da simetria esférica, utilizam a
hipótese do fluido perfeito e homogêneo, uniforme, sem grandes variações de densidade.
A água, por exemplo, é um fluido bastante uniforme em termos de densidade. Juntando
essas quatro coisas, obtemos o chamado o modelo de Frigman, Lemet, Robertson
e Walker, considerado o modelo padrão na cosmologia contemporânea clássica.

Quero frisar a palavra clássica no sentido de que existem as idéias, chamadas
quânticas, de que se possa ter uma Influência muito importante dos constituintes da matéria.
Mas isso não é o fundamental nessa teoria. O modelo padrão é basicamente isto,
as equações, mais algumas hipóteses simplificadoras, e obtemos o modelo matemático.

As características principais do universo, segundo esse modelo, são a isotropia, a
idéia de que o universo parece o mesmo em todas as direções, não considerando que
haja uma diferença muito grande entre uma direção e outra. Outra característica é a homogeneidade espacial, ou seja, a de que a densidade do espaço em cada momento é uniforme.
No fundo, estar nos desconsiderando aglomerações, o que é uma hipótese bastante
forte, já que existem planetas, galáxias... Estamos aqui, e somos concentrações de
matéria, enquanto que próximo de nós não há diminuição da concentração de matéria. A
idéia é que, se fizermos uma média, haverá uma uniformidade nessa distribuição. Hipótese
forte, mas que nos permite trabalhar o modelo. Essas são, na realidade, hipóteses
que estão implícitas no próprio modelo.

Os resultados que obtemos desse modelo são muito Interessantes. Um primeiro resultado
seria o de que o universo estaria em expansão. Isso é obtido através da solução
das equações, que nos mostram, quando analisamos os resultados através de uma mate5
mática muitas vezes não trivial, que há essa expansão, isto é, uma variação no tempo.
Ou seja, o universo é dinâmico, e seu conteúdo material muda com o tempo. Isso é um
resultado de conseqüências interessantes. Permite dizer que temos três tipos de modo
como o universo se modifica. Existem os modelos chamados "aberto", "plano" e "fechado".
O modelo aberto significa que o universo se expande, mas se expande eternamente,
sem que nada paralise a expansão. O universo "plano" significa que ele se expande,
mas tem a quantidade mínima necessária para que essa expansão continue. Enquanto
no caso do modelo aberto existe uma quantidade maior de energia para que esse
universo continue se expandindo, no caso plano ela é mínima. Existe ainda o modelo
fechado, em que a expansão ocorre, mas vai diminuindo até o momento em que pára e
começa a haver uma contração. Esses resultados vêm das próprias equações, com aquela
receita que acabei de mostrar.

Aí vem a pergunta: que modelo corresponde realmente a nosso universo? Ele é
"aberto", "fechado", ou "plano"? Para tentarmos determinar isto, existe uma quantidade
estrita chamada densidade crítica, que diz que, se o valor da densidade for maior que
tomamos o universo como "fechado"; se igual a 1, universo "plano"; e menor que 1,
"aberto". Por quê? Nós, físicos, descrevemos dessa forma, porque essa quantidade, esse
ômega, é passível de ser observado astronomicamente, ou seja, se somos capazes de
usar essa receita, depois vamos aos astrônomos, fazemos observações, tentamos calcular
esse ro, e verificarmos que realmente ocorre essa dinâmica. E, ocorrendo, somos capazes
de determinar se o universo é de um desses três tipos. Pedimos à astronomia que nos
dê algumas respostas, mas infelizmente elas não são tão conclusivas quanto gostaríamos
que fossem.

Se fizermos observações, como os astrônomos, olhando para objetos bastante distantes,
como galáxias, e, através do que conseguimos observar, que é a luz desses objetos,
somos capazes de calcular esse ro. Mas sempre existe a hipótese de que exista alguma
matéria que não emita luz. Ou que sua luz seja tão fraca que não chegue até nós.
Essa é uma questão ainda em aberto, mas, se nos concentrarmos naquilo que sabemos, e
não naquilo que não sabemos, podemos dizer que dentro das medidas atuais o valor de
(J) está na faixa de valores que corresponde ao modelo de expansão eterna. Por esse
modelo, o universo "nasce", e se expande eternamente.6

No entanto, se existir matéria que não sejamos capazes de ver através do telescópio,
poderíamos chegar a um resultado que corresponderia ao universo "fechado". É
uma questão em aberto; há esperança de que, com o avanço das técnicas observacionais,
das técnicas astronômicas, sejamos capazes de chegar a uma resposta mais conclusiva.
Uma outra característica muito interessante desse modelo de expansão do universo
é que ele implica na idéia de evolução. Essa evolução se verifica através de variáveis
típicas dos físicos: densidade, temperatura, etc. O que observamos através de nossa teoria,
ou seja, aquilo que calculamos, é que, quando o universo se expande, a densidade e
a temperatura da matéria diminuem. Podemos então reverter o argumento. No passado,
o universo foi muito mais denso, muito mais quente. Isso é realmente um resultado da
receita que mencionei no início. Com as equações, obtivemos o modelo e passamos a
estudar as suas conseqüências. E obtivemos este tipo de resultado.

Tanto se pensarmos que o universo se expande ou que se contrai, chegamos à idéia
de que há um limite para esse processo. Qual seria esse limite? O modelo nos diz
que o limite para essas fases mais densas e quentes é quando um determinado parâmetro
é igual a zero. O modelo encontra o que chamamos de singularidade, ou seja, o chamado
big bang, a grande explosão.

Outra característica desse modelo é que, se existiu uma fase quente, essa fase
quente gerou uma radiação. Essa radiação é realmente observada, e essa foi uma grande
descoberta na cosmologia, chamada observação da radiação. Essa radiação foi detectada
em 1965 e é considerada uma das grandes comprovações de que esses modelos têm
fundamento, que todos esses cálculos que temos feito fazem sentido, de um ponto de
vista do que a própria física nos diz.

Outro aspecto também muito importante é que esse modelo nos permite tentar resolver
um problema, que era um grande enigma, que era a formação dos elementos.
Observamos, nas estrelas, determinadas quantidades de hidrogênio e de hélio, por exemplo,
que são as substâncias mais importantes constituintes das estrelas. Mas por que
temos tal percentagem de hélio e tal percentagem de hidrogênio? Esta é uma questão
que sempre é deixada em aberto. O modelo nos permite dar uma resposta para isso, através
da chamada nucleosíntese. Nessa fase quente, o calor não permitiria que houvesse
os elementos como os conhecemos hoje, mas, na medida em que foi esfriando, esses 7
elementos teriam começado a serem formados. Ou seja, havia prótons, elétrons e, a partir
de certo ponto, eles começaram a se juntar, começando a aparecer esses elementos,
na abundância 80, com o avanço da tecnologia, tornou-se possível aos astrônomos fazerem
uma detecção da luz de galáxias muito distantes. .Começaram a fazer um "mapeamento"
das galáxias, e esse "mapeamento" permitiu situar as galáxias tridimensionalmente.
Somos então capazes de saber qual a mais distante, qual a mais próxima. Podemos
testar, por assim dizer, a idéia da homogeneidade, de que as galáxias realmente
existam uniformemente. Na época, todos esperavam que isso fosse se verificar, que iríamos
observar essa homogeneidade, mas não foi exatamente isto que aconteceu. Um
trabalho relativamente famoso de 1986 mostrou que não temos uma distribuição exatamente
uniforme Isso questiona o modelo. 

A maior parte dos cosmólogos acredita que
não, que esse tipo de característica pode ser explicada pelo modelo. Mas existe um grupo
minoritário, de céticos que discorda, que pensa que precisamos fazer coisas mais
radicais. A maior parte considera que é possível explicar esse tipo de característica. É
mais uma questão em aberto, não sabemos exatamente qual a extensão deste tipo de
estrutura. Estão sendo feitas muitas observações, os grandes telescópios do mundo estão
voltados, pelo menos uma boa parte do tempo, para esse tipo de observação, para este
tipo de mapeamento.

Para concluir, poderíamos reverter a idéia da expansão, e voltar à chamada singularidade,
ao big bang. Qual a interpretação que se dá a isso? Do ponto de vista da física,
na física clássica, esse é o limite em que as leis da física não mais funcionam. Simplesmente
chegamos a um ponto em que os conceitos que utilizamos, de espaço, tempo,
densidade, matéria, deixam de fazer sentido. Nós obtivemos quantidades. São infinitos.
As equações nos mostram isso. Isso é, estritamente falando, o que se obtém. Esse momento,
para a física clássica, seria considerado o momento da criação. Criação no seguinte
sentido: de que esses conceitos, a partir daquele tempo "t=0", passam a ter sentido
físico. Existem outras teorias, em que outros pesquisadores trabalham, tentando, esperando
obter um resultado tal, que possa dar conta desse "t=0", desse tempo inicial, por
assim dizer. Tentam descobrir quais as possibilidades de utilizar as idéias da mecânica
quântica na cosmologia. Seria a chamada cosmologia quântica. Mas são questões ainda
em aberto.
8
Prof. José S. Lemos
Antes de começar a falar sobre buracos negros, gostaria de falar sobre algumas
constantes que aparecem nas teorias físicas, porque são importantes, já que caracterizam
as próprias teorias de uma forma única. Todos conhecem a teoria da gravitação de Newton,
de que estamos presos à Terra por causa da gravidade A teoria da gravitação de
Newton apresenta uma constante, chamada constante de gravitação universal, a constante
g. Todos aprendem na escola que a força da gravitação é diretamente proporcional às
duas massas e Inversamente proporcional ao quadrado das distâncias entre elas; e esse
diretamente proporcional significa que há uma constante de proporcionalidade entre a
forças. Essa foi a primeira constante fundamental de uma teoria física.

Na teoria da relatividade geral, que apareceu em 1916, apareceu uma nova constante,
a constante c. Essa constante já havia aparecido na chamada teoria da relatividade
restrita, mas, na teoria da relatividade geral, que englobou a teoria da gravitação de
Newton e a da relatividade restrita, que não tinha gravitação, temos duas constantes, 9 e
c. Em 1900 apareceu outra constante, a constante de Planck, um físico alemão. Essa
constante caracteriza de forma única a mecânica quântica, uma outra teoria, voltada para
objetos microscópicos. Existe uma teoria dinâmica, que trata de sistemas térmicos, e
que apresenta uma constante, chamada constante de Boltzmann, um físico austríaco, e
que também caracteriza esse sistema.

Se juntarmos essas várias constantes, teremos várias teorias. Se, por exemplo, juntarmos
as constantes g e c, temos a teoria da relatividade geral. Se juntarmos a constante
h, da mecânica quântica, com c, constante da velocidade da luz, temos a chamada mecânica
quântica relativista. Enfim, podemos fazer várias combinações, obtendo várias
teorias, Existe, no entanto, uma teoria ainda não formulada, mas que já tem nome, a
chamada gravitação quântica. A teoria da gravitação quântica junta a constante da gravitação
de Newton, g, a velocidade da luz, c, e a constante de Planck, h. Pode também ser
considerada a a constante da termodinâmica, ou constante de Boltzmann, k.
Essa teoria da gravitação quântica ainda não está formulada. No entanto, os buracos
negros podem ser os objetos que darão pistas para formular esta teoria.

 Os buracos negros encaixam-se na teoria da relatividade geral, onde temos apenas duas constantes, a da gravitação e a da velocidade da luz. No entanto, eles englobam a chamada singularidade relacionada com a singularidade do big bang, de que falou o prof. Marcelo Ribeiro. E essas singularidades, em princípio, pertencem à chamada gravitação quântica.9

Vejamos agora como podem se formar os buracos negros. A idéia dos buracos negros
é antiga - ou melhor, não propriamente a idéia dos buracos negros, mas de estrelas
escuras. Remonta a 1784, quando o reverendo inglês John Mitchel postulou, dentro da
teoria da gravitação newtoniana, a existência dos chamados objetos escuros. É muito
simples entender a existência desses objetos escuros. Se lançarmos um objeto da Terra
numa velocidade de 11 km/s, esse objeto escapa para o espaço e não volta para a Terra.
Se for lançado a uma velocidade menor, retorna à Terra. Ao lançarmos uma pedra, sua
velocidade é obviamente muito menor que 11 km/s, então ela volta para a Terra. Um
foguete, no entanto, pode escapar para o espaço. Esta velocidade é caracterizada, na
mecânica newtoniana, pela equação que diz que a velocidade de escape, no caso da Terra,
de 11 km/s, elevada ao quadrado é igual à massa da Terra. A massa do objeto com
grandes dimensões - no caso, a Terra dividida pelo raio desse objeto, fornece a constante
de proporcionalidade 9, que é a constante de Newton. Júpiter, por exemplo, que tem
massa e raio diferentes, tem uma velocidade de escape maior que a da Terra - 59 km/s.
Para o Sol, é de 619 km/s.

Se um corpo tem massa igual à de outra, mas ralo muito menor, a velocidade de
escape vai ser multo maior. Podemos então fazer a pergunta: qual é a condição para que
a luz não escape do objeto? Qual deve ser a relação entre a massa e o raio do objeto.
Essa condição diz que c, que é a velocidade da luz, elevado ao quadrado, deve ser igual
a duas vezes a constante da gravitação, multiplicador pela massa do objeto dividida pelo
raio. Se a massa for igual à massa do Sol, obtenho que o raio do objeto seria igual a 3
km, ou seja, seria um objeto com raio pequeno e com uma massa idêntica à do Sol, uma
massa enorme. Foi dessa forma que John Mictchel primeiro caracterizou esse objeto.
No entanto, não é a partir da teoria newtoniana que os buracos negros são bem
formulados. Só aparecem na teoria da relatividade geral como objetos naturais. Para
entender a formação de um buraco negro, precisamos da ajuda de uma estrela em contração.
Represento aqui o raio da estrela, e podemos pensar em raios de luz, saindo da
estrela. 

As estrelas emitem luz, o Sol emite luz em todas as direções. Vamos pensar no
sol se contraindo. Temos que chegar a 3 km, como vimos. O campo gravitacional vai
aumentando e os raios de luz vão sofrendo influencia desse campo gravitacional, porque
a massa do campo gravitacional atrai os corpos. Os raios de luz numa direção conseguem
sair, mais os raios de luz numa direção numa direção mais tangencial são atraídos 10 de volta para o Sol em contração. Imaginemos agora uma Segunda contração da estrela,
o campo gravitacional aumenta muito mais, tem mais raios de luz que ficam perto da
estrela, ou seja, que são atraídos para a estrela e poucos raios de luz que saem. Existe
uma contração final em que os raios de luz tangencialmente não conseguem mais sair da
estrela, ficam tangenciando em volta da estrela e não conseguem mais sair. Nesta altura,
neste ponto está formado um buraco negro. Este raio, para o qual a estrela se contraiu e
o raio de luz não consegue mais sair, se chama horizonte.

A partir deste raio, nada pode sair da estrela; portanto, não conseguimos ver mais
nada dentro da estrela. Numa representação espaço-temporal é um pouco mais complicado.
 
À medida que o tempo vai passando, a superfície da estrela vai diminuindo seu
raio. O que acontece quando se forma um buraco negro é que, à medida que a estrela vai
colapsando, o campo gravitacional vai aumentando. Posso supor que do centro da estrela
é emitido um flash inicial que vai se expandir para fora da estrela. Esse flash sai da
estrela e propaga-se até o astrônomo pelo telescópio. À medida que a estrela se contrai,
o campo gravitacional vai aumentando, e o raio de luz demora mais tempo para sair do
campo gravitacional, para chegar ao astrônomo. Existe um raio de luz crítico, a partir do
qual já não chegam mais rios ao astrônomo. Quando a estrela passa, o raio de luz se
encurva e fica igual à constante. Nessa altura, está formado o horizonte de eventos: eventos
acontecendo dentro desse raio não podem ser observados pelos astrônomos. Está
formado o chamado buraco negro.

Existe um ditado que diz que buracos negros não têm cabelos, quer dizer, que buracos
negros são caracterizados simplesmente por sua massa, sua rotação e sua carga
elétrica. Diz-se que ele não tem cabelos porque perde toda a memória do que formou
esse buraco negro; tanto pode ser uma estrela que perde partículas, como pode ser qualquer
outro objeto mais exótico. Se tiver a mesma massa, a mesma rotação e a mesma
carga, vai ser caracterizado da mesma forma. Não quer dizer que tenha que ser uma
estrela, podemos mostrar que o Sol tem 700.000 km de raio, e o buraco negro com a
mesma massa teria 3 km. O campo gravitacional do buraco é tão intenso que atrai a matéria
de uma estrela. Essa matéria é acelerada, quando chega perto do buraco negro, bate
com velocidade bastante grande, emitindo raios X. Esses raios X podem ser observados
na Terra, e assim podemos caracterizar de certa forma um buraco negro. 11

Existem varias outras idéias sobre buracos negros. Quando foi inventado o nome
buraco negro, em 1958, era chamado buraco de minhoca. Supunha-se que um observador
poderia passar de um universo para outro através desses buracos. Existem também a
possibilidade de buracos negros se comportarem como dínamos. Por exemplo, buracos
negros em rotação imersos num campo elétrico ou num campo magnético poderiam
atuar como motores, seria possível expelirem energia. Se algum dia houver tecnologia
para fabricar buracos negros, poderíamos extrair energia desse tipo de objeto.
A densidade da matéria que cai ou colapsa para o interior do buraco negro vai aumentando
até atingir densidades infinitas, e assim está formada uma singularidade. Ao
contrario do big bang, que é de onde o universo começou, que é a singularidade inicial,
neste caso, forma-se uma singularidade final, que é a singularidade oculta no horizonte
de eventos. Em 1974, Rockin fez uma descoberta espetacular, mostrando afinal que os
buracos negros não são negros. Se se considerar que perto do horizonte de eventos o
buraco negro evapora e vai desaparecendo com o tempo até mostrar sua singularidade
final.

Para concluir, podemos dizer que os buracos negros têm características muito próprias,
que parecem marcar o inicio de uma revolução na física. Gostaria de dizer também
que os buracos negros estão sendo atualmente tratados como partículas elementares.
Já existem pessoas pensando o que acontece quando se chocam dois buracos negros,
e que seria uma forma de testar esta gravitação quântica. De certa forma, teríamos
uma teoria final para a física.

Prof. Luiz Alberto de Oliveira

Gostaria de começar com algumas considerações mais genéricas, mais amplas,
quiçá mais filosóficas. É difícil conceber o que historiadores do futuro vão assinalar
como significativo na nossa época, no nosso tempo. Pode ser que registrem, por exemplo,
que matamos crianças de inanição. Pode ser que registrem que lançamos mais poluentes
na atmosfera que uma dúzia de vulcões, que ainda somos estúpidos o bastante
para nos distinguirmos pela noção vazia de raça. Mas, se um futuro houver, quase que
com certeza uma coisa vai ser registrada por esses historiadores, um fato que sucedeu
no nosso século, a maior transformação do conhecimento científico desde que o homem
começou a refletir racionalmente sobre a natureza. Essa transformação veio Incluir no 12
âmbito, no campo do conhecimento humano, pela primeira vez, dimensões da natureza
da realidade propriamente não-humanas, dimensões nas quais nossos sentidos, nossa
capacidade de sermos afetados na nossa sensibilidade não podem nos dar qualquer informação.

São necessárias próteses laboratoriais e observacionais, instrumentos que
associamos aos nossos sentidos, para que possamos ser informados sobre essas escalas
não-humanas, extra-humanas da realidade.
Das muitas maneiras pelas quais seria possível caracterizar essa revolução científica
tão estrondosa que quero apontar, escolhi Ihes oferecer uma reflexão sobre o que
chamo a introdução do objeto complexo. Haveria uma transformação científica que poderia
ser caracterizada pela construção, pela produção de um novo tipo de objeto. Concomitantemente, um novo tipo de sujeito, que vai refletir sobre esse objeto, que seria o
objeto complexo.

O objeto complexo emerge com características diferentes, em três escalas, ou três
dimensões: na escala microfísica da estrutura Intima da matéria, na escala macroscópica,
a escala de nossa experiência humana, e na escala cosmológica, da qual acabamos de
ter um vislumbre. O que caracterizaria esse objeto complexo? Fundamentalmente, o fato
de que ele obrigatoriamente acarreta a aparição de paradoxos no campo do conhecimento.

A história da nossa tradição filosófico-científica é a de construir o saber sobre o
mundo, sobre nós mesmos, através da exclusão do paradoxo, da exclusão do contraditório.
E, muito curiosamente, nesse momento de triunfo, de afirmação da ciência, o ápice
da realização do conhecimento humano sobre a natureza, assistimos consternados, mas
também encantados, a aparição de paradoxos. Ou seja, essas dimensões extra-humanas e
esse tipo de objeto complexo, não pode ser aprendido através de nossas noções costumeiras de bom senso, de senso comum e de hábito. São necessários um novo tipo de
temporalidade, um novo tipo de lógica e um novo tipo de memória, para que possamos
apreender, em toda a sua grandeza, esse objeto.

Vamos tentar delinear rapidamente em que consistiria, nessas três escalas - micro,
macro e cosmológica - a aparição do objeto complexo. No mundo microscópico, ele é
regido pelo que se chama de principio da incerteza. O princípio da incerteza diz que há
um limite sobre o conhecimento que nossa observação pode dar sobre um constituinte
microscópico da matéria. Se quiser conhecer as propriedades de um determinado átomo,
o próprio fato de eu estar investigando uma certa propriedade deste átomo, tentando, 13
digamos, localizá-lo numa certa região, vai impossibilitar que eu possa conhecer com a
precisão que quiser o seu movimento. Reciprocamente, se eu conhecer muito bem o
movimento que este átomo está desempenhando, não poderei conhecer a região em que
ele se encontra, não poderei determinar onde ele se encontra.

Esse tipo de efeito não é o que praticamos no nosso mundo, Caminhamos no
mundo e os objetos com que lidamos no nosso dia-a-dia têm posições bem definidas,
assim como têm, simultaneamente, movimentos bem definidos, Com esse tipo de objeto
sabemos lidar, Vemos um carro passando a 80 ou 100 km/h - velocidade extraordinária,
na natureza -, e somos capazes de muito rapidamente fazer operações que se fossem ser
computadas, levariam centenas de anos, fazendo com que nosso corpo se mova exatamente
da maneira devida para que o carro passe sem que nos atropele, Estamos adaptados
a lidar com esse tipo de informação, sobre esses dois aspectos, posição e velocidade,
Mas, no mundo microscópico não é assim.

Essa incerteza que o ato de conhecimento introduz, de maneira inevitável, vai ter
uma conseqüência notável. Nossa tradição filosófica nos diz que o mundo consiste de
indivíduos. Indivíduo é tudo aquilo que posso apontar com o dedo. A tradição aristotélica
diz que indivíduo é composto de substância, e substância é matéria e forma - uma
matéria-prima, uma espécie de cera liquida, sem qualquer forma, e uma forma que é
impressa sobre ela, dando os limites desse objeto, individualizando-o, separando-o de
todos os demais objetos do mundo. Portanto, lidamos com um mundo em que as coisas
têm forma, aliás, lidamos com um mundo onde há coisas com esse nome de indivíduos.

O que sucede aqui é que esse desconhecimento obrigatório simultâneo, correlato ao ato
de conhecimento em relação ao mundo microscópico, vai fazer com que a forma dos
objetos microscópicos se torne precária. Um objeto microscópico pode ostentar ora a
forma de um objeto extenso como uma onda, de modo que ele abranja uma larga região,
ou então pode se manifestar como um objeto localizado, como se fosse um projétil, uma
partícula. E, o que é pior ainda, apenas o cenário experimental que observadores externos,
Independente daquele objeto, preparamos é que vai determinar se aquele átomo,
por exemplo, vai se manifestar localizada ou extensamente. Portanto, não posso mais
pensar no átomo como uma bolinha. A imagem do átomo como pequeno sistema solar,
onde há uma estrela central e planetinhas girando em volta, é uma imagem tosca, inefi14
caz. Somos obrigados a abrir mão de nossa quase tendência de construir imagens visuais,
a partir das quais Julgamos que conhecemos.

Toda filosofia foi fundada por uma pregnância do sentido da imagem. Apropriarse
de uma imagem, de uma forma, é conhecer. E agora somos--obrigados a abrir mão da
própria possibilidade de construir imagens visuais, imagens pictóricas, quadros sobre a
natureza. Em escala microscópica não podemos visualizar, porque as formas são precárias.
Nessa escala o objeto é tanto extenso como uma onda quanto localizado como uma
partícula. Num experimento famoso, em que se torna amplificada essa possibilidade de
coexistência de contrários, característica do mundo microscópico, surge a estranhíssima
figura de um gato, que é simultaneamente vivo e morto. Não é um gato moribundo, não
é um delírio. É uma configuração física de que faz sentido falar, na qual conviveriam,
num certo sentido, superpostas, duas entidades que para nós não podem coincidir, um
gato vivo e um gato morto.

Portanto, fica abolida a própria possibilidade de visualização do objeto microscópico,
do objeto quântico, do objeto atômico. Significando isso uma perda da unidade
desse objeto. Podemos dizer que esse objeto é maior e menor do que ele mesmo. Neste
sentido de que ele não guarda uma forma fixa, mas que carrega consigo um potencial
permanente da atualização, de manifestação, de modo que o objeto microscópico tem
que ser pensado não como um indivíduo, não como uma coisa, mas como uma espécie
de indivíduo inseparável de uma operação de individuação. Como se a realidade microscópica estivesse sempre sendo produzida, estivesse sempre em acabamento, nunca
dada, nunca acabada, nunca finalizada. Neste sentido é que os objetos microscópicos
perdem a unidade, a individualidade, ganhando concomitantemente a potência de se
individuar, de se unificar. E, portanto, o mundo deixa de ser feito de substância.
No caso da cosmologia, do mundo das escalas cosmológicas, a partir dos modelos
extraordinariamente bem sucedidos da cosmologia, até há 40 anos, os próprios cientistas
achavam impossível que um objeto tal como o universo, significando tudo o que existe,
pudesse ser de fato um objeto físico. Ou seja, que algum enunciado legitimamente científico
pudesse ser produzido sobre um tal ser, um objeto que seria tudo o que existe, a
soma de todas as manifestações físicas possíveis. No entanto, a partir da teoria de relatividade de Einstein e a partir de observações feitas há não mais que 40 anos, a cosmologia se concretizou, como foi mostrado, como uma disciplina científica, e introduziu en15 tão este outro tipo de objeto complexo que vou chamar com essa noção de cosmos -
cosmos significando totalidade organizada. Mas essa totalidade seria uma totalidade
aberta, uma totalidade que é contexto para si mesma. Novamente, um paradoxo, na medida
que a noção de totalidade implicaria uma abolição do extra, do que haveria além.
No entanto, muito curiosamente, poderíamos pensar que o além coincide com o aquém,
que o universo serviria de contexto para si mesmo, na medida em que, o que podemos
apreender dessa totalidade, o fazemos de dentro dela.

A expansão do universo é de fato a maior observação que o homem já fez sobre o
mundo natural em qualquer tempo. A verificação de que a totalidade do que existe está
num estado dinâmico de expansão, de transformação, que o todo tem uma história, essa
é a maior descoberta que o homem já fez sobre o mundo natural, indiscutivelmente.
Essa descoberta faz com que possamos apreender, que possamos observar certas características desse ser total. Ou seja, esse ser, esse universo, essa totalidade, está em transformação; esta é uma propriedade global, uma propriedade de tudo, da soma de tudo
que existe. Só que observamos isso, apreendemos isso, e procuramos modelizar isso, de
dentro dessa totalidade. Portanto, o fato de estarmos pensando sobre o universo significa
que o universo pensa assim.

Extraordinária pretensão para pequenos glóbulos de protoplasma, situados num
plenetóide insignificante, que gira em torno de uma estrela qualquer, no seio de uma
galáxia onde há outros cem bilhões de estrelas, havendo outras cem bilhões de galáxias.
No entanto, mesmo que apenas aqui isso esteja sucedendo, o fato é que pensarmos
o universo significa que o universo se pensa, a totalidade pensa, pelo menos através de
nós. Isso significa que a história da nossa vida ganha como um novo contexto, um novo
caminho, um novo território, um novo domínio, a historia cósmica. Um novo sentido
tem que ser dado para o que é estar vivo, para o qual fazemos parte, da qual somos sintoma,
somos uma evidência, somos um dado. Para que o universo seja do jeito que ele
é, para pensar essa totalidade, temos que levar em conta que estamos aqui pensando.
Temos que levar em conta o fato de que a vida é um dado sobre o universo. Isso caracteriza
essa totalidade universal, como totalidade que é ela própria o seu contexto.

Finalmente, no caso da nossa dimensão, da dimensão humana, que chamei de macro,
uma série de descobertas nos campos da matemática, da computação demonstram a
16
inviabilidade de uma imagem do mundo - uma imagem impregnante até final do século
passado - a imagem do universo como máquina. Não sou tão idoso assim, mas quando
era criança havia uma enciclopédia chamada Tesouro da Juventude, onde havia uma
representação do homem, em que a boca era uma fornalha, para dentro da qual se jogava
carvão, o estômago era uma caldeira, os músculos eram pistões, com engrenagens,
fazendo movimento. O mais curioso era o cérebro ou espírito, que consistia em um pequeno
capataz que puxava alavancas: puxando uma alavanca, levantava um braço, puxando
outra, mexia a perna. Essa era uma imagem mecanicista para o próprio corpo
humano.

A imagem do universo como mecanismo de relógio, com uma engrenagem, com
cada uma das suas partes rigorosamente prescrita, incapaz de atuar em relação à outra,
tornou-se imensamente impregnante, passou a ser copiada nas tentativas de se explicar a
vida, explicar o psiquismo, explicar a sociedade e, simultaneamente, tornou o homem
anômalo. Se o mundo físico fosse de fato mecânico, a vida seria anômala, porque a vida
não é mecânica. O que essas descobertas recentes nos permitem pensar é o fato de que a
imagem do funcionamento do mundo através de uma sucessão de engrenagens é uma
imagem inexata, insuficiente, inadequada. Na medida em que há sensibilidades a certas
pequenas variações que se exercer sobre um sistema, esse sistema vai ter uma história,
uma evolução muitíssimo diferente da de um sistema gêmeo dele. Ou seja, pequeníssimas
variações no começo de uma história podem produzir grandes variações no final
dessa história. O exemplo mais conhecido disso é o chamado efeito borboleta, em que o
bater de asas de uma borboleta na Amazônia afeta o ritmo dos furacões na Malásia. Não
diretamente, não porque a força da borboleta seja acrescentada à força do furacão, mas
porque o bater das asas da borboleta cria uma pequena turbulência em certa região, e
essa pequena turbulência tem um efeito maior sobre uma região ao lado, essa região ao
lado amplifica esse efeito, e, por essa cadeia de amplificações, chegamos a que o furacão,
ao invés de ir para o norte, foi para o este.

A possibilidade de se ter essa sensibilidade não maquinal, não autômata, às condições
iniciais é que vai permitir que pela primeira vez uma antiga oposição do pensamento,
a oposição entre ordem e desordem, possa ser esmaecida. Na verdade poderíamos
hoje dizer que não há nem ordem nem desordem, o que há são apenas variações de ordem.
Variações de ordem estão muito mais próximas à desordem do que da ordem. Nes17
te sentido poderíamos dizer que o nosso tempo está assinalando um retorno, uma purificação,
uma catarse do conceito de desordem, significando não uma tendência à destruição
de uma organização, mas, pelo contrário, uma possibilidade de haver flexibilização,
tanto nas fronteiras de um determinado corpo, quanto, no caso dos seres vivos, em sua
própria interioridade, para haver aumento de organização.

Se há alguma coisa que podemos dizer genericamente sobre a vida, é que a vida
busca aumentar sua organização. Busca portanto desordenar-se coordenadamente. Mais
um paradoxo. Ainda, o fato de podermos conceber o mundo em que sentimos as coisas,
o espaço sensível onde caminhamos, cheiramos, sentimos calores etc, como um campo
de produção de variações de ordem, vai produzir aquela que talvez seja a grande revolução
em andamento, a deposição da imagem despótica, tirânica, de um único tempo regendo
todos os acontecimentos. Torna-se possível pensar uma proliferação de tempos,
uma multiplicação de tempos, de tal maneira que a imagem de um único tempo que a
tudo arrasta, desde o passado até o futuro, mostre-se como uma imagem que só é adequada
para tratar de certos tipos de sistema, como o sistema solar, mas que é muito pouco
adequada para tratar sistemas complexos como um ser vivo, ou uma comunidade de
seres vivos. Essa multiplicação de tempos têm uma série de conseqüências. Por exemplo,
o tempo do embrião e o tempo do ancião não serem mais o mesmo tempo.

Fala-se numa nova física como sendo um conjunto de conhecimentos que têm nos
permitido uma nova imagem do mundo, uma nova imagem do tempo. Essa nova física,
alguns autores, em especial da escola inglesa, afirmam que ela nos permitiria vislumbrar
a face de Deus. Parece-me que esse tipo de abordagem, a ciência estar descobrindo a
face de Deus, é inteiramente inadequada. Fé e ciência são modos de conhecimento. Seus
tipos de operação são tão distintos um do outro que ainda que produzam enunciados
extraordinariamente análogos, ainda que até mesmo certo tipo de vivência, na prática da
fé e na prática da ciência, tenham similaridade, ainda sim a possibilidade de reduzir uma
à outra me parece muito inadequada.

A fé é certamente um outro elemento para produção de uma nova imagem do
mundo, que, afinal da contas, é o que toda cultura está fazendo. A fé e a ciência, a arte e
a filosofia, elas têm que nos ajudar, têm que ser os elementos para que possamos produzir
uma nova ética, uma ética da complexidade, ou melhor, uma ética para a complexi18
dade, em que haja abertura para a variação, para a diversidade, porque é isso que estamos
reconhecendo que somos.

Encerro lembrando um ditado de 2.500 anos. Um grego caminhando descalço pela
praia e olhando o sol se por, naquilo que veio a ser o Ocidente, o lugar onde o sol morre.
O grego, que se chamava Heráclito, olhou para esse mundo, olhou para si mesmo e
disse: "A morada do homem é o extraordinário".

Pe. Paul Schweitzer, SJ

Eu gostaria de procurar ver qual pode ser a relação entre a teologia e a ciência. A
história apresenta exemplos de conflito, como o famoso caso de Galileu, em que a divergência entre a interpretação da fé, dos teólogos, e a da ciência levou a um Impasse.
Interessante é que Galileu, citando um cardeal da época, tinha uma visão clara sobre o
aspecto teológico, ao dizer que a Bíblia foi escrita para ensinar ao homem como ir ao
Céu. Galileu já tinha entendido que a Bíblia não podia ser interpretada de maneira puramente
literal. Quando lemos uma poesia, não interpretamos as palavras da poesia literalmente,
mas ainda hoje existe esse problema, de uma interpretação fundamentalista da
Bíblia. Existe ainda a dificuldade em percebermos que não é assim que a Bíblia tem que
ser entendida, de forma literal. O que é afirmado deve ser interpretado segundo o contexto,
a forma em que é dito, do mito que é usado.

A primeira relação entre teologia e ciência que pode ser vislumbrada é essa relação
de conflito. Uma reação contra isso poderia ser a relação de separação completa, em
que não há nada a dizer uma a outra. E uma terceira forma de relação poderia ser o esforço
de concordismo, que interpreta os seis dias da Criação como seis etapas. Houve
no passado alguns esforços nesse sentido, mas não parecem realmente levar a nada. 

De
qualquer maneira, esse esforço não entende qual é o significado das palavras da Bíblia.
O livro de Gênesis quer ensinar que Deus é criador do mundo, que Deus, sendo inteligente,
bom e poderoso, estabeleceu este mundo por livre vontade. O relato original da
criação do Oriente Médio daquela época, sobre o qual se baseou o relato de Gênesis,
com mudanças, continha uma luta terrível entre forças, com matanças, em que o Bem e
o Mal estavam quase equilibrados, de modo que a vitória do Bem na criação teria sido
por pouco. Enquanto isso, o relato do Gênesis coloca Deus como um Deus poderoso
que cria o mundo, cria o universo por urna palavra. Deus cria com uma facilidade, e 19
depois Deus vê que é bom. Deus vai criando um mundo ordenado, um mundo em que
há um crescente grau de complexidade, e, finalmente, Deus cria o homem e a mulher, e
Deus vê que é muito bom.

São esses alguns aspectos do relato da criação, do que a Bíblia está querendo ensinar:
que Deus é criador, que Ele age livremente, com poder, que o que Ele faz é bom,
que Ele cria por amor. A teologia crista afirma Isso, que Deus é criador do universo. Diz
que Deus, criou o mundo do nada, não do vazio quântico, mal do nada, absolutamente
nada, não necessariamente no tempo, o que é interessante, porque a nossa fé na criação
por Deus não significa que teve que haver um momento em que Deus criou o universo,
antes do qual não havia nada. Segundo a reflexão cristã tradicional sobre a criação existem
três aspectos da criação. Primeiro, seria a criação que cria o ser do nada. Mas isso
não é uma coisa pontual, que não precisa continuar. Segundo, é a conservação e existência.
Os seres criados são contingentes (essa é a palavra filosófica usada, no sentido
que não tem em si a razão adequada de seu ser). Então, sem a continua ação de Deus
para manter as coisas na existência, elas simplesmente parariam de existir. E o terceiro
aspecto é a chamada concorrência. que é a ação. Porque as coisas, para agirem, precisam
da ação de Deus. Hoje, como a percepção de que energia e matéria são formas aparentemente diferentes da mesma realidade, poderíamos colocar juntos esses dois aspectos de conservação e concorrência, existência e a ação.

É interessante ver o que pode ser uma conseqüência dessa doutrina da criação, por
que esse é um exemplo de como a fé cristã influiu nas origens da ciência. Não é completamente aleatório o fato de que a ciência moderna tenha começado numa civilização
cristã, não no Oriente ou em outros lugares. E a doutrina da criação, por um criador inteligente
e livre leva a entender a natureza do universo, e a natureza é o universo, como
algo racional ordenado, algo que é compreensível. Mas, exatamente pela liberdade de
Deus em criar o universo, não podemos analisar qual a estrutura da natureza simplesmente,
a priori pensando pela cabeça, exatamente porque o universo que Deus criou
livremente, escolhendo o universo a criar. Temos que examinar e fazer experiências
para entender quais são as leis da natureza. Esta questão de acreditar numa ordem do
universo, que obedeceria a uma ordem racional, que é no fundo compreensível, é fundamental
para as pessoas começarem a tentar a entender o universo. E. finalmente, o
fato de que Deus livremente criou o universo significa que não é a priori que vamos 20
poder criar uma teoria científica, mas sim através da experiência. A ciência tem que ser
empírica. Existem outras dimensões mais profundas da criação. Como Deus criou o ser
humano livre, como acreditamos que somos livres, que somos responsáveis, e por isso
existe a possibilidade da ética? é multo interessante como Deus que o fundo da nossa
existência segundo a visão cristã, segundo a visão teísta, pode comunicar o livre arbítrio
às criaturas. Isso é um problema, um paradoxo, difícil de entender, um mistério que podemos
sentir e examinar ao longo de muito tempo.

Gostaria de terminar dizendo que o Deus cristão não é o Deus teísta da época do
iluminismo, no século XVIII, um Deus que é como um grande relojoeiro, que fez o relógio,
deu corda e depois se aposentou. Não é esta a visão cristã, e é interessante perguntar
como é que Deus, que é o autor da natureza, pode constantemente intervir na
natureza, sem propriamente violentar a natureza que Ele criou? Gostaria de sugerir que
talvez a teoria quântica ofereça uma brecha para uma continua intervenção de Deus no
universo, que seria parte de sua criação. Continua respeitando as leis da natureza, mas,
ao mesmo tempo, tendo influência. Evidentemente, há uma outra dimensão, que é a
dimensão espiritual: ação de Deus se comunicando ao ser humano na profundidade de
sua consciência, mas Isso será discutido quando houver o debate a respeito de Matéria e
Espírito, Mente e Corpo.

ÉTICA E MEIO AMBIENTE NAS ORIGENS DA CIÊNCIA ATUAL
Roberto Cintra Martins
Pe. Josafá C. de Siqueira, SJ
Roberto Cintra Martins

Eu queria iniciar dizendo que eu não sou um especialista na área de meio ambiente,
então, talvez a minha contribuição possa ser mais dirigida para questões éticas e científicas
do que propriamente para a questão ambiental. Mas, de qualquer maneira, acredito
que não é necessário ser um especialista na área de meio ambiente para verificar,
para perceber que nós vivemos hoje dentro de uma profunda e complexa crise ecológica.
Esse é o primeiro ponto que eu desejo tomar para iniciar então o nosso diálogo.
Indícios dessa crise ecológica não faltam, vocês devem conhecer bem. Uma coisa
bem imediata, que temas sentido nos últimos tempos, são as mudanças climáticas. Nem
21
vou me referir ao dia de hoje, um dia frio, chuvoso, no início de primavera, vou me referir
a esse "inverno" que tivemos, não só aqui no Rio de Janeiro, mas também em Brasília,
em Campinas, em Petrópolis, com falta de água, e isto sem mencionar outras regiões
do globo com catástrofes climáticas, inclusive com vítimas humanas etc. Eu posso
mencionar então esse primeiro exemplo do que eu chamaria um contexto de crise ecológica.

Um outro problema muito sério, bastante comentado e conhecido, é a progressiva
destruição da camada de ozônio, com repercussões que podem chegar a ameaçar determinadas formas de vida na terra e ameaçar também grandes contingentes populacionais.
Ou seja, esta mudança tão rápida das condições ambientais tem tido impacto na sobrevivência de povos inteiros, implicando inclusive, ou forçando, migrações colossais no
mundo, ligadas a problemas de pobreza, problemas políticos, guerras etc., mas também
a problemas ambientais.

De modo que eu não preciso me deter muito nessa serie de exemplos. Podia citar
outros. Mas eu queria levantar, de início, essa consciência de que nós estamos realmente
vivendo um período em que o meio ambiente, de certa forma, nos mostra que há uma
profunda crise percorrendo, digamos assim, o mundo e o tempo em que nós vivemos.
A partir daí, o que talvez seja um aspecto, digamos, positivo, apesar de toda essa
dificuldade, a que muitos estão despertando, pelo menos, para e necessidade de um referencial normativo, que possa controlar esse processo. Ou talvez, melhor dizendo, controlar,
quem sabe, aqueles principais responsáveis pelo inicio e pelo desenrolar desse
processo que vai adquirindo uma fisionomia de catástrofe.

Estou falando agora do surgimento de preocupações em se criar códigos e leis, inclusive
estruturas que policiem, que controlem determinadas agressões intoleráveis ao
meio ambiente. Isso, sem dúvida nenhuma, a importante, isso deve ser construído nas
diferentes sociedades. Há algumas sociedades, alguns países que estão mais avançados
nessa área, outros menos. Mas eu gostaria de levantar a questão se isso em si é suficiente,
se nós devemos, digamos assim, nos contentar em elevar uma estrutura jurídica, uma
estrutura legal, um sistema punitivo para evitar o avanço desse processo catastrófico de
agressão à natureza. Seria isso o suficiente? Seria isso o todo desejável? Ou nós, agora
lembrando do aspecto ético da nossa discussão, deveríamos também, alem de leis exte22
riores, falar e pensar um pouco a respeito de imperativos éticos interiores a cada um de
nós? De certa forma, nós sentimos, por experiência própria, que leis não são suficientes.
Talvez o nosso país não esteja, do ponto de vista estritamente de letra lei, na pior situação.
Mas do ponto de vista da prática, nos dá a impressão de que para cada lei existe
uma forma de burlar. No caso que estou discutindo, chega a ser perverso, porque às vezes
nós ficamos preocupados com uma certa impotência do sistema jurídico de conter
essas tendências, se elas morem, residem no coração de pessoas.

Então, agora estou avançando um pouco mais, talvez, no campo da ética, falando
em imperativas éticos interiores a cada um de nós. A consciência que podemos ganhar,
num certo nível de solidariedade, num certo nível de compromisso com esta natureza
que nos envolve e da qual somos filhos.

Quanto a esses fundamentos, quanto a esses imperativos éticos interiores, eu creio
que a uma discussão bastante complexa. Antes de conversar hoje com vocês, conversei
com o Padre Josafá e nós dois estamos em consenso quanto à complexidade de todo
esse tema. Por exemplo, uma questão bastante complexa que eu acho que posso até
mencionar sem trazer resposta a quanto aos imperativos éticos que eu possa construir
dentro de mim e que me ajudem a respeitar o meio natural, o ambiente onde eu vivo; se
é possível eu construir esses imperativos independente de qualquer fundamento religioso.
Esta a uma questão bastante complexa, mas acho que é uma questão muito pertinente,
inclusive aqui, neste ambiente rico de discussão do Centro Loyola. Eu poderia até
deixar essa discussão em aberto como, aliás, deixarei outras questões em aberta para o
final do debate.

De qualquer forma, eu queria lembrar, dentro dessa idéia de nós cultivarmos, dentro
de nós mesmos, um determinado código de ética, digamos assim, voluntário, espontâneo,
uma certa vontade de ter conduta ética, eu gostaria de lembrar uma certa imagem
que fala do meio ambiente também, mas não necessariamente do meio ambiente exterior
a nós, de flora e fauna etc. Fala de um meio ambiente que a um meio ambiente interior
a nós. Nós poderíamos olhar para e nossa alma, digamos assim, como um meio ambiente,
e cuidar dessa alma como se cuida de um jardim. Então, é uma figura que naturalmente
não é minha, uma figura que nos faz lembrar, na verdade, de grandes mestres
do passado. Isto está na mensagem do próprio Cristo, diretamente: salvar a nossa alma
no sentido também de cuidar dela. E está, sem dúvida nenhuma, em Sócrates também. É
23
uma imagem que vem de Sócrates. Sócrates priorizou muito esse cuidado com o nosso
mundo interior. De tal modo que a ética socrática-platônica, quando se refere ao cuidado
com e alma e a ética cristã, quando se refere ao mesmo tema, não poderiam ser mais
ecológicas, quando alertam para o âmago de uma questão, questão essa que reside na
nossa alma. E, se nós não atentarmos, se não enfrentarmos esta questão, é muito duvidoso
se leis exteriores de conduta poderão nos levar a um mundo mais amigável com
relação ao meio ambiente. Eu me perguntaria até, se, olhando para o meio ambiente
exterior a nós, olhando pare a cidade do Rio de Janeiro, olhando para a Mata Atlântica,
por exemplo, esse meio ambiente nos parece doente, que tal olharmos para nós mesmos
e perguntarmos se o Homem - o homem e a mulher - não estaria doente. Se essas grandes
catástrofes que nós assistimos no meio ambiente exterior, por exemplo, esses distúrbios
climáticos etc., não são reflexos de uma certa doença interior a nós, uma doença
da alma, no sentido do apego, do egoísmo, da falta de solidariedade. Se essas coisas
todas não estariam profundamente ligadas.

Terminando essa parte inicial da minha argumentação, eu gostaria de tecer aqui
um cenário que eu acho belíssimo, da autoria de Garcia Rúbio, inspirado diretamente no
Antigo Testamento, que é um quadro que nos reporta a quatro grandes relações. Uma
delas é essa relação, digamos, com o mundo natural, a qual eu já comentei. Mas ele considera isso indissociável de três outras grandes relações que constituiriam, junto com a
primeira, o caminho da salvação, no sentido bíblico, que são as seguintes relações: a
minha relação comigo mesmo, sem máscaras, com o máximo de sinceridade possível,
minha relação com os outros homens e mulheres, da mesma forma, com sinceridade e
honestidade, e a minha relação com Deus. Quer dizer, são quatro coisas indissociáveis e
que se deveria buscar com o máximo de honestidade possível e com um certo sentimento,
que é muito importante, de compromisso e de gratidão.

Eu acho que Garcia Rúbio aponta aqui um saber milenar que a extremamente atual.
Muito atual inclusive para a questão ambiental: cuidar dessas quatro relações. E confiar
que vale a pena cuidar destas quatro relações todas juntas ao mesmo tempo.
Com isso, eu encerro a primeira parte daquilo que eu pretendia apresentar a vocês,
tudo isso apresentado de uma forma que ofereça questões instigantes para o debate posterior.

Aí, eu falaria um pouco a respeito dos impactos da ciência atual, eu poderia chamar
também de desafios da ciência atual, porque mesmo diante de uma orientação tão
24
bela como esta que provém do Antigo Testamento, que nos foi passada por Garcia Rúbio,
mesmo diante disso, nós naturalmente encontramos muitas dificuldades, pelas nossas
próprias limitações e também pelo tipo especial, digamos assim, de cultura, de fisionomia
cultural do mundo onde nós vivemos hoje. E dentro desse mundo, o mundo atual,
talvez não seja exagero caracterizá-lo, em parte considerável, como portador de uma
cultura técnico-científica; uma cultura que cultiva e ao mesmo tempo recebe os impacto,
de uma ciência indissociável de uma técnica transformadora do mundo. Então, eu vou
colocar alguns desses desafios que me impactam mais, sobre os quais eu tenha trabalhado
em pesquisas.

O primeiro, eu diria, é o caráter dinâmico da própria ciência, uma ciência que,
desde suas origens, tem como um dos seus postulados básicos justamente que ela pode
ser e qualquer momento, vamos dizer assim, atualizada. Qualquer teoria científica pode
ser refutada, uma nova teoria pode surgir, dependendo de evidências experimentais.
Isso, par um lado, é um grande mérito da ciência fundada, digamos, em torno do século
XVI e XVII, por outro lado traz um caráter de instabilidade na visão de mundo, na visão
de Homem que nós temos. Isto, quando nós levamos a ciência a sério, não como um
diletantisma, como algo à parte da nossa vida, mas sim como algo a ser levado a serio.
Nesse sentido, se essa ciência, através das suas pesquisas, nos traz teorias que se sucedem
uma à outra, num ritmo rápido, então aquilo que era verdade na ciência ontem passa
a não ser mais verdade hoje, de certa forme isso comunica uma certa instabilidade
àquilo que nós entendemos por Homem, por mundo, por vida. Então de certo modo, a
nassa visão de mundo hoje em dia é uma visão que vai mudando num ritmo que chega e
me impressionar bastante. Eu fico me perguntando o que isso poderá ter de impacto
sobre a ética, uma vez que a ética nos deve ajudar a ter determinadas normas de conduta
em comunidade e em sociedade, mas por outro lado, a nossa visão de Homem, mundo,
de vida tendem a mudar muito rapidamente em função de impactos, de novidades trazidas
pela ciência, então como a que fica a estabilidade desses padrões éticos aos quais
nós aspiramos?

Resumindo, uma ciência muito dinâmica, que está na base da nossa visão de mundo,
de vida e de Homem, de certa forma impacta a cultura que temos. Numa cultura
sempre impactada e instável, nós ainda temos o dever de construir uma ética, e isso então
não é uma tarefa simples. Esse é o primeiro grande desafio que eu queria colocar.25

O segundo grande desafio seria ligado à potencialização da nossa capacidade de
modificar o mundo atreves do uso da ciência e da técnica. Então, eu não preciso nem me
alongar muito nisso, mas a nossa capacidade de alterar a face da Terra, e, quem sabe,
daqui a um tempo, até alterar o ambiente em outros planetas e satélites também, essa
nossa capacidade de interferir e alterar a configuração da natureza, está sendo potencializada de uma forma nunca viste, pelos novos resultados da ciência e da técnica. Isso
traz então uma série de repercussões que influenciam, impactam diretamente e questão
da ética, tornam a construção de uma ética uma coisa cada vez mais complexa para nós.
 
Se nós pensarmos, por exemplo, que muitas das nossas ações hoje, principalmente para
quem trabalha na área da ciência, da técnica, da engenharia e da medicina, muitas de
nossas ações terão repercussões, terão impactos, e que não é trivial para nós prevermos
aonde, quando e para quem esses impactos vão acontecer. Um exemplo claro disso é a
bastante comentada questão do lixo radioativo, o material radioativo que a depositado
em locais específicos e que tem um tempo de vida. Ele poderá influenciar o meio ambiente
e poderá até ameaçar a vida, durante milhares de anos. Uma série de outros exemplos
poderiam ser mencionados, sempre nesse sentido, de que coisas que nós construímos
hoje na área da engenharia, em outras áreas da técnica, elas poderão influenciar,
para mal ou para bem, a vida de gerações futuras, o que b uma coisa que no passado,
não me parece que tenha tido esse alcance tão grande. No passado, de certa forma, a
grande mensagem evangélica do amor ao próximo talvez não precisasse levar em conta
que esse próximo é uma pessoa que vai viver daqui e mil anos, por exemplo, e que poderá
sofrer o impacto de uma ação que esta sociedade está engendrando agora. Por exemplo,
depositar lixos radioativos. Então, quem é esse próximo? De certa forma a um
irmão meu, na visão Cristã, mas que vai viver daqui a mil anos, por exemplo. Ou, lembrando
de outra técnica, a técnica de telecomunicações e informática. Hoje quem trabalha
com redes de computadores, como a Internet, por exemplo, tem como seu próximo
aquele que pode impactar com uma mensagem, a quem eu posso magoar, ou e quem eu
posso levar esperança, carinho, etc. Pode estar no Japão, pode estar no Canadá, enfim,
quem é esse próximo?

Isso são exemplos que, de certa forma, mostram então dois aspectos que eu acho
muito importantes, ainda falando dos desafios e impactos da ciência. Um aspecto é a
característica de ambigüidade dessa-ciência. Nós viemos aqui hoje para falar sobre ciência
e ética. Se nós olhamos para e ciência, e nos preocupamos com a ética, nós vemos 26
uma característica de ambigüidade, como se essa ciência que nós cultivamos, que de
certa forma nós amamos, à qual dedicamos nossa vida profissional, essa ciência tem
parte com o bem e tem parte com o mal. Falando mesmo da tecnologia nuclear, nós sabemos
que há aplicações, por exemplo, nessa área, para a cura do câncer, há aplicações
também para usinas nucleares geradoras de energia de uma forma não poluente, e praticamente inesgotável, e por outro lado, sem dúvida, há aplicações nessa mesma área de
tecnologia nuclear, na construção de bombas atômicas. Então, nós vemos aí essa ambigüidade.

Na verdade, são provenientes do mesmo esforço de pesquisa, da mesma visão
de um certo campo da ciência, que pode caminhar pare o bem ou pare o mal. Eu citaria
exemplos também nas áreas de alimentação e saúde, por exemplo, desenvolvimentos na
farmácia, na biotecnologia, novas terapias na área medica e por outro lado, a produção,
por exemplo, de armas químicas e biológicas. Eu teria, então, uma série de exemplos,
não vou tomar o tempo de vocês. Queria deixar apenas bem marcada essa característica
de ambigüidade da ciência, para o bem ou para o mal, que a algo que nos deixa, e cada
um de nós, muita conflitado.
Por outro lado, também gostaria de levantar uma outra questão muito importante.
 
 Quando eu falei da idéia do amor ao próximo, não foi um exemplo ao acaso que eu coloquei,
escolhi pela tremenda importância que ele tem na mensagem evangélica e também
porque, para nós que apreciamos essa mensagem, para que nós que cultivamos e
proclamamos essa mensagem, mas vivemos no mundo de hoje, me parece que nós teríamos
o dever de resgatar essa mensagem, procurando colocá-la no mundo atual. No
mundo atual onde aquele que é o próximo é algo que de certa forma adquiriu uma abrangência muito maior. Pode ser o meu irmão que vai viver daqui a mil anos. Então
nós estamos diante de outro desafio. E esse desafio, no meu ponto de vista, tem muita
relação com a ciência atual, que B o desafio de vivenciar e atualizar a tradição da mensagem
do evangelho, em vista desses grandes impactos da ciência.

Muito bem, procurando sempre ser breve e também colocando mais algumas questões
para nós conversarmos, quem sabe, depois, dependendo do interesse de vocês. Nós
estamos convergindo, então, para uma visão do bem e do mal na ciência e que coloca
muitos de nós diante de um dilema que é a dificuldade e ao mesmo tempo a missão que
nós temos de sermos religiosos e cientistas, a mesma pessoa e ao mesmo tempo .27

Por um lado, isso nos leva a uma tarefa muito complexa que é a tarefa do discernimento,
na prática como pesquisador, como professor, como cientista; discernir uma
ciência, por um lado, vazia de ética, de uma outra ciência, que é comprometida com a
ética. Uma ciência que se entende como filosofia e que tem um compromisso ético de
solidariedade, ou até mesmo, eu diria, uma ciência que aspirasse a se inserir, a se comprometer dentro daquelas quatro grandes relações. Uma ciência que a ligada a mim
mesmo, ligada ao meu próximo, ligada ao meio ambiente e referenciada a Deus.
Se vocês me permitirem der um testemunho, enquanto cientista, me parece que na
minha vida de cientista, talvez este seja o maior desafio de todos. Até porque não é tão
simples apenas distinguir: olha, aqui esta a ciência para o bem, aqui está a ciência pare o
mal. A ciência, desde as suas origens, porta aquela ambigüidade que já mencionei, e o
que, às vezes, agrava um pouco mais, é que alem da ambigüidade, muitas vezes, há um
certo esquecimento dessas questões dentro do meio cientifico. Não digo sempre, mas
muitas vezes há um esquecimento sob o argumento de uma certa neutralidade ética da
ciência, presente em tendências como o pragmatismo, onde o que interessa é o resultado,
e não discutir essas questões de fundo, questões éticas.

Bem, então, se vocês me permitem dar esse testemunho dessa dificuldade que eu
mesmo sinto quando me defronto quotidianamente com essa ciência ambígua para o
bem e para o mal, eu diria que o cientista, diante de cada projeto de pesquisa, diante de
cada convênio, diante de cada curso que ele vai ministrar para os seus alunos, diante de
cada aluno que ele vai orientar, ele treme, não é? Ele treme. Treme porque está diante
desta questão fundamental, e questão do discernimento entre o bem e o mal. E quando
digo que ele treme, eu queria me reportar, ao ledo dos nossas colegas sacerdotes, à súplica
dos exercícios espirituais de Santo Inácio. Lembro muita dessa súplica, pedindo a
Deus:

 "Dai-me um olho bom, um olho bom capaz de ver e discernir". Eu creio que Santo
Inácio pensava, talvez, em todos nós quando ele resolveu nos dar esta orientação:
"Peçam isso. Peçam para ter um olho bom, capaz de ver e discernir". Até porque isto
não é fácil.

Dentro dessa perspectiva, como vocês devem estar notando, eu não tenho respostas,
soluções prontas. Eu talvez esteja até mais trazendo um testemunho, um testemunho
de um cientista que vive esse dilema e de certa forma caracterizando que esse dilema
está presente nessa vida, que se pretende ao mesmo tempo religiosa e científica. Eu nem sequer restringiria essa dor, ou essa dificuldade ao cristão. No mínimo, eu diria: o homem
religioso, que exerce a prática científica nos dias de hoje, provavelmente sente este
tipo de dificuldade.

Felizmente, nós temos recursos que dentro da ciência podem nos ajudar muito e
temos recursos que transcendem a própria ciência, como por exemplo, a oração. Eu citei
no caso, essa oração de Santo Inácio que me parece extremamente pertinente a esse caso,
a esse tipo de dilema.

Por outro lado, assim como eu manifesto aqui a minha gratidão a um mestre como
Santo Inácio, eu gostaria de agradecer e um outro grande mestre, que de certa forma me
apontou melhor um caminho mais feliz, mais alegre nessa jornada que também a espinhosa,
a jornada do cristão e cientista. Estou me referindo a Teilhard de Chardin. Ao lêlo,
me passou muito claramente uma idéia muito forte de compromisso, de dúvida e de
gratidão, inclusive, também, diante do mundo natural. Acima de tudo, diante de Deus,
mas também sem excluir uma gratidão, um compromisso e dívida em relação ao mundo
natural.

Teilhard de Chardin me ajudou a me sentir mais responsável por esse mundo
natural, me levando idéias como cultivar em mim, com as minhas limitações, um certo
sentimento de austeridade. Pois algo que nos impressiona muito hoje é como o consumismo
da sociedade atual tem sido lesivo, tem sido daninho ao meio ambiente. Teilhard
de Chardin me passou essas idéias, naquele seu livro memorável, O Fenômeno Humano,
onde ele tece considerações sobre as quatro grandes gêneses: a cosmogênese, a biogênese, a antropogênese e por último a maior e a definitiva gênese, que é a maior e definitiva dádiva, que seria a cristogênese.

Através dessas considerações, Teilhard de Chardin, que foi um cientista e um religioso,
me mostrou claramente a vida de cientista como uma aventura com responsabilidade,
uma grande jornada e uma busca participativa de um conhecimento integral. Um
conhecimento integral no sentido daquelas quatro relações: com Deus, comigo mesmo,
com o próximo e com o mundo natural, numa perspectiva de busca de salvação como
um projeto de vida humana integral, ou seja, estar no mundo em relação com essas quatro
grandes relações e dando um testemunho de alegria e gratidão, dentro de um misto
de dever, solidariedade, e repetindo, alegria diante da vida. 29

Eu não sei se vocês conhecem este livro. Ele vai descrevendo a história natural,
você praticamente sente a Terra como um organismo vivo, que cresce, que evolui. Você
sente o milagre da criação de condições extremamente favoráveis, num equilíbrio muito
delicado, para o surgimento da vida e depois o surgimento do Homem, de uma forma
que exerce um impacto muito grande no nosso intelecto, pela relativa rapidez como que
isso aconteceu no universo. É muito interessante mencionar aqui as últimas teorias a
respeito da origem da vida e do tempo que decorreu desde o Big Bang até hoje. 

Atualmente,
está se considerando uma estimativa de dez bilhões de anos desde o Big Bang.
Dez bilhões de anos, dos quais mais de três bilhões, mais de trinta por cento, digamos
assim, cobertos pela vida, pelo menos neste planeta, no planeta Terra. Quer dizer, e algo
que dá o que pensar. Durante mais de trinta por cento da existência do universo, tal como
os cientistas concebem, esse universo já presenciava a existência de vida. E a surpreendente
meditar sobre isso, sobre as condições particularíssimas de equilíbrio ambiental,
de temperatura, pressão, umidade, de componentes químicos, etc. que se conjugaram
para propiciar o surgimento da vida. Alguns ainda insistem em dizer que se conjugaram
por acaso, alguns ainda insistem nessa teoria, mas de qualquer maneire é surpreendente
todo esse equilíbrio tão delicado que possibilitou o surgimento e a evolução da
vida até a chegada de consciência.

E isso nos leva a pensar muito sobre o nosso dever, sobre a nossa responsabilidade
de preservar essas condições. De certa forma então, esse compromisso em relação ao
meio ambiente, esse respeito ao meio ambiente, fica cada vez mais ligado a essa gratidão
por essa grande mãe que nos gerou, a mãe natureza. Compromisso e gratidão quase
indissociáveis, que talvez nos levem a fortalecer dentro de cada um de nós aquele sentimento
inicial de que eu falei, de imperativo ético interior.

De modo que eu queria encerrar mencionando essa minha gratidão a esses mestres
e trazendo a vocês uma sugestão. Talvez hoje não seja o dia apropriado, dia frio e de
chuva. Mas, de certa forma, essa nossa relação com o mundo natural é uma coisa que eu
sugeriria que, na prática, pudéssemos cultivar um pouco mais intensamente, olhando
por exemplo para o Centro Loyola, cercado aqui de árvores, jaqueiras, cursos de água...
Isso na linguagem de Teilhard de Chardin lembra palavras belíssimas como: nós estamos
envolvidos por uma atmosfera, uma hidrosfera, uma biosfera e depois do surgimento
dos seres humanos, uma noosfera - a esfera do espírito, da consciência. De modo que,
de certa forma, nós estamos aqui num pedacinho remanescente de floresta, da Mata Atlântica, que é a floresta de maior biodiversidade por metro quadrado, em todo o planeta,
e uma das mais agredidas atualmente. 

É aqui que nós vivemos. Seria interessante, nós, aos poucos, olharmos para nós mesmos como um pedaço disso tudo. Pedaço do Rio de Janeiro. Eu queria, mesmo sem ser carioca, lembrar as palavras do poeta: "Um Rio
de sol, de céu e mar". Lembrar umas certas "Águas de Março", que estão vindo agora
em setembro, não exatamente fechando o verão, mas fechando um inverno que parecia
verão. Eu gostaria de motivar vocês a pensar nesse Rio de Janeiro tão machucado, tão
ferido, que muitas vetes nos deixa tão deprimidos, mas quem sabe pensar nele, como
nós pensamos numa namorada que foi ferida, que foi agredida, maltratada, mas que nós
continuamos amando, às vezes amando até mais. Pensar neste Rio de Janeiro em busca
daquelas quatro grandes relações. Nós nessa comunidade, irmanados com essa mata
imensa que vai do Ceará ao Rio Grande do Sul, que é a Mata Atlântica, irmanados nessa
mata imensa, em busca dessa relação com Deus, conosco mesmos, com o nosso próximo
e com o meio natural.

Aquela ciência que eu critiquei tanto, pois tem parte com o bem e parte com o
mal, nós também continuamos amando. Essa ciência é para nós como uma grande amiga,
uma amiga querida. Mas, assim como nós mesmos, essa amiga chamada ciência não
é infalível. Deve estar subordinada ao sagrado, a Deus. Por isso mesmo, de vez em
quando, nós polemizamos com essa amiga querida chamada ciência.

Padre Josafá

Diante do pluriverso de éticas, oriundas dos diferentes campos do saber científico,
aparece a preocupação de uma possível ética ambiental, com um caráter bastante diferenciativo,uma vez que esta possui uma pretensão de sintetizar os horizontes das diferentes ciências.

 A questão ambiental não pode hoje ser tratada apenas dentro dos limites
das ciências da natureza, mas, ao contrário, penetra nos domínios do saber tecnológico,
biológico, humano e social. Dado a esta complexidade é que se coloca a questão a partir
de onde se pretende falar de uma ética ambiental: dentro de determinados campos científicos
específicos ou dentro de um horizonte interdisciplinar? Na história da relação
homem-natureza surgiram várias éticas com diferentes matizes normativas, sobretudo
na cultura ocidental. Basta penetrar na sabedoria grega de Sócrates até Aristóteles para
perceber a diversidade ética na abordagem de natureza.31
 
Numa recente entreviste na Revista Ecologia e Desenvolvimento, um filósofo da
UFRJ, Emmanuel Carneiro Leão, afirma que e nossa cultura hoje está vivendo uma situação
mais ou menos semelhante à antiga cultura grega. Ou seja, convivendo com um
período de perplexidade e exaustão, tentando equilibrar a ética e a retórica. Queremos
criar e estabelecer princípios éticos e, ao mesmo tempo, retoricamente queremos convencer
que esses princípios são bons. Neste esforço tremendo entre ética e retórica, é
que pretendo elencar três pontos desta questão da ética ambiental.
O primeiro se refere ao horizonte sócio-ambiental.

 Falar de uma ética do meio
ambiente é situá-la num contexto social, pois a relação homem-natureza não pode ser
tratada dentro de um intimismo personalista, mas, ao contrário, num contexto sóciocultural
onde as múltiplas relações acontecem e se complementam. O desafio está em
pensar uma ética ambiental dentro dos paradoxos da sociedade, onde os valores e contravalores convivem sob um mesmo teto. Neste contexto não se pode negar que um dos
valores mais positivos é o reconhecimento da natureza como "diferença", sem se contrapor
à sociedade. Isto significa reconhecer que todas as formas de vida que interagem
no planeta são importantes, devendo ser integradas na perspectiva histórica da sociedade,
onde a vida humana, vegetal e animal, deve ser tratada dentro de uma escala de reconhecimento sem discriminação ou polarização excessiva de uma em detrimento de
outra. 

Aos poucos estamos superando a esquizofrenia entre o humano e o natural, ou o
social e o ambiental. Outro reconhecimento que a sociedade moderna realiza é a dimensão
teleológica da natureza, ou seja, e percepção da importância da teleologia da natureza
na evolução e coevolução sócio-ambiental e o sentido futuro que podemos chegar,
homem e natureza, mesmo sabendo que não somos a radicalidade última de sentido pleno
e absoluto da história humana e ambiental. Isto compete ao Transcendente, a Deus.
Ao lado destes valores positivos, convivemos também com os contravalores que ainda
se encontram enraizados na sociedade como, por exemplo, a concepção utilitarista da
natureza, do meio ambiente e a concepção mecanicista, oriunda do cartesianismo. 

Certamente um dos elementos que contribuem para a vigência ainda destes contravalores é
a falta de percepção da manifestação da vida ao nosso redor e a incapacidade de correlacionar os aspectos interativos das diferentes formas ou expressões de vidas que nos
circundam. Esta incapacidade de percepção muitas vezes faz com que nós tenhamos
uma visão fragmentada entre o biológico e o social. 

Todo xiismo ecológico-social decorre desta visão fragmentada. É muito comum ouvir grupos humanas que, ao defender
espécies animais ou vegetais ameaçadas de extinção, se contrapõem à sociedade. Ou, ao
contrário, na defesa da pessoa humana, se contrapõem à defesa dos animais e vegetais.
Este tipo de visão acaba produzindo uma ética dualista e conflitiva. Se queremos construir
uma ética sócio-ambiental, é preciso mudar esta nossa maneira de pensar a realidade
dualisticamente. Não se trata de contrapor os diferentes valores que a própria sociedade
reconhece como necessários e fundamentais, mas afirmá-los com uma consciência
integradora da realidade, onde o desequilíbrio de uma das partes pode afetar o todo.

 Em
outras palavras, não se trata de defender o humano em contraposição ao animal ou vegetal
ou vice-versa, mas defender a todos, pois ambos são criaturas do mesmo Pai Celeste.
Muitos desequilíbrios na cadeia ecológica de vida animal ou vegetal, podem gerar sérias
conseqüências para a pessoa humana ou a sociedade. Basta ver o exemplo de muitas
doenças tropicais que hoje afetam profundamente a vida de milhares de pessoas humanas,
sobretudo os pobres, cujas raízes advém dos desequilíbrios ambienteis ou alterações
significativas na cadeia biológica. Assim, na construção de uma ética sócioambiental,
é preciso que esta mentalidade integradora da realidade seja afirmada, sem
contraposição entre o cosmológico e o antropolígico. Na carta aos Romanos, capitulo 8,
São Paulo nos lembra que ambos, nós e a criação, sofremos e gememos com dores de
parto, aguardando a gloriosa libertação. 

Finalmente podemos dizer que uma ética sócioambiental
só será eficaz se houver princípios normativos que diminuem as diferenças
existentes entre as expressões sociais manifestativas em defesa do meio ambiente como
por exemplo as passeatas, camisetas, vídeos, etc., e as práticas contraditórias como a
não reciclagem do lixo de sua casa, de sua rua, o uso excessivo de detergentes, o uso
freqüente de aerosois, para não dizer muitas outras coisas que são contraditórias com a
teoria em defesa do meio ambiente.

Quanto ao segundo ponto, trata-se do horizonte religioso-ambiental, onde as dimensões
teológicas e espirituais apresentam contribuições significativas para uma ética
do meio ambiente. Não podemos negar que a dimensão religiosa, seja ela oriunda de
concepção oriental ou ocidental, tem uma preocupação básica com a questão da integração
Deus-homem-naturera. Embora com alguns pontos divergentes, estas concepções
possuem muitos elementos em comum, sobretudo no que se refere à dimensão do Sentido
Absoluto que ama, manifesta e plenifica toda criação. Pela profundidade da temática,
abordarei brevemente apenas alguns pontos referentes ao cristianismo, logicamente associado à tradição judaica. Aproveitando a feliz abordagem do teólogo Garcia Rúbio, de
PUC-Rio, no seu artigo intitulado "Crise Ambiental e Projeto Bíblico de Humanização
Integral", na tradição bíblica vamos encontrar duas visões na relação Deus-homemnatureza.
Uma proclamativa e outra manifestativa. A primeira relacionada com a tradição
pentatêutica e profética e a segunda com a tradição dos salmos e sapienciais. Creio
que a evolução hoje da questão ambiental tende a reportar mais elementos éticos da segunda
tradição, sobretudo porque nela aparecem de maneira mais explicita e holística as
relações de Deus com os homens e a natureza. 

Ao falar de Deus, fala ao mesmo tempo do homem e da natureza. Quando o salmo 91 fala do "homem justo que florescerá como a palmeira do Líbano e ainda na sua velhice dará frutos cheios de seiva e verdejante", está falando da justiça de Deus, da ação da graça de Deus na vida do homem, usando uma linguagem simbólica e significativa da natureza. Para mim isto é um exemplo que a visão manifestativa nos apresenta, integrando as dimensões teológicas, antropológicas e cosmológicas. Certamente esta visão nos mostra valores éticos que hoje são mais condizentes com a mentalidade contemporânea, que procura superar os dualismos e as esquizofrenias entre a transcendência e a imanência ou entre o sobrenatural e natural. 

Outro aspecto que historicamente teria de ser superado, sobretudo porque não ajuda numa ética de relação integradora, é a errônea interpretação da passagem do Livro do Gênesis
onde Deus coloca o domínio da criação nas mãos do Homem. Isto tem gerado falsas
exegeses, sobretudo de pessoas que não conhecem a Bíblia, atribuindo os desastres ecológicos atuais ao cristianismo e judaísmo, que difundirem na mentalidade ocidental esta
concepção. Vários livros que abordam a questão ética do meio ambiente acabam explicitando esta falsa idéia. 

O domínio que o Criador nos colocou nas mãos não é para destruir,
devastar e alterar a ordem da Criação, mas, ao contrário, para vigiar, controlar,
preservar e evitar riscos e desvios na relação do homem com a natureza. Os desastres
ecológicas, provocados pelo homem, revelam exatamente as conseqüências de posições
anti-éticas em relação a Deus e a sociedade, ou a perde de valores básicos que acabam
desumanizando o homem e o distanciando de Deus e da natureza. Outro aspecto importante
neste horizonte religioso-ambiental é o ressurgimento de riquezas espirituais do
cristianismo, ou seja, o retorno das concepções teológicas dos mestre espirituais que
dentro da Igreja Católica viveram e tematizaram de maneira admirével esta relação de
Deus com a natureza. Cito apenas dois: Francisco de Assis e Inácio de Loyola. O primeiro
com laços de irmandade entre todas as coisas na natureza, irmão sol, irmã lua,
irmã planta, vendo todas as coisas criadas procedentes de um mesmo Pai (Deus). A natureza
como revelação deste Amor Divino ou como manifestação da Bondade de Deus.34
 
O segundo olha, medita e contempla e natureza como habitat de Deus ou como mediação
do Amor de Deus. Inácio de Loyola tematiza de maneira admirável, nos Exercícios
Espirituais, uma contemplação para alcançar amor onde a ação da graça de Deus no
coração do homem faz com que ele veja Deus em todas as coisas criadas: nas estrelas,
nas plantas, nos animais, nas fontes... tudo revela e fala de Deus. O interessante destes
mestres espirituais é que ambos estão numa perspectiva de contemplação não passiva da
natureza, mas, ao contrário, de uma contemplação ativa que transforme, compromete e
impulsiona a pessoa humana para uma vivência mais integrada de todas as coisas. Por
serem espiritualidades ativas e transformadores, creio que são perfeitamente atuais às
aspirações de uma ética-ambiental, onde os princípios normativos devem envolver todo
o pluriverso de relações existentes do homem com a natureza. 

Finalmente, não poderíamos
terminar este segundo horizonte religioso-ambiental, sem tecer umas breves palavras
sobre e dimensão transcendente da natureza. São Paulo, na Carte aos Romanos já
nos apresenta uma linda síntese desta dimensão, onde toda a criação aguarda também a
redenção ou libertação. O papa João Paulo II tem insistido na idéia de que a natureza
tem um valor em si-mesma que não é dado simplesmente pela razão ou pela ciência,
mas por Deus. Ela tem uma história geológica muito anterior à história humana. Isto
significa que a natureza tem uma história de sentido que mesmo no plano material precede
em milhões de anos a história humana. Se a história humana teve suas origens em
cerca de dois milhões de anos, e história da natureza apareceu aproximadamente em 600
milhões de anos. É realmente uma distância fenomenal, em termos de escala geológica.
 
Assim podemos imaginar que o Espírito de Deus já pairava e manifestava na natureza
durante estes milhares de anos em que muitas vidas, animais e vegetais, surgiram, evoluíram
e desapareceram da face da Terra. Olhando desta perspectiva podemos pensar
que a natureza tem realmente um valor em-si que não a dado basicamente pelo antropológico, mas pelo teológico. Este fato é importante não apenas como gesto de humildade diante de uma história que é anterior à nossa, mas porque nos reporta a uma dimensão mais transcendente de toda a criação.

 Embora demos hoje o sentido e determinemos muitas coisas em relação à natureza, temos também que reconhecer que não somos nós que daremos o sentido último e absoluto de todas as coisas criadas. Mesmo no plano
cientifico temos que reconhecer nossos limites em relação à natureza. Ainda não a conhecemos em toda sua riqueza, ainda não a estudamos em profundidade, ainda não as
controlamos com todos os recursos científicos e técnológicos que temos, pois basta ver
as enchentes, os terremotos, os vulcões, os furacões etc. 35

O terceiro e último ponto é o horizonte científico-ambiental, onde a construção de
uma ética ambiental deverá levar em conta as duas tendências que atuam na ciência moderna, a saber: a tendência instrumentalista e a tendência finalista. A primeira com um
caráter mais utilitário, como instrumento para obter determinados objetivos, e s segunda
com a finalidade de busca de verdade, sem preocupação de uma dimensão utilitarista.
Estas categorizações foram feitas pelo filósofo jesuíta Pe. Henrique Cláudio de Lime
Vaz. Não se pode pensar em critérios éticos com base unicamente na tendência instrumentalista, pois deixaria de lado a procura da verdade que a uma das dimensões mais
nobres do fazer ciência. Também não podemos pensar eticamente somente dentro de
uma visão finalista, pois e busca da verdade vai exigir, em determinados momentos, em
operacionalização da verdade buscada, à serviço da questão ambiental. 

Cito como exemplo
pessoal o campo da ciência onde trabalho, que é a taxonomia vegetal que tem
por objeto a busca de identidade de cada espécie, sua classificação, sua evolução e seus
padrões de distribuição geográfica. Trata-se de uma ciência pura e não aplicada, ou seja,
uma ciência com tendência mais finalista do que utilitarista. Ao buscar esta inteligibilidade
das diferentes formas de vida, estamos no mesmo tempo relacionando-as com o
transcendente e o imanente de outras mediações humanas e ambientais. Estas mediações
exigem as vezes posicionamentos mais voltados para a dimensão instrumentalista, como
uma forte tendência de reversão social de seus conhecimentos. 

Assim nos defrontamos
com projetos de pesquisas, como por exemplo de recuperação ambiental, onde somos
obrigados a sair um pouco de nossa ciência finalista e mergulhar temporariamente no
campo do saber instrumentalista. Em resumo: não posso deixar de fazer minha ciência
pura, porém, em defesa do meio ambiente, não posso colocar de lado um apelo imediato
de um campo mais aplicado, sobretudo quanto esta aplicação se reverterá num serviço à
sociedade. Finalmente, ainda dentro deste horizonte científico-ambiental, não podemos
ignorar que qualquer ética deverá ser construída a partir das contradições existentes no
próprio seio das ciências modernas que ao mesmo tempo que destrói o meio ambiente é
capaz também de reconstruir e recuperar as alterações provocadas. É um tema polemico
que poderíamos tratar em outro momento, até porque todo impacto da ciência atual tem
repercussões positivas e negativas sobre o meio ambiente, com reflexos éticos e antiéticos.
Fonte:
 http://www.clfc.puc-rio.br/pdf/fc07.pdf

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