quarta-feira, 30 de março de 2011

ESTETICIDADE DO BELO - O belo para a vontade - Evaldo Pauli


 Evaldo Pauli

TRATADO DO BELO. 
CAP. 4-o
ESTETICIDADE DO BELO. 
0764y268.

    (O belo para a vontade)

 
    269. O belo também é estético. Eis o que se oferece mais imediatamente como sendo uma característica peculiar do belo. Com este novo tema passamos a uma área de conhecimentos, que já não pertence à metafísica do belo, mas à sua psicologia.
    
    Tomado o sentimento estético sob a perspectiva psicológica, resulta em uma disciplina a que se dá o nome de Estética psicológica (vd 1965y000), a qual trata da esteticidade em todos os campos, seja do belo, seja da arte.
    
    Aqui, no tratado do belo, ainda que o ponto de vista principal seja a natureza metafísica do belo, a abordagem do seu lado estético visa, não somente complementar o texto, mas ainda destacar o próprio belo enquanto capaz de gerá-lo. Também é pelos seus efeitos, que o belo se faz conhecer.
    
    Divisão. O estudo sistemático da esteticidade do belo se dá em dois momentos didáticos:
    
    - o belo enquanto simplesmente produz sentimento estético (Art. 1-o);
    
    - a preferibilidade estética do belo (Art. 2-o).
      
 
    ART. 1-o DA ESTETICIDADE EM GERAL, DO BELO. 0764y270.
    
    271. O sentimento de agrado que o belo tem a propriedade produzir se costuma denominar estético. Antes que o nome surgisse com Alexandre Baumgarten, podia-se apenas falar em agrado ou prazer do belo.
    
    Restrito o estético como denominação específica do agrado resultante do conhecimento do belo, infere-se logo que o estético não se diz de todo e qualquer agrado, prazer ou deleite, gozo ou satisfação. Coloca-se de pronto a questão, sobre qual a especificidade do estético.
    
    Do ponto de vista puramente metodológico há a provar primeiramente que o sentimento estético existe. Ainda que se reduza esta prova à constatação meramente fenomenológica, esta situação tem de ser examinada.
    
    
    272. O belo agrada, deleita, compraz, alegra. Produz satisfação, dá prazer, felicita. Em casos especiais conduz ao entusiasmo e ao delírio.
    
    Trata-se de uma verificação direta, verdade explicitamente evidente, fenomenologicamente descriptível.
    
    Dentre os dados sempre evidentes, a esteticidade do belo se mostra como uma de suas propriedades mais contundentes. É algo tão incontestável que não precisamos sair a fazer esforços para prová-lo.
    
    Um panorama de cores esfuziantes e linhas notoriamente belas, conduz a uma alegre euforia, em que o elemento belo contribui de maneira notável.
    
    O feio se faz detestar e quanto maior a feiura, mais nos molesta.
    
    O turismo aos lugares de grande beleza é a consagração da esteticidade do belo.
    
    273. Depois de verificada a esteticidade do belo, a nova pergunta inquire pela esteticidade em si mesma.
    
    Não obstante à fenomenologia aparentemente fácil da esteticidade do belo, os detalhes não se definem logo. Por exemplo, se perguntarmos, se os animais sentem o belo, a resposta não nos vem logo clara.
    
    Também nos confunde perguntar, se percebemos o belo com os olhos, ou com a inteligência. Também não respondemos de pronto se a esteticidade é uma forma específica de sentir, ou se a esteticidade decorre apenas de uma diferença material de objeto. Mais se pergunta, - se a diferença da esteticidade decorre de uma faculdade própria para sentir o belo, ou se a faculdade é a mesma para todos os sentimentos?
    
    Importa equacionar estas questões e respondê-las por ordem, a fim de alcançar da esteticidade uma noção quanto possível clara. Quando chegarmos ao fim do questionamento, poderemos ter a impressão que a esteticidade do belo não é algo tão complexo quanto as vezes se faz.
    
    Tese defendida, - a esteticidade se diferencia dos demais sentimentos apenas pela sua divisão material; portanto, apenas pelo seu objeto, o belo.
    
    Os outros sentimentos diferem tão somente, porque outro é o seu objeto. Não se trata, por conseguinte, de uma distinção resultante pela forma, ou seja pela maneira interna de se dar o sentimento. Neste particular da forma, todos os sentimentos são iguais.
    
    A tese defendida afasta complicadas interpretações da esteticidade, através de faculdades próprias.
    
    
    274. No que se refere à faculdade do sentimento, esta faculdade não é especifica; ela é senão a vontade, considerada em estado psíquico peculiar.
    
    Contra nós, acreditam outros, como Tetens e Kant, que há uma faculdade específica apenas para o sentimento.
    
    Estamos com Aristóteles, para o qual o sentimento como qualquer categoria de sentimentos (ou emoções) é apenas um estado de acomodação das faculdades apetitivas. No plano superior, haveria apenas duas faculdades, o inteleto (ou razão) e a vontade (apetite racional), e não três. Na vontade, pois, se situaria o sentimento estético. Ali não passaria de um estado psíquico da mesma vontade.
    
    275. Os sentimentos, quanto à forma, se classificam de acordo com o estado da apetição com referência à posse do objeto. Fundamentalmente, a apetição busca o objeto, de sorte que, no percurso desta consecução poderá haver fases diversas e que distinguirão estados afetivos específicos. Sucessivamente, ocorrem o amor, o desejo, o deleite. O sentimento estético apresenta as mesmas formas: amor estético, desejo estético, deleite estético.
    
    Num primeiro instante se exerce a simples inclinação para o objeto. Neste instante o estado afetivo se denomina "inclinação", mais usualmente "amor". Geralmente se reserva "amor" para os objetos de mais elevada categoria, como o de amor a pessoas.
    
    No segundo instante, ao entrar o apetite em marcha, com decisão de efetivar a posse do objeto, o estado afetivo é denominado "desejo". No desejo há mais que amor e menos que efetiva posse do objeto.
    
    Por último, a apetição repousa no objeto possuído. Este estado afetivo é o termo final da inclinação apetitiva. Recebe nomes peculiares, como deleite, agrado, alegria, satisfação, prazer, gozo. Ainda que cada nome leve um colorido próprio, fundamentalmente se classificam como situação afetiva de posse repousante no objeto.
    
    
    276. Materialmente, e já não quanto à forma, os sentimentos se diferenciam pelos objetos que os produzem.
    
    Se distinguirmos entre os objetos em que repousa a apetição, seguimos para distinções de ordem meramente material, porque então a apetição, já antes que se distinga pela forma como acontece, se distinguiu pelo objeto que a produz.
    
    Há, por exemplo, a partir dos objetos, prazeres esportivos, satisfações gástricas, alegrias infantis, gozos espirituais. Este repouso em objetos distintos diferencia os sentimentos materialmente.
    
    A distinção entre prazeres estéticos e prazeres comuns é uma distinção material; no caso do sentimento estético, o objeto é o conhecimento do belo e no caso dos sentimentos comuns o objeto é constituído por outras sorte de bens.
    
    No caso da arte a presença material do belo ocorre em três áreas, de que duas são especificamente artísticas, e uma pré-artística, tornando a questão da esteticidade artística muito complexa:
    
    1) o belo ocorre no tema expresso (que poderá ser um tema o belo, tanto concreto como abstrato);
    
    2) o belo ocorre na perfeição com que se expressa (a bela expressão);
    
    3) o belo ocorre no material usado para expressão (o belo pré-artístico do significante).
    
    Em consequência, o sentimento estético na arte pode ser classificado materialmente (antes de ser classificado pela sua forma) a partir de três espécies de motivação.
    
    Neste plano material do objeto ocorre a distinção dos sentimentos em comuns e estéticos, porque o objeto em ambos é distinto.
    
    Importa acentuar a especificidade deste sentimento estético, - o que se faz a partir do objeto, - com mais alguns detalhes a seguir.
   
    § 1-o. O objeto do sentimento estético. 0764y277.
    

    278. Qual a diferença de objeto entre sentimentos comuns e sentimentos estéticos?
    
    O objeto do sentimento estético, como já antecipamos, é o saber. Efetivamente, o saber produz agrado. Depois de resolvida uma questão matemática, sentimos prazer de havermos alcançado a referida solução. Agrada-nos apreciar panoramas. Atendida uma curiosidade, novamente sentimos prazer. Especialmente conhecer o belo produz agrado, isto é, um sentimento estético. Também a arte produz sentimento estético, porque sendo expressão de algo, nos leva a um conhecimento, o qual nos agrada.
    
    Sobretudo a grande arte nos coloca em estado estético, exatamente porque ela muito no tem a dizer.
    
    Contrasta com o prazer estético o prazer comum, produzido por todos os outros gêneros de objeto. Não há somente a faculdade de conhecimento a atender mas também outras potências. E é que se situam os demais prazeres, os quais se dizem comuns, em relação ao prazer especial estético.
    
    A distinção entre prazer estético e prazer comum, apesar de existir, não é muito profunda, sendo apenas material, dependente do objeto. Quanto à forma, todos os prazeres são um estado psíquico de agrado, e são conscientes, além de costumeiramente estarem juntos.
    
    
    279. O prazer estético não se encontra no âmbito da inteligência. Por isso não se pode falar em sentimentos da inteligência. Admite-se dizer, ainda que um tanto inadequadamente, sentimentos inteletuais, porque ligados à inteligência; assim também não se diz sentimentos da razão, mas sentimentos racionais. A inteligência, por ser em si mesma essencialmente uma faculdade de entender e não de querer, não deseja e nem se aquieta em sentimentos; não repousa à maneira da posse apetitiva dos objetos. Sua função se restringe ao ver mental; este é um repouso intencionalístico nos objetos conhecidos.
    
    Por isso, caso não existisse outra faculdade, com o fim de apetecer e possuir objetos, não ocorreria sentimento algum. O belo seria apenas contemplado teoreticamente, sem qualquer repercussão afetiva.
    
    A rígida separação entre o plano cognoscitivo e o emotivo é característica dos sistemas estéticos inteletualistas, como se verá em outro lugar.
    
    280. Importa atender não somente à distinção, mas também à proximidade entre inteligência e vontade, - se tivermos em vista separar da inteligência o sentimento estético, para situá-lo na vontade. Cabe à inteligência o entender, e não o querer e ter prazer. Mas o objeto entendido pela inteligência é tido, por parte da vontade, como um bem da outra faculdade. Isto é possível, porque inteligência e vontade operam conjuntamente, quase como se fossem uma só faculdade. Ocorre o sentimento estético quando a vontade se satisfaz ao ter a inteligência o seu respectivo objeto.
    
    Qual é o objeto da inteligência? Seu objeto é compreender em termos de verbo ser, as coisas. Entre os objetos preferidos da inteligência está o ser enquanto perfeito, portanto como belo. A presença dos objetos se faz na inteligência, como objetos que se entendem; estes mesmos objetos repercutem na vontade como prazer estético.
    
    Com referência ao prazer comum, ele de novo acontece âmbito da vontade, apenas pela mudança de objeto. Por exemplo, na vontade ocorre satisfação ao ser considerado o alimento em benefício do corpo.
    
    Considere-se que é a vontade que move a inteligência, enquanto esta se comporta como entidade. Nestas condições a vontade impera à inteligência a que se esforce a pensar. Não pensa a vontade; esta apenas exerce o querer.
    
    Mas não se isola a vontade como um simples querer. Há uma concomitância com a inteligência. Enquanto a vontade quer que a inteligência pense, acontece ao mesmo tempo que a inteligência pensa a serviço da vontade. Quando a vontade conseguiu que a inteligência tenha pensado, ela sente a satisfação de o haver conseguido, e sente satisfação pela forma que conseguiu; e então, o fato mesmo de a inteligência ter realizado seu objetivo teorético de conhecer, sobre de conhecer o objeto belo, repercute na vontade como sentimento estético.
    
    
    281. Uma vez que todo o saber resultante da apreciação da vontade em favor da inteligência produz sentimento estético, resulta haver esteticidade com a ciência, com a arte e sobretudo com o belo, - como já adiantamos em outros lugares. Mas, em virtude da preponderância do belo na capacidade de excitação do estético, poderá este denominar-se "o sentimento estético por excelência". Do mesmo modo "o sentimento artístico" é um gênero entre os sentimentos estéticos.
    
    Considerando que tais sentimentos se diferenciam por causa dos objetos materiais, é correto denominá-los pelos seus objetos específicos, como em "sentimento estético belo", "sentimento estético artístico", "sentimento estético musical", "sentimento estético literário", ou ainda como em "sentimento estético do sublime".
    
    
    282. Por fim importa destacar o sentimento estético belo como sendo racional, isto é, da vontade racional, acima dos sentimentos sensíveis inferiores.
    
    Ainda que todo o conhecimento produza satisfação, e até os animais se sintam satisfeitos ao verem e ouvirem, ao terem gosto e olfato, bem como o tato (podendo-se neste sentido dizer que os animais sentem a esteticidade), somente a razão é capaz de perceber o belo em sua condição específica de perfeição em destaque.
    
    Perceber esta condição importa em capacidade de comparação e julgamento. Consequentemente, só o ser racional é capaz de sentimento estético do belo. Somente o ser racional possui a competência do belo.
    
    Também o sentimento artístico está condicionado à razão.
    
    Em sendo a arte uma expressão em objeto sensível, o qual tanto o animal como o homem percebem, apenas a inteligência tem competência para interpretá-lo.
    
    Ao se apontar ao cachorro o dedo, para que vá para a rua, ele vê o dedo, mas não percebe inteletualmente o sentido do sinal. Ele poderá ir para a rua por efeito de algum reflexo condicionado, e não porque tenha competência para entender um signo. Os animais não têm portanto esteticidade artística racional.
    
    § 2-o. Estéticas inteletualistas e estéticas anti-inteletualistas. 0764y283
    
    284. Envolvendo a questão do sentimento estético elementos múltiplos, e portanto complexos, só lentamente se foram definindo as posições sobre sua efetiva natureza. Uns foram colocando a diferença apenas no objeto (por efeito apenas de uma divisão material dos sentimentos); outros a diferença também na forma do sentimento (os quais portanto teriam uma divisão também formal); outros enfim apelam a uma faculdade específica do sentimento, ou para todos os sentimentos, ou somente para o sentimento estético.
    
    Algumas destas estéticas são mais inteletualistas, outras menos, sendo, portanto estéticas anti-inteletualistas.
    
    Em Platão começa a conscientização de que o sentimento estético é específico, havendo feito algumas descrições admiráveis sobre o delírio do belo (vd 285).
    
    Aristóteles insiste mui claramente no valor dos sentimentos que têm relação com o objeto da inteligência.
    
    Tomás de Aquino lança claramente o princípio de que o deleite (prazer) é um repouso apetitivo no objeto, com a advertência de que os diferentes objetos poderão diferenciar materialmente o deleite, de sorte a se poder distinguir, com mais um passo, os sentimentos comuns e os ligados ao conhecimento.
    
    A estética inteletualista, em acepção ampla, como oposição ao irracionalismo estético, se encontra no espírito da filosofia racionalista de Platão e Aristóteles, Kant e Hegel. Ela separa nitidamente o cognoscitivo e o apetitivo.
    
    Não importa que em Baumgarten e Hegel o belo seja objeto sensível, enquanto em outros seja objeto inteletivo, desde que em um e outro caso o belo se situe no plano de objeto do conhecimento.
    
    Inversamente, os alogicistas querem fazer da própria emoção, ou sentimento, um processo de conhecimento, de resultados especiais, especialmente no campo dos valores, entre os quais os do belo.
    
    A evocação poética, o ritmo, os sentimentos, - tudo estaria prenhe de um misticismo singular. A intuição é interpretada como uma espécie de simpatia que leva ao âmago das coisas.
    
    No plano da estética, uma fusão sem limites claros funde o belo como objeto de conhecimento e o belo como esteticidade.
    
    
    285. Platão, no dialogo Hipias Maior (302 d) aponta diversas vezes para a distinção entre vários tipos de sentimento, mas sem ultrapassar descrições exteriores. O mesmo acontece quando no Fedro aponta para a afetividade estética e a comum.
    
    Distinguiu primeiramente 4 gêneros de delírio: o profético, como o da profetiza de Delfos e dos adivinhos, "estado em que prestam grandes serviços às pessoas e aos Estados da Grécia" (Fedro, 244 b); o segundo, que levou a descobrir as cerimônias expiatórias, purificações, e ritos ;misteriosos, "que preservam dos males presentes e futuros" (244 e); o terceiro, é o poético, no qual, sem os recursos da razão, as Musas "transportam a alma para um mundo novo e lhe inspiram odes e outros poemas, que celebram as façanhas dos antigos e que servem de ensinamento às gerações" (244 e); o quarto e último delírio é quando alguém, através da beleza sensível, se eleva à contemplação da beleza como tal, "sendo que de todos os delírios este é o melhor" (249 e).
    
    Mais adiante voltando ao assunto mais detalhadamente, citaremos o texto do delírio do belo vd 297). Destacamos aqui que Platão se manteve numa descrição meramente exterior; afirmou uma distinção entre os sentimentos comuns e os estéticos, sem insistir numa diferença intrínseca. Quanto ao delírio por causa do belo, distinguiu dois sentimentos estéticos: um que se retém apenas na contemplação do belo sensível singular, como o de um corpo humano; outro, como noção absoluta. Preocupado embora em distinguir dois tipos de sentimento estético, não advertiu com profundidade, em que, em conjunto se diferenciam contra os sentimentos não estéticos.
    
    
    286. Aristóteles, na última secção da Ética à Nicômaco, insistiu, com análises exaustivas, que a felicidade do homem está na plenitude do conhecimento, o que implica na tese, de que há um sentimento que tem por objeto o conhecimento:
    
    "Que em consequência à toda sensação se produza um prazer, claro está: dizemos que as sensações da vista e do ouvido são aprazíveis. Mas será óbvio que o prazer existe em sumo grau quando o sentido seja ótimo e aja em relação a um objeto ótimo... Certas coisas nos alegram, porque nos são novas, e precisamente por isso, não o fazem igualmente mais tarde " (Ética a N. 10,4. 1174b 28ss.).
    
    Pouco depois Aristóteles distinguiu os prazeres em função à diversidade das faculdades de conhecimento beneficiadas, num contexto que supõe o prazer resultante do conhecimento:
    
    "Os atos diferentes pela espécie se aperfeiçoam por coisas pela espécie diferente. Os atos do pensamento diferem dos que encabeçam os sentidos...
    
    E portanto assim deve ser também nos prazeres que lhes dão a perfeição.
    
    Isto se deve ver igualmente no fato de ser todo prazer conatural ao ato que aperfeiçoa. Pois que o prazer acresce juntamente a atividade de que é próprio.
    
    Aqueles que agem com o prazer, julgam melhor, e mais exatamente conduzem a termo cada coisa: assim sucede que se tornam bons geômetras aqueles que se deleitam com a geometria, os quais, se houver ocasião, com ela mais e mais se familiarizam; semelhantemente, aqueles que amam a música, ou a arte de construir, ou outro gênero de obras, naquela que lhes é própria, progridem mercê do deleite que elas lhes proporcionam.
    
    Os prazeres crescem juntamente com a atividade: mas as coisas que crescem juntas são conaturais. Logo, aquelas conaturais às coisas diferentes de espécie são também de espécie diferente" (Ética a N., 10,5. 1175a 25ss).
    
    Finalmente, pôs Aristóteles a felicidade na contemplação da verdade, porque a atividade mental é a atividade própria do homem:
    
    "Se a felicidade é atividade conforme à virtude, é bem razoável que seja conforme à virtude mais excelente, esta será a virtude daquilo que em nós há de melhor. Logo seja isto o pensamento, ou outra coisa, que pareça por natureza ordenar e guiar, e tenha inteligência das coisas divinas - quer porque divina ela própria, quer porque das coisas que estão em nós seja a mais divina - a sua atividade, conforme à virtude que lhe é própria, será a felicidade perfeita. Que tal seja a contemplativa, já dissemos... Ela é a atividade mais excelente. De fato, o pensamento é o que em nós há mais excelente, e, dentre as coisas cognoscíveis, as mais excelentes são aquelas em torno das quais existe o pensamento. Além disso, é a mais ininterrupta: podemos contemplar sem interrupção muito mais do que operar o que quer que seja" (Ética a N. 10,6. 1177a 13 ss).
    
    A superioridade do sentimento ligada às coisas do pensamento é portanto uma tese já afirmada em Platão e que teve novos desenvolvimentos em Aristóteles.
    
    § 3-o. A questão do belo como desinteresse. A posição de Kant. 764y287.
    
    288. Modernamente se passou a insistir que o belo é um sentimento que não envolve o interesse, ou o útil, nisto o diferenciando dos demais sentimentos, os comuns. Esta indicação começa por entrar no caminho certo, apontando para a teoreticidade do belo.
    
    Contudo não é exato dizer que a afetividade estética se apresenta como desinteressada; melhor é afirmar que o interesse se diferencia no sentimento estético e no sentimento comum.
    
    Também no estético ocorre o interesse, tanto que Platão descreve amplamente o entusiasmo que o belo provoca e o afirma com fundamento nos fatos.
    
    É preciso mostrar em que está a diferença. Sem mostrar onde a diferença dos interesses ocorre, não teremos passado de uma descrição exterior; teríamos verificado apenas o fato, sem mostrar a razão. Para argumentar simplesmente com o fato, é suficiente mostrar como efetivamente ocorre a diferenciação. Mostra-se por exemplo como um agricultor contempla sua plantação com uma satisfação que se exerce acompanhada de um interesse marcado pela previsão dos futuros rendimentos, ao passo que o esteta admira na mesma seara um objeto de contemplação desinteressada.
    
    O que efetivamente sucede não é uma ausência de interesse na contemplação do belo. A diferença de interesse ocorre porque já anteriormente se distinguem os dois sentimentos, o estético e o comum. É que, diferenciados especificamente, suas propriedades também o haveriam de ser
    
    Diferentes pela espécie, estão contudo no mesmo gênero. Em consequência se espera que as propriedades, embora específicas, reencontrem contudo aproximações no plano genérico.
    
    Há, pois, a contrariar alguns aspectos afirmados com insistência pelos românticos em geral, de que o belo é sem interesse. Ainda que o belo em si mesmo seja um objeto, que a inteligência apreende como o perfeito em destaque, pode ao mesmo tempo ser apreciado como um bem, nesta condição provocando o sentimento estético. Enquanto buscado pela vontade como objeto próprio e eminentemente adequado à contemplação inteletual, comparece por isso mesmo o belo como algo benéfico e apreciado como de interesse.
    
    Em cada faculdade o belo atua a seu modo: a inteligência o apreende como verdade, a vontade como bem.
    
    Antes de tudo teorética, a inteligência se ocupa em ver, descobrir, penetrar. Ora penetrando como a luz nos cristais, ora deslizando pelas superfícies, por toda a parte procura especialmente as perfeições. Sem parar, seguindo por todas as veredas, visitando infindas paragens, e tendo como companheira a vontade, a inteligência proporciona à sua amiga os sentimentos que o belo produz. A sublimidade do sentimento estético faz com que a vontade o prefira àqueles outros modos de sentir que se realizam fora dos círculos da especulação.
    
    289. Com uma acepção muito especial e inteiramente técnica, afirmou Emanuel Kant constituir-se o belo em algo "sem interesse".
    
    Ao afirmar Kant que o belo é sem interesse, queria dizer que o belo não tinha a constituição dos objetos estruturados pelas categorias a priori do entendimento.
    
    O belo não se definiria, por exemplo, como o homem se diz composto de animalidade e racionalidade. Este mesmo objeto, visto sob um outro ponto de vista, pode realizar-se com maior ou menor grau de perfeição; um modelo, por exemplo a espécie humana, serve de exemplar arquétipo, em função do qual o objeto se dirá perfeito. Então resulta em ser, ou não belo.
    
    Ora, afirma Kant, dizer que algo é belo, não é definir sobre o interesse constitutivo do objeto, mas julgar sobre o seu acabamento. Neste caso, o belo não se define diretamente como objeto; não é um conceito de objeto. Posto o objeto como constitutivamente acabado, dele apenas afirma algo em função à sua "finalidade formal", isto é, em função da espécie a realizar.
    
    Como dali se depreende, a afirmação kantiana de que o belo é sem interesse está em um contexto daquele no qual o belo é visto como efetivamente de interesse da mente, como seu bem preferido.
    
    
    290. Haveria uma faculdade do sentimento, especificamente distinta da vontade? Estabeleceu Kant a especificidade da faculdade do sentimento, distinguindo-a da vontade.
    
    A divisão destas duas faculdades já vinha de Tetens, recebendo agora sua consagração no sistema kantiano.
    
    Todavia, é inútil insistir nesta divisão. Interpretando a esteticidade como um interesse de ordem muito especial, distinguindo-a do interesse comum, sem todavia distinguir o interesse, não ocorre necessidade de apelo a novas faculdades.
    
    Tal como o inteleto se capacita para operações muito diversas (operando idéias, juízos, raciocínios), também a vontade opera em campos mui diversificados, sem que tais operações possam ser ditas um desmantelamento em família de novas faculdades. É inegável que a vontade opera conjuntamente com a inteligência; nesta concomitância o belo surge como objeto teorético para a inteligência, como esteticidade para a vontade.
    
    É uma característica da filosofia aristotélica não subdividir muito as faculdades e sim as suas operações. No plano racional, uma só é a inteligência e diversas as suas operações, tendo todas como objeto comum a verdade.
    
    Em Kant, porém, ocorrem nesta área três faculdades: o entendimento, o juízo, a razão (pura e prática).
    
    No plano volitivo e afetivo racional também reduz Aristóteles todas as funções a uma só faculdade, a volitiva, da qual o sentimento é apenas um estado da ação. Kant, entretanto, separa a vontade e o sentimento, em duas faculdades específicas, em vez de distinguir duas operações da mesma faculdade. Sobre a questão, quase que repetindo, retornaremos oportunamente, quando insistirmos sobre o que o belo não é (cap. 6-o).
    
    Aristóteles apenas não chegou a dar ao sentimento estético uma análise ampla. Mas, coerentemente com o pouco que disse e com o que seu sistema implica, o sentimento estético não poderá ser senão um estado de satisfação na vontade, enquanto aprecia o belo como objeto preferido da inteligência.
    
 
    ART. 2-o. ESTETICIDADE PREFERENCIAL DO BELO. 0764y292.

    
    293. Tal como ocorria uma teoreticidade preferencial, ocorre também uma esteticidade preferencial.
    
    De vez que não é o belo o único objeto que produz sentimento estético, passamos a determinar uma diferença importante, que destaca esta esteticidade como a preferencial.
    
    Do ponto de vista das provas, a preferência pela esteticidade do belo se apresenta de pronto como um fato. Um impulso incontido nos põe em busca das coisas que se realçam. Subimos mesmo as árvores em busca das flores. As crianças se põem em riscos nos despenhadeiros para obter o que apreciam como belo; as vezes se expõem a tal risco, que parecem ter anjos da guarda que as protegem. As pessoas apreciam seu aspecto pessoal, e se satisfazem quando são elogiadas.
    
    Atendendo às obras de arte, ainda que a arte como expressão conduza qualquer mensagem, apreciamos sobretudo as que exprimem com perfeição e as que oferecem como tema o mais perfeito; se o tema da expressão for ciência, preferimos a ciência mais perfeita. Surge pois sempre a preferibilidade estética do belo.
    
    Além da prova fenomenológica dos fatos, a preferibilidade do sentimento estético belo sobre os demais sentimentos se pode inferir a priori, em virtude do paralelismo entre o inteleto e a vontade. O que encontra referência mental, também encontra preferência no plano volitivo. Posto o belo como preferido do conhecimento, passa a ser igualmente querido pela vontade; assim, passa a ser amado, desejado, apetecido.
 
    O entusiasmo e o delírio estético. 0764y294.
   
    295. O sentimento admite graus. A esteticidade do belo se apresenta com a propriedade de uma notória força de sentimentalidade, que chega ao entusiasmo e ao delírio, como já asseverava Platão.
    
    Os amantes do belo se emocionam diante da natureza e ficam encantados com a beleza que nela reluz.
    
    Na arte a grande força motriz tem sido o entusiasmo pelo belo, ainda que o prazer lúdico de exprimir tenha sido também um dos seus motores.
    
    O entusiasmo pelo belo, sempre o preferido, tem sido a força atuante de todos os instrumentos produtores de beleza . Por si sós a vaidade, a curiosidade pela originalidade não explicam a finura e o bom gosto, que são formas do constante entusiasmo e delírio estético, que se manifesta no modo de vestir e comportamento social elegante, na arrumação dispendiosa das moradias e dispêndio público no embelezamento das cidades.
    
    296. Uma hierarquia acontece nas coisas belas. Não discutimos agora ainda qual seja. Referimo-nos a ela, porque o entusiasmo pelo belo pode graduar-se em função destas hierarquia dos objetos belos.
    
    Platão, situado no contexto de que há um belo absoluto, de que o belo singular é uma cópia individualizada, distingue entre um e outro delírio.
    
    O amor pelo absoluto, é o assim chamado amor platônico. Fala Platão dos que, em vendo os corpos belos, não ultrapassam o círculo da beleza singular; em vez de subirem para o belo absoluto, derivam para a matéria em que a beleza inere.
    
    Os detalhes do comportamento estético constituem material difícil para a estética psicológica. Quando predomina o sentimento estético? Quando não, deixando lugar aos sentimentos comuns?
    
    Em geral, no primeiro instante se impõe o sentimento sensitivo e só ato contínuo ganha lugar o sentimento racional.
    
    Esta circunstância não deriva da inferioridade do objeto da beleza; deve-se à uma situação de limitação antropológica; os sentidos alcançam os objetos intuitivamente, portanto com um máximo de "compreensão" conteudística e precisão, e por isso se exercem com maior poder, sobretudo inicial.
    
    O inteleto atinge maior "extensão" (o universal), todavia uma compreensão menor. Dali vem que se requer um esforço recuperatório com o fim de repor a ordem das prioridades de valor. O belo, sob o pondo de vista preciso de sua noção, é uma nota alcançada apenas pelo inteleto; por isso, no primeiro instante, não se pode fazer sentir com a mesma sentimentalidade que o afeto inferior.
    
    Conclusão:
o entusiasmo estético não é o mais poderoso dos sentimentos, embora virtualmente seu objeto tenha conteúdo para tanto, conteúdo este que, entretanto, não nos é facultado atingir integralmente. Nas escala dos valores "de todos os entusiasmos, este é o melhor" (Platão), mas não o mais intenso esteticamente na ordem atual.
    
    297. Descreveu Platão a oscilante formação do sentimento estético, criando para este fim um notável alegoria. Para sua compreensão importa atender ao contexto filosófico do platonismo, segundo o qual as idéias universais (dentre as quais o belo) são inatas e despertam ao contato do mundo sensível. Supõe que as almas tiveram uma vida anterior, quando tiveram oportunidade de contemplar os arquétipos eternos e formaram tais idéias universais.
    
    Reportando-se a este contexto, criou Platão imagens literárias, pondo estas figuras em movimento, sem que elas, no avançar da alegoria, percam a função do que devem exprimir, - a inclinação oscilante e esforçada do inteleto na contemplação da beleza, a começar do belo sensível.
    
    Imaginando-se escultoricamente a inclinação da alma para a contemplação e apreciação afetiva do belo, mantém a figura alegórica até o final do enredo, explicando em imagens sensíveis afirmativas abstratas.
    
    Fala Platão:
    
    "Chegamos à quarta espécie de delírio: é quando alguém neste mundo vê beleza. Recorda-se então da beleza verdadeira; recebe asas e deseja voar para o alto; não o podendo, porém, dirige o olhar para cima esquecendo os negócios terrenos, dando desta maneira a impressão de delirante.
    
    De todos os entusiasmos este é o melhor e o da mais perfeita origem; saudável para quem o possui e dele participa. Quem é atingido por este delírio, ama o que é belo e chama-se amante.
    
    Como já disse, a alma humana, dada a sua própria natureza, contemplou o ser verdadeiro. De outro modo nunca poderia entrar num corpo humano. Mas lembranças desta contemplação não se acordam em todas as almas com a mesma facilidade. Uma apenas entreviu o ser verdadeiro; outra, após a sua queda, foi impelida pela injustiça e esqueceu os mistérios sagrados que um dia contemplou. Portanto, são poucas as almas cuja recordação é bastante clara.
    
    Quanto à beleza, ela brilhava entre todas aquelas idéias puras e na nossa estada na terra ela ainda ofusca, com o seu brilho, todas as outras coisas. A visão é ainda o mais sutil de todos os nossos sentidos. Mas não poderia perceber a sabedoria. Despertaria amores veementes, se oferecesse uma imagem tão clara e distinta quanto aquelas que podíamos contemplar para além do céu.
    
    Somente a beleza tem esta ventura de ser a coisa mais perceptível e elevadora. Aquele que não foi recentemente iniciado ou que se corrompeu, não se alça com ardor para o além, para a beleza em si mesma. Apenas conhece o que aqui se chama belo, e ao que vê não adora. Como um quadrúpede, dedica-se ao prazer sensual, tratando de unir-se sexualmente e de procriar filhos. Estando afeito à intemperança, não tem medo nem vergonha de. Se entregar aos prazeres contra a natureza.
    
    O que foi iniciado há pouco, e que outrora muito contemplou, ao ver um rosto divino ou um corpo que bem reproduz a beleza, sente certa estranheza, e um pouco de emoção de outrora e volta, pois, a olhar este belo corpo, adora-o do mesmo modo que a um Deus. E se tivesse receio de ser considerado monomaníaco, ofereceria sacrifícios ao objeto do seu amor como a um Deus. Quando contempla o seu amor, apodera-se do amante uma crise semelhante à febre; modificam-se-lhe os traços do rosto, o suor aparece em sua fronte e um calor não conhecido corre pelas suas veias. Logo que recebe, através dos olhos a emanação da beleza, sente esse doce calor que alimenta as asas da alma. Esse calor funde o que impedia a expansão da vitalidade, aquilo que, sob a ação do endurecimento, impedia a germinação. O afluxo do alimento produz uma espécie de intumescência, um ímpeto de crescimento no caule das asas. Esse ímpeto vai se espalhar por toda a alma.
    
    Essa, quando as asas começam a desenvolver-se, ferve, infla e sofre da mesma maneira como padecem as crianças que, ao receberem novos dentes, sentem pruridos e irritação nas gengivas. Também a alma fermenta, padece e sente dores, ao lhe crescerem as asas. Quanto contempla a beleza de um belo objeto e daí provém corpúsculos que dele saem e se separam - de onde se deriva a vaga de desejo (hímeros), a alma encontra então o alívio para as dores e a alegria.
    
    Mas, quando está separada do amado, fenece. E as aberturas pelas quais saem as asas, também murcham e, fechando-se, impedem a germinação da asa, que, presa no interior juntamente com a vaga do desejo palpitando nas artérias, faz pressão em cada saída sem abrir caminho. Deste modo a alma toda, atormentada por todos os lados sofre e padece, e no seu frenesi não encontra mais repouso.
    
    Impelida pela paixão, ela se lança à procura da beleza. A alma respira novamente e já então não sente o aguilhão da dor e goza, nesses poucos instantes, da mais deliciosa volúpia. Por isso não a abandona voluntariamente. Nada tem mais valor para ela do que a beleza. Esquece mãe, irmãos e todos os amigos. Nem se preocupa com a fortuna perdida, nem respeita as leis e os bons costumes; e está a ser escravizada pelo amado e ao seu lado dorme tão próximo quanto o permitirem os outros. Ela adora aquilo que possui beleza, pois nela encontrou o remédio às maiores doenças" (Fedro, 249 e - 252 a. Trad. Paleikat).
    
    Platão advertiu que os indivíduos excessivamente carnais, ao depararem com a beleza, se retém apenas na beleza física sensível, e permanecem incapazes de subir à beleza absoluta, como o conseguem os outros indivíduos embora com dificuldade. O poético texto de Platão, sobre a psicologia do comportamento estético humano, adverte que no primeiro instante da visão do nu, a ação do belo sensível permanece apenas no sensível, enquanto para outros, conduz em frente, até o belo absoluto.
     
 Fonte:
ENCICLOPÉDIA    SIMPOZIO
 
(Versão em Português do original em Esperanto)
© Copyright 1997 Evaldo Pauli  
http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/megaestetica/TratBelo/0764y268.html

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