quinta-feira, 19 de maio de 2011

IMAGINAÇÃO E SI-MESMO - C.G.Jung



ANDRÉ DANTAS

             Partindo da idéia de que o si-mesmo é o início e o objetivo final da individuação, então o que acontece no processo é que o si-mesmo imediato, indiferenciado, se exterioriza fazendo-se um outro para si-mesmo, que depois é interiorizado, retornando a si tornando-se uma unidade complexificada e diferenciada, graças ao retorno desse outro que era ele mesmo o tempo todo. O que aparece como uma diferença excludente para o eu, para o si-mesmo é uma diferenciação interna à sua unidade. 

Visto de dentro a antítese é o desdobramento do que estava implícito na tese e a síntese é a re-interiorização da antítese na tese, agora enriquecida pela negação interna que sofreu. O que se apresenta aqui é uma unidade que nega a si-mesma, mas é em-si-mesma essa negação de si. 

Como a lógica egóica é extensiva, excludente, ela vê a tese e a antítese como externas uma à outra e a síntese acontecendo através de um terceiro, também externo, que intermedia tese e antítese, dando origem a um quarto que apesar de sintetizar os contrários, também é externo a ambos. Esse outro externo que intermedia os opostos é a imaginação. 

Para Jung era na fantasia que todos os opostos estavam unidos, e a função transcendente era essencialmente uma operação da imaginação.
Ao esse in intellectu falta a realidade palpável, ao esse in re falta o espírito. Ora, a idéia e a coisa encontram-se na psique do homem, a qual estabelece o equilíbrio entre idéia e coisa. No fim de contas, o que é a idéia, se a psique não lhe facultar um valor vital? Que é a coisa objetiva, se a psique a privar da força condicional da impressão sensível? 

E o que é a realidade 
senão uma realidade em nós próprios, 
um esse in anima? 

A realidade vital não é dada exclusivamente pelo comportamento efetivo, objetivo, das coisas, nem pela fórmula ideal, mas em conseqüência de uma conjugação desse comportamento e dessa fórmula, dentro do processo psicológico vital, graças ao esse in anima. Só por meio da atividade vital específica da psique a percepção sensível atinge a profundidade impressiva e a idéia de força eficiente que são parte integrante e indispensável de uma realidade vital. 

A atividade própria da psique, que não pode explicar-se por uma reação reflexa à excitação dos sentidos (estímulo sensorial) nem considerando-a o órgão executivo de idéias eternas, é, como todos os processos vitais, um contínuo ato criador. A psique cria diariamente a realidade. Só encontro uma expressão para designar essa realidade: a fantasia. 

A fantasia tanto é sentir como pensar, tanto é intuitiva como perceptiva. Não há função psíquica que não se encontre nela, em associação indiferenciável com as demais funções psíquicas. Tão depressa se apresenta com caráter primordial como sob o aspecto de produto final e temerário da concentração de todas as capacidades. Por isso a fantasia me parece ser a mais clara expressão da atividade psíquica específica. É, sobretudo, a atividade criadora que procura uma resposta para todas as indagações contestáveis, a mãe de todas as possibilidades, na qual se encontram vitalmente vinculados, como todos os extremos psicológicos, tanto o mundo interior como o exterior. 

A fantasia sempre foi e continua sendo o elemento que serviu de ponte entre os requisitos irreconciliáveis de objeto e sujeito, de extroversão e introversão. Só na fantasia se encontram unidos ambos os mecanismos 25. 

O problema com a fantasia é que ela não supera a principal dicotomia sobre a qual se fundamenta toda a noção de sujeito na contemporaneidade, a dicotomia entre sujeito e objeto. Enquanto eu vejo algo, este algo está fora de mim, não sou esse algo. Mesmo que a imagem não seja a cópia de um objeto existente no mundo externo, ela ainda permanece fora do sujeito, que a vê unir os opostos fora dele, de modo irracional, natural, instintivo.

A unidade dos opostos é positivizada como um objeto lá fora ao qual a consciência olha, mesmo que o fora esteja no interior, no inconsciente. Enquanto a síntese permanecer no nível da imagem, a consciência será equacionada com o eu e o si-mesmo, a unidade de todos os opostos, será apenas uma idéia entretida pela imaginação, jamais atingida nesse mundo, uma terra prometida da qual estamos para sempre exilados 26.

            Jung assinala a importância do eu na atividade irracional de unificar os opostos. Como ele identifica razão com o eu então o que ele chama de irracional não exclui a razão, mas a inclui e a transcende. Esse processo transracional se dá através do símbolo que difere da razão egóica para quem não existe o caminho do meio, enquanto que a atividade simbólica é o próprio caminhar entre os opostos.

O alternar-se de argumentos e de afetos forma a função transcendente dos opostos. A confrontação entre as posições contrárias gera uma tensão carregada de energia que produz algo de vivo, um terceiro elemento que não é um aborto lógico, consoante o princípio: tertium non datur [não há um terceiro integrante], mas um deslocamento a partir da suspensão entre os opostos e que leva a um novo nível de ser, a uma nova situação. 

A função transcendente aparece como uma das propriedades características dos opostos aproximados. Enquanto estes são mantidos afastados um do outro – evidentemente para se evitar conflitos – eles não funcionam e continuam inertes 27.

O fato de Jung trabalhar com uma definição estreita de razão, identificando-a com o racionalismo instrumental das ciências empíricas, impediu-o de sair do nível do conteúdo, daquilo que é sensorialmente, espaço-temporalmente perceptível, e atingisse o nível da sintaxe, a estrutura lógica que permeia todo e qualquer conteúdo psíquico 28. 

O que Jung chamava de razão, era para Hegel uma razão abstrata, estreita, incapaz de atribuir predicados opostos ao mesmo sujeito, e por isso cindida de si mesma, do seu outro interno. Não é no nível do conteúdo semântico que se atinge a psique transpessoal, mas no nível da sintaxe, da lógica, pois a psique é transpessoal não por causa de conteúdos comuns a todos, mas porque sua estrutura interna é uma só. 

Essa estrutura é inapreensível via pensamento sensorial, via imaginação, e por isso Jung a concebia como incognoscível, um nôumeno kantiano, uma coisa-em-si além dos limites da consciência. Se por consciência entendemos a consciência que pensa sensorialmente, espaço-temporalmente, então ele estava certo, pois essa estrutura não é extensiva e por isso é a negação absoluta do que sensorialmente se concebe por estrutura, sendo assim uma estrutura que é processo, devir. 

A lógica da psique não é espaço-temporalmente cognoscível, visto que transcende a própria noção de espaço e tempo, sendo interna a toda e qualquer coisa, pois é relação de movimento. Jung aproxima-se dessa lógica ao diferenciar sua concepção de libido da concepção sexual freudiana. Para Jung libido é um conceito que se refere não à relações entre substâncias, mas à relações de movimento, e por isso não podia ser hipostasiado como sexual 29.

 O logos absoluto não é sensorialmente cognoscível, só podendo ser abordado apenas a partir de si-mesmo, visto ser a identidade da identidade dele com ele mesmo e com a fantasia, sendo assim psicologia, atividade através da qual o si-mesmo é o sujeito e objeto do conhecimento.

A psique só não está onde uma inteligência míope a procura. Ela existe, embora não sob uma forma física. É um preconceito quase ridículo a suposição de que a existência só pode ser de natureza corpórea. 

Na realidade, 
a única forma de existência 
de que temos conhecimento imediato é a psíquica. 

Poderíamos dizer que a existência física é pura dedução uma vez que só temos alguma noção da matéria através de imagens psíquicas, transmitidas pelos sentidos. (...) 

Nosso espírito 
não pode apreender sua própria forma de existência, 
por faltar-lhe seu ponto de apoio de Arquimedes, 
externamente, e não obstante existe. 

A psique existe, e mais ainda: é a própria exietência 30.
Não há um ponto onde se possa ver a psique de fora. Mas nos escritos de Jung há, o eu, que se manifesta através da sua persona de médico que relata, através do conhecimento empírico, apenas fatos acerca da psique. 

A neurose não é uma cisão espacial dentro de nós, ou uma cisão entre aquilo que é espacialmente externo e aquilo que é interno a nós. Pensar assim é permanecer na cognição espacial que está no fundamento da própria neurose. “A neurose está intimamente entrelaçada com o problema do próprio tempo e representa uma tentativa frustrada do indivíduo de resolver dentro de si um problema universal. A neurose é uma cisão interna” 31.

            A cisão neurótica é interna 
ao logos absoluto, 
a lógica viva do nosso estar no mundo. 

É a cisão entre a psique e o seu logos, entre a imagem e o pensamento. O logos absoluto não está fora da imagem, mas é interno a sua complexidade. Quando trazido à luz ele revela que a imagem que se apresenta diante do eu, e o próprio eu, compõe uma unidade que contradiz a si mesma, o que é outro modo de dizer que o eu e a imagem tornaram-se psicológicos. A cisão entre sujeito e objeto e a cisão entre a psique e o seu logos são então duas faces de uma só e mesma cisão.  

            Enquanto a unidade dos contrários ocorrer através da imaginação jamais será uma verdadeira unidade, pois mantém o observador de fora, vendo o processo, observando as imagens como um espectador que se mantém seguro, imune ao que ocorre à distância dele. Se eu percebo algo sensorialmente, seja externa ou internamente, isso quer dizer que eu não sou aquilo que percebo, por isso nossas fantasias podem despertar em nós um senso de estranheza, como se fossem alienígenas a nós. Essa propriedade da imaginação é fundamental para distinguir nossa identidade imediata dos conteúdos psíquicos que não são produzidos pelo eu. Mas enquanto permanecemos nela a síntese não se completa. 

Separação e síntese eram os ingredientes da conjunção misteriosa alquímica, que não pode ser completada enquanto a consciência permanecer empacada na imaginação. Nela a negação não se completa, não se torna negação absoluta que ao negar a si mesma, nega toda a concepção espaço-temporal que fundamenta o eu. 

E aqui se faz necessário perguntar
quem é o sujeito da psicologia, 
o eu ou o si-mesmo? 

Se a resposta for o si-mesmo então temos que deixar de lado todo o esquema da função transcendente como o terceiro excluído que sintetiza tese e antítese num quarto termo, por ser uma visão externa do movimento psicológico. O trânsito para o si-mesmo dissolve os aspectos excludentes da diferença no elixir mercurial que é a lógica dialética, revelando que a aparente multiplicidade externa é em si mesma, uma multiplicidade de diferenças internas a um só e mesmo ser. Não se caminha para o si-mesmo através de um terceiro que leva a um quarto, mas apenas através da interiorização da oposição. 

            Em uma carta escrita em  18.0 6.19 58 Jung escreveu:
Durante  1900 anos fomos admoestados e ensinados e projetar o si-mesmo em Cristo, e dessa maneira bem simples foi isto retirado do empírico – para alívio dele – e assim foi-lhe poupado fazer a experiência do si-mesmo, ou seja a unio oppositorum. Ele está numa ignorância bem aventurada sobre o significado desse termo 32.

            Nesta carta Jung utiliza o conceito de projeção num sentido bem mais amplo do que aquele com o qual os psicólogos estão acostumados. Normalmente se ouve falar de projeção no cônjugue, no chefe, no psicoterapeuta, em pessoas empíricas. Há muito tempo Cristo não é uma pessoa empírica para nós, tornando-se ao longo dos séculos um símbolo, uma imagem arquetípica do si-mesmo. Jung nunca criticou o fato das pessoas terem personificações míticas das suas experiências pessoais, mas aqui ele se opõe frontalmente a esse tipo de experiência. O que difere nesse caso é aquilo que é personificado.

O si-mesmo não pode ser personificado
ou imaginado, pois se o fosse 
seria objetificado, 

tornando-se um conteúdo da consciência ao lado de outros, alienando-se da sua própria noção, ser a subjetividade intrínseca do sujeito. Por isso ele não pode ser simbolizado, mas pode ser experenciado, na verdade ele é em si mesmo, o experenciar em nós mesmos a unidade dos opostos. 

Na medida em que o si-mesmo é externalizado na imagem de Cristo, aquilo que devia ser estritamente nós mesmos é movido para além de nós. Enquanto eu me relacionar com Cristo como imagem, como conteúdo da consciência, não há união dos opostos. 

Eu posso amar Cristo ou ser amado por ele, pode haver harmonia entre nós ou posso ter experiências místicas de união com ele, mas enquanto ele estiver diante de mim a distância permanece, porque o si-mesmo significa que na minha mais íntima subjetividade eu sou eu mesmo e meu outro. Enquanto esse outro que sou eu mesmo aparecer como imagem diante de mim, ele não sou eu, porque tal relação é conceitual, dialética 33.

(...) o Si-Mesmo significa 
que em mim mesmo e como eu mesmo 
eu sou tanto eu mesmo como meu outro.

Eu sou também o oposto de mim mesmo. Não deve haver um Outro literal, se eu torno-me consciente do fato que eu sou eu mesmo meu outro, eu mesmo meu próprio oposto e assim dividido de mim mesmo. E apenas se eu torno-me consciente de mim mesmo como a oposição irreconciliável de mim mesmo e meu outro, e ao mesmo tempo consciente do fato que esse outro oposto é também eu mesmo, pode a união dos opostos ocorrer e eu ipso facto avançar ao status de Si-Mesmo. 

A frase “união dos opostos” é uma abreviação. Se alguém desdobrar a complexa relação lógica implicada por esta abreviação, terá que dizer a unidade da unidade e a oposição dos opostos. Eu tomarei esta afirmação em uma seqüência de várias sentenças em separado. 

 1. Eu não sou idêntico comigo mesmo, eu sou partido, eu sou meu próprio oposto. Eu sou uma contradição viva.  

2. Contudo, este Outro que é meu próprio oposto é ninguém mais que eu mesmo. Eu sou eu mesmo e meu oposto. Neste sentido eu estou unido com meu oposto.  

3. Eu sou a unidade da primeira afirmação sobre ser uma contradição e da segunda afirmação sobre ser unido ao meu outro. 

O Si-Mesmo realizado é o status de consciência que conscientemente existe como a complexidade dessa relação lógica, mas relação não no sentido de uma estrutura estática, mas como a fluidez de um movimento dialético, como processo e performance 34.    

Unidade da unidade e oposição dos opostos não significa uma unidade indiferenciada, mas uma unidade em que a diferença não desapareceu, tendo sido interiorizada na própria unidade, complexificando-a. Por isso, a experiência do si-mesmo é morte para o eu. Não é a morte literal da nossa capacidade de funcionar na realidade cotidiana, nem uma união mística com o transcendental onisciente, mas algo bem mais simples e ainda mais revolucionário. Significa a morte da definição literal de sujeito, a definição dentro da qual o eu, enquanto personalidade empírica, vive sua vida 35.
 
Ego neste contexto significa a perspectiva natural das coisas para qual a entidade existente é a realidade primeira e apenas depois disso pode ser assegurado que essa entidade tem qualidades, essência, que sofre processos, que se comporta desta ou daquela maneira, etc. 

A morte do ego ou o tornar-se Si-Mesmo significa essa revolução psico-lógica na qual a entidade existente de um lado e a essência ou o conceito do outro trocam de posição e categoria, em outras palavras, onde eu como uma rígida auto-idêntica entidade mergulho implacavelmente no meu conceito ou essência, no que eu realmente sou. (...) 

“O que eu realmente sou” refere-se a mim como sendo no fundo a união dos opostos. Minha essência, o que eu realmente sou, a Lógica ou Conceito de “mim”, torna-se a realidade primeira, e o fato do meu continuar sendo uma entidade existente é agora reduzido a um momento suprassumido 36 em mim como movimento lógico que brinca entre os opostos, em mim como o Conceito. Ter se tornado Si-Mesmo significa ter se tornado o Conceito existente. 

A lógica de mim como ser humano, ser mente e alma, 
agora contém o predicado “existente”, 
que antes pertencia a mim como substância ou entidade, 
e a substância ou entidade tornou-se 
um momento lógico na lógica de ser mente e alma
 
            O banho alquímico estudado por Jung na sua análise do Rosarium Philosophorum não deve ser realizado literal-mente, no nível empírico-factual do comportamento, visto que o resultado seria a inflação do eu e/ou psicose, e nem apenas no nível emocional, pois significaria apenas uma experiência de “pico”, uma intensidade subjetiva sem nenhuma transformação psicológica 38. É a definição do mundo como entidade, como substância literal que se dissolve na fluidez mercurial desse movimento psico-lógico. 

Não é o eu enquanto substância empírica, mas o conceito de ser humano dentro do qual vivemos com todas as emoções, sensações, intuições e idéias que é negado, conservado e elevado ao nível universal. Não um universal abstrato, mas um que se concretiza na singularidade da sua e da minha vida.

O hífen na palavra psico-logia 
é a representação gráfica da ruptura lógica 
do naturalismo imagístico da psique, 
na definição da psique como sendo 
em última instância imagem. 

O hífen indica essa descontínua-continuidade
entre imagem e a lógica dialética que suprassume
a imagem como um momento necessário 
no trânsito para o si-mesmo.

            Esse trânsito é um avanço e um retorno, pois o si-mesmo já está lá desde o início, impulsionando todo o processo porque ele é o próprio processo. Não existe primeiro o si-mesmo que depois aciona essa regressão-progressiva, pois o si-mesmo só é enquanto movimento autopoiético. Tal circularidade não pode ser apreendida através do esquema proposto por Miller, que começa com uma divisão que é mediatizada pela função transcendente resultando num quarto termo que une e transcende o dois pólos excludentes, pois esse quarto novo termo é na verdade a própria identidade profunda dos opostos, o que eles são em seu ser mais íntimo. 

Em seu estudo da função transcendente Miller alerta para o fato de que conceitos como sombra, anima, animus, arquétipo, si-mesmo e outros podem reificar o diálogo entre a consciência e o inconsciente, visto que esse diálogo é um movimento vivo. Mas o mesmo pode ser dito do seu esquema, pois a mediação dos opostos ocorre por meio da imaginação e por isso é objetificada através de um terceiro termo que fica no meio dos opostos 39. O que em é essência movimento, processo, fluidez, é através desse esquema reificado, hipostasiado, capturado pela mesma lógica positivista que visava transcender. O termo médio não é um terceiro termo que por estar entre dois extremos os concilia numa síntese, mas o movimento de reconhecimento no qual cada um dos extremos é o meio, a mediação para o outro chegar à verdade de si-mesmo, ao ser que eles implicitamente são desde o início. O caminho de cada extremo a ele mesmo passa pelo seu outro. Por isso esquemas como o eixo ego-self também são insuficientes, pois o si-mesmo contém o eu, e o eu em sua identidade profunda é o si-mesmo, portanto não pode haver nada entre eles além do movimento no qual cada um se reconhece como sendo em-si-mesmo o seu outro, enquanto o eixo se interpõe entre eles positivizando o que é movimento em três termos separados. Mas Miller apenas segue o esquema proposto anteriormente por Jung.

A diferença é que Jung não positivizava a função transcendente como o terceiro termo que leva a um quarto, mas a tomava como a atividade de produzir o terceiro excluído. Mesmo que o esquema de Jung seja menos positivista por abordar a função transcendente como atividade produtiva, ele ainda é insuficiente porque projeta a identidade implícita dos opostos em um terceiro termo tão positivizado quanto os dois primeiros. Tudo se passa no nível do conteúdo e a estrutura que sustenta a oposição não é questionada.

Não ocorre uma revolução da consciência que a permite refletir todo o problema da diferença excludente. Essa revolução não é possível no nível da semântica, através da criação de um novo conteúdo, mas apenas no nível da sintaxe onde todos os conteúdos da consciência brilham sob uma luz diferente.
A função transcendente, ao pretender realizar via imaginação a unidade dos contrários para no meio do caminho, deixando em aberto como precisamente se dá a síntese e qual o seu resultado determinado. 

Enquanto a imaginação for o horizonte último da psicologia a coniunctio oppositorum permanecerá um mistério, uma realização irracional que acontece no futuro em aberto assim como o encontro do homem com Deus só acontece no futuro após a morte. 

A unidade dos opostos é um mistério para a imaginação porque tanto ela como o eu funcionam extensivamente, espaço-temporalmente.  A co-incidência dos opostos não é um mistério irracional porque não está fora da razão, mas é a negação interna que a motiva a ir além de si mesma, visto que o infinito não é externo à cognição, mas faz-se infinito no devir cognitivo.  

A própria idéia de mistério pressupõe o outro que a nega, o conhecido. Não existe mistério sem conhecimento, pois o misterioso é o que não é conhecido, e o que é conhecido é o que não é misterioso. Isso faz do mistério uma idéia transracional, que transcende a concepção racionalista do positivismo. No transracionalismo psicológico o mistério é intrínseco ao processo de conhecimento, pois não é uma entidade empírica, mas uma idéia concreta, inerente ao próprio conhecer, que morre se não houver um mistério a ser conhecido.

“O Senhor que possui o oráculo em Delfos 
nem comunica nem esconde seu significado 
mas o indica  segundo um signo” 40.

  Heráclito não está se referindo aqui a uma terceira opção entre ocultar e revelar, mas a libertação dos opostos de sua prisão para que possam escorrer um no outro, afinal ele era o pensador do devir. Se o movimento de um pólo ao outro não for artificialmente prevenido, ele resultará em um comunicar que evoca o que está oculto para os sentidos e para imaginação. Mas esse evocar re-vela o que está oculto, circundando e protegendo a essência interna das coisas daqueles que querem vê-la, visto que ela é invisível, e inimaginável, e por isso só pode ser pensada, ou melhor, sua re-velação é próprio ato de criá-la através do pensamento. Isso é a mysterium coniunctionis, a conjunção de mistério e conhecimento, cuja atividade é o infinito re-velar do mistério.

De nada adianta pregar semanticamente a imersão alquímica no Mercúrio, enquanto sintaticamente, a própria forma lógica do discurso permanece de fora, seca 41. Não basta recolher a projeção do si-mesmo de Cristo, pois a unidade entre bem e mal, entre Cristo e AntiCristo, não resolve o problema que é interno a própria forma lógica do discurso junguiano. Enquanto o si-mesmo permanecer projetado nas imagens da mandala, do velho sábio, do Graal, da árvore, do peixe, do Aion, da pedra filosofal, do Mercúrio, da sizígia, da cruz, ou seja, enquanto o si-mesmo aparecer via imagem, enquanto ele for um conteúdo da consciência, ele é o objeto e nós, ego-personalidades, sujeitos do conhecimento. 

Essa cisão é intrínseca à psicologia junguiana e por isso o si-mesmo é inapreensível, misterioso, escorregando por entre os dedos da imaginação. Não se trata de substituir a imaginação pela lógica e o símbolo pelo conceito, mas de nos conscientizarmos que a imaginação é apenas metade do processo, que se pararmos nela a conjunção permanece abstrata, pois seu clímax, a unidade sujeito-objeto não acontece. Assim como um cubo de açúcar é dissolvido no café, também aquilo que é visto como um conteúdo sólido, personificado, é liquefeito na forma lógica da consciência. O conteúdo continua lá, desapareceu apenas como um objeto visível, imaginável, tornando-se uma qualidade da consciência, sua doçura 42.

            O movimento psicológico do infinito dissolve toda e qualquer imagem ao torná-la uma qualidade interna, uma predicação através da qual ele se torna autoconsciente. Sem as imagens que o personificam e o encarnam, o si-mesmo seria vazio, indeterminado e o infinito que é seu sinônimo estaria situado no além, visto que tem suas imagens fora de si. Pensamento absoluto é a unidade autocontrária de imaginar e desimaginar 43, pois sem imaginação não há razão e sem símbolo não há conceito. Razão que exclui imaginação e conceito que exclui símbolo é a razão e o conceito abstrato da lógica formal, que por ser a lógica dominante da nossa cultura nos faz identificar estes termos com a definição estreita e utilitarista que nela eles adquirem.

Ao abordar a síntese dos opostos como um puro mistério irracional Jung é injusto com a sua própria psicologia, pois em sua totalidade ela é, implicitamente, uma coniunctio, que não é apenas misteriosamente irracional. 

A psicologia junguiana 
não é pura e simplesmente mística, 
mas é, implicitamente, dialética. 

O que significa afirmar que ela nega-conserva a unidade mística imediata entre observador e observado assim como nega-conserva a mediatez da diferença empírico-científica entre ambos, sendo por isso a unidade negativa entre a atitude mística e a científica, uma mediata-imediatez. Jung é um puro místico para aqueles que vêem sua teoria de fora, que não mergulham na complexidade interna das suas articulações. O mesmo acontece com Hegel, cuja filosofia só pode ser refletida a partir da sua totalidade interna. 

(...) a dialética é o supremo esforço da razão, porém é o único método capaz de obter a compreensão do todo. Por isso entre os grandes filósofos, Hegel é o menos entendido, e objeto de exposições incapazes de captar seu pensamento, tão superficiais quanto distorcidas. Por outro lado, seu pensamento também é uma armadilha: ninguém consegue capta-lo sem se fazer, enquanto o estuda, hegeliano também, ao refazer em si mesmo o movimento do conceito hegeliano. Só que depois disso muitos não conseguem escapar dessa “ciranda” e não encontram saída para voltarem à maneira de pensar anterior. Por isso talvez a tendência comum seja manter-se de fora – o que tem como contrapartida nada entender verdadeiramente de Hegel 44.
 
É impossível compreender a dialética posicionando-se fora dela, porque compreender a dialética é compreender de forma dialética, pois nela o ser é movimento e por isso o ser dialética é o fazer dialética. Método e conteúdo são inseparáveis, assim como o caminho que leva a um resultado e o resultado atingido por aquele caminho. Se o leitor não refizer pacientemente em-si-mesmo o itinerário que levou a uma determinada conclusão, se ela for abstraída do caminho da qual resultou, torna-se vazia, pura retórica. 

A sintaxe da consciência era incognoscível para Jung porque ele trabalhava com uma concepção estreita de lógica, sinônima de razão utilitarista, abstrata, unilateral. Tal forma lógica jamais superaria as oposições que ela mesma ajuda a criar. Mas mesmo que na época de Jung essa concepção estreita de razão fosse dominante, ela não era a única disponível, e se ele tivesse estudado a obra de Hegel veria que o que concebia como unidade irracional dos opostos era na verdade a opus magnum da razão.

A concepção unilateral de razão, 
que tem suas origens na lógica analítica de Aristóteles,
foi veementemente combatida por Hegel 
ao longo de toda a sua obra. 

Para ele a verdadeira razão, o pensamento real, não era a atividade de abstrair o mundo em divisões irreconciliáveis, mas o re-ligare do que foi cindido pela abstração. Em uma de suas conferências sobre Hegel, Paulo Meneses comenta a diferença entre o entendimento e a razão.

Mas porque a mente humana tem essa tendência a fixar-se na unilateralidade? Por que tal dificuldade de acompanhar o movimento do ser em-si e para-si? A resposta está em uma de suas funções básicas que é o entendimento.  Ele tem por tarefa, justamente, ser o momento da análise ou dissolução da unidade compacta que a experiência sensível nos oferece: precisa estabelecer distinções, classificar e pôr etiquetas, abstraindo o maior número possível de aspectos, abrindo todo o leque, todo o arco-íris das diferenças. Ora, o que acontece é que esse trabalho se torna absorvente, e a tendência é que o pensamento se esgote aí mesmo; cristalizando os aspectos como se fossem a totalidade ou a última palavra sobre o real. 

Isso é notório nas “ciências do entendimento”, que hoje em dia monopolizaram o nome de “ciências”; e que tendem a tomar seu esforço analítico, de inegáveis méritos, como sendo a visão autêntica e plena da realidade. Seria o mesmo que tomar um corpo esquartejado como a verdadeira imagem do ser vivo, na beleza de sua unidade, no funcionamento multiforme da vida. (...)

Por isso, para além do entendimento, 
Hegel mostrou que havia a razão,
que dissolvia as cristalizações do entendimento, 
e transformava sua galeria de estátuas 
num delírio de bacantes, dançando
ao ritmo da orquestração do Todo  
 Fonte:
PSICOLOGIA:ANALÍTICA OU DIALÉTICA?
http://www.robertexto.com/archivo1/psico_anal_dialetica.htm

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