quinta-feira, 19 de maio de 2011

DEVIR - C.G.Jung - Andé Dantas



ANDRÉ DANTAS 

            A dialética é a religação da dissociação operada pelo entendimento na filosofia kantiana. Enquanto o real estiver cindido em uma realidade fenomenal acessível a razão e um mundo de coisas-em-si inacessível à compreensão humana, a razão continuará unilateral e abstrata, por mais sintetizante que pretenda ser. Enquanto houver dois mundos a razão continuará alienada da existência, opondo-se ao real, pois toda vez que tentar apreendê-lo o cindirá em um real apreensível e um real em-si inapreensível. 

Essa cisão não precede temporalmente o entendimento, mas é o que fundamenta sua própria atividade. Por isso o cogito ergo sum cartesiano recebe na contemporaneidade a interpretação fraca de um pensamento que se isola do mundo, quando uma interpretação forte revelaria que o que está em jogo é um pensar que está na essência de ser 46. Para o entendimento o pensar nos cinde da vida, isolando-nos da existência. Em tal pensamento a razão é cindida da emoção e dos instintos porque ela é a própria atividade de cindir-se deles. 

Tal cisão está fundamentada na cisão entre nôumeno e fenômeno, e enquanto a distância entre ambos for intransponível qualquer atividade sintetizante permanecerá incompleta e seus resultados abstratos. Enquanto o mundo das essências for proibido para a consciência, ela jamais será uma consciência concreta.
            Quais são as condições para o conhecer? O que conhecemos quando conhecemos alguma coisa? Quando conhecemos algo, conhecemos aquilo que esse algo é, suas propriedades, atributos, aquilo que o define, ou seja, os seus predicados, que o faz ser o que é e não o que não é. A coisa-em-si por ser incognoscível é uma coisa abstraída de todas as suas propriedades, de todos os seus atributos de tudo aquilo que a define. Se X é alguma coisa, a incognoscibilidade de X é a abstração dessa alguma coisa que define X. O que nos torna capaz de conhecermos X são seus predicados, por exemplo: X é grande, redondo, frio. Se abstrairmos X de todos eles restará apenas X. X é o quê? Nada. Aquilo que X é, o ser de X é nada. 

Quando falamos a respeito de qualquer coisa, quando tentamos defini-la, determina-la, temos de predicá-la. Uma proposição para ser bem formada necessita de sujeito e predicados distintos. Para Kant uma das condições a priori para o conhecimento, para cognoscibilidade, é sujeito, predicado, ligação entre sujeito e predicado 47. Dizer simplesmente “X”, é não afirmar nada a seu respeito. “X” o quê? É preciso dizer mais. Do mesmo modo com o predicado “é frio”. O que é frio? Logo dizer apenas “X” é não dizer nada. O que é “X”? Qual o ser de “X”?

 Ao afirmarmos que “X é”, não estamos afirmando nada a respeito de X, “X é nada”, o que significa dizer que ele pode ser tudo. Ao afirmar que simplesmente “X é”, não estamos pressupondo nada a respeito de X, não pressupomos que X é grande, pequeno, vermelho, preto, bom, mau, divino, humano, que é um carro, uma cadeira, nada. Mas ao não pressupor nada apontamos um lugar vazio onde não há nada de determinado, mas há espaço para pôr o que quer que seja. Não pressupor nada de determinado é pressupor tudo de maneira indeterminada 48. 

Afirmar que “X é”, não pressupõe nada de X ao mesmo tempo em que pressupõe tudo de X, logo X é nada e X é tudo. O ser de X, o que X “é”, é nada e tudo. Assim ao abstrairmos todas as propriedades de uma coisa de modo a chegarmos ao conceito de coisa-em-si, aonde chegamos é em um nada que é tudo e um tudo que é nada. Quando se aprofunda o conhecimento sobre algo precisamos determiná-lo dizendo o que ele é de forma a torná-lo mais concreto, e para fazer isto precisamos defini-lo por meio de uma predicação. Qualquer proposição bem formada precisa de sujeito e predicado diferenciados 49. O que os diferencia, e por diferenciá-los os une num relacionamento é o conectivo “é”. Graças a ele tudo é algo. 


A filosofia de Kant começou perguntando quais as condições para necessárias para o conhecer, e durante o percurso afirmou que conhecemos apenas as aparências fenomenais, e não as coisas-em-si-mesmas 50. Mas para responder quais as condições necessárias para o conhecer é preciso primeiro perguntar o que é o conhecimento, o que faz dele conhecimento e não uma outra coisa, ou seja qual o ser do conhecimento 51.

O ser é a categoria mais universal, englobando tudo que “é”, e por isso também a mais abstrata, visto que ao se definir como tudo se torna um nada indefinido. Assim afirmar que tudo é, ou que tudo é ser (o que é o mesmo pois o ser está implícito no “é”) joga tudo na indeterminação, na abstração vazia, visto que não afirmar coisa alguma é o mesmo que dizer que nada é. O ser aqui referido não é nenhum ser determinado,concretamente existente, individualizado. 

Qualquer ser individual é a determinação do ser universal. Matéria por exemplo é a determinação do ser universal em ser-material.  O ser de que se fala aqui ainda não se diferenciou, e por isso é a pura e infinita capacidade de se determinar.  Se pegarmos um ser individual e retiramos dele todas as suas determinações, teremos o próprio conceito de ser. O amor é arrebatador, belo, quente, doloroso, nostálgico. Se abstrairmos tudo, teremos no final “o amor é”. Mas é o quê? Esta afirmação de ser é o quê? Nada! 

O ser puro sem qualquer atributo que têm contemplado em si a possibilidade de ser determinado de infinitos modos, podendo ser tudo, é idêntico a um nada que de acordo com a sua natureza necessita excluir toda e qualquer determinação. O que difere é apenas nossa atitude intencional diante dessas duas noções 52.

Antes de dizer qualquer coisa a respeito de algo qualquer, até mesmo que esse algo existe, pressupomos que esse algo é. Esse puro ser é um puro nada, uma vacuidade absoluta. Não se pode apresentá-lo, visto que nada se pode pensar dentro dele. Mas como vazio de pensamento ele é o puro pensar, e assim já é um conteúdo, o pensar enquanto possibilidade absoluta. A pura igualdade do ser consigo mesmo é tão pura, tão idêntica a si que traz a tona o seu contrário, o puro nada. 

A identidade de ser e pensar contém em si a sua diferença, o outro do ser, o não-ser, o nada. Ser e não-ser são abstrações absolutas do pensar que re-flexiona sobre si mesmo. O pensamento é em-si-mesmo ser, mas é também o outro de si-mesmo, o nada. Logo o puro nada possui algo dentro de si, o ser, e por isso o não-ser é um ser, o ser do nada 53.
  
 Assim a primeira tese explode jogando-nos na sua antítese que por sua vez também explode. Sendo impossível desenvolver qualquer coisa a partir da tese e a partir da antítese o que resta? O que está entre as duas, a passagem de uma a outra, o movimento da tese a antítese. Quando algo está se desenvolvendo, crescendo, progredindo, aumentando, está sendo mais, está indo em direção ao mais ser. Quando algo está decrescendo, regredindo, definhando, diminuindo, está sendo menos, está se aproximando do menos ser, do nada que é o não-ser. Se buscarmos a categoria que engloba todos esses verbos, que é a síntese de todas essas ações, crescer, aumentar, progredir, regredir, diminuir, decrescer, cairemos no movimento, no devir. Devir enquanto noção que contém ser e não-ser é a síntese que já estava implicitamente presente desde o começo 54.   


Por reunir os momentos ideais de ser e não-ser, o devir é o primeiro pensamento concreto. O ser que é tudo e o não-ser que é nada são idealidades que se concretizam ao trans-passarem um no outro, sendo eles mesmos esse movimento de serem um no outro. A passagem inquieta do ser ao não-ser, e deste ao primeiro é a sua calma-inconstância, sua fluidez-permanente. Do aparecer ao desaparecer, do nascer ao morrer, vem à tona a existência. Tudo que existe é devir, nasce e perece, floresce e desaparece 55.

  Esse movimento é o Tao, 
o caminho percorrido por tudo que existe.
Do devir surge o ser-determinado, 
o ser-qualitativo, o ser que existe. 
 
Para afirmar “algo” é preciso distinguir um ou vários predicados que o determinam ao qualificá-lo como ser-algo enquanto tal. O ser-algo afirma uma qualidade, um predicado, que é a sua realidade, e com isso nega outras qualidades, outros algos. Qualidade é realidade 56, o que implica que realidade é negação, ser e não-ser enquanto existência concreta. Só assim é possível qualificar algo existente, pois existir é ser-determinado. Algo se opõe aos outros algos mediante sua qualidade. Distinguir algo do seu contexto de algos é distingui-lo qualitativamente, pois diferenciar é qualificar. Mas o algo, por ser real, não apenas nega o resto, mas também a si-mesmo, na medida que é si-mesmo ao opor-se aos outros na afirmação de sua qualidade 57.
 
Algo, um ser-determinado qualquer, é a negação da negação, idêntico a si através da negação de outro e por isso também diferente do outro e de si-mesmo. A qualidade põe-se por meio de sua igualdade e desigualdade, sendo assim mediação consigo mesma através de um outro. Todo ser-determinado tem sua realidade própria que o qualifica face a outros, algo que o afirma, distingue, limita e separa. 

Afirmar algo é negar outros, 
visto que a afirmação de uma qualidade
é a negação das outras.

Toda determinação é uma afirmação que exclui outras afirmações. Toda qualidade, toda afirmação, é a diferença entre algo e outro. Algo e outro são conceitos interdependentes e intercambiáveis, pois diferenciar é distinguir qualitativamente algo e outro 58.

Algo é “outro” face ao seu outro. O ser-determinado é uma oposição determinada entre algo e outro, pois o outro do algo é a alteridade para o qual o algo é “outro”. Por serem existências finitas e variáveis, ambos são entes. Cada um só é na relação com o outro, de modo que cada um tem um ser-para-outro e um ser-em-si. Ser-para-outro é o momento da relação de oposição com o outro e de desigualdade consigo.

Ser-em-si é a sua auto-afirmação,
o momento da relação consigo mesmo 
face a sua relação com o outro 59. 

Todo algo refletido em si aparece nessa duplicidade, bifurcado, como o bifacial Janus, deus romano das transições, das passagens e dos nascimentos.
 Algo é em-si no momento que sai do ser-para-outro e retorna a si. Mas algo também tem uma determinação em-si na medida em que essa determinação é colocada externamente nele (em-si), por ele ser-para-outro. Ser-em-si e ser-para-outro são momentos do algo e do outro, estando intrinsecamente relacionados e convivendo numa inquieta-harmonia dentro do outro e do algo 60.
 
Todo algo enquanto ser-para-outro é também algo-em-si. Para filosofia kantiana todo fenômeno pressupõe uma coisa em-si, uma essência incognoscível que é a condição do fenômeno conhecido. Mas se no ser-para-outro está contido o ser-em-si, e vice-versa, então o fenômeno é a manifestação da coisa-em-si porque esta se manifesta nele. A coisa-em-si está sempre dada no fenômeno, pois se ela não aparecesse não haveria aparição. No fenômeno em-si é possível conhecer algo em-si 61.

Cada algo é a negação de si-mesmo 
em seu outro e a negação dessa negação 
como retorno a igualdade consigo
mesmo face ao outro.

Cada ente tem em-si uma determinação essencial, sua destinação, e uma constituição variável. De início toda variação recai na constituição natural do algo, que corresponde ao ser-para-outro. A determinação essencial pertence ao em-si, não varia, sendo a interiorização do ser-em-si, seu destino. A natureza variável ou constituição, sendo o lado do ser-para-outro, da desigualdade consigo, é exterior, mas é exterior no algo, está nele, e por isso também constitui sua qualidade 62.

A qualidade do ente possui então uma natureza e um destino, uma exterioridade e uma interioridade, que se alternam reciprocamente. O resultado é a determinabilidade enquanto tal, onde destinação e constituição trans-passam uma a outra. A constituição variável está permeada pela destinação, enquanto negação interiorizada, assim como o destino, na medida em que interioriza o seu ser-outro, é permeado pela constituição variável. Cada um limita o outro e constitui algo, ou outro. A dupla negação é a negação enraizada em cada algo, seu limite, aquilo define o que os entes em geral são 63.
 
A relação entre algo e outro se constitui pelo limite, e assim ser algo determinado significa ser um ente, um ser delimitado em-si face a outros entes, cada um limitando e sendo limitado pelos outros. O limite é a fronteira entre o aquém e o além, ao definir ao mesmo tempo o que algo é e o que não é. Ao definir, o limite afirma e nega tanto o algo como o outro, pois cada um se constitui em-si como limite do outro. Por ser aquilo que qualifica o limite não é fruto de uma relação exterior entre entes reais, qualitativamente diferenciados, mas aquilo que distingue, separa, exclui, ou seja, o que essencialmente qualifica. Portanto cada algo é o não-ser do outro e o limita nele próprio. A relação é reversível, pois o outro também é algo, e em vista disso o limite é o não-ser do algo em geral.

Algo é o não-ser do outro através do limite, 
e assim o limite ao negar, 
afirma sempre algo face a outro. 

Ao cessar algo no outro, e o outro no algo, o limite é o meio onde algo e outro tanto são como não são. Ele é tanto ser como não ser. Enquanto ser do algo é não-ser do outro, e enquanto ser do outro (algo) é não-ser do primeiro algo. Ambos só existem dentro do seu limite que é então o não-ser de cada algo e o outro de ambos, conservando assim a unidade relacional de ser e não-ser e sendo por isso o próprio existir 64. 

O limite é o local de Hermes, deus da duplicidade, 
cujos altares eram pilhas de pedras (hermai
erigida nas fronteiras, locais onde o mundo dos mortos,
do não-ser, se entrecruza
como o mundo dos vivos, do ser.

Algo só existe, somente tem seu aí, dentro dos seus limites. Os entes têm início meio e fim, são delimitados, definidos, finitizados. O limite é a dupla negação que constitui algo como algo e outro ao mesmo tempo, sendo imanente aos entes na medida em que existe separado e distinguido mediante sua qualidade face aos outros entes. Limitar é finitizar, visto que o finito é algo posto em seu limite imanente como sendo a contradição de si-mesmo, a afirmação do ser e do não ser de algo. 

O limite constitui a existência como limitada e findável,
um nascer que já supõe a futura morte 65.

O finito é contraditório ao se por como determinação existencial e qualitativa que afirma e nega o seu caráter intrínseco, sendo tanto uma exigência de subsistência como de desaparecimento. Desde que esta-aí exige persistir, mas por outro lado, supõe um período de vida finito que fatalmente acabará no começo de outro ser aí. Existir é possuir um destino singular característico face a outros, e um destino universal partilhado com todos os entes finitos. Determinar é pôr aí, dar início e pôr fim. 

O limite constitui-se como o fado do finito, 
com os entes persistindo fatalmente até o fim  
 
Ao ser fim o limite interioriza-se como barreira, uma exigência de desaparecimento intrínseco a tudo que é finito. Mas o momento de evanescência é acompanhado de outro momento em que o finito teima na subsistência, na transgressão da barreira. O finito é algo limitado que contradiz a si-mesmo ao possuir o dever de ir além dos seus limites, de superar indefinidamente sua barreira. 

O finito é então uma barreira 
e o dever de transpô-la. 

Sem barreira o dever já estaria cumprido, não sendo então o dever de ir além dela, e sem o dever a barreira não seria barreira, pois não teria o que barrar e confinar dentro de limites. Essa tensão é o finito enquanto existência, o que simultaneamente deve-ser e não é. A finitude está fadada a superar-se enquanto dever, mas a findar enquanto barreira. Essa contradição é o finito enquanto devir, onde os entes em seu dever são lançados para além de si em direção ao infinito 67.
 
O ser do finito é o dever de subsistir, e o seu não-ser aquilo que caracteriza as coisas como finitas, o fado que as conduz ao seu fim. A razão abstrata afirma o segundo momento como sendo aquilo que caracteriza o finito, pois não vê o fim como passagem, onde o perecer é uma transformação. Não conseguindo compreender que ser e não-ser são momentos complementares do devir, insiste que o não-ser é a anulação do ser. Isso leva a percepção apenas da variação, do perecimento, da passagem para o fim enquanto nada abstrato irreconciliável com o ser. Do lado da finitude está somente o perecimento, pois todos os entes são finitos, o que leva a afirmação da eternidade da finitude 68.
 
Na persistência deste luto o entendimento faz do não-ser a determinação das coisas, que por ser inseparável delas é a sua qualidade imperecível, eterna, absoluta, pois se não o fosse os entes não seriam finitos. A unilateralidade racional opõe ser e não-ser, persistir e findar, finito e infinito. Mas opor qualitativamente finito e infinito resulta na afirmação do finito como sendo a característica imutável das coisas, aquilo que lhes é eterno, infinitizando então o finito 69.

Como o finito pode ser transitório e imperecível? Se abordarmos o aspecto do “ser da finitude” a transitoriedade é absolutizada, e se abordarmos o aspecto da transitoriedade, o próprio perecer perece. Com sua lógica extensiva o entendimento abstrai o infinito do finito, sendo o primeiro o ser absoluto, a pura afirmação, e o segundo a negação, o não-ser, o limite. Ambos são incompatíveis. 

O finito é negação, a barreira, 
o limite internalizado que o separa do seu pólo 
qualitativamente oposto, o infinito. 

Tal como dois entes cada um é qualificado frente ao outro. Porém segundo seu dever, o finito tende ao seu outro, mas como o dever é limitado pela barreira que caracteriza a finitude do finito, essa tendência é frustrada. O dever-ser é um ir além da barreira, mas um ir além que tem sua vigência no campo da finitude 70.

A finitude é esse tender para a infinidade na inquietude que caracteriza o seu dever e a sua barreira, um limitando o outro e tentando ultrapassa-lo, seja em busca do seu fim, seja em busca do sem-fim. Barreira e dever são imanentes um ao outro, já que cada um contém o outro e só é o que é a partir do outro, sendo por isso momentos essenciais da finitude. Sua relação é o ser-em-si, a igualdade consigo mesmo do finito, mas como cada um aparece como negação do outro, o finito contradiz a si-mesmo. 

A finitude suprime a si-mesma
tendo como destinação fenecer

mas tal fenecer dá luz a um outro finito, que por sua vez perecerá em outro finito, e assim ao infinito. Não há um desaparecimento puro e simples, mas um trânsito. O infinito é imanente a finitude, pulsa em seu interior fazendo dela o perecer do perecer, a negação do negativo, portanto negação absoluta de si-mesma 71.
 
Para a razão abstrata, o finito é a ligação das criaturas com o mundo sensível e o infinito é o além incognoscível. Mas o infinito impulsiona por dentro o perecível a transcender a si-mesmo, pois o finito não desaparece no vazio, mas transita, transforma-se em outro 72.
 
O dever ultrapassa a barreira, mas como é barrado por ela em sua ultrapassagem, ao superar a si-mesmo o que faz é alcançar uma nova barreira. O dever é a sua superação, o ir além de si-mesmo, só que além de si-mesmo o que encontra é o seu outro, uma nova barreira, que expulsa-se em direção ao se outro, o dever. Nessa inquieta inseparabilidade toda e qualquer ultrapassagem da barreira é o encontro com limitação do dever e por isso o próprio retorno da finitude a sua igualdade constante. Mas se algo é igual a si-mesmo em sua própria distinção, se permanece idêntico a si apesar da variação, se é imutável dentro da própria mutabilidade, então é infinito. Desse modo o finito não é um infinito perecimento, mas o que nega o seu próprio perecer, e essa dupla negação é o que faz o finito transitar, a partir do seu próprio interior, ao infinito 73.

A infinidade é a pura igualdade consigo mesma, a pura afirmação que se opõe a finitude, ao negativo. Apesar de se apresentar como ilimitada, a infinidade é limitada pelo finito como o positivo face ao negativo. Porém ao ser a negação do limite característico da finitude, o infinito torna-se dependente do seu oposto, tornando-se não mais incondicionado, mas um infinito finitizado. A natureza do finito é o tornar-se a partir de si-mesmo o seu outro, o infinito, e isso não a partir de algo extrínseco, mas por sua relação consigo mesma enquanto barreira e enquanto dever de ir além dela 74.
 
A determinação recíproca entre infinito e finito resulta na interiorização do conceito de limite do algo, que faz com que o finito tenha o dever de superar a si-mesmo e tenda ao seu contrário, o infinito. Mas o limite é sempre limite, e o ir além de si-mesmo que é o dever do finito é o eterno encontro com o limite além de si-mesmo. O limite jamais é superado por completo, sendo sempre empurrado para adiante. Finito e infinito são momentos que se determinam reciprocamente e se apresentam como um progresso infinito, uma contínua e indefinida ultrapassagem sempre inacabada, incompleta, finita. Ambos são o outro-em-si-mesmos.

O infinito é dever
que obriga a superação da barreira, 
mas cuja superação é um nova barreira 
que deve ser superada, e assim ao infinito 75.  

Infinito e finito são concebidos como separados um do outro, como negação um do outro, mas enquanto opostos, ambos são determinados. Isso é o que caracteriza a finitude, ser sempre um algo face a outro algo que a limita. Mas se o infinito depende do finito para ser o que é, então ele é limitado, determinado, entificado. 

Finito e infinito 
sofrem o limite 
ao serem antagonizados. 

O finito ao ultrapassar sua barreira 
transita a infinidade, 
tornando-se um finito-infinitizado. 

O infinito contraposto ao finito deixa de ser o incondicionado, aquilo que é idêntico a si-mesmo, e passa a ser apenas a partir do seu limite, negando a si-mesmo e tornando-se um infinito-finitizado. Como cada um transita no seu outro, o inteligível é acidentalizado ao admitir a barreira, sendo rebaixado a finitude, enquanto o sensível é elevado ao plano da necessidade, suprimindo sua barreira e realizando o seu dever de ir além do seu limite. 

A dicotomização dos dois se levada ao seu extremo torna-se a sua própria inseparabilidade. Isso ocorre porque ambos estão relacionados entre si exatamente pela negação que os separa, uma negação que sendo interior a ambos afeta o ser-em-si tanto de um como do outro, tornando-os momentos de um único e mesmo devir que está unido em sua própria contradição 76.
 
O infinito e o finito são momentos que se determinam reciprocamente e se apresentam como um uma contínua ultrapassagem para sempre inacabada, incompleta, finita.  Ambos têm o outro dentro de si-mesmos, são a unidade de si e do seu outro. O infinito é dever que obriga a superar a barreira, mas tal superação é uma nova barreira que deve ser superada e assim ao infinito.  Cada um é momento de um todo dentro do qual cada um é o que é por meio do outro e da negação desse outro. 

O infinito só é finitizando-se 
e o finito só é infinitizando-se.

Ambos são em-si o seu ser-para-outro, e a totalidade é devir como afirmação absoluta de si. O momento do finito possui o duplo sentido de ser em sua imediatidade qualitativamente oposto ao infinito e de ser em sua mediação finito e infinito ao mesmo tempo. O momento do infinito também tem o duplo sentido de ser ele mesmo e o seu outro 77. A razão abstrata dicotomiza infinito e finito fazendo-nos acreditar que são opostos, como se cada um possuísse as mesmas propriedades. Mas sua oposição é o que os une precisamente pela negação que os separa, pois o próprio ato de opor é um pensamento que acaba por relacionar intrinsecamente os termos que opõe. 

A passagem da finitude a infinidade 
ocorre porque o finito não se determina 
apenas como existência subsistente,
mas também como ser-em-si-negativo
que se dissolve 

 
A passagem de um ao outro é o resultado da contraposição qualitativa em que foram lançados, limitando o infinito que se torna o negativo do finito e por isso outro finito. Mas essa passagem de um ao outro que os torna inseparáveis é a unidade-na-diferença de ambos. Essa unidade é a própria contradição de um finito que lança-se infinitamente para fora de si mas depara-se com o limite intrínseco que o força a retornar sobre si.

Esse movimento resulta na multiplicidade de finitos, cada um impulsionado pela infinitude que lhes é interna a persistirem em-si, mas transformando a si-mesmos em um outro nesse próprio persistir. Cada outro é em-si essa impulsão infinita que se afirma na negação deles mesmos. Trata-se de um movimento cíclico onde o fim coincide com o começo, e o infinito exibe-se como esse devir de tornar-se um outro de si-mesmo sem sair de si, multiplicando-se numa multiplicidade que é a expressão de sua própria unidade, uma identidade que só é idêntica a si quando se diferencia. 

O absoluto
é assim um movimento autocontraditório, 
que expulsa-se para fora de si 
ao retornar a si e retorna a siao lançar-se 
para além de si. 

Ele é a identidade que se afirma por intermédio da diferença, a unidade que se diz através da multiplicidade. Esse paradoxo da razão é a própria razão como um fervilhar interno a tudo que é vivo e que por ser vivo contém em-si seu próprio ir-além, sua morte. 

  O entendimento abstrai infinito do finito. Ao limitar o infinito através do finito, negativizando o que é pura afirmação de si, o resultado foi não mais um infinito além da finitude, incognoscível, mas um infinito interno a própria finitude, que a impulsiona e a faz ser o que é em-si-mesma. Mas o infinito, segundo seu próprio conceito, não pode ter nada fora de si, pois se tivesse não seria infinito, e sim um outro finito. 

O infinito é então a própria contradição,
enquanto devir que contém a identidade 
e a diferença como momentos. 

O infinito concreto é a unidade do infinito abstrato e do finito abstrato, e só nesse infinito determinado através da multiplicidade de finitos é que a finitude se torna realmente concreta, pois reencontrou-se na verdade do seu conceito que a faz ser uma finitude não porque se opõe ao infinito, mas porque é um momento transitório na eternidade do seu devir. 

 Fonte:
PSICOLOGIA:ANALÍTICA OU DIALÉTICA?
http://www.robertexto.com/archivo1/psico_anal_dialetica.htm
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

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