ANDRÉ DANTAS
“Tudo isso é muito interessante, mas é apenas teoria, não tem nada a ver com a prática”. Este tipo de argumento é comum de se ouvir, de que o que interessa na teoria é apenas a parte prática. Neste tipo de argumento o positivismo faz sentir toda a sua força no seio da própria consciência psicológica 140.
Em um dos seus escritos Freud defende como principal regra da técnica psicanalítica o levantamento da repressão. “É notável como toda tarefa se torna impossível se permite reserva mesmo em um único lugar” 141. Mas a repressão não situa-se apenas na personalidade subjetiva, mas aonde quer que haja uma cisão, e por isso o maior santuário da cisão repressora é a teoria psicológica. Ela defende todo o tipo de técnicas e interpretações a serem utilizadas na clínica com os pacientes, mas ela mesma é total e completamente imune a essas interpretações e técnicas.
A psicologia como teoria e a psicologia como prática são dissociadas uma da outra. Pode-se praticar psicologia à vontade como se ela fosse uma técnica, uma espécie de canivete suíço que dependendo do obstáculo saca-se uma ou outra ferramenta adequada para lidar com ele.
A teoria serve apenas para disseminar as técnicas e ensinar os psicólogos a reproduzi-las adequadamente. A mentalidade tecnicista-utilitarista é interna a psicologia, sendo cada vez mais popular na reprodução de um exército de autômatos que se questionados a respeito do porque de tal técnica, respondem da mesma forma que os membros da tribo africana dos Elgonyis responderam a Jung quando perguntados do por que cuspiam na mão e apontavam para o Sol quando este nascia: “Sempre fizemos isso” 142.
O psicólogo afirma que o paciente deve questionar-se, deve rememorar o passado para rever seu presente. O próprio psicólogo fez isso em sua análise pessoal, mas quando se trata de fazer o mesmo com a teoria que fundamenta sua prática, nada acontece. “É apenas teoria” diz ele e continua repetindo-a como um papagaio repete o que ouve sem ter a menor consciência do seu significado, e assim o status quo permanece intacto. Mas se o psicólogo rememorar o passado do fundamento da sua prática descobrirá que ela surgiu como um abalo sísmico do status quo vigente, pois a psicologia do inconsciente surgiu como um questionamento radical do modo como o homem em sua totalidade relacionava-se com o mundo, e não como uma psicologia da subjetividade abstrata deste ou daquele paciente específico 143.
Enquanto a psicologia cindir o paciente do mundo que o circunda, de nada adianta falar de totalidade, pois é apenas a totalidade do interior subjetivo que presentifica-se no interior do consultório. Todo o resto do mundo permanece de fora, intocado. Para psicologia redescobrir o potencial corrosivo que lhe é inerente, ela precisa provar do seu próprio remédio, ser seu primeiro paciente, refletindo sobre si-mesma de forma a interiorizar-se, tornando-se assim uma psicologia internamente crítica.
Mas como uma psicologia cuja própria lógica interna é neuroticamente cindida consegue ainda assim aliviar o sofrimento dos pacientes, como ela visivelmente vem fazendo ao longo dos anos de forma até bastante eficiente? Ela não deveria piorar a situação? Para responder esta questão é preciso refletir a teoria psicológica em sua prática psicoterapêutica, pensando ambas como momentos diferentes de um mesmo movimento chamado práxis 144.
Para Freud o motor da análise era a transferência, e o encontro entre analista e paciente transformava-se de uma simples conversa em análise a partir do momento em que a neurose do paciente convertia-se em neurose de transferência. Esse combustível inflamável afeta todo o ser do analista, que muitas vezes sente em seu corpo a subjetividade do paciente.
Deve-se a Jung o mérito de reconhecer a utilidade terapêutica dessa contratransferência que, muito antes de ter sua importância reconhecida pelos kleinianos, já afirmava que o terapeuta só afeta o paciente na medida em que é afetado por ele. O processo transferencial-contratransferencial transgride a lógica extensiva, que afirma que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço, ao misturar a interioridade do paciente e do psicólogo.
Como o psicólogo responde a esse processo? Ou ele não toma consciência dele e prossegue muitas vezes atuando-o inconscientemente, ou ele o reconhece e teoriza sobre ele, alertando sua importância para a prática. Mas ao invés de reconhecer a plena realidade desse fenômeno, cuja essência é a transgressão do espaço extensivo, o psicólogo frustra o próprio movimento analisando-o de forma abstrata, como uma projeção do mundo interno do paciente sobre o mundo interno do psicólogo.
O movimento no qual a interioridade do paciente não pertence apenas a ele mesmo e a interioridade do psicólogo também não, tem seu reconhecimento frustrado no momento em que o terapeuta o interpreta como a projeção de algo que sai de um interior subjetivo abstrato para outro interior subjetivo abstrato. Assim o esse in anima, o estar imerso na alma, não tem sua realidade reconhecida nem mesmo na prática psicológica, visto que paciente e psicólogo continuam tendo o seu ser aprisionados dentro de si mesmos. A psique é então privada da sua essência, que é estar mais dentro de si-mesma quanto mais está mais fora de si-mesma, imersa no mundo, porque a psique não é uma coisa, não possui propriedades espaciais e por isso seu interior é relação.
A prática terapêutica da psicologia incentiva o paciente a reconhecer a inconsciência, mas a própria psicologia é defendida contra esse reconhecimento. Como a psicologia concebe a realidade física como solo primário onde nascem e crescem as pessoas que possuem uma psique em seu interior como um dos seus inúmeros atributos, o que nela é inconsciente é a própria psique.
A intelectualização excessiva dos afetos por parte do psicólogo é logo detectada como atuação de um mecanismo de defesa, mas quando se trata do inverso, do mergulho na introspecção personalista, da defesa exacerbada dos afetos subjetivos com a conseqüente rejeição da reflexão teórica, a psicologia nada tem a dizer. Se um é visto como neurótico e o outro não, então fica claro que o interior personalista e os afetos subjetivos são o lugar por excelência da psique, enquanto o pensamento reflexivo tem o seu papel restringido a cuidar para que a psique não transgrida as barreiras da subjetividade escapando para o mundo externo. Mas então quando nos abandonamos às experiências emocionais na psicoterapia algo é deixado de fora, intacto, in-afetado.
Esse algo que serve de âncora, de solo firme, é o pensamento reflexivo, que permanece tão abstrato e unilateral quanto sempre tem sido, visto que é reservado apenas para teorizar as experiências nos artigos, livros, cursos e palestras. Mas ele às teoriza como algo que ocorreu fora dele, como um cientista observa uma substância contida num tubo de ensaio 145. Logo a psicologia possui um ponto de Arquimedes fora de si, o logos, aquilo que faz da psique uma psicologia.
Esta reserva mental cinde a psicologia em dois momentos, a prática terapêutica e a teorização, um imune ao outro, reproduzindo em-si-mesma a cisão neurótica que pretende curar. Assim a neurose do paciente que havia sido transferida ao psicólogo, é agora transferida por ele para a própria teoria psicológica e disseminada pelos quatro cantos do mundo via artigos, livros, palestras e cursos.
O instrumento dessa transferência são as inúmeras técnicas e interpretações que ocorrem na terapia através da qual a neurose é amplificada, assim como toda a mentalidade do paciente, ao nível objetivo da psicologia enquanto teoria do ser humano como um todo 146. Mesmo as interpretações e técnicas baseadas no desenvolvimento infantil também são, como a mitologia, formas de amplificação 147, sendo na verdade a própria mitologia contemporânea, as narrativas e rituais deste poderoso deus chamado indivíduo 148.
Durante milênios os homens buscavam os lugares específicos ao qual cada evento do cosmos pertencia. Esses locais específicos eram os deuses que ao oferecerem abrigo e altar ordenavam e tornavam inteligível todo e qualquer evento, seja ele humano ou natural. Todo o mundo antigo funcionava de acordo com essa reversão dos eventos microcósmicos ao macrocosmo. Esta era uma das principais questões endereçadas aos oráculos gregos: a quais deuses deve-se rezar ou pagar sacrifício para atingir esta ou aquela graça 149.
No cristianismo essa era também uma prática corrente, só que em vez de heróis e deuses pagãos, eram Deus, Cristo, Maria e toda a multiplicidade de santos. Situar o local específico ao qual este ou aquele evento pertence, a quem ele se relaciona, permitia que o ser humano fosse adiante. Hoje esse local específico é a interioridade subjetiva. Ela é o altar no qual a psicologia situa os problemas psicológicos, e é a partir dessa conexão com algo mais amplo que ele mesmo, efetivada através do ritual psicoterápico, que o paciente se permite ir adiante.
Ao refazer em sua prática terapêutica
o devir histórico que a partejou,
a psicologia transparece a circularidade urobórica
que lhe é intrínseca.
Um aspecto proeminente da perda coletiva das categorias suprapessoais tem sido um aumento da “pré-ocupação” com a subjetividade do indivíduo. Trata-se efetivamente de um fenômeno moderno e na verdade não poderia existir se os valores transpessoais fossem satisfatoriamente contidos numa religião coletiva tradicional. Mas, uma vez que o sistema simbólico tradicional sofreu ruptura, ocorre algo parecido com o retorno de uma grande quantidade de energia à psique individual e passa a haver um interesse e uma atenção muito maiores concentrados na subjetividade do indivíduo. A partir desse fenômeno, a psicologia profunda foi descoberta.
A própria existência da psicologia profunda é um sintoma do nosso tempo. Outros indícios se encontram em todas as manifestações artísticas. As peças e romances descrevem exaustivamente os indivíduos mais banais e comuns, nos seus aspectos mais caros e pessoais. A subjetividade interna tem recebido um grau de valorização e de atenção que jamais recebeu antes. Na realidade, essa tendência é um indício de coisas que virão a existir. Se a acompanharmos até sua conclusão inevitável, não há dúvida que ela levará as pessoas, cada vez mais, à redescoberta das categorias suprapessoais perdidas no interior de si mesmas 150.
Portanto mesmo uma interpretação ou técnica que localize a problemática do paciente no seu passado infantil, amplifica essa problemática como parte de uma tendência cultural mais ampla 151. Mesmo que o conteúdo de uma teoria psicológica seja personalista e redutivo, isso não muda o fato de que, enquanto expressão de uma tendência cultural que a circunda e contém, ela funciona de modo transpessoal 152.
Mesmo quando ela pretende fortalecer o eu, ainda assim é parte de um movimento cultural que transcende o indivíduo e ocorre não só através da psicoterapia, mas através de livros e palestras de auto-ajuda, de academias de ginástica, de personal coaching, de cursos que levantam a auto-estima, plástica etc. Desse modo a retirada das projeções do mundo externo para o mundo interno são uma forma de epistrophé, a reversão de um evento para um local transpessoal 153. Mas este local transpessoal é o interior da própria pessoa e por isso há uma dissociação entre o conteúdo da psicologia e a lógica do seu funcionamento.
As psicologias que se declaram personalistas em sua teoria, funcionam na prática transpersonalisticamente, e as psicologias que em sua teoria se declaram transpessoais, como a psicologia analítica, ao não conseguirem conceber um espaço intensivo, inevitavelmente dissociam o real em um interior subjetivo e um exterior objetivo, desfazendo com uma mão o que a outra faz. Não é a toa que para tal estilo de psicologia a idéia de relacionamento humano seja tão excessivamente importante, visto que ela carrega em seu núcleo o peso do individualismo narcisista.
Mas enquanto seu horizonte último de relação for concebido como a relação entre dois seres encerrados em sua subjetividade, independentes um do outro, reificação e atomização serão inerentes a sua própria forma reflexiva, pois mesmo que sua prática seja focada na terapia grupal, o grupo continua sendo um agregado de indivíduos abstratos, projetando e introjetando suas subjetividades uns nos outros.
Karl Krauss tinha certa razão ao afirmar que a psicanálise é a própria doença que pretende curar 154. O dito vale não apenas para a psicanálise, mas para a própria psicologia analítica. De nada adianta defender a complementaridade entre ferida e cura, fazer belíssimos estudos sobre o curador ferido e utilizá-lo como paradigma para o trabalho psicoterapêutico, pois a cisão é mais profunda ocorrendo na própria sintaxe da teoria que por mais que defenda a unidade deste ou daquele par de opostos é em sua própria forma lógica uma afiada lâmina de cisão.
Enquanto a psicologia analítica postular o unus mundus através da imaginação sem se conscientizar que o esforço é inútil se não ocorrer em sua própria lógica, ela continuará a celebrar mesmo que inconscientemente o individualismo narcisista contemporâneo, pois é exatamente na teoria que a unilateralidade egóica busca seu mais recôndito refúgio, continuando impermeável a qualquer conteúdo do seu discurso, mesmo que seja o fluido Mercúrio.
Por que a psicologia analítica deve continuar presa ao conceito extensivo de espaço quando a mais materialista das ciências, aquela que estuda o próprio fundamento da matéria, caminha a passos largos na transcendência da geometria extensiva?
Fonte:
PSICOLOGIA:ANALÍTICA OU DIALÉTICA?
http://www.robertexto.com/archivo1/psico_anal_dialetica.htm
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.
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