Não sendo um sinólogo, meu prefácio ao
Livro das Mutações terá que ser um testemunho da experiência pessoal com esse
grande e único livro. Ao mesmo tempo terei a grata oportunidade de homenagear
também a memória de meu falecido amigo Richard Wilhelm. Ele próprio tinha
profunda consciência da importância cultural de sua tradução do I Ching, versão
sem paralelo no mundo Ocidental.
Se o significado do Livro das Mutações
fosse de fácil apreensão, a obra não precisaria de um prefácio. Mas sem dúvida
esse não é o caso, já que há tantos pontos enigmáticos em seu conteúdo que os
estudiosos ocidentais tenderam a considerá-lo como um conjunto de
"fórmulas mágicas" que, ou seriam abstrusas demais para serem
inteligíveis, ou careceriam de todo valor. A tradução de Legge do I Ching, até
agora a única versão disponível em inglês, pouco contribuiu para tornar a obra
mais acessível à mente ocidental.2 Wilhelm, entretanto, fez o esforço possível
para abrir o caminho à compreensão do simbolismo do texto. Ele tinha condições
de fazê-lo, pois a filosofia e o uso do I Ching foram-lhe ensinados pelo
venerável sábio Lao-Nai-hsüan; além disso, durante um período de vários anos
havia posto em prática a peculiar técnica do oráculo. A apreensão do sentido
vivo do texto dá à sua versão do I Ching uma profundidade de perspectiva que um
conhecimento exclusivamente acadêmico da filosofia chinesa nunca poderia
proporcionar.
Tenho uma enorme dívida para com Wilhelm
pelo esclarecimento que trouxe à complicada problemática do I Ching e também
pelas intuições relativas à sua aplicação prática. Por mais de 30 anos,
interessei-me por essa técnica oracular, ou método de explorar o inconsciente,
que pareceu-me de excepcional significado. Já estava bastante familiarizado com
o I Ching quando conheci Wilhelm no começo da década de 20; ele confirmou o que
eu já sabia, além de ensinar-me muito mais.
Desconheço a língua chinesa e nunca estive na China. Posso afirmar ao meu leitor que é muito difícil encontrar o correto modo de acesso a esse monumento do pensamento chinês tão distante de nossa forma de pensar. De modo a poder compreender de que trata esse livro, é indispensável deixar de lado certos preconceitos da mente ocidental. É curioso que um povo tão dotado e inteligente como o chinês nunca tenha desenvolvido o que chamamos ciência. Nossa ciência, entretanto, é baseada no princípio da causalidade, o qual é considerado uma verdade axiomática. Mas uma grande mudança está ocorrendo em nosso ponto de vista. O que a "Crítica da Razão Pura" de Kant não conseguiu, está sendo realizado pela física moderna. Os axiomas da causalidade estão sendo abalados em seus fundamentos: sabemos agora que o que denominamos leis naturais são meramente verdades estatísticas que supõem, necessariamente, exceções. Ainda não nos apercebemos que necessitamos do laboratório com suas decisivas limitações para demonstrar a validade invariável das leis naturais. Se deixarmos a natureza agir, veremos um quadro muito diferente: o acaso vai interferir total ou parcialmente em todo o processo, tanto assim que, em circunstâncias naturais, uma sequência de fatos que esteja em absoluta concordância com leis específicas constitui quase uma exceção. A mente chinesa, como a vejo trabalhando no I Ching, parece preocupar-se exclusivamente com o aspecto casual dos acontecimentos. O que chamamos de coincidência parece ser o interesse primordial desta mente peculiar e o que cultuamos como causalidade passa quase desapercebido. Devemos admitir que há muito a dizer a respeito da imensa importância do acaso. Uma quantidade incalculável do esforço do homem visa a combater e limitar os incômodos ou perigos representados pelo acaso. Considerações teóricas de causa e efeito freqüentemente parecem fracas e pobres em comparação com os resultados práticos do acaso. É correto dizer que o cristal de quartzo é um prisma hexagonal. A afirmação é verdadeira quando se considera um cristal ideal; entretanto, na natureza não se encontram dois cristais exatamente iguais, ainda que todos sejam inequivocadamente hexagonais. A forma concreta, no entanto, parece interessar mais ao sábio chinês que a forma ideal. O emaranhado de leis naturais que constitui a realidade empírica é mais significativo para ele que uma explicação causal de fatos que, além disso, em geral devem ser separados uns dos outros para que possam ser adequadamente tratados.
A maneira como o I Ching tende a encarar a
realidade parece não favorecer nossa maneira causal de proceder. O momento
concretamente observado apresenta-se à antiga visão chinesa, mais como um
acontecimento fortuito que o resultado claramente definido de um concordante
processo causal em cadeia. A questão que interessa parece ser a configuração formada
por eventos casuais no momento da observação e de modo nenhum as hipotéticas
razões que aparentemente justificam a coincidência. Enquanto a mente ocidental
cuidadosamente examina, pesa, seleciona, classifica e isola, a visão chinesa do
momento inclui tudo até o menor e mais absurdo detalhe, pois tudo compõe o
momento observado.
Assim ocorre quando são jogadas as três
moedas, ou quando se contam as 49 varetas; esses detalhes casuais entram no
quadro do momento de observação e fazem parte dele - uma parte que para nós é
insignificante, porém para a mente chinesa é de suma importância. Seria para
nós uma afirmação banal e quase sem sentido (pelo menos à primeira vista) dizer
que tudo que acontece num determinado momento tem inevitavelmente a qualidade peculiar
àquele momento. Esse não é um argumento abstrato mas, ao contrário, muito
prático. Alguns especialistas são capazes de determinar só pelo aspecto, gosto
e comportamento de um vinho a sua procedência e o ano de sua origem.
Existem conhecedores de antigüidades que podem afirmar com extraordinária precisão a data, o lugar de origem e o autor de um "objet d´art'' ou de um móvel, simplesmente olhando-os. Existem astrólogos que podem dizer a uma pessoa, sem nenhum conhecimento prévio, a data de seu nascimento, qual era a posição do sol e da lua, e qual o signo que se encontrava sobre o horizonte no momento de seu nascimento. Diante de tais fatos é preciso admitir que os momentos podem deixar marcas duradouras.
Em outras palavras, quem quer que tenha inventado
o I Ching estava convencido de que o hexagrama obtido num determinado momento
coincidia com esse momento tanto em qualidade quanto em tempo. Para ele o
hexagrama era o intérprete do momento no qual era tirado - mais que as horas do
relógio ou as divisões de um calendário -, uma vez que o hexagrama era
compreendido como sendo o indicador da situação essencial que prevalecia no
momento de sua origem.
Essa suposição envolve um certo princípio
curioso que denominei sincronicidade,3 conceito este que formula um ponto de
vista diametralmente oposto ao da causalidade. A causalidade enquanto uma
verdade meramente estatística não absoluta é uma espécie de hipótese de
trabalho sobre como os acontecimentos surgem uns a partir dos outros, enquanto
que, para a sincronicidade, a coincidência dos acontecimentos, no espaço e no
tempo, significa algo mais que mero acaso, precisamente uma peculiar
interdependência de eventos objetivos entre si, assim como dos estados
subjetivos (psíquicos) do observador ou observadores.
O pensamento tradicional chinês apreende o
cosmos de um modo semelhante ao do físico moderno, que não pode negar que seu
modelo do mundo é uma estrutura decididamente psicofísica. O fato microfísico
inclui o observador tanto quanto a realidade subjacente ao I Ching abrange a
subjetividade, isto é, as condições psíquicas dentro da totalidade da situação
momentânea. Assim como a causalidade descreve a seqüência dos acontecimentos, a
sincronicidade, para a mente chinesa, lida com a coincidência de eventos.
O ponto de vista causal nos relata uma
dramática história sobre como D chegou à existência: originou-se de C que
existia antes de D, e C, por sua vez, teve um pai, B, etc. Por outro lado, a
visão da sincronicidade tenta produzir uma representação igualmente
significativa da coincidência. Como é que A, B, C, D, etc. aparecem todos no
mesmo momento e no mesmo lugar? Isso acontece, em primeiro lugar, porque os
eventos físicos A e B são da mesma qualidade dos eventos psíquicos C e D, e
ainda porque todos são intérpretes de uma única e mesma situação momentânea.
Assume-se que a situação representa um quadro legível ou compreensível.
Os 64 hexagramas do I Ching são o
instrumento pelo qual se pode determinar o significado de 64 situações
diferentes, porém típicas.
Essas interpretações são equivalentes a explicações causais. A conexão causal é estatisticamente necessária e pode, portanto, ser submetida à experiência. Uma vez que as situações são únicas e não podem ser repetidas, não parece ser possível, em condições normais,4 realizar experiências com a sincronicidade. No I Ching, o único critério de validade da sincronicidade é a opinião do observador de que o texto do hexagrama eqüivale a uma interpretação fiel de sua condição psíquica. Supõe-se que a queda das moedas ou o resultado da divisão do conjunto de varetas de caule de milefólio é o que necessariamente deve ser uma "situação" dada, já que qualquer coisa que aconteça naquele momento pertence a ele como parte indispensável do quadro. Se um punhado de fósforos é jogado no chão, eles formam o padrão característico daquele momento. Porém, uma verdade tão óbvia como essa só revela seu caráter significativo se for possível ler o padrão e verificar sua interpretação, em parte pelo conhecimento, do observador, da situação objetiva e da subjetiva e, em parte, pelo caráter dos fatos subsequentes. Obviamente esse não é um procedimento que atraia uma mente crítica, acostumada à verificação experimental de fatos ou à evidência factual. Mas para alguém que goste de olhar o mundo segundo a perspectiva da antiga China, o I Ching pode exercer alguma atração.
Meu argumento, tal como foi exposto acima,
jamais, é claro, ocorreu à mente chinesa. Ao contrário, de acordo com a antiga
tradição, são "agentes espirituais", atuando de uma forma misteriosa,
que fazem com que as varetas de caule de milefólio dêem uma resposta
significativa.5 Esses poderes constituem como que a alma viva do livro, que é,
portanto, uma espécie de ser vivo, e a tradição supõe que se podem fazer perguntas
ao I Ching e esperar receber respostas inteligentes.
Ocorreu-me, portanto, que talvez interesse ao leitor não iniciado ver o I Ching operando. Com esse propósito realizei uma experiência rigorosamente de acordo com a concepção chinesa: personifiquei, de certo modo, o livro, perguntando seu julgamento sobre sua situação atual, isto é, sobre minha intenção de apresentá-lo à mente ocidental. Ainda que esse procedimento se enquadre perfeitamente nas premissas da filosofia Taoísta, para nós ele parece demasiado extravagante. Entretanto, nem mesmo o insólito dos delírios doentios ou superstições primitivas jamais me chocaram. Sempre tentei permanecer livre de preconceitos e curioso - rerum novarum cupidus. Por que não ousar um diálogo com um antigo livro que se propõe como algo vivo? Não pode haver mal nenhum nisso, e o leitor poderá observar um procedimento psicológico que tem sido posto em prática vezes e mais vezes através dos milênios da civilização chinesa, representando para homens como Confúcio ou Lao-tse tanto a expressão suprema da autoridade espiritual quanto um enigma filosófico. Utilizei o método de moedas e a resposta obtida foi o hexagrama 50 - Ting, O CALDEIRÃO.
De acordo com a maneira como foi formulada
minha pergunta, deve-se entender o texto do hexagrama como se o próprio I Ching
fosse a pessoa que fala. Assim, ele descreve a si próprio como um caldeirão,
isto é, como um recipiente de ritual contendo comida preparada. Deve-se
entender comida, aqui, como alimento espiritual. Wilhelm diz a respeito:
"O Ting, enquanto um utensílio
pertencente a uma civilização refinada, sugere o cuidado e a alimentação dos
homens capazes, o que resulta em benefício da nação... Aqui a cultura atinge
sua culminância na religião. O Ting serve para a oferenda de sacrifícios a
Deus. Os mais elevados valores terrenos devem ser oferecidos em sacrifício a
Deus... A suprema revelação de Deus encontra-se nos profetas e nos santos.
Venerá-los é, na verdade, venerar a Deus. Os desígnios de Deus, manifestados
através deles, devem ser aceitos com humildade".
Seguindo nossa hipótese, devemos concluir
que aqui o I Ching está testemunhando a respeito de si mesmo.
Quando alguma das linhas de um hexagrama
dado tem o valor de seis ou nove, significa que são especialmente enfatizadas,
e que, por isso, são importantes na interpretação.6 Em meu hexagrama os
"agentes espirituais" enfatizaram com um nove as linhas na segunda e
terceira posições. Diz o texto:
Nove
na segunda posição significa:
Há
alimento no Ting.
Meus
companheiros têm inveja,
mas nada
podem contra mim.
Boa
fortuna.
Assim, o I Ching diz de si mesmo: "Eu
contenho alimento (espiritual)". Como a participação em algo grande sempre
desperta inveja, o coro dos invejosos7 é parte da cena. Os invejosos querem
despojar o I Ching daquilo que ele possui de grandioso, isto é, procuram roubar
ou destruir o seu significado. Mas essa hostilidade é em vão. Sua riqueza de
significado está assegurada, isto é, o I Ching está seguro de suas positivas
conquistas, as quais ninguém lhe pode tirar. O texto continua:
Nove
na terceira posição significa:
A alça do
Ting está alterada.
Ele é
impedido em suas atitudes.
A gordura
do faisão não é comida.
Quando a
chuva cair, o remorso desaparecerá.
A boa
fortuna virá ao final.
A alça (em alemão Griff) é a parte pela
qual o Ting pode ser segurado (gegriffen). Portanto, significa o conceito8
(Begriff) que se tem do I Ching (o Ting). No decorrer do tempo, esse conceito
aparentemente mudou, de modo que hoje já não podemos apreender (begreifen) o I
Ching. Assim, "ele é impedido em suas atitudes". Já não somos mais
amparados pelo sábio conselho e pela profunda visão intuitiva do oráculo; por
isso, não mais encontramos nosso caminho através das complexidades do destino e
da escuridão de nossa própria natureza. Já não mais se come a gordura do
faisão, isto é, a melhor e mais rica parte de um bom prato. Mas quando,
finalmente, a terra sequiosa novamente receber a chuva, isto é, quando esse
estado de carência for superado, o "remorso", isto é, a tristeza pela
perda da sabedoria tiver cessado, virá a tão esperada oportunidade. Wilhelm
comenta:
"Isso descreve alguém que, em meio a uma cultura muito desenvolvida, encontra-se numa posição em que não é notado nem reconhecido. Isso é um grande obstáculo à sua atuação". O I Ching parece estar lamentando que suas excelentes qualidades não sejam reconhecidas e portanto permanecem inexploradas. Conforta-se com a esperança de recuperar, em breve, o reconhecimento.
A resposta dada, nessas duas linhas de
destaque, à pergunta que formulei ao I Ching não requer nenhuma sutileza
especial de interpretação, nenhum artifício, nenhum conhecimento incomum.
Qualquer pessoa com um pouco de bom senso pode compreender o significado da
resposta; é a resposta de alguém que tem uma boa opinião sobre si próprio, mas
cujo valor não é pela maioria reconhecido, nem sequer amplamente conhecido.
Quem responde tem uma noção interessante sobre si mesmo: se vê como um
recipiente no qual as oferendas ao sacrifício são trazidas aos deuses, a comida
do ritual destinada à sua alimentação. Concebe a si próprio como um utensílio
de culto destinado a prover o alimento espiritual para os elementos ou forças
inconscientes ("agentes espirituais") que foram projetados como deuses
- em outras palavras, para dar a essas forças a atenção que elas necessitam
para desempenhar seu papel na vida do indivíduo. Na realidade, esse é o
significado original da palavra "religio" - uma cuidadosa observação
e consideração (de ''relegere")9 do numinoso.
O método do I Ching leva realmente em
consideração a oculta qualidade individual existente nas coisas e nos homens e
também no nosso próprio inconsciente. Interroguei o I Ching como fazemos com
alguém a quem estamos prestes a apresentar a nossos amigos: perguntamos se isso
seria ou não agradável a ele. O I Ching, como resposta, fala de seu significado
religioso, do fato de ser desconhecido e mal interpretado na atualidade e sua
esperança de voltar a ocupar um lugar de honra - essa última parte obviamente
como uma direta menção ao meu prefácio10 ainda não redigido e sobretudo à
tradução para o inglês. Essa parece ser uma reação perfeitamente compreensível,
tal como se poderia esperar de uma pessoa numa situação similar.
Mas como surgiu essa reação? Porque eu
joguei três pequenas moedas ao ar e as deixei cair, rodar e parar em cara ou
coroa, conforme o caso. Esse curioso fato de que uma reação que faz sentido
surja de uma técnica que, aparentemente, exclui, de início, todo e qualquer
sentido, é a grande conquista do I Ching. O exemplo que acabo de dar não é
único, respostas significativas são a regra. Sinólogos ocidentais e importantes
eruditos chineses deram-se ao trabalho de informar-me que o I Ching é uma
coleção de "fórmulas mágicas" obsoletas. No decorrer destas
conversas, meu informante algumas vezes admitiu ter consultado o oráculo
através de um adivinho, geralmente um monge Taoísta. Naturalmente isto "só
poderia ser bobagem". Mas o estranho é que a resposta obtida aparentemente
coincidia, de um modo notável, com o ponto cego psicológico do consulente.
Concordo com o pensamento ocidental que
seriam possíveis inúmeras respostas à minha pergunta e certamente não posso
afirmar que outra resposta não terá sido igualmente significativa. Entretanto,
a resposta obtida foi a primeira e única; nada sabemos sobre outras possíveis
respostas. Esta me agradou e satisfez. Fazer a mesma pergunta uma segunda vez
teria sido falta de tato, por isso não a fiz: "o mestre só fala uma
vez". O opressivo enfoque pedagógico que pretende enquadrar os fenômenos
irracionais dentro de um padrão racional preconcebido é anátema para mim. Na
realidade, coisas assim como essa resposta devem permanecer tal como eram em
sua primeira aparição, pois só então sabemos o que faz a natureza quando
deixada em si mesma sem ser perturbada pela intromissão do homem. Não se deve
recorrer a cadáveres para estudar a vida. Além disso, uma repetição da
experiência é impossível pelo simples motivo de que a situação original não
pode ser reconstruída. Portanto, em cada caso há apenas uma primeira e única
resposta.
Voltemos ao próprio hexagrama. Não há nada
estranho no fato de que todo o Ting, O CALDEIRÃO, amplie os temas propostos
pelas duas linhas ressaltadas.11 A primeira linha do hexagrama diz:
Um
Ting com os pés para o alto, emborcado.
É
favorável remover o conteúdo estagnado.
Uma
concubina é aceita em virtude de seu filho.
Nenhuma
culpa.
Um caldeirão que se encontra de cabeça para
baixo está fora de uso. Logo, o I Ching é como um caldeirão que não está sendo
usado. Virá-lo ao contrário serve para eliminar o conteúdo estagnado, como diz
a linha. Assim como um homem toma uma concubina quando sua esposa não tem
filho, recorre-se ao I Ching quando não se encontra outra saída. Apesar do
status quase legal da concubina na China, na realidade ele não é mais que um
recurso de certa forma secundário; assim também o processo mágico do oráculo é
um recurso que pode ser usado com um objetivo mais elevado. Não há culpa,
embora se trate de um recurso excepcional.
A segunda e terceira linhas já foram discutidas. A quarta linha diz:
O
Ting com as pernas quebradas.
A
refeição do príncipe é derramada,
e nódoas
recaem sobre sua pessoa.
Infortúnio.
Aqui o Ting foi posto em uso, mas
evidentemente de uma forma bastante canhestra, isto é, abusou-se do oráculo ou
o interpretaram erroneamente. Deste modo, perdeu-se o alimento divino e se
expôs à vergonha. Legge traduz da seguinte forma: "o sujeito em questão
irá coroar de vergonha". O abuso de um utensílio de culto tal como o Ting
(isto é, o I Ching) é uma profanação grosseira. Evidentemente, o I Ching está
insistindo aqui em sua dignidade como um objeto de ritual e protestando contra
sua utilização profana.
A quinta linha diz:
O
Ting tem alças amarelas e argolas de ouro.
A
perseverança é favorável.
O I Ching parece ter encontrado uma nova e
correta (amarela) compreensão, isto é, um novo conceito (Begriff), através do
qual pode ser apreendido. Esse conceito é valioso (de ouro). Há realmente uma
nova edição em inglês, que torna o livro mais acessível que antes ao mundo
ocidental.
A sexta linha diz:
O
Ting tem argolas de jade.
Grande
boa fortuna!
Nada que
não seja favorável.
O jade se distingue pela sua beleza e suave
brilho. Se as alças são de jade, todo o recipiente será realçado em sua beleza,
honra e valor.
Aqui o I Ching expressa-se não só como
estando muito satisfeito, mas também bastante otimista. Pode-se apenas esperar
futuros acontecimentos e, até lá, contentar-se com a agradável conclusão de que
o I Ching aprova a nova edição.
Demonstrei nesse exemplo de forma tão
objetiva quanto me foi possível como o oráculo atua num caso dado.
Evidentemente, o processo varia um pouco segundo a forma como a pergunta é
formulada. Se, por exemplo, uma pessoa encontra-se numa situação confusa, ela
própria pode aparecer no oráculo como aquela que fala, ou se a pergunta diz
respeito a um relacionamento com outra pessoa, essa pessoa pode aparecer como
aquela que fala. Entretanto, a identidade de quem fala não depende inteiramente
da maneira pela qual a pergunta foi formulada, da mesma forma que nossas
relações com nossos semelhantes nem sempre são determinadas por estes últimos.
Freqüentemente nossas relações dependem
quase que exclusivamente de nossas próprias atitudes, mesmo que não estejamos
conscientes desse fato. Assim sendo, se um indivíduo não tem consciência do seu
papel num relacionamento, poderá haver uma surpresa à sua espera, ao contrário
das expectativas, ele próprio pode aparecer como o agente principal, como às
vezes é indicado, de forma inequívoca, pelo texto. Pode ocorrer também que
tomemos uma situação demasiadamente a sério e a consideremos de extrema
importância, enquanto que a resposta que obtemos ao consultar o I Ching chama a
atenção para algum outro aspecto inesperado, implícito na pergunta.
Tais ocorrências podem, ao início,
levar-nos a pensar que o oráculo é ardiloso. Diz-se que Confúcio recebeu uma só
resposta imprópria, isto é, o hexagrama 22, Graciosidade - um hexagrama
totalmente estético. Isso lembra o conselho dado a Sócrates por seu
"daimon": "Você deveria fazer mais música" - e a partir de
então Sócrates começou a tocar flauta. Confúcio e Sócrates concorrem ao
primeiro lugar no que se refere a uma perspectiva racional e uma atitude
pedagógica diante da vida; mas é pouco provável que um deles tenha se
preocupado em "embelezar a barba em seu queixo", como aconselha a
segunda linha desse hexagrama. Infelizmente a razão e a pedagogia, com
frequência, carecem de encanto e graça, e assim, afinal, o oráculo talvez não
se tenha enganado.
Voltemos uma vez mais ao nosso hexagrama.
Apesar do I Ching não só parecer estar satisfeito com sua nova edição, como até
demonstra um enfático otimismo, isso ainda não prediz o efeito que terá no
público que se pretende atingir.
Já que temos em nosso hexagrama duas linhas
yang enfatizadas pelo valor numérico nove, estamos em condições de averiguar
que tipo de prognóstico o I Ching formula para si próprio. Segundo a concepção
da antigüidade, as linhas indicadas por um seis ou um nove possuem uma tensão
interna tão grande que faz com que se transformem em seus opostos, isto é, yang
em yin e vice-versa. Através dessa transformação, nós obtemos no presente caso
o hexagrama 35, Chin, PROGRESSO.
O tema desse hexagrama é relativo a alguém
que encontra toda sorte de vicissitudes do destino em sua ascensão, e o texto
descreve como ele deve se comportar. O I Ching está nessa mesma situação:
eleva-se como o sol e se dá a conhecer, mas é repudiado e não inspira confiança
- ele está "progredindo porém em tristeza". Entretanto,
"obtém-se grande felicidade da parte de seu ancestral".
A psicologia
nos pode ajudar a elucidar essa passagem obscura. Em sonhos e nos contos de
fadas, a avó, ou ancestral, freqüentemente representa o inconsciente, pois esse
último, no homem, contém o componente feminino da psique. Se o I Ching não é
aceito pelo consciente, pelo menos o inconsciente, em parte, o aceita e o I
Ching está mais ligado ao inconsciente que à atitude racional da consciência.
Já que o inconsciente é freqüentemente representado em sonhos por uma figura
feminina, poderia ser essa, no caso, a explicação. A figura feminina pode ser
interpretada como a tradutora, que deu ao livro cuidados maternais, e o I Ching
poderá facilmente considerar isso como uma "grande felicidade".
O I
Ching prevê a compreensão geral, mas teme ser mal usado. "Progresso como o
de um roedor." Mas está atento à advertência, "Não se deixe levar por
ganho ou perda". Ele permanece livre de "partidarismos" e não se
impõe a ninguém.
O I Ching, portanto, encara seu futuro no
mercado editorial americano tranqüilamente, exprimindo-se aqui como o faria
qualquer pessoa sensata a respeito do destino de uma obra tão controvertida.
Essa profecia é tão razoável e cheia de bom senso, que seria difícil pensar-se
em resposta mais apropriada. Tudo
isso ocorreu antes de eu ter escrito os parágrafos anteriores. Quando cheguei a
esse ponto, quis conhecer a atitude do I Ching diante da nova situação. As
circunstâncias tinham sido alteradas pelo que havia escrito, uma vez que eu
mesmo tinha entrado em cena e, portanto, esperava ouvir algo referente à minha
própria ação.
Devo confessar que enquanto escrevia este prefácio não me sentia
muito feliz pois, como alguém com senso de responsabilidade em relação à
ciência, não tenho o hábito de afirmar algo que não possa provar, ou pelo
menos, apresentar de maneira aceitável à razão. É realmente uma tarefa duvidosa
tentar apresentar a um público moderno, crítico, um conjunto de arcaicos
"encantamentos mágicos", com a intenção de torná-los mais ou menos
aceitáveis. Empreendi essa tarefa porque julgo que há mais, no antigo modo de
pensar chinês, do que parece à primeira vista. Porém, é para mim constrangedor
ter que apelar à boa vontade e à imaginação do leitor, já que tenho que
introduzi-lo na obscuridade de um antiquíssimo ritual mágico. Infelizmente
conheço muito bem os argumentos que podem levantar contra ele.
Não temos sequer
certeza de que o barco que nos há de levar através de mares desconhecidos não
tenha uma falha em algum lugar. Não poderá estar corrompido o velho texto? Será
precisa a tradução de Wilhelm? Não estaremos enganados em nossas explicações?
O I Ching a todo instante insiste no
autoconhecimento. O método pelo qual isso deve ser alcançado está aberto a todo
tipo de aplicações errôneas e por isso não convém aos frívolos e imaturos nem
aos intelectuais e racionalistas. Só é apropriado àqueles afeitos ao pensar, à
reflexão e aos quais apraz meditar sobre o que fazem e o que lhes ocorre -
predileção essa que não deve ser confundida com o mórbido cismar do
hipocondríaco. Como indiquei acima, não tenho resposta para a infinidade de
problemas que surgem quando procuramos harmonizar o oráculo do I Ching com
nossos cânones científicos aceitos. Mas é desnecessário dizer que nada
"oculto" é passível de ser deduzido. Minha posição nessas questões é
pragmática e as grandes disciplinas que me ensinaram a utilidade prática desse
ponto de vista são a psicoterapia e a psicologia médica. Provavelmente em
nenhum outro campo temos que levar em conta tantas incógnitas, e em nenhuma
outra área temos que ter por hábito adotar métodos que funcionam, ainda que,
por longos períodos, não saibamos por que eles funcionam. Curas inesperadas
podem surgir de métodos presumivelmente confiáveis. Na exploração do
inconsciente deparamos com coisas muito estranhas, das quais um racionalista se
afastaria com horror, afirmando, depois, que nada viu. A plenitude irracional
da vida ensinou-me a nunca descartar nada, mesmo quando vão contra todas as
nossas teorias (que mesmo na melhor das hipóteses têm vida tão curta) ou quando
não admitem nenhuma explicação imediata.
Naturalmente isso é inquietante e não
sabemos, com certeza, se a indicação da bússola está correta ou não, porém a
segurança, a certeza e a paz não conduzem a descobertas. O mesmo ocorre com
esse método divinatório chinês. O método aponta claramente para o
autoconhecimento, ainda que em todas as épocas tenha sido usado num sentido
supersticioso.
É claro que estou de todo convencido do
valor do autoconhecimento, mas valerá a pena recomendar semelhante
introspecção, quando os mais sábios homens em todos os tempos pregaram essa
necessidade sem êxito? Este livro representa, e isto é óbvio até mesmo para os
mais preconceituosos, uma longa exortação a uma cuidadosa análise de nosso
próprio caráter, a atitudes e motivações. Essa posição me atrai e levou-me a
escrever o prefácio. Só uma vez antes havia me pronunciado acerca do problema
do I Ching - foi durante um discurso em memória de Richard Wilhelm.
Afora esta
ocasião, mantive um discreto silêncio. Não é tarefa fácil descobrir o
caminho
para penetrar numa mentalidade distante e misteriosa como a que perpassa o I
Ching. Não se pode menosprezar tão facilmente grandes pensadores como Confúcio
e Lao-tse, quando se é capaz de avaliar a qualidade dos pensamentos que eles
representam; tampouco se pode ignorar o fato de que o I Ching era sua principal
fonte de inspiração. Sei que anteriormente não teria ousado expressar-me de
forma tão explícita sobre assunto tão incerto. Posso correr esse risco porque
estou agora em minha oitava década e as volúveis opiniões dos homens já não
mais me impressionam; os pensamentos dos velhos mestres são mais valiosos para
mim que os preconceitos filosóficos da mente ocidental.
Não gosto de incomodar meu leitor com essas
considerações pessoais, mas como já indiquei, nossa própria personalidade está,
com frequência, envolvida na resposta do oráculo. Na verdade, ao formular minha
pergunta eu como que, de fato, convidava o oráculo a comentar diretamente minha
ação. A resposta foi o hexagrama 29 - K´an, O ABISMAL. Ênfase especial foi dada
à linha na terceira posição, pelo fato de ela ser designada por um seis. Essa
linha diz:
Para
adiante e para trás.
Abismo
sobre abismo.
Num prigo
como esse, detenha-se ao início e espere.
Senão
você cairá num buraco no abismo.
Não atue
assim.
Anteriormente eu teria aceito
incondicionalmente o conselho "Não atue assim" e teria recusado dar
minha opinião sobre o I Ching, pelo simples fato de não ter nenhuma. Mas agora,
o conselho pode servir como um exemplo do modo como funciona o I Ching. É um
fato, se começamos a pensar nisso, que os problemas do I Ching representam
"abismo sobre abismo", e inevitavelmente deve-se "parar primeiro
e esperar" em meio aos perigos de uma especulação demasiado vaga e
desprovida de senso crítico; de outro modo, realmente nos perderíamos na
escuridão. Pode haver uma posição intelectualmente mais incômoda que a de
flutuar na névoa de possibilidades não comprovadas, não sabendo se o que
estamos vendo é verdade ou ilusão? Essa é a atmosfera quase onírica do I Ching,
e nela não encontramos nada em que possamos confiar, exceto o nosso próprio e
tão falível julgamento subjetivo. Não posso deixar de reconhecer que essa linha
representa muito apropriadamente o sentimento com o qual redigi as páginas
precedentes. As reconfortantes palavras iniciais desse hexagrama são igualmente
apropriadas -
"Se você é sincero, terá o sucesso em seu coração" -
porque indicam que o decisivo aqui não é o perigo exterior, mas a condição subjetiva,
isto é, se acreditamos sermos "sinceros" ou não.
O hexagrama compara a ação dinâmica nessa
situação ao comportamento da água corrente, que não teme nenhum lugar perigoso
e mergulha sobre rochedos e preenche os fossos que encontra em seu curso (K´an
também significa água). Essa é a maneira como o "homem superior" age
e "exerce o ofício de ensinar".
K´an é, sem dúvida, um dos hexagramas menos
agradáveis. Descreve uma situação na qual alguém parece encontrar-se em sério
perigo de ser apanhado em toda sorte de armadilhas. Do mesmo modo que, ao
interpretar um sonho, é preciso seguir o texto do sonho com a máxima exatidão,
assim, ao consultar o oráculo, é preciso ter em mente a formulação da pergunta,
pois essa impõe um limite definido à interpretação da resposta. A primeira
linha do hexagrama mostra a presença do perigo: "No abismo se cai num
fosso". A segunda linha faz o mesmo e acrescenta o conselho: "Deve-se
procurar alcançar apenas pequenas coisas". Eu aparentemente me antecipara
a esse conselho, limitando-me, no prefácio, a uma demonstração de como o I
Ching funciona na mente chinesa e renunciando ao projeto mais ambicioso, de
escrever um comentário psicológico sobre todo o livro.
A quarta linha diz:
Uma
jarra de vinho, uma tigela de arroz,
louça de
barro, simplesmente entregues pela janela.
Isso por
certo não implica em culpa.
Wilhelm faz o seguinte comentário a
respeito:
"Em condições normais, o funcionário
que aspirava a um cargo devia trazer certas oferendas e recomendações antes de
ser nomeado. Tudo aqui está simplificado ao máximo. As oferendas são modestas,
não há ninguém para recomendá-lo e ele tem de fazer sua própria apresentação.
No entanto, não deve se envergonhar por isso, se existir apenas a sincera
intenção de prestar uma ajuda mútua no perigo".
É como se o livro fosse, num certo sentido,
o sujeito dessa linha.
A quinta linha dá continuidade ao tema da
limitação. Observando-se a natureza da água, verifica-se que ela preenche um
fosso somente até a borda e prossegue, então, fluindo. Não fica contida ali.
O
abismo não está cheio a ponto de transbordar,
está
cheio apenas até a borda.
Mas, se tentados pelo perigo e em virtude
apenas da insegurança, insistíssemos tentando forçar uma convicção através de
um esforço excepcional, como no caso de elaborados comentários ou coisas
semelhantes, atolaríamos nas dificuldades que a linha ao alto descreve com
grande precisão como condições que tolhem e aprisionam. Na verdade, a última
linha muitas vezes mostra as conseqUências decorrentes de não se levar a sério
o significado do hexagrama.
Em nosso
hexagrama temos um seis na terceira posição. Essa linha yin de crescente tensão
transforma-se em uma linha yang e assim gera um novo hexagrama, mostrando uma
nova possibilidade ou tendência. Temos agora o hexagrama 48 - Ching, O POÇO. O
fosso cheio de água já não significa mais perigo e sim algo benéfico, um poço.
Assim
o homem superior incentiva o povo em seu trabalho, exortando as pessoas a se
ajudarem mutuamente.
A imagem de pessoas ajudando-se uma às
outras pareceria referir à reconstrução do poço, pois este está quebrado e
cheio de lama. Nem mesmo os animais bebem nele. Há peixes vivendo nele e
pode-se apanhá-los, mas o povo não é utilizado para beber, isto é, para as
necessidades humanas. Essa descrição lembra o Ting - O CALDEIRÃO - de cabeça
para baixo e fora de uso, que precisa receber uma nova alça. Além disso, esse
poço, como o Ting, está limpo, mas ninguém bebe dele.
Este
é o pesar de meu coração, pois se
poderia usufruir dele.
O perigoso fosso cheio de água ou o abismo
referiam-se ao I Ching e o poço também, porém esse último tem um sentido
positivo: contém as águas da vida. Deveria ser posto outra vez em uso. Mas não
se possui nenhuma noção (Begriff) sobre ele, nem utensílio algum para extrair a
água; o cântaro está quebrado e vaza. O Ting precisa de novas alças pelas quais
se possa segurá-lo, e o poço também deve receber um revestimento, pois contém
"uma fonte límpida e fresca, da qual se pode beber". Pode-se tirar
água dele porque é "digno de confiança".
Está claro neste presságio que o sujeito
que fala é outra vez o I Ching, representando-se como uma fonte de água da
vida. O hexagrama precedente descreve com detalhes o perigo que ameaça a pessoa
que acidentalmente cai num fosso dentro do abismo. Ela deve procurar a saída,
para poder descobrir que se trata de um velho poço em ruínas, enterrado na
lama, mas passível de ser restituído ao uso novamente.
Submeti duas perguntas ao método do acaso
representado pelo oráculo das moedas, a segunda pergunta tendo sido formulada
depois de eu ter escrito minha análise da resposta à primeira. A primeira
pergunta como que se dirigia ao I Ching: o que tinha ele a dizer sobre minha
intenção de escrever um prefácio?
A segunda pergunta referia-se à minha própria
ação, ou melhor, à situação na qual eu era o sujeito agente que discutira o
primeiro hexagrama. À primeira pergunta o I Ching respondeu comparando-se a um
caldeirão, um recipiente de ritual que necessitava de renovação e que estava
encontrando apenas uma questionável aprovação da parte do público. A resposta à
segunda pergunta dizia que eu me encontrava numa dificuldade pois o I Ching
representava um profundo e perigoso fosso com água no qual poder-se-ia
facilmente atolar. No entanto, o fosso com água revelou ser um velho poço que
precisava apenas ser restaurado para tornar-se útil novamente.
Esses quatro hexagramas são, em seus
elementos centrais, coerentes entre si quanto ao tema (recipiente, fosso,
poço), e no que se refere ao conteúdo intelectual parecem ser significativos.
Se um ser humano desse tais respostas, eu, como psiquiatra, teria de
considerá-lo mentalmente sadio, pelo menos, com base no material apresentado.
De fato, eu não teria sido capaz de descobrir nada de delirante, de
oligofrênico ou esquizofrênico nas quatro respostas.
Diante da extrema
antigüidade do I Ching e de sua origem chinesa, não posso considerar anormal
sua linguagem arcaica, simbólica e floreada.
Ao contrário, eu teria felicitado essa hipotética pessoa pela amplitude
de sua intuição do estado de dúvida que não chegara a expressar. Por outro
lado, qualquer pessoa inteligente e versátil pode torcer tudo isso e mostrar
como eu projetei os meus conteúdos subjetivos no simbolismo dos hexagramas.
Semelhante crítica, ainda que catastrófica do ponto de vista do racionalismo
ocidental, não afeta a função do I Ching. Ao contrário, o sábio chinês me diria
sorrindo: "Não percebe quão útil é o I Ching para fazer com que você
projete num simbolismo abstruso seus pensamentos, até então não percebidos?
Você poderia ter escrito seu prefácio sem jamais perceber a avalanche de
mal-entendidos que o mesmo poderia desencadear".
O ponto de vista chinês não se preocupa com
a atitude que se adota frente ao funcionamento do oráculo. Somos unicamente nós
que estamos confusos, porque tropeçamos repetidas vezes em nosso preconceito,
ou seja, a noção de causalidade. A antiga sabedoria oriental enfatiza o fato de
que o indivíduo inteligente compreende seus próprios pensamentos, mas não se
preocupa de modo algum com a forma como o faz. Quanto menos se pense sobre a
teoria do I Ching melhor se dormirá.
Parece-me que com base nesse exemplo, um
leitor sem preconceitos estaria agora em condições de, pelo menos, tentar
formar uma opinião aproximada sobre o modo de operar do I Ching.12 Mais não se
pode esperar de uma simples introdução. Se, através dessa demonstração,
consegui elucidar a fenomenologia psicológica do I Ching, terei alcançado o meu
propósito. Quanto aos milhares de perguntas, dúvidas e críticas que esse livro
extraordinário suscita, não posso respondê-las.
O I Ching não se apresenta com
provas e resultados, não se vangloria de si, nem é de fácil abordagem. Como uma
parte da natureza, espera até ser descoberto. Não oferece fatos, nem poder,
porém para os amantes do autoconhecimento, da sabedoria - se estes existem -
parece ser o livro indicado. Para alguns seu espírito parecerá claro como o
dia; para outros, sombrio como o crepúsculo; e para outros ainda, obscuro como
a noite. Aquele que não o aprecia, não precisa usá-lo e aquele é contra, não é
obrigado a considerá-lo verdadeiro. Que o deixem seguir para o mundo em
benefício daqueles que sejam capazes de discernir seu significado.
ZURIQUE,
1949 C. G. JUNG
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Livro Primeiro: O Texto | Livro Segundo: O Material | Livro Terceiro: Os Comentários
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MEU ORÁCULO HOJE: 07-01-2014
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leia também comentário do livro primeiro sobre este hexagrama
46. | SHENG ASCENSÃO trigramas nucleares
livro terceiro: |
comentário do livro hexagrama |
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46. | SHENG ASCENS?O livro primeiro:Acima: K'UN, O RECEPTIVO, TERRA. Abaixo: SUN, A SUAVIDADE, VENTO. |
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24. | FU RETORNO (O PONTO DE TRANSIC?O) livro primeiro:Acima: K'UN, O RECEPTIVO, TERRA. Abaixo: CHEN, O INCITAR, TROV?O. |
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24. | FU RETORNO (O PONTO DE TRANSICÃO) trigramas nucleares
livro terceiro: |
comentário do livro hexagrama |
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Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.
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