quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O EXISTENCIALISMO È UM HUMANISMO - Frankin Leopoldo e Silva- 03



 Professor Dr. Franklin Leopoldo e Silva
 Aula- 03
[Sartre - Questão de Método – primeiro capítulo]

O tema de fundo de Questão de Método é a relação entre marxismo e existencialismo, e essa relação tem de ser tratada filosoficamente porque o que está em jogo na sua elucidação é a própria possibilidade do conhecimento filosófico do homem, isto é, de uma antropologia filosófica. 

No exame metódico dessa possibilidade, a primeira coisa a esclarecer é o significado de filosofia: não se trata de defini-la, mas de elucidar o seu significado, tarefa que consiste em compreender as condições de seu surgimento e da sua modalidade de expressão. Não podemos defini-la porque tudo que ela é, vem a ser por via dessas condições de aparecimento e articulação expressiva. 

É essa diferença entre definição e significado que nos leva a falar sempre de filosofias, o plural indicando precisamente a vinculação do seu devir e de sua expressão a condições históricas. Por isso “uma filosofia se constitui para dar expressão ao movimento geral da sociedade; e, enquanto vive, é ela que serve de meio cultural aos contemporâneos.”[1] Essa contemporaneidade da filosofia a torna sempre situada, enquanto expressão determinada de uma situação histórica, isto é, do movimento que naquele momento constitui o tecido das relações sociais, a partir do qual a coletividade e o indivíduo desenvolvem um certo perfil de realidade histórica.

Desde logo é preciso atentar para a relação entre universalidade e singularidade que aí se estabelece.Diz Sartre que a filosofia de uma época ultrapassa o filósofo que primeiramente a construiu. Mas a compreensão aprofundada e abrangente da filosofia que a partir daí passa a existir só se torna possível a partir do filósofo, e até mesmo de sua pessoa. Isso porque a filosofia situa o sentido que se deve atribuir ao filósofo que a constrói; mas a singularidade deste indivíduo-autor nos leva igualmente a compreender o sentido constituído pela filosofia que o supera enquanto indivíduo. Assim, a filosofia de Descartes certamente permite que a burguesia ascendente tome consciência de si como classe, na diferença que opõe uma nova visão de mundo ao ideário tradicional, e é nesse sentido que a filosofia cartesiana ultrapassa o projeto reflexivo singular de Descartes. 

Mas a própria caracterização desse conjunto de idéias que vem a integrar o Espírito Objetivo depende de uma articulação entre a consolidação das consequências culturais e ideológicas e as marcas singulares que Descartes imprimiu primeiramente a um projeto pessoal. Subjetividade, individualidade, método, ordem racional, soberania da razão, unidade do saber são ao mesmo tempo os requisitos de uma reinauguração subjetiva da filosofia e componentes necessários ao advento da autoconsciência de uma classe no processo de reconhecimento de si e de sue papel histórico. Isso explica também o devir do cartesianismo e a sua transformação no decorrer das mudanças históricas que trazem novas exigências em termos de visão de mundo e de sua expressão.

Isso quer dizer que “uma filosofia” expressa o “movimento geral da sociedade” ao totalizar a sua contemporaneidade, talvez mesmo para além da esfera do Saber referida por Sartre, se admitirmos que o que constitui a visão de mundo expressa na filosofia não se reduz ao saber organizado, mas envolve muitos outros aspectos da vida individual e coletiva. Sartre menciona “as atitudes e as técnicas da classe ascendente diante de sua época e diante do mundo”[2], esquematizados num certo saber, mas devemos entender da forma mais ampla possível esse desideratum de totalização imanente à filosofia, porque a ambição é a de uma imagem completa do homem, unificada numa representação em que todos os pormenores concorrem para a constituição da universalidade. A totalização é sempre a primeira verdade que uma filosofia deseja para si, já que a validade do espelho que ela oferece à sociedade, para que esta nele se reconheça, deve refletir uma imagem que seja sobretudo uma totalidade unificada. 

É nesse sentido que a vinculação de uma filosofia à sua contemporaneidade a torna insuperável como expressão da época: porque essa expressão é uma unificação totalizadora de tudo aquilo que constitui a própria época. Não é por outra razão que essa imagem se tornará problemática quando os elementos constitutivos da totalização e da unificação vierem a submergir no processo de mudança social, histórica, científica – civilizacional, enfim.

É importante atentar para a articulação das noções de situação e totalização. A relatividade que habitualmente se associa ao significado do termo situação nos leva a enfatizar a conotação restritiva, como se estar situado acarretasse sempre algo como um déficit na maneira pela qual a consciência localiza sua singularidade na totalidade ou no modo pelo qual ocorre a compreensão de uma época histórica no tempo. É certo que a noção de situação é inseparável dos limites que a constituem; mas é certo também que tais limites instituem a perspectiva a partir da qual se organizará a compreensão da totalidade. De forma que a situação deve ser entendida ao mesmo tempo como limitação facticamente determinada e como possibilidade de totalização, isto é, como o objetivo de compreensão completa do sentido do homem.

Esta tensão entre a singularidade e a universalidade está inscrita no significado de totalização como desejo da totalidade: o próprio sentido do processo vincula-se ao desejo de vê-lo como projeto realizado. É essa a razão pela qual tudo aquilo que o indivíduo, o grupo ou a classe projetam para si (para ser) tem que ser entendido a partir da dialética entre possibilidade e impossibilidade uma vez que a experiência da totalização é simultaneamente a da totalidade irrealizada. Toda totalização está limitada pela situação a partir da qual os seus elementos são unificados; e toda situação se define pela ambição que consiste em pensar como totalidade a experiência da totalização.

Isso significa que compreendemos historicamente uma filosofia como expressão insuperável do seu presente se compreendemos como os sujeitos viveram a experiência situada no modo da totalização. Foi essa relação que os constituiu, foi ela que constituiu a especificidade daquela práxis, e a verdade histórica está precisamente em compreender como os seres humanos agem numa situação que os constitui ao mesmo tempo em que eles a constituem. Nesta reciprocidade está o significado da subjetividade na história e o motivo pelo qual somente uma inteligibilidade dialética pode dar conta desta relação.

Esse entendimento da filosofia como saber totalizador, pertinente para todas as filosofias, ganha plena explicitação em Hegel, no qual ocorre a consciência da tarefa totalizadora não apenas em relação à sua própria época mas também no que concerne a toda a história.

Nesse caso, o projeto filosófico se define como a constituição do saber sistemático acerca do processo como um todo, entendendo-o na lógica da sua realidade e na realidade da sua racionalidade, o racional e o real coincidindo na totalização completa, com todas as determinações mediatizadas na condução à síntese suprema, o absoluto-sujeito. “A mais ampla totalização filosófica é o hegelianismo. Nele o Saber é alçado à sua dignidade mais eminente: ele não se limita a visar o ser de fora, ele o incorpora a si e o dissolve em si mesmo: o espírito se objetiva, se aliena e se retoma incessantemente, se realiza através de sua própria história.”[3] 

Assim pode-se dizer que a filosofia de Hegel pretende ser a expressão não apenas de seu presente ou de sua época totalizada pelo Saber, mas almeja ser a expressão filosófica da própria filosofia, entendida como compreensão racional do processo histórico realizado. A incorporação e a dissolução, de que fala Sartre, faz com que em Hegel a realidade – a natureza e a história – não sejam apenas objetos da filosofia. 

A própria objetivação é algo a ser superado, uma relação que será dissolvida numa unificação e numa totalização absolutas. Nesse sentido, Saber e Experiência configuram uma oposição compreendida apenas como etapa de realização da síntese como conciliação racional, o vivido estando destinado a ser integrado na universalidade do absoluto, finalidade concreta e expressão unicamente verdadeira do processo da realidade.

Ora, nessa contemporaneidade que a filosofia de Hegel expressa, há algo que contraria frontalmente o teor de racionalidade sistemática afirmado tão decisivamente. Com efeito, Kierkegaard insistirá, contra Hegel, na irredutibilidade do vivido. Haveria algo de trágico na finitude: dilemas, oposições, contradições, limites intransponíveis, em suma, uma divisão, um dilaceramento da subjetividade que a põe em conflito consigo mesma. 

A existência concreta, autenticamente experimentada, traz essa dor e esse sofrimento, e tais vivências são irredutíveis a um eventual sistema de saber que as incorporaria e as dissolveria numa totalidade finalmente apaziguada. O saber acerca do sofrimento, a experiência do dilaceramento traduzida em razão explicativa somente são possíveis pela abstração da existência. 

Isto significa que o homem existente só passa a habitar a razão absoluta quando traduzido em conceito. “O homem existente não pode ser assimilado por um sistema de idéias; por mais que se possa dizer e pensar sobre o sofrimento, ele escapa ao saber, na medida em que é sofrido em si mesmo, para si mesmo, onde o saber permanece incapaz de transforma-lo.”[4] Kierkegaard representa a obstinação do indivíduo existente, irredutível na sua experiência, no seu momento, uma concretude que não se dissolve na abstração da idéia, porque a experiência da existência, ou o sofrimento vivido, só podem ser pensados fora de si mesmos, desidentificados na generalidade da síntese conciliadora. 

O que o filósofo dinamarquês procura mostrar é que a existência singular escapa às mediações, superações e sínteses. A vida subjetiva, efetivamente vivida, não se torna objeto de um saber, ou melhor, nós a recalcamos quando a tornamos objeto, ela não reaparece transfigurada no âmbito da totalidade, ela desaparece, alienada nos procedimentos conceituais generalizantes. “Esta interioridade que pretende afirmar-se contra toda filosofia, na sua estreiteza e profundidade infinita, esta subjetividade reencontrada para além da linguagem como a aventura pessoal de cada um em face dos outros e de Deus, eis o que Kierkegaard chamou a existência.”[5]

Posto isso, como fica a expressão do “movimento geral” de uma época? É claro que a posição de Kierkegaard pode ser perfeitamente integrada na fenomenologia da consciência da perspectiva de Hegel. Trata-se da “consciência infeliz” que se representa a contradição entre finito e infinito como insuperável; trata-se da visão romântica do mundo, a subjetividade aprisionada em si mesma, vazia porque projetando-se para fora de si na busca do infinito inatingível, ou mergulhando no abismo de uma subjetividade ainda não definida como mediação.

Somente quando esta vida subjetiva tornar-se objeto de um saber é que ela adquirirá pleno sentido, uma vez superada a contradição entre a consciência imanente a si e a transcendência infinita. Podemos e devemos compreender Kierkegaard incrustado no hegelianismo, resistindo à soberania intelectual que resulta numa realidade essencialmente lógica, recusando a chave interpretativa de uma razão superadora de todos os conflitos. Ele não quer que a angústia e o drama da fé sejam vistos como representações de um espírito que ainda não atingiu a plenitude de si mesmo. Sartre propõe que se compreenda Kierkegaard como alguém que afirma o primado da subjetividade na forma de uma reação ao império da razão objetiva. Isso certamente quer dizer que Kierkegaard depende de Hegel: “esta negação feroz de todo o sistema não pode nascer senão num campo cultural inteiramente comandado pelo hegelianismo.”[6]

Mas isto de forma alguma significa que Kierkegaard não contraponha à totalização hegeliana realidades cuja experiência bruta e primária seria, de fato, irredutível ao Saber. Não há dúvida de que tais realidades somente são incorporadas ao sistema por via de uma idealização. Nesse sentido, aquilo que poderia ser tomado como um subjetivismo exacerbado pelo sentimento religioso aparece, paradoxalmente, como a contraposição da particularidade concreta a um idealismo absoluto. 

Assim, o fato de que, do ponto de vista da totalização, seja verdadeiro que a subjetividade é uma determinação mediada que integra um percurso lógico de desvendamento da realidade no seu processo de tornar-se totalidade absoluta, isto não impede que esta mesma subjetividade, nos termos da experiência concreta da sua constituição, porte uma irredutibilidade, uma originalidade experiencial que só poderá ser integrada ao saber por via da dissolução do teor singularmente concreto da experiência vivida. Por isso Sartre pode dizer que ambos, Hegel e Kierkegaard, têm razão, embora, do ponto de vista da expressão histórica do espírito objetivo, estejamos num “campo cultural inteiramente comandado pelo hegelianismo”.[7] 

Dito de outra forma, a irredutibilidade da dor, da paixão e do sofrimento atesta uma realidade que o sistema só pode superar e integrar através de uma decisão filosófica acerca da relação entre singularidade e totalidade.

Poderíamos dizer que, se há um trabalho da história sobre a subjetividade, há também um trabalho da subjetividade sobre si mesma – que, diz Sartre, não é inteiramente redutível ao saber, porque se trata de um trabalho que consiste em viver as oposições internas ao sujeito, mais do que em esclarecê-las pelo conhecimento. Neste sentido há uma distância entre o real e o saber que pode tornar-se intransponível, e cujos efeitos podem ser tanto o encerramento narcísico da subjetividade em si mesma quanto a posição de limites para o idealismo objetivo.

O objetivo desta comparação entre Hegel e Kierkegaard é introduzir uma das críticas que o marxismo dirige a Hegel: objetivação e alienação não são sinônimos; na medida em que o homem produz e reproduz a realidade, ele deveria reencontrar-se na objetivação dessa atividade e reconhecer como proveniente de si a superestrutura correspondente a relações determinadas e a uma certa forma de consciência social. Se o homem se perde nessa objetivação é porque a base real sobre a qual ela se dá impede que o sujeito se reconheça nos seus produtos. A causa, como sabemos, é que já o trabalho é alienado, devido ao conflito entre as forças produtivas e as relações de produção, que produz a alienação como realidade histórica irredutível a uma idéia. Daí a necessidade de uma ação transformadora no nível da práxis para que o trabalho seja objetivado e não alienado, e para que não seja preciso que o homem se torne inimigo do seu trabalho.

Sartre entende que o que Marx quer acentuar ao insistir na objetivação como reconhecimento, é que o homem pode e deve ver-se no mundo que ele mesmo produz. O mundo é um conjunto de fatos, mas vivido e produzido pelo homem, razão pela qual é inegável a presença da subjetividade. E isso porque, simplesmente, a objetivação só pode acontecer a partir de sujeitos agentes e esta objetivação somente transforma-se em alienação quando o sujeito não mais se reconhece no mundo objetivado.

Esta interpretação não significa imputar a Marx alguma forma de subjetivismo: pois não se trata de a consciência contemplar-se a si mesma mas reconhecer-se no mundo que é fruto de sua ação. O primado da ação está nos antípodas da interioridade contemplativa, que o marxismo interpreta com razão como a subjetividade vazia. 

Qualquer idéia que se faça do homem ou que ele faça de si mesmo tem de estar lastreada pela ação porque somente dessa maneira se pode representar o homem concreto. Qualquer representação da subjetividade humana separada da ação é abstrata ou mistificadora. Toda a questão está em entender que esta compreensão objetiva do homem não é outra coisa senão a compreensão de sua subjetividade concreta. Assim, “é o homem concreto que ele [Marx] coloca no centro de suas pesquisas, este homem que se define simultaneamente pelas suas necessidades, pelas condições materiais de sua existência e pela natureza do seu trabalho, isto é, de sua luta contra as coisas e contra os homens.”[8]

É esta compreensão de Marx que está relacionada com a perspectiva antropológico-filosófica que se necessita fundamentar. O homem é um sujeito que, antes de conhecer a realidade, a produz historicamente pelo seu trabalho, que ocorre a partir de necessidades e sob determinadas condições materiais, bem como no enfrentamento de uma adversidade que é a um tempo natural e humana. 

Para Sartre não é possível conferir primazia à ação sem dar prioridade ao agente. Se a especificidade da existência humana está configurada numa práxis constituída pela necessidade e pelo trabalho, não há como elucidar esta especificidade sem considerar a realidade objetiva do sujeito. Esta expressão deveria ser auto-evidente; mas os hábitos dualistas e a herança de uma determinada concepção de subjetividade acabaram por torná-la obscura, de tal modo que somos conduzidos a uma perspectiva redutora em que a consideração objetiva do sujeito passa a significar olhá-lo como objeto e assim destituí-lo de sua condição original. 

Ora, essa condição é irredutível: se virmos o sujeito como objeto, não o vemos na sua realidade objetiva. É nesse sentido que Sartre interpreta que, em Marx, a objetivação está sempre associada ao reconhecimento, e a objetivação do sujeito não é mais do que o seu reconhecimento enquanto sujeito; caso contrário é alienação.

Eis então como passamos de Hegel a Marx por via do tema da totalização: o homem, em Marx, é “o tema imediato da totalização filosófica.” É a busca da especificidade da existência, poderíamos dizer das razões concretas de sua irredutibilidade, que situa Marx perante de Hegel e Kierkegaard. “Assim, Marx tem razão ao mesmo tempo contra Kierkegaard e contra Hegel, já que afirma, com o primeiro, a especificidade da existência humana, e já que toma, com o segundo, o homem concreto na sua realidade objetiva.”[9]

Duas exigências estão na origem da perspectiva antropológico-filosófica: a especificidade da existência do homem e a possibilidade de conhecê-lo na sua realidade objetiva concreta. Tais requisitos sempre orientarão a reconstituição sartriana do conhecimento antropológico, e a especificidade, mesmo que a consideremos como uma irredutibilidade, não impede o conhecimento da realidade objetiva, desde que não o confundamos com conhecimento objetivo no sentido cientificista. O marxismo é a filosofia insuperável de nossa época porque Marx projetou a totalização filosófica em torno desse “tema imediato”: o fato humano, a ordem humana, o homem concreto.

Como o existencialismo se coloca diante da tensão dessa dupla exigência, o conhecimento da especificidade concreta da existência e o conhecimento da realidade objetiva do homem? A questão é delicada, porque a primazia da subjetividade de fato pode levar a uma abordagem abstrata do homem. Mas não se trata de referendar as objeções de Hegel às filosofias da subjetividade e repetir simplesmente que o sujeito pensado fora de uma totalidade que o ultrapassa torna-se abstrato, já que estaríamos tomando uma determinação mediada da totalidade efetiva como fim em si mesma.

É preciso interrogar historicamente, e nesse sentido tentar entender o que Sartre chama de eclipse de Kierkegaard entre o final do século XIX e o período entre-guerras. É que nesse período o pensamento burguês sentia-se seguro de seu arsenal analítico a ponto de nem mesmo importar-se com uma crítica mais profunda de Hegel. Isso significa que o pensamento burguês, isto é, o racionalismo espiritualista moldado num amálgama de kantismo e cientificismo, não precisava preocupar-se em se defender. Mas as condições históricas mudaram, e foi a própria história que levou o pensamento burguês a uma posição defensiva.

Depois de fazer um retrospecto da formação filosófica da sua geração, em que na universidade predominava o espiritualismo eclético em que se transformara um racionalismo dogmatizado, e fora dela uma curiosidade igualmente eclética, um pluralismo que não lograva transformar a insatisfação intelectual em compromisso verdadeiro, Sartre relata como este quadro mudou com a segunda guerra: “Foi a guerra que fez explodir os quadros envelhecidos do nosso pensamento.

A guerra, a ocupação, a resistência, os anos que se seguiram.”[10] Entenda-se por isso a violência da história, inclusive gestada sob o otimismo racionalista que procurava justificar uma civilização consciente de seus valores, bem como a identificação entre história e progresso. O que Sartre quer dizer, e o fez de maneira bem mais contundente em outro texto, é que a história não entrou nas cogitações de sua geração pela via teórica, como um tema cuja importância se tivesse enfim percebido. Ela entrou nas vidas com a mesma violência do invasor. “De repente, nos sentimos bruscamente situados: sobrevoar os fatos, como gostavam de fazer os nossos predecessores, tornou-se impossível; havia uma aventura coletiva que se desenhava no porvir e era a nossa aventura, a que permitiria mais tarde datar a nossa geração [...]; algo nos aguardava nas sombras do futuro, algo que nos revelaria a nós mesmos, talvez na iluminação de um derradeiro instante antes de nos aniquilar. [...] A historicidade refluiu sobre nós [...].”[11]

É significativo que, segundo Sartre, a história tenha aparecido à sua geração como a experiência de uma situação e não como uma idéia ou como a expressão da racionalidade à maneira hegeliana. Pois essa experiência não foi apenas a da adversidade e da negatividade inerentes à finitude, mas consistiu num contato direto com o Mal, na sua significação imediata e concreta. Tal caráter dramático da situação será decisivo para que entender o modo pelo qual o pensamento de Sartre vai incorporar a tensão das duas exigências de que falamos antes. 

Trata-se menos de adotar uma teoria da história do que de responder a indagações trazidas pelas urgências históricas de uma crise, de uma situação histórica existencialmente vivida como a falência da humanidade. E é exatamente por isso que o existencialismo tal como Sartre o entende não pode ser uma volta ao subjetivismo formal ou a uma subjetividade abstrata.

Muito menos pode ser uma espécie de reencontro da especificidade do sujeito por via da nostalgia da transcendência – a experiência trágica de estar diante do infinito, distância e opacidade que se refletem nas contradições vividas da subjetividade. Mais do que um protesto contra a pretensão totalizadora de Hegel, o que se trata de mostrar é que a mediação da subjetividade tem de ser mais do que etapa de um percurso lógico porque é uma experiência histórica, processo a ser compreendido a partir da reciprocidade dialética entre indivíduo e totalidade ou entre singularidade e universalidade.



 Fonte:
CONSCIENCIA:ORG
http://www.consciencia.org/cursosartrefranklin3.shtml
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