quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O EXISTENCIALISMO È UM HUMANISMO - Frankin Leopoldo e Silva- Aula 05


Anotações de aula do curso sobre Sartre 
ministrado pelo
professor dr. Franklin Leopoldo e Silva 
na FFLCH-USP

A relação entre subjetividade e conduta supõe o problema da reflexão, e este por sua vez está ligado à questão da posição da consciência no processo de conhecimento e de ação. Procuremos compreender como Sartre rearticula estes elementos. A reflexão é atividade subjetiva e este ponto não pode ser ignorado mesmo nas teorias mais objetivistas do conhecimento, se entendermos que este é uma relação entre dos termos, sujeito e objeto, qualquer que seja o peso relativo que se venha a atribuir a cada um. O conhecimento é uma conduta humana que possui uma determinada forma de expressão. Esclarecer a função da subjetividade no conhecimento é compreender seu modo de presença na conduta cognitiva. Tal conduta consiste no estabelecimento de um vínculo entre três elementos: sujeito, objeto e verdade: a relação entre os dois primeiros deve ensejar o aparecimento do terceiro na forma do desvelamento, sobre o qual falaremos mais adiante. Como deve ser pensado o vínculo entre a relação sujeito/objeto e a verdade?

Habitualmente a verdade é vista como o resultado da relação sujeito/objeto estabelecida a partir de regras formais e de uma determinação do conteúdo. O modelo kantiano, por ex., prescreve estas regras e este modo de determinação, instituindo um certo equilíbrio entre a estrutura formal e o conteúdo de realidade, e este equilíbrio, como depende do conhecimento de razão, tem seu fundamento na concepção apriorística do conhecimento, na qual se revela o trabalho da subjetividade transcendental.

Na concepção do conhecimento como conduta, a diferença entre as instâncias subjetiva e objetiva deve ser feita no plano da realidade, pois a conduta do sujeito não pode ser reduzida à forma de apreensão, nem o objeto pode estar formalmente constituído no nível do a priori, ou seja, a conduta cognitiva supõe a relação entre um sujeito real e uma realidade objetiva. Reencontramos aqui a idéia da dupla realidade ou da reciprocidade das efetividades: a realidade efetiva e a subjetividade efetiva. Isto significa que não pode haver atividade constituinte, nem em sentido metafísico, nem em sentido transcendental. Dito de outro modo, a posição da consciência na relação de conhecimento não pode ser vista como constituinte, a menos que consideremos a realidade extra-subjetiva como amorfa e inefetiva.

Conseqüentemente, a verdade não pode ser um resultado, se por essa expressão entendemos algo constituído apenas a partir da relação sujeito/objeto. A concepção da verdade como resultado é solidária da definição do objeto como relativo ao sujeito, ou como constituído no âmbito da subjetividade, seja em termos de correspondência e causalidade, seja como estruturação formal. Se quisermos falar em relatividade, ela tem que ser pensada como uma via de mão dupla: o objeto é relativo ao sujeito tanto quanto o sujeito é relativo ao objeto, porque o processo de relação supõe modificações em ambas as instâncias.

Vistas as coisas dessa maneira, temos como nos afastar da concepção idealista da reflexão, solidária de uma autonomia abstrata da subjetividade. Não se trata de afirmar uma relação de imanência entre subjetividade e reflexão como necessária à independência do sujeito porque, sendo este atividade, a sua realidade, e o que nela possa haver de autonomia, define-se na relação com o não-subjetivo. 

Neste sentido, a verdade não pode ser concebida como invenção do sujeito. Dir-se-á que a verdade somente nasce graças à relação sujeito/objeto. Admitindo que assim seja, isto significa que a verdade nasce na relação, muito mais do que da relação. A dupla efetividade (mundo objetivo e sujeito) supõe processo e produção; mas, justamente, trata-se da produção do verdadeiro a partir da relação, em que participam tanto a realidade dos objetos quanto a realidade do sujeito. É preciso portanto abandonar o sentido tradicional de transcendência do sujeito em relação ao objeto, na medida em que isto significa anterioridade absoluta e puro apriorismo.

Com isto elimina-se também a idéia de produção subjetiva da verdade, na acepção constituinte. A verdade pode ser pensada como desvelamento: a revelação de algo que já estava aí e no qual nós mesmos já estávamos. Esta revelação supõe um processo de interrogação, mas a resposta a esta interrogação não constitui a verdade, e sim a desvela, provocando o aparecimento do que já lá estava. Pois se há uma identificação entre a verdade e o ser, se a consciência constituísse a verdade ela teria que constituir o ser. Num texto escrito em 1948, mas publicado postumamente, “Verdade e Existência”, lemos: “O que nos faz crer que a verdade se identifica com o Ser é que, com efeito, tudo que é para a realidade humana é na forma da verdade (essas árvores, essas mesas, essas janelas, esses livros que me rodeiam são verdades) porque tudo que é para o homem surgiu na forma desse ‘há’.

O mundo é verdadeiro. Vivo no verdadeiro e no falso. Os seres que se manifestam diante de mim se oferecem como verdadeiros, e às vezes, depois se revelam como falsos. O para-si vive na verdade como o peixe na água.”[1] A verdade consiste em haver coisas, em haver mundo, e a relação entre o ser das coisas e o sujeito é de constante revelação, que propicia ao sujeito a exploração deste “haver”. Uma manifestação primária, que é tão pouco constituída pelo sujeito quanto este nem sequer pode recusá-la; manifestação cuja espontaneidade não implica sempre certeza do sujeito, pois como a revelação depende também da atividade do sujeito, este pode enganar-se na identificação do que se revela ou do que ele desvela. O significado do enunciado: o mundo é verdadeiro indica este caráter originário da verdade: haver coisas.

Por isso Sartre descreve a verdade como o elemento no qual se vive: o para-si vive na verdade como o peixe na água. Que não nos iluda o aparente otimismo epistemológico; pois a água não é dada ao peixe para que ele a contemple; mas ela se revela a ele ao exigir seu movimento, que ela também facilita e impede ao mesmo tempo. O peixe está no seu elemento enquanto nele vive a age. 

Assim, também não estamos rodeados de verdade no sentido aurático, ela não nos envolve como uma nuvem repousante. Temos de corresponder com nossa interrogação a este “haver” que se revela e nisto consiste o procedimento de desvelamento do ser inerente á condição humana. Por ser ativamente reveladora, a realidade objetiva é processo de ser e de revelar-se; estamos na verdade na forma do ente que a interroga, que deseja saber onde está, o que é este mundo que é verdadeiro na medida em que há coisas que me rodeiam, e com as quais me relaciono conhecendo-as e agindo sobre elas ao mesmo tempo. Esse movimento de conhecer e agir é histórico, ou é a história.

“Assim, a verdade não é uma organização lógica e universal de ‘verdades’ abstratas: é a totalidade do Ser na medida em que se manifesta como um há na historialização da realidade humana.”[2] O que Sartre quer dizer é que não há um quadro de verdades diante de nós que se defina pela forma lógica da sua apresentação. Há uma totalidade que se manifesta e cuja revelação apreendemos na medida em que nos historializamos, isto é, que nos movemos e nos fazemos realidade humana neste elemento. 

Assim a pergunta pela posição da consciência diante da verdade é respondida quando compreendemos a posição do sujeito diante da realidade, desse há que é a instância originária da revelação do ser. E como nos movemos e nos fazemos sujeitos da verdade no elemento histórico em que vivemos, a verdade é uma questão de experiência histórica, na qual a realidade se revela e nós nos revelamos a nós mesmos no processo de historialização. Há uma relação entre verdade e existência na medida em que há uma relação entre verdade e historicidade. Observemos que à ressonância heidegeriana do texto de Sartre se contrapõe a ênfase na compreensão do Dasein como experiência histórica concreta.

Será necessário ressaltar que estar na verdade não significa saber tudo? O que dissemos acerca da revelação como experiência histórica deveria ser suficiente para esclarecer a questão. Entretanto, podemos mencionar também a alusão de Sartre à atitude socrática. “Quando Sócrates diz ‘só sei que nada sei’ essa modéstia é ao mesmo tempo a afirmação mais radical do homem, pois supõe que tudo está por saber. Assim, a ignorância não provém de uma recusa por parte do mundo, que me ocultaria seus segredos: pelo contrário, todo o Ser está presente a mim desde minha aparição …”[3] A superioridade de Sócrates frente a seus interlocutores deriva de que saber “que nada sei” significa saber que “tudo está por saber”. 

A essência da verdade é a liberdade, como diz Heidegger, porque todo o ser está presente à minha liberdade, e a assunção da ignorância é condição da interrogação. Mas esta ignorância guarda em si um projeto autêntico de saber, de vir a saber o que há para saber, isto é, a verdade implicada em haver um mundo verdadeiro, a presença das coisas em que meu agir e meu saber acontecerão historicamente. Haveria assim, na atitude socrática, uma relação entre ignorância e liberdade, na medida em que a liberdade de saber depende de assumir a ignorância como projeto de saber. É a essa projeção livre do saber que Sartre designa, em Sócrates, como “a afirmação mais radical do homem”. A ignorância, no sentido socrático, não é neutralidade ou inocência; ela significa que a verdade de si e das coisas se revela na experiência das possibilidades do que nos é dado ser e saber.

Neste processo, que função desempenha a atividade subjetiva a que chamamos reflexão? “O princípio metodológico, que faz começar a certeza com a reflexão, não contradiz de maneira alguma o princípio antropológico, que define a pessoa concreta pela sua materialidade. A reflexão, para nós, não se reduz à simples imanência do subjetivismo idealista: só é um início que nos lança imediatamente entre as coisas e os homens.”[4] O movimento da reflexão envolve o ato pelo qual a consciência se põe na posição de refletir e o “tema imediato” da reflexão, o campo antropológico que delineia a auto-constituição do sujeito nas condições da existência histórica situada. Por ser um movimento que se dá no elemento da verdade, a reflexão não pode deter-se no seu ato inicial e encerrar-se no plano subjetivo; ela deve alcançar as coisas que rodeiam o sujeito, o que há para conhecer: as coisas e os homens. Assim, o ato reflexivo do sujeito o lança “imediatamente” para fora de si, e a reflexão, movimento que se inicia no sujeito, tem que se completar fora dele. 

Trata-se de um só movimento em que sujeito e objeto não podem ficar absolutamente separados, já que o conhecimento é relação. O próprio sentido da distinção entre os termos é a relação que os une. Daí a menção da característica do conhecimento na microfísica: “o experimentador faz parte do sistema experimental.”[5] A alusão favorece o argumento sartreano, pois, longe de significar que sujeito e objeto são o mesmo, ou que um é o simples reflexo do outro, aponta para a interferência do sujeito no objeto e para a reciprocidade referencial. Associa-se também à instância originária do mundo verdadeiro em que se dá o movimento do conhecer, “o homem real no meio do mundo real”.

Sendo assim, a reflexão é começo, ponto de partida, mas a consciência não é fonte nem de conhecimento nem de ação, o que significa que a consciência que procede ao desvelamento não é a sua origem: “o desvelamento de uma situação é feito na e pela práxis que a modifica.”[6] A realidade humana, como já vimos, tem todo o Ser diante de si, da sua liberdade, como o que há para saber. E como estar na verdade não significa dominá-la completamente, este elemento em que o homem vive revela-ser para ele na historicidade dos conhecimentos situados, nas situações a partir das quais o conhecimento acontece no processo de totalização da práxis. O sujeito não constitui nem ilumina a ação: a realização da ação é o seu próprio processo de esclarecimento, pois “a ação se dá em curso de realização de suas próprias luzes.”[7] Mas assim como o desvelamento se dá na e pela práxis, as luzes que esclarecem a ação aparecem na e pela consciência, o que significa que é pela tomada de consciência que o ser se revela ao sujeito como desvelamento prático de uma situação. 

Por isso o que se requer é uma teoria da consciência dos agentes, isto é, dos sujeitos da ação. O que quer dizer que uma teoria da consciência não precisa começar e terminar no interior da subjetividade; pelo contrário, a compreensão da consciência agente a supõe sempre lançada no meio das coisas e dos homens. O que Sartre quer marcar é que a consideração da consciência não é por si mesma contrária ao materialismo e pode ser mesmo necessária para fundamentá-lo; ao passo que a omissão da consciência do agente introduz na compreensão da ação dificuldades tais que podem levar ou a aporias ou a um monismo idealista.

É bem verdade que Marx pretendia um “olhar objetivo” que fosse além da subjetividade. Mas entenderia ele por isso um olhar que não partisse da subjetividade e que se realizasse inteiramente no plano da objetividade? Lênin certamente o compreendeu assim, pois postula uma consciência que é “no melhor dos casos, um reflexo aproximadamente exato” da realidade objetiva. Ora, mesmo para considerara consciência um reflexo, ainda é preciso a consciência; é preciso pelo menos tomar consciência do caráter absolutamente negativo da consciência. Marx pretende um universo em que a objetivação supere a subjetividade; Lênin postula pretende negá-la numa instância aquém de seu próprio nascimento. Talvez Sartre esteja aqui apontando para a inexorabilidade do cogito: só posso negá-lo num ato que consiste na sua afirmação.

Essas dificuldades poderiam ser contornadas se evitássemos as dicotomias metafísicas. Esquematicamente se pode dizer que o idealismo postula a consciência constituinte e o materialismo a consciência constituída. De um lado está o dogma da soberania do sujeito, de outro o dogma da materialidade sensível como única realidade. Sabemos da complexidade do materialismo antigo e do idealismo clássico. Mas pode-se dizer que ambos degeneraram, chegando às suas respectivas versões vulgares. E certamente Sartre vê na teoria do reflexo, em que a consciência é completamente constituída, um materialismo vulgar.

Mas este não é o problema principal. Para Sartre, o mais importante é que se trata de duas versões do idealismo vulgar: uma que dissolve a subjetividade na objetividade e outra que dissolve a objetividade na subjetividade.
 
Nos dois casos temos o vezo idealista que se expressa na pretensão de uma racionalidade constituinte: ou a subjetividade constitui a objetividade ou a objetividade constitui a subjetividade.

Mais uma vez trata-se de reivindicar que o marxismo seja fiel ao caráter histórico do seu materialismo, que não pode ser um dogma metafísico. A dupla efetividade já deveria ser suficiente para mostrar que nem a realidade deve seu ser a uma constituição subjetiva, nem a subjetividade empresta sua realidade de uma objetividade que a constituiria. Ambas são ativas, efetivas. A realidade, sendo histórica, não é dada nem constituída: é produzida pela atividade recíproca da história sobre o sujeito e do sujeito sobre a história. O que o marxismo trouxe de novo foi justamente a possibilidade de superar tanto o essencialismo naturalista e empiricista quanto o essencialismo idealista.

O homem produz historicamente o homem. Neste sentido, pensa-lo como um aparato psicofisiológico inteiramente determinado pelas leis naturais é tão abstrato quanto concebê-lo como puro espírito aprisionado num corpo.[8] Não pode haver abordagem concreta do homem além ou aquém da história. Assim, um materialismo que se quer histórico não pode supor no que o âmbito do físico-natural considerado em si mesmo seja a origem dos dados imediatos a partir dos quais se possa reconhecer o homem. 

O imediato é a ação, é a efetividade, que são fatores de transformação, 
e não de regularidade natural. 

Se a história não se dá ao acaso, se há leis que podem ser discernidas no devir dos acontecimentos, temos aí um conhecimento que envolve tanto a realidade do objeto quanto a realidade objetiva do sujeito. “O experimentador faz parte do sistema experimental” significa: não há teoria pura do real – do objeto ou do sujeito – , porque não há objeto ou sujeito isolados na pureza de seu ser, e neste sentido supor um mundo exclusivamente de objetos é pensar o objeto abstratamente, porque só há representações históricas produzidas em regime de interação. Quando se enfatizam as condições materiais é porque, na inexistência de uma teoria pura, prevalecem as relações materiais historicamente definidas nos diferentes momentos da práxis.

Disso decorre que ser realista não é optar decidida e exclusivamente pelo objeto, e fazer com que a verdade resida somente nele. O realismo de Marx, segundo Sartre, consiste simplesmente na concepção prática da verdade. “No movimento das ‘análises’ marxistas e sobretudo no processo de totalização, assim como nas observações de Marx sobre o aspecto prático da verdade e sobre as relações gerais entre a teoria e a prática, seria fácil encontrar os elementos de uma epistemologia realista que jamais foi desenvolvida.”[9] Para isso seria talvez adequado articular: a praxis como contexto condicionante da ação; o sujeito agente que responde a este contexto de forma ativa e não exclusivamente determinada; e a produção prática da verdade a partir das situações em que essa práxis se constitui por obra da realidade efetiva e da efetividade do sujeito agente.

A racionalidade é ao mesmo tempo objetiva e subjetiva. Por isso é preciso distinguir metodologicamente o ato reflexivo da consciência no início de seu movimento para fora de si, e a interação prática entre consciência e realidade no âmbito da ação histórica.

Agora vejamos o que diz Marx acerca da ação histórica na primeira página do 18 Brumário: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.”[10] Não é a minha consciência, nem a de qualquer outro sujeito individual, que constitui a realidade histórica na qual devo agir. 

Não posso escolher as circunstâncias porque elas foram historicamente constituídas, eu as herdei e me defronto com elas. Este elemento de conflito entre minhas ações e o meio histórico em que elas ocorrem é constitutivo da relação entre os sujeitos e a realidade. O presente traz o lastro da tradição e ambos se confundem no peso que nos oprime, e que se constitui em boa parte da inércia da morte, ou dos mortos que habitaram o passado, no movimento presente da vida. O passado, este tempo e esta realidade definitivamente constituídos e a partir dos quais temos de agir, limita nossas possibilidades. 

A configuração do presente, a história que havemos de fazer, nascerá do confronto entre nossas escolhas e aquilo que não escolhemos. A partir do passado, da configuração do presente pelo passado, operamos nossas escolhas, que portanto se situam entre nossa herança e nossa iniciativa, entre o que reconhecemos e do que nos apropriamos desse passado, e do que projetamos como tarefa construtiva do presente.

Isto significa que a análise de situação deve produzir um conhecimento que incorpore todos estes elementos: que leva em conta o passado constituído, o presente em vias de constituição, a herança das condições consolidadas e a presença daquelas que a própria atualidade vai engendrando na dupla efetividade a que nos referimos. Mas nada é estático e completamente determinante, nem mesmo o passado constituído, já que ele depende da maneira pela qual o presente o entenderá como referência. Assim a análise supõe um movimento de idéias que produz o conceito ao mesmo tempo em que o uso heurístico deste instrumento produz conhecimento.

Observe-se por exemplo o movimento pelo qual a análise de Marx, no 18 Brumário, visa a realidade histórica do campesinato francês em dois momentos.

1)      A revolução de 1789 derruba o feudalismo, acabando assim com a relação senhor/servo, bem como com as grandes propriedades fundiárias, e a terra é distribuída. O camponês, que antes era servo, torna-se proprietário, mas de uma pequena propriedade na qual pratica a agricultura de subsistência. No império, Napoleão consolida a pequena propriedade como parte da estratégia da centralização do poder, evitando assim uma eventual disputa com grandes proprietários rurais. Os camponeses entendem que esta política os protege e os preserva de um retorno à servidão, habituando-se a associar a segurança da propriedade a um governo absoluto. Ademais, as conquistas de Napoleão abrem os mercados europeus à produção agrícola francesa.

2)      A partir de 1830, a fragmentação da terra mostra seu lado negativo. Sem os mercados compulsoriamente abertos por Napoleão, a agricultura definha. A burguesia enriquecida pelo desenvolvimento urbano e pela atividade financeira encontra na falência da agricultura ocasião de lucro fácil através de empréstimos e hipotecas, aos quais os pequenos agricultores têm de se submeter. A exploração é acentuada na medida em que a fragmentação da propriedade gerou a fragmentação dos indivíduos, que como donos de terras não se reconhecem como classe e não se organizam. A subordinação ao capital corrói a autonomia conquistada na Revolução, e os camponeses regridem à condição de dependência, agora de banqueiros e financistas. A ausência de organização deixa os camponeses fora do jogo de poder, que se constitui como conflito de várias facções e de vários interesses.

3)      A situação se agrava com o advento da república em 1848, na qual prossegue a situação política de compromissos amplos entre tendências variadas, mas com perfil dominante da burguesia urbana enriquecida pela especulação financeira. A agricultura enfraquecida é alvo fácil de políticas fiscais particularmente vorazes, facilitadas pela máquina do estado centralizada, herança de Napoleão. Os camponeses, desorganizados, não conseguem se opor. A burguesia consolida seu domínio esmagando o proletariado na revolução de 48. Nenhuma das tendências que dividem o parlamento republicano contempla as necessidades dos camponeses.

4)      O descontentamento, que até então não possuía canal de expressão, é canalizado por Luiz Bonaparte na presidência da república. Acirrando os conflitos entre o poder executivo e legislativo, sugere a idéia de que reformas que venham a beneficiar os camponeses seriam mais eficientemente implementadas num governo forte, em que as iniciativas não tivessem que ser filtradas pelos interesses da Assembléia Nacional. A mesma tática é aplicada ao grande contingente de desempregados e de lumpens que vivem à margem do sistema. Mas é importante considerar o modo como o camponês pode chegar a ver em Luiz Napoleão o governo forte que defenderia seus interesses assim como o fizera o primeiro Napoleão. E isto explica como a demagogia e a aventura política foram os meios pelos quais se restaurou na França o império e como uma figura medíocre veio a tornar-se o imperador Napoleão III.

Esta análise está baseada na visão do movimento histórico que permite diferenciar o camponês da época da Revolução e do império napoleônico do camponês de 1848, em termos de situação econômica, isto é, a partir das condições que deverão ser traduzidas em posições políticas. O que permite entender o tipo de repetição da história de que fala Marx: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Causedière por Danton, Luís Blanc por Robespierre, a Montanha de 1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio.” A compreensão do movimento histórico que vai do império de Napoleão à sua paródia é explicada pelo movimento que vai do camponês revolucionário ao camponês reacionário.



 Fonte:
CONSCIENCIA:ORG
http://www.consciencia.org/cursosartrefranklin5.shtml
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