sexta-feira, 26 de outubro de 2012

SOMOS TODOS MIGRANTES - Benilton Bezerra Jr.





SOMOS TODOS MIGRANTES

Benilton Bezerra Jr.
Este texto de Benilton Bezerra Jr é o prefácio ao livro O Migrante na Rede do Outro, de Ademir Pacelli Ferreira, publicado pela Te Corá Editora. A Rubedo agradece a autorização para sua reprodução. Conheça mais sobre o livro visitando a Revista de Literatura.


Este não é um livro sobre migrantes. Ou melhor, é isso, mas é muito mais. É certo que Pacelli se debruça sobre os dramas, as tragédias e as lutas dos migrantes nordestinos quando descem para o sul maravilha em busca de seus sonhos de sucesso e reconhecimento. A tríade que ele organiza para trazer aos leitores uma imagem bem viva do que são essas experiências (um caso clínico, um personagem de filme e a protagonista de um romance) apresenta exemplos acabados dessas figuras quase míticas do pau-de-arara, do paraíba, que se vêem, perplexas, mergulhadas na atmosfera inóspita e hostil de um mundo que lhes outorga nada mais que um lugar de diferença mal suportada.

Mas o fato é que a reflexão acerca das experiências dilacerantes dos migrantes nordestinos funciona como um foco, que o autor vai pouco a pouco ampliando de modo a fazer surgir aos nossos olhos uma complexa rede de temas e questões que se articulam em torno do seu ponto de partida. Ao final da leitura nos encontramos na posição a que o livro parece nos convidar desde o início: com a estranha sensação de que estamos todos - quer tenhamos ou não clareza disso - potencialmente envolvidos na mesma trama que envolve seus personagens-tema: Nano, o migrante que enlouquece, Severino, o bom nordestino que se torna um criminoso, Macabéa, "malabarista da existência humana", como diz Pacelli, um pequeno ser de vida inútil e morte irrelevante, e Deraldo, que encontra uma saída por meio da palavra poética.

A originalidade deste trabalho está justamente aí: no modo como o tema do migrante abre caminho para uma reflexão mais abrangente acerca de pontos fundamentais na agenda de todos que queiram pensar sobre os dilemas e desafios cruciais de nossa cultura. 

Num plano, o que está em pauta é a análise das relações entre o imaginário social hegemônico com a alteridade, a diferença, num mundo em que a globalização, ao invés de realizar os sonhos utópicos modernos de fraternidade e solidariedade, cria múltiplas formas de exacerbação da intolerância, do preconceito e da exclusão. Noutro viés, que se articula com o primeiro, o que está em jogo é uma reflexão sobre o impacto desse quadro sobre os processos de construção da experiência subjetiva dos indivíduos. Ao tecer sua discussão, Pacelli vai aos poucos nos apanhando em sua rede. Seu objetivo é o de capturar nossa atenção para este fato: no mundo em que vivemos hoje, somos todos mais ou menos migrantes. Ao deter nosso olhar sobre as trajetórias e vicissitudes dos personagens que convoca à cena, ele aciona uma estratégia cuja finalidade é nos instigar a pensar sobre nós mesmos, e sobre o mundo que consentimos em deixar existindo.

A discussão proposta pelo autor não poderia ser mais oportuna. Jamais o planeta esteve tão próximo de se tornar uma aldeia. As distâncias continuam sendo as mesmas, mas a velocidade com que chegamos a qualquer canto, fisicamente ou por meio de imagens, notícias e comunicações, torna essas distâncias cada vez mais irrelevantes. Nas últimas poucas décadas vimos o desenvolvimento tecnológico criar uma realidade inimaginável há poucas gerações. Hoje, não há lugar do mundo a que não possamos chegar no intervalo de algumas horas.

 O extraordinário crescimento do fluxo de turistas por todo o globo transforma culturas antes exóticas e distantes em cenários ao alcance de prosaicos pacotes financiados a perder de vista. O que quer que aconteça em algum recanto perdido pode imediatamente estar diante de nossas telas. 

Com o surgimento da internet um outro espaço se cria. Um espaço diferente, virtual, que contrai distâncias, dilui obstáculos, e torna possível trazer um quadro do Louvre, um livro de uma biblioteca sueca ou a receita de uma dona de casa japonesa para frente dos olhos em questão de segundos. Novos mecanismos de aproximação entre pessoas distantes vão se criando aos nossos olhos. Pessoas dos mais diferentes países e culturas estabelecem relações de proximidade rapidamente.

 Ao contrário do que os mais apressados e pessimistas insistem em salientar, parece haver de fato a criação de novas formas de laços intersubjetivos em gestação no momento.

Nunca estivemos tão perto uns dos outros. Fronteiras geo-políticas se diluem, articulações supra-nacionais se organizam, fluxos migratórios são cada vez mais intensos, instâncias e agendas planetárias de todo tipo são cada vez mais presentes. No entanto, de forma contrastante com estes movimentos que visam - e já de certo modo supõem - uma perspectiva mais encompassadora do mundo e o estabelecimento de formas de vida coletiva, vemos crescer de modo espantoso e assustador o nacionalismo, a xenofobia, o preconceito, a exclusão. 

Um mal-estar pervasivo parece infiltrar-se por todo o tecido social. Contingentes imensos são postos à margem desses processos inclusivos. Que destino está reservado aos deserdados da chamada globalização? Qual o lugar, numa cultura planetária, para os que não se inserem de algum modo nas expectativas e exigências ditadas pela lógica totalizante e imperativa do mercado (de bens, de serviços, de identidades, de itens culturais de consumo)? Para os que se encontram no interior dessa totalidade, o consolo do consumo não substitui a ausência de ideais, horizontes partilhados, elos entre o passado e o futuro que tornem o presente uma experiência de criação. Projetos coletivos e trajetórias individuais diluem-se numa frenética fruição do imediato.

 O mundo da cultura, degenerado em oferta de entretenimento, não oferece aos sujeitos um encontro com sua própria história e identidade. Vagando em função dos ditames mercadológicos do momento, desprovidos de um sentido forte de ação no mundo dos negócios humanos, mesmo aqueles plenamente incluídos no processo de globalização padecem dos dramas de desenraizamento, de fragilidade identitária, de perplexidade em relação a si. 

Toda a psicopatologia do cotidiano atual, com seu espectro de tonalidades depressivas, pânicos e fobias sociais, denunciam o que se esconde por trás da euforia consumista.

Nesse contexto, a figura do migrante funciona aqui como uma espécie de metáfora. Quando Pacelli fala de seus personagens nordestinos e analisa seus dramas, suas estratégias de reação, seus sucessos e fracassos, sua intenção é a de dissecar a tessitura dessas experiências, não apenas revelando seus conteúdos psicológicos, aquilo que se passa no plano da vivência singular de seus personagens, ou ainda aquilo que peculiariza o vivido de pessoas oriundas de uma certa região do Brasil. Seu objetivo é o de ir um pouco mais além, e extrair de suas análises elementos que nos permitam compreender de que tipo de argamassa subjetiva somos feitos - nós, sujeitos desse cenário de fim de milênio. É isso que o subtítulo do livro indica. 

Trata-se de uma reflexão acerca da constituição da experiência subjetiva e a presença, neste processo, do polo alteritário - tanto na origem da construção do eu, como nos processos de crise e transformação dessa experiência. Tomar o migrante como metáfora, nesta perspectiva, significa descrever de modo inabitual o que poderiam ser, hoje, algumas características axiais da experiência dos sujeitos habitantes do universo social contemporâneo. Não apenas os que efetivamente migram de um lugar para outro, mas todos os que vivemos num cenário de mobilidade e fluidez de nossos referentes simbólicos mais caros. Todos os que enfrentamos o desafio de - num mundo de incertezas - lidar com a diversidade, a diferença, tentando encontrar o caminho estreito que separa os padrões habituais de assimilação a uma identidade prévia ou exclusão do que não é espelho.


O autor começa o seu fio argumentativo discutindo a tendência - recorrente em muitos estudos - de assimilação do migrante à ideia de carência. Deste ponto de vista, a experiência migrante seria caracterizada basicamente pelos problemas decorrentes de uma deficiência de cultura, de capacidade simbólica e afetiva, de potencialidade semiótica. O drama do migrante se resumiria a questões de adaptação/desadaptação num contexto que lhe é estranho. Todo o esforço do autor, em contrapartida, é o de remar contra essa corrente, e mostrar a positividade e a riqueza da experiência do migrante.

 Se, de fato, esta é marcada por processos de ruptura, perplexidade, desorientação, não é menos verdade que do outro lado da moeda encontramos um complexo processo de enfrentamento da diferença, de elaboração da estranheza intrigante, que remete o sujeito a uma reinvenção de si, a uma reconstrução de suas referências, a um processo complicado, doloroso, mas potencialmente criativo de afirmação de si.

Pacelli chama atenção para o fato de que a questão do migrante - tomada como emblema do impacto daquilo que nos interpela em nossas descrições estabilizadas do mundo - não diz respeito apenas àqueles que chegam a uma realidade que não é a sua, em busca de acolhida e reconhecimento. Também aqueles a quem este pedido é endereçado são profundamente afetados. O autor recorre a exemplos históricos para mostrar como foi lento e progressivo o aparecimento, na cultura ocidental, da capacidade de reconhecimento da alteridade de outros indivíduos ou grupos da mesma espécie como fazendo parte de um mesmo universo humano.

 A percepção da diferença nem sempre implicou o reconhecimento desses outros como outros eus. As razões para este fato, como Pacelli faz ver, são de duas ordens. A primeira é histórica: somente com o cristianismo e o ideário individualista da modernidade é que se criaram as condições culturais capazes de propor uma visão universalista do ser humano. As utopias modernas de construção de um mundo ideal passaram a exigir a promoção da igualdade entre os indivíduos e as culturas, sendo as diferenças inevitáveis entre eles pensadas agora como particularidades contextuais, submetidas ao universal do humano.

 A segunda razão diz respeito ao funcionamento do próprio sujeito. Apoiando-se em Freud, Pacelli lembra o papel complexo que o polo da alteridade desempenha na vida psíquica, não apenas na constituição do sujeito individual e dos emblemas identitários coletivos, mas ao longo de toda a trajetória de uns e de outros. De um lado ela é elemento primordial na construção do psiquismo individual, por meio da exterioridade da linguagem ou do simbólico que inscreve cada organismo humano individual no universo de sentido de pares humanos. 

De outro podemos ver como, uma vez constituídas as estabilizações narcísicas que compõem as identidades dos indivíduos e grupos, cada vez que o polo da alteridade, do não-idêntico, comparecem à cena psíquica, mecanismos são postos em ação para neutralizar ou reduzir seu potencial disruptivo: absorvê-la como expressão disfarçada do mesmo, ou excluí-la como emergência de uma estranheza ameaçadora.

Quem encarna a diferença, quem é afetado por ela? Pacelli sugere que não se deve identificar essas posições em personagens concretos. O migrante pode ser visto como encarnação da diferença perturbadora. Mas do seu ponto de vista, a estranheza se encontra no contexto a que chega, e naqueles que o habitam. Mesmo no interior de nossa cultura, o enigma e o desafio da estranheza, da diferença, estão presentes. De certo modo invadiram o cotidiano. Ao volatizar os quadros de referência mais sólidas de que dispunham nossos antecessores, nossa cultura criou essa situação algo paradoxal: jamais fomos tão aptos a admitir o novo, o inusitado, já que nos acostumamos com a velocidade de mudanças e não precisamos nos referir de maneira rígida a quaisquer padrões que a tradição nos tenha legado.

 No entanto, esse desconhecimento ou recalque de nossas filiações mais profundas parece promover uma atmosfera subjetiva que está longe de ser confortadora. Sem raízes profundas, padecemos de uma profunda nostalgia de fundamentos, de âncoras firmemente plantadas em algum solo duro e estável. A experiência de inscrição na dimensão temporal da existência, e o modo como se organiza a cartografia do espaço que habitamos, vêm sofrendo profundas modificações nas culturas urbanas. 

As ambivalências em relação ao passado e ao futuro, a dificuldade de circular pelos novos espaços descontínuos e fragmentados em que nos vemos atirados, são experiências comuns aos migrantes nordestinos cujos percursos Pacelli descreve, e a todos nós, migrantes do cotidiano. As estratégias criadas em nossa cultura ocidental para dar conta dessa situação paradoxal são muitas. Uma delas é afirmação dos traços diferenciais como base sólida e indiscutível para a construção identitária.

 É o que vemos preconizada pela política de identidades fundada em características de gênero, ou de preferência sexual, ou nas propostas fundamentalistas defendidas por grupos religiosos, políticos e étnicos.
Pacelli, no entanto, não privilegia essa perspectiva de análise, e segue outro caminho. Em primeiro lugar ele escolhe um assunto que nos é familiar, o migrante nordestino que desce o país em busca do sul, espaço investido idealmente como depositário das melhores promessas. Em segundo lugar, ao invés de se deter unicamente em noções, conceitos e teorias, ele procura trazer o vivido, a experiência sensível, para dentro de sua reflexão. Seu objetivo é não apenas convencer argumentativamente o leitor, mas impactá-lo pela exposição da intensidade, da afetação íntima que seus personagens experimentam em seus percursos. 

Os capítulos dedicados ao caso clínico, ao filme de João Batista de Andrade., e ao romance de Clarice Lispector são construídos de modo a fazer com que as idéias do autor ganhem em força pela persuasão que essas narrativas são capazes de produzir, numa cumplicidade entre a reflexão racional e a adesão afetiva. Pacelli apela à imaginação do leitor. Com ela, a letra fria do raciocínio é imantada pelo colorido afetivo do vivido dos personagens. O leitor é convidado a fazer uma passagem entre uma discussão acerca da diferença e o acompanhamento dos caminhos e descaminhos de alguns diferentes.

O que poderia ser mais um estudo especulativo, abstrato e mais ou menos artificial sobre o idêntico, o mesmo e a diferença, se transforma noutra coisa. Entra em cena uma discussão acerca da necessidade prática, numa sociedade globalizada e interdependente, de todos poderem estar em contato com diferentes, tentando entender seus modos idiossincráticos de pensar e agir, sendo receptivos à afetação por eles provocada, fazendo deste encontros com o alter uma uma experiência de redefinição de si. E é nessa combinação entre reflexão conceitual e expressão narrativa, entre o interesse teórico e a preocupação política que o livro encontra seu melhor caminho.


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 Li-Sol-30
Fonte:
http://www.rubedo.psc.br/Artlivro/migrante.htm
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