Breve Reflexão Sobre a TrajetÓria Intelectual de Johannes Kepler E AS FUNDAÇÕES DA ASTRONOMIA MODERNA.
Alessandro Arlindo de Oliveira Assunção[1]
“Com sinceridade confesso que quanto mais contemplo a devida ordem, visto que uma resulta da outra e se reduz, é como se eu tivesse lido uma passagem celestial não escrita em letras significativas, mas com as coisas essenciais neste mundo que me dizem: Aplique seu raciocínio aqui para compreender essas coisas”.
Johannes Kepler
RESUMO
O astrônomo e matemático alemão Johannes Kepler é notoriamente conhecido por elaborar as três leis dos movimentos planetários que revolucionaram toda uma cosmologia que vigorou desde aproximadamente o século II aos Seiscentos. Kepler, num período envolto em conflitos religiosos entre católicos e protestantes, lançou as bases da astronomia moderna interpretando os fenômenos celestes a partir de causas físicas. Advogou ao longo de sua vida a favor do heliocentrismo de Nicolau Copérnico em oposição ao geocentrismo aristotélico-ptolomaico. Partindo destes pressupostos, este trabalho pretende fazer uma breve reflexão sobre a trajetória intelectual de Johannes Kepler e as fundações da astronomia moderna.
Introdução
Algo que sempre intrigou a humanidade, desde as civilizações mais antigas, foi o movimento dos corpos celestes. A observação dos astros no firmamento levou à formação de diversas tradições e crenças. A idéia da Terra como o centro imóvel do cosmo perpassou durante muito tempo, da Antiguidade Clássica ocidental até o Renascimento.
Na História da Ciência poucos personagens
foram tão intrigantes quanto
Johannes Kepler (1571-1630).
Luterano convicto viveu a transição do século XVI para o XVII em uma Europa imersa em conflitos religiosos e políticos. Sua vida pessoal foi marcada por uma série de infortúnios como, por exemplo, a perseguição de sua mãe pelos tribunais do Santo Ofício. Se hoje a Astronomia difunde a idéia de que os planetas desenvolvem uma órbita elíptica e seguem leis físicas em sua jornada cósmica devemos considerar imprescindíveis as Leis dos Movimentos Planetários formuladas por Kepler.
Este estudo pretende fazer uma breve reflexão sobre a trajetória intelectual de Johannes Kepler e as fundações da astronomia moderna por meio das percepções de James A. Connor. Escritor norte-americano, ex-padre jesuíta, doutor em Teologia, Literatura e Ciência. É autor da obra “A Bruxa de Kepler”: a descoberta da ordem cósmica por um astrônomo em meio a guerras religiosas, intrigas políticas e o julgamento por heresia de sua mãe. Amparamos-nos também em Ronaldo Rogério de Freitas Mourão. Brasileiro, doutor em Astronomia, diretor aposentado do Observatório Nacional, fundador do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST).
Mourão é autor do livro “Kepler”: a descoberta das leis do movimento planetário. O interesse na obra de Connor se deu por se tratar de uma das poucas obras estrangeiras dedicadas à vida de Johannes que foram traduzidas para o português.
Quanto a Mourão o que nos levou a perscrutar sua obra é que ela se trata da primeira biografia escrita por um pesquisador brasileiro sobre a vida de Kepler. Investigando como Connor e Mourão perceberam Kepler, tentaremos conduzir o leitor aos meandros da atmosfera intelectual do século XVII, no concernente à inovação da cosmologia da época, e, trazer à tona proposições que revolucionaram toda uma visão de mundo substanciando um conjunto de conhecimentos válidos até os dias de hoje.
1 Situando Kepler no ambiente intelectual de seu tempo
A noção da Terra vagando numa ciranda espacial denominada sistema solar pode parecer para nós do século XXI algo descomplicado. Mas, esta idéia que apresenta nosso planeta, na imensidão do Universo, girando em torno do Sol percorreu um longo caminho até se estabelecer. Conhecer as principais concepções acerca do Universo, presentes no século XVII, é indispensável para seguirmos na aventura de tentar compreender as percepções de James A. Connor e Ronaldo Rogério de Freitas Mourão sobre a trajetória intelectual de Kepler. No item que se segue, com o auxilio dos referidos intelectuais e de físicos, historiadores da ciência e filósofos, buscaremos revisitar tais concepções.
1.1 Universo dominante
No século de Kepler a idéia em relação ao cosmo que preponderava era do sistema geocêntrico[2] de Ptolomeu[3], no qual a Terra ocupava o centro do mundo[4]. Esta idéia, que orientava muitos homens do ocidente europeu, desde o século II, era sustentada por axiomas da física clássica apresentada pelo filósofo grego Aristóteles.
Aristóteles também estava seguindo uma longa tradição estabelecida pelos pré-socráticos: de que tudo que é pesado cai, e o que é leve sobe, assim como o ar, a água e a terra misturados numa jarra de vidro acabam se aquietando com a terra no fundo, o ar por cima de tudo e a água no meio. Coisas pesadas se separam das leves, coisas molhadas se separam das secas, coisas quentes, das frias, e coisas claras das escuras. Portanto, disse Aristóteles, a terra tem de estar no centro do universo, pois, como qualquer um pode ver, a terra é pesada e o ar, que se estende em direção ao céu é leve (CONNOR, 2005, p. 76).
Paulo Abrantes, físico e estudioso de história da ciência, aponta que na cosmologia aristotélica o Universo dividia-se em duas regiões: a região celeste e a região sublunar, localizada abaixo da órbita da Lua (1998, p. 38). “No mundo sublunar estão representados os lugares naturais dos quatro elementos: terra, água, ar e fogo. Após a esfera da lua estão as esferas dos planetas, incluindo o sol.
O mundo é limitado pela esfera das estrelas fixas” (Ibid., p. 33). Podemos perceber que a finitude do cosmo é uma característica latente na concepção aristotélica, destacando-se ainda o aspecto imutável da esfera das estrelas fixas, ou seja, além do mundo ser limitado a esta região, esta não estava sujeita a mudanças.
A idéia aristotélica, interpretada e difundida por Ptolomeu, apresentava características que podiam ser percebidas tanto por eruditos como por leigos. Ainda hoje falamos em nascer e pôr-do-sol, e, esta idéia é estabelecida a partir da nossa observação, na experiência cotidiana, em relação ao movimento que o astro faz no firmamento. E é esta questão observacional um dos alicerces que sustentavam o sistema geocêntrico, visto que o Universo aristotélico-ptolomaico contemplava muitos fenômenos observados no céu.
A imobilidade da Terra e, como aponta James A. Connor, a idéia de que o Universo todo girava em torno dela, parecia algo lógico e natural para os seguidores de Ptolomeu. Atribuir movimento a terra não parecia uma idéia sensata para aqueles que entendiam o seu peso e a leveza dos ares.
Outro ponto que fortalecia a idéia geocêntrica está relacionado à teologia, visto que tal idéia, ao localizar a Terra no centro do Universo, reforçava o cânone da Cristandade que colocava o homem, imagem e semelhança de Deus, vivendo em um lugar privilegiado da criação divina. A cosmologia aristotélico-ptolomaica contemplava em vários aspectos o cosmo bíblico do Gênese.
Ademais, para os cristãos o lugar onde o filho de Deus havia nascido, vivido, morrido e ascendido ao Pai, era especial. No entanto, embora o cristianismo atribuísse este sentido para a Terra, Connor aponta que este não era o pensamento aristotélico em relação a ela.
Aristóteles jamais pensou na Terra como um lugar especial ou a menina dos olhos de alguém. A Terra ocupava a posição mais baixa no cosmo, onde tudo que era caótico e tudo que era corruptível no fim se assentava. O mundo sob a esfera da Lua era a privada do universo, onde os seres vivos nasciam e depois morriam, onde mais cedo ou mais tarde toda a vida retornava para apodrecer (2005, p. 74).
Todavia, ainda que a cosmologia aristotélica em sua essência se diferisse da idéia cristã, a teoria geocêntrica era resguardada pela tradição e pelas autoridades oficiais.
O geocentrismo se apoiava na experiência cotidiana, contudo, o sistema de Ptolomeu não era a única voz que buscava explicar o mundo na época de Kepler, e as vozes discordantes do sistema geocêntrico queixavam-se a fim de demonstrar suas falhas.
Na época de Kepler, havia pelo menos quatro modelos distintos do universo pairando na atmosfera intelectual [...] Primeiro, havia o cosmo oficial, o universo finito, geocêntrico de Aristóteles e Ptolomeu, reiterado por São Tomas de Aquino. Depois, havia o cosmo infinito de Nicholas de Cusa, com Deus no eterno e onipresente centro. Terceiro, havia o universo “heliostático” de Copérnico, no qual os planetas, inclusive a Terra, giravam em torno do Sol, que estava fixo no lugar. E, finalmente, havia o modelo ressuscitado por Tycho Brahe, primeiro discutido por Heracleides Ponticus, aluno de Platão, no qual o Sol girava em torno da Terra e os planetas giravam em torno do Sol (CONNOR, 2005, p. 73).
Figura 1 – Representação do Geocentrismo.
Fonte: The Space Site. Acesso em: 29 jun. 2009.
1.2 Nicolau de Cusa e o Universo infinito
No final do medievo a idéia geocêntrica fora confrontada pelo cardeal alemão Nicolau de Cusa (1401-1464). Segundo, os filósofos Etienne Gilson e Philotheus Boehner (2000), estudiosos da história do pensamento cristão, Nicolau de Cusa estudou em Deventer, Heidelberg e Pádua, e, inicialmente se interessou pela ciência do direito e pelas ciências naturais, dedicando-se posteriormente de forma integral à teologia.
Ele denotava uma personalidade contemplativa, e preferia o recolhimento aos conflitos políticos, tendo por objetivos a conciliação e a paz na Igreja. Dentre suas obras destaca-se De Docta Ignoratia, de 1440, que trata, sobretudo da inexatidão do conhecimento humano. Esta obra de Nicolau de Cusa divide-se em três livros, sendo que nossa atenção se volta ao segundo livro que discorre sobre o Universo, e que, paradoxalmente à personalidade conciliatória do autor, confrontava o sistema geocêntrico.
Conforme aponta Boehner e Gilson, para Cusa o Universo, ou totalidade, é parte da multiplicidade da unidade absoluta [Deus], onde o Universo não se caracteriza numa unidade “à maneira de Deus”, mas, como parte derivada Dele, ademais, para o cardeal não poderia existir um ponto fixo e imóvel no centro do mundo, nem tampouco ser a Terra o centro dele (2000, p. 561).
Além disso, segundo ele a esfera das estrelas fixas não poderia ser o limite do Universo, e, suas idéias davam características à Terra como um astro entre outros astros. É importante salientar que Cusa deslocava o Sol para o centro do cosmo atribuindo características “místicas” a ele, onde todo o Universo estava em movimento e o centro do mundo possuía um centro “metafísico”, sendo este centro o poder infinito de Deus.
1.3 Copérnico e a idéia do Sol no Centro do Universo
O polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), que tanto inspirou as teorias posteriormente formuladas por Kepler, estudara matemática e astronomia com Domenico Maria de Novara, um dos grandes críticos do sistema geocêntrico de Ptolomeu. Novara se baseava no pensamento dos antigos pitagóricos para levantar a hipótese do Sol no centro do Universo, e, a Terra na qualidade de um planeta como os outros. As idéias de Novara exerceram grande influência no pensamento de Copérnico que passou a estudar os aspectos problemáticos da teoria geocêntrica de Ptolomeu e a dedicar-se à hipótese de um sistema heliocêntrico[5].
Não obstante, Daniel J. Boorstin[6] indica que Copérnico elaborou a sua teoria acerca do heliocentrismo como uma atividade secundária, e, o que o levou a publicar sua obra fora o entusiasmo de amigos e seguidores. Ele ainda aponta que Copérnico tinha consciência que seu sistema parecia violar o senso comum, no entanto, seus amigos insistiam que após a publicação de seus comentários sua teoria “revelar-se-ia admirável e aceitável” (1989, p. 276).
A princípio as idéias fundamentais da teoria de Copérnico foram divulgadas apenas entre seus amigos por meio de um manuscrito intitulado De Hypothesibus Motuum Coelestium a se Constitutis Commentariolus, Comentários sobre as Hipóteses Acerca dos Movimentos Celestes. Posteriormente com a publicação da obra De Revolutionibus Orbium Coelestium, Das Revoluções das Esferas Celestes, as idéias de Copérnico apareciam sistematizadas descrevendo todos os orbes, inclusive a Terra, girando em torno do Sol.
A hipótese de Copérnico demonstrava similitude com as propostas de Nicolau de Cusa sobre a centralidade do Sol, mas diferia em alguns aspectos como, por exemplo, o fato do Sol estar fixo no sistema copernicano. Porém, o aspecto de veneração em relação ao “Astro-Rei” se conservara em sua obra como podemos perceber no fragmento a seguir:
No meio de todos encontra-se o Sol. Ora, quem haveria de colocar neste templo, belo entre os mais belos, um tal luzeiro, em qualquer outro lugar melhor do que aquele de onde ele pode alumiar todas as coisas ao mesmo tempo?
Na verdade não sem razão, foi ele chamado o farol do mundo, por uns, e, por outros, a sua mente, chegando alguns a chamar-lhe o seu governador. Trimegisto apelidou-o de deus visível, e Sófocles, em Electra, de vigia universal. Realmente o Sol está como que sentado num trono real, governando a sua família de astros que giram à volta dele (COPÉRNICO apud BRAGA et al., 2004, p. 73).
É valido salientar que Copérnico, assim como tantos outros eruditos da virada do século XV ao XVI, fora afetado com o advento das grandes navegações. A expansão ultramarina redimensionou a visão de mundo na Europa. Os registros dos navegadores sobre novos locais e a descoberta de novas rotas marítimas revelaram a esfericidade da Terra, e, a idéia de que a terra e a água estavam separadas em duas esferas distintas foi interpelada, abrindo margem a novos questionamentos sobre o Universo (SOARES, 1999, p. 135).
O modelo proposto por Nicolau Copérnico apresentou sentenças que se distanciavam dos axiomas da física aristotélica e isso gerou dúvidas em relação ao sistema heliocêntrico proposto pelo polonês. Em contraposição à idéia aristotélica de que o centro do mundo coincidia com o centro da Terra, e este atraía os corpos pesados, Copérnico sugeriu que a Terra era apenas o centro de sua própria “gravidade”. Ocorre que este conceito de “gravidade” esperaria algum tempo até se definir mais precisamente, e, à sua época Copérnico não conseguiu estabelecer com clareza o motivo da queda dos corpos, era difícil aceitar uma nova física sem se remeter a física aristotélica que justificava diversos fenômenos.
As primeiras reações adversas ao sistema heliocêntrico não tiveram apenas conotações religiosas, como se pode imaginar, mas estavam relacionadas à fragilidade dos aspectos físicos propostos neste novo modelo, que a princípio não demonstrava atributos superiores ao geocentrismo. Segundo Boorstin, Copérnico não tinha a intenção de criar um novo paradigma de física, seu modelo consistia basicamente em uma Terra móvel que deixava de estar no centro do mundo, muitas características do sistema ptolomaico foram conservadas no sistema copernicano.
Copérnico não debate sobre a questão de o universo ser finito, e, conserva em seu modelo a idéia das esferas celestes presentes no sistema ptolomaico, mas, sem defender se estas são reais ou imaginárias, se são instrumentos geométricos, ou se são cápsulas espessas compostas de material etéreo, como era proposto por Aristóteles. Contudo, o sistema copernicano trazia, além da centralidade do Sol e da mobilidade da Terra, outros aspectos de objeção ao sistema geocêntrico.
Copérnico finalizou o Commentariolus com a afirmação de que os movimentos circulares que explicavam a estrutura do universo não ultrapassavam 34 círculos, o que representava uma considerável redução em relação aos 80 círculos do sistema desenvolvido por Ptolomeu no século II (SOARES, 1999, p. 149-150).
É impreterível comentar que Copérnico concordava com a idéia da esfericidade do cosmo, onde a perfeição divina era associada à concepção do Universo como uma esfera, onde os corpos celestes desenvolviam movimentos circulares perfeitos. Ele explicita esta visão em sua obra como demonstra o fragmento a seguir:
Compete-nos notar desde o início que o Universo é esférico ou por que seja esta forma mais perfeita de todas, um todo inteiro sem qualquer junção das partes; ou porque ela própria seja a mais capaz das figuras e maximamente conveniente para encerrar e conservar todas as coisas; ou até porque as partes mais perfeitas do Universo, isto é, o Sol, a Lua e as estrelas, se apresentam com essa forma e porque todo o Universo tende a ser por ela delimitado. E isto mesmo se vê nas gotas de água e nos outros corpos líquidos quando revestem a sua forma natural. Pelo que ninguém deverá hesitar em atribuir tal forma aos corpos celestes (COPÉRNICO apud SOARES, 1999, p. 152).
Dentre as objeções de Copérnico, em detrimento ao sistema geocêntrico, havia a questão relacionada ao calendário utilizado em sua época. Boorstin anota que tal calendário era resultado da reforma romana, que fora recorrida do calendário solar egípcio, desde o ano 45 a.C., que introduziu o sistema de três anos de 365 dias, seguido por um ano bissexto de 366 dias.
Ocorre que tal medida dos dias ocasionava um atraso de cerca de onze segundos em relação ao ciclo efetivo percorrido pelo Sol, o que, com o passar do tempo, resultara numa desarticulação do calendário e as estações do ano, prejudicando as atividades de agricultores e mercadores, e, nesse sentido Copérnico atribuía às falhas do calendário à sua ligação com a teoria geocêntrica.
A princípio o modelo de Copérnico foi admitido pelas autoridades eclesiásticas da época. Segundo o historiador Luiz Carlos Soares (1999), as idéias copernicanas foram bem recebidas pelo papa Clemente VII e por outros membros importantes da Igreja como, por exemplo, o arcebispo de Cápua, o Cardeal Nicolau Schönberg, que chegou a se corresponder com ele, em novembro de 1536, para oferecer que suas teorias fossem publicadas com o patrocínio da Igreja. Soares ainda aponta que Schönberg demonstrou entusiasmo para que a teoria copernicana fosse encaminhada ao representante da cúria de Roma, Dietrich Von Reder, para preparar a publicação do livro que ensinaria uma nova cosmologia, onde a Terra se movia e o Sol o ocupava “o ponto mais inferior e, por isso, central do Universo” (1999, p. 138).
Soares anota que havia “uma série de crenças dos humanistas italianos que rejeitavam a estrutura hierárquica do universo ptolomaico e aristotélico, que atribuía uma posição ‘baixa’ à Terra estática e central” (Ibid., p. 134). Ainda que posteriormente o livro de Copérnico viesse a ser proibido pela Igreja, não havia muitos religiosos durante o século XVI que condenassem as proposições do sistema heliocêntrico, sendo que as primeiras reações contrárias ao trabalho dele vieram dos protestantes, sobretudo do teólogo e reformador alemão Martinho Lutero.
[...] o teólogo e reformador alemão Martinho Lutero (1483-1546) foi quem se opôs às idéias de Copérnico. Afirmava que elas contrariavam as Escrituras, em especial o Velho Testamento, no relato segundo o qual Josué, empenhado em conquistar o território dos filisteus, conseguiu deter o Sol no céu para que a batalha não fosse interrompida. Ora, argumentava Lutero, se o Sol parou no céu, é porque girava ao redor da terra (MOURÃO, 2003, p. 66).
Para os protestantes o sistema heliocêntrico era contrário à Bíblia Sagrada, valendo destacar que o prefácio constante na obra De Revolutionibus Orbium Coelestium¸ fora forjado pelo teólogo luterano Andreas Osiander, para difundir a teoria de Copérnico apenas como uma hipótese para facilitar os cálculos e que não se tratava de uma verdade sobre o cosmo (BRAGA et al., 2004, p. 76). Como aponta Boorstin, foi Kepler quem identificou que este prefácio era apócrifo e como veremos no decorrer deste trabalho lançou-se a defender as idéias de Nicolau Copérnico como um novo modelo astronômico.
Figura 2 – Desenho de Copérnico ao lado da representação
do Heliocentrismo proposto por ele.
Fonte: Copernicus Group IBR. Acesso em: 29 jun. 2009.
1.4 Tycho Brahe e a mutabilidade da região celeste
O dinamarquês Tycho Brahe (1456-1601) foi contemporâneo de Johannes Kepler, e, contribuiu substancialmente para seu trabalho, como veremos ao perquirir as obras de Connor e Mourão, entretanto, por ora nos ateremos a alguns aspectos identificados por Brahe acerca do Universo em suas observações.
Dentre as várias observações de Tycho Brahe ele testemunhou, e vale destacar que a olho nu, um acontecimento no firmamento que alteraria profundamente os parâmetros da cosmologia aristotélico-ptolomaica. A primeira observação de destaque do dinamarquês foi o nascimento de uma nova estrela na constelação da Cassiopéia, em 1572, que pode ser contemplado nos céus da Europa devido ao grande brilho até o inicio do ano de 1574 (SOARES, 1999, p. 174). Como aponta Mourão, a descoberta na constelação da Cassiopéia demonstrou o céu mutável, em oposição à crença aristotélica que limitava a “corrupção cósmica” à esfera sublunar.
Como vimos anteriormente, a teoria geocêntrica defendia a idéia de que na esfera das estrelas fixas não poderia ocorrer mudanças, e, as observações de Brahe desmontavam esse pensamento. Não obstante, apesar de suas observações contrariarem o sistema geocêntrico, em relação à imutabilidade da região celeste, Tycho Brahe, que tinha formação protestante, e absorvera na Universidade Luterana de Copenhaga doses da teoria aristotélica, iniciando-se no sistema ptolomaico do firmamento, defendia a idéia de imobilidade da Terra.
Como aponta Boorstin, ele não abandonou a crença de uma Terra imóvel e pesada no centro do Universo, conforme demonstrava as escrituras sagradas, no Livro de Josué onde ele dizia que o Sol havia parado no céu. Em síntese o sistema proposto por Tycho Brahe agregava elementos das teorias de Copérnico e de Ptolomeu, onde a Terra permanecia estática, com o Sol girando em torno dela, e os outros planetas seguiam girando à volta do Sol.
Figura 3 – Representação do sistema de Tycho Brahe.
Fonte: Center of Astrophysics and Space Sciences.
Acesso em: 29 jun. 2009.
2 Kepler em busca da harmonia cósmica nas dissonantes concepções de mundo
Um homem pertinaz, cuja vida fora marcada por uma série de intempéries, brindara o mundo com teorias fascinantes e ao mesmo tempo perturbadoras para a sua época.
Em busca de uma ordem cósmica Johannes Kepler presenciou o caos de uma Europa imersa em conflitos religiosos e intrigas políticas. Em meio a esta desafinada sinfonia mundana, Kepler, determinado em desvendar a mente de Deus, perquiriu os céus em busca de uma harmonia no cosmo, revelando as leis do movimento planetário. Procuraremos neste momento de nossas reflexões investigarmos, por meio das percepções de Connor e Mourão, a trajetória intelectual do homem que buscou causas físicas para os fenômenos celestes.
2.1 O horóscopo de Kepler e os vestígios de sua vida familiar
Quando ouvimos falar em horóscopo no século XXI logo vem desdenhosamente ao nosso pensamento as colunas de astrologia presentes nos diversos jornais que circulam em nosso país, entretanto, algumas considerações precisam ser feitas em relação à astrologia na época de Kepler. Em sua obra Connor acautela o leitor de que a astrologia era reconhecida como ciência no século XVII, e, no decorrer deste trabalho veremos que ela servia para elucidar acontecimentos do cotidiano seiscentista.
Porém, não é sobre isso que trataremos por ora. O que nos interessa sobre astrologia, neste momento, é apenas comentar que uma das grandes fontes biográficas sobre Johannes Kepler é o seu horóscopo, escrito por ele próprio em 1597, aos vinte seis anos de idade, e que, como aponta Mourão, trata-se de um considerável documento “rico e complexo” sobre a ancestralidade de Johannes (2003, p. 23). Connor defende que, “o horóscopo de Kepler e suas memórias são os únicos vestígios da sua juventude e vida familiar” (2005, p. 39).
Em 1520 o avô de Kepler, Sebaldus, emigrou de Nuremberg, para Weil, na Suábia, onde fora peleteiro e dono de um campo de repolhos. Sebald Kepler, pai de Sebaldus, era filho de Kaspar Von Kepler, membro da corte de Worms no século XV, que aparece como filho de Friedrich, cavaleiro armado, em 1433, do Sacro Imperador Romano-Germânico Sigismund. Como podemos perceber a família de Kepler possuía uma ascendência nobre. Sobre seu avô Johannes escreveu o seguinte em seu horóscopo:
Meu avô, Sebaldus, foi um burgo mestre da imperial cidade de Weil, onde nasceu em 1521, por volta do dia de São Tiago. Com cerca de 75 anos de idade, além de altivo, vestia-se orgulhosamente. Muito irritável e obstinado, seu retrato era de um homem de passado boêmio, com rosto vermelho e carnudo. Sua barba lhe dava um aspecto autoritário. Apesar da sua ignorância, foi um notável orador. A partir do ano de 1578, começou a sua decadência, social e econômica (KEPLER apud MOURÃO, 2003, p. 25).
Kepler descreveu sua avó, Katharine Müller, como sendo “inquieta, hábil e mentirosa, no entanto, muito dedicada à religião”
(apud MOURÃO, 2003, p. 25). O pai de Kepler, Heinrich, que fora o quarto filho de Sebaldus, se casou, em 15 de maio de 1571, com Katherine[7] Guldenmann, ambos com vinte e quatro anos de idade (MOURÃO, 2003). A mãe de Kepler era filha de um estalajadeiro, enquanto o seu pai era um mercenário de guerra. Sobre Heinrich Kepler registrou o seguinte:
O quarto, Heinrich, meu pai, nasceu em 19 de janeiro de 1547. Homem pecaminoso, inflexível, briguento, estava destinado a um péssimo fim. Vênus e Marte aumentavam-lhe a maldade. O declínio da maior aproximação de Júpiter fê-lo estudar a ciência da artilharia. Teve numerosos inimigos, um casamento de conflitos. Tinha pouco amor às honras e uma vã esperança nelas. Foi um errante… Em 1577, correu o risco de ser enforcado. Vendeu a casa e começou a trabalhar com uma taverna. Em 1578, a explosão de um jarro de pólvora dilacerou o rosto de meu pai… Em 1589, tratou muito mal minha mãe. Acabou exilando-se e logo morreu (apud MOURÃO, 2003, p. 25-26).
Os detalhes presentes no horóscopo de Kepler sobre ele e sua família são abundantes, e, como ressalta Mourão, é raro que um historiador tenha disponível tal material. Segundo o horóscopo, Kepler fora concebido em 16 de maio de 1571, às 4h37 e nasceu no dia 27 de novembro às 14h30, na cidade de Weil, e, fora batizado em homenagem ao santo do dia, o apóstolo João [em alemão Johannes] Evangelista. Kepler nasceu prematuro e era uma criança doente e raquítica, e, aos quatro anos de idade sua mãe o deixou aos cuidados de seus avós por um ano, para acompanhar o marido nas guerras.
O quadro que Kepler pintou em seu horóscopo é sombrio e carrega um tom melancólico denotando a tristeza de um jovem a respeito de sua família. A infância de Johannes não parece ter sido feliz, mas como ele mesmo escreveu em seu horóscopo pode ser somente “uma questão de opinião”.
Mercúrio na sétima casa significa pressa e aversão ao trabalho, porque ele é também rápido; o Sol na sexta casa de Saturno significa conscientização e perseverança. Essas duas coisas entram em conflito: lamentar continuamente o tempo perdido, ao mesmo tempo que ainda está disposto a perdê-lo vezes seguidas. Visto que Mercúrio afeta a tendência às brincadeiras e à alegria, esta pessoa aprecia o espírito das coisas mais leves. Quando criança, ele se dedicava a brincar; mais velho se divertia com outras coisas e por isso voltou-se para elas; descobrir o que faz uma pessoa feliz, por tanto, continua sendo uma questão de opinião (KEPLER apud CONNOR, 2005, p. 46).
2.2 A educação protestante de Kepler e o contato com as idéias de Nicolau Copérnico
Apesar de Kepler ter sido batizado em uma igreja Católica, foi educado como um protestante, visto que sua família era luterana, e fora a primeira a se converter em Weil. Em 1576, a família de Kepler mudou-se para Leonberg, cidade do ducado de Württemberg, que havia criado um avançado sistema educacional objetivando capacitar pastores luteranos para fazer frente às querelas religiosas que se apresentavam à época.
As universidades luteranas deveriam se constituir em lócus intelectuais em defesa do protestantismo.
Kepler iniciou os estudos em Leonberg no ano de 1578, onde os cursos eram ministrados em alemão, e, seu professor, percebendo o potencial do aluno, o encaminhou a uma escola latina (Mourão, 2003). Connor revela que os professores da escola alemã convenceram a mãe de Johannes a mandá-lo para a escola de latim onde ele poderia se tornar um pastor luterano. O curso de latim deveria durar três anos, mas, demorou cinco anos para ser concluído, visto que Heinrich, com pouco dinheiro devido ao fracasso de uma hospedaria que montara, obrigava Kepler a trabalhar em uma fazenda ao invés de freqüentar as aulas.
O estudo do latim em parte significava estudar os clássicos: Catão, Trechos das cartas de Cícero e as comédias de Terêncio. Todos os dias havia horas dedicadas às orações e ao estudo do catecismo luterano. Aos domingos Kepler ia à igreja com seus colegas de turma e cantava no coro. No terceiro e no quarto ano, os alunos escolhidos pelos professores como prováveis candidatos estudavam para o Landesexamen, uma espécie de teste padronizado em Stuttgart. Iam não só com boas notas, mas também com cartas de recomendação tanto do seu pastor como do seu mestre-escola, falando das suas boas qualidades na escrita e na erudição, do seu alto grau de inteligência e seu brilhante caráter cristão (CONNOR, 2005, p. 52).
Kepler foi aprovado no Landesexamen com boas notas, o que garantiu seu lugar no sistema de bolsas do duque de Württemberg, sendo garantindo até o fim de seus dias escolares subsídios para a manutenção de seus estudos, como alimentação e roupas, desde que demonstrasse bom comportamento e não manifestasse crenças “teologicamente suspeitas” (CONNOR, 2005). Na universidade de Tübingen, Kepler tivera contato com diversos textos de Aristóteles. Gostava das aulas de filosofia aristotélica e das lições de grego e hebreu, sendo que a matéria que ele mais demonstrava interesse era a matemática. Além disso, havia ainda a personalidade de seu professor, Mästlin, um dos astrônomos mais célebres de sua época, que o fascinava (MOURÃO, 2003).
Embora Mästlin, que escrevera uma das obras de maior referência nas universidades à época, o livro Epitome Astronomie, descrevesse o sistema de mundo conforme Ptolomeu, em suas aulas Mästlin ensinava a seus melhores alunos outra visão de mundo, a do astrônomo polonês Nicolau Copérnico. Segundo Mourão, Kepler ao avaliar as vantagens matemáticas do heliocentrismo fez publicar suas idéias a favor de Copérnico.
Em Tübingen, enquanto ouvia atento as aulas do famoso Magister Michael Mästlin, vi como havia se tornado inconveniente de muitos modos a noção costumeira da estrutura do universo. Fiquei encantado, portanto, com Copérnico, a quem Mästlin mencionava muitas vezes em suas conversas, e eu não só freqüentemente promovia as suas idéias em debates dos estudantes, mas também escrevia uma cuidadosa discussão concernente à tese de que o primeiro movimento [a revolução da esfera de estrelas fixas] vem da rotação da Terra. Também me pus a trabalhar atribuindo à Terra, com base na física, ou talvez na metafísica, o movimento do Sol cruzando o céu, assim como Copérnico havia feito com base na matemática. Com essa finalidade, reuni pedacinho por pedacinho – em parte das aulas de Mästlin e em parte das minhas próprias idéias – todas as vantagens matemáticas que Copérnico tem sobre Ptolomeu (KEPLER apud CONNOR, 2005, p. 72-73).
2.3 Kepler como matemático provincial e professor em Graz
Quando estava prestes a concluir o seminário e se tornar um pastor luterano, Kepler recebeu uma proposta para assumir o posto de matemático provincial e professor em Graz. Segundo Connor, as defesas públicas de Kepler em relação ao copernicanismo eram desconfortáveis para ortodoxia teológica da universidade de Tübingen. Ademais, além de Kepler defender o sistema de mundo que era tão criticado por Lutero, ele demonstrava concordância com as idéias do calvinismo[8] em relação à doutrina da ubiqüidade[9], e, a indicação dele para Graz tivera a intenção de afastá-lo de Tübingen.
Mourão anota que Kepler chegou a Graz no dia 11 de abril de 1594, e, na condição de matemático provincial, tinha a obrigação de preparar a publicação de calendários com previsões astrológicas. Segundo Connor, a afeição de Kepler em relação à astrologia seguia o apego de Philipp Melanchthon, principal colaborador de Martinho Lutero na Reforma[10], e, um dos fundadores da educação luterana. Embora Lutero defendesse que a astronomia[11] deveria ficar separada da teologia, visto que somente as Escrituras Sagradas revelavam os desígnios de Deus, Melanchthon advogava que os céus também revelavam a vontade do Criador.
Para Melanchthon, ao contrário de Lutero, a ordem dos céus revelava a mente de Deus, tanto como criador como Pai da raça humana. Os movimentos do sol e da lua, das estrelas, dos planetas, eram usados para regular as ações humanas, descrevendo as épocas para plantar e colher, comprar e vender, e descansar. Ao ordenar as vidas humanas, Deus revela a verdade – essa ordem é de Deus e esse Caos é do Maligno. Aqueles que ficam do lado dos anjos sustentam a ordem de Deus na terra da forma como ela é revelada nos céus. O movimento imponente das esferas celestiais, portanto, torna-se um modelo para a moral humana (CONNOR, 2005, p. 55).
Segundo Connor, muitos cristãos do século XVII, como Melanchthon, defendiam a concepção de que Deus revelava o futuro nos céus e que as estrelas se tratavam de janelas para a mente do Criador, não obstante, eram janelas incompletas e qualquer tentativa de prever algum acontecimento detalhado do futuro tratava-se de superstição. Mourão aponta que Kepler percebia a astrologia de forma paradoxal, ora manifestando a credulidade presente em seu século, ora expressando criticidade. Connor anota que a astrologia para Kepler poderia fazer previsões futuras, mas, ele se preocupava em estar alimentando superstições. Predizer confiantemente qualquer acontecimento específico não era algo certo para Kepler.
De que modo o aspecto do céu determina o caráter do homem ao nascer? Age no indivíduo durante a vida da mesma maneira que os laços que o camponês coloca, ao acaso, ao redor das abóboras do campo: não impedem que as abóboras cresçam, mas determina-lhes as formas. O mesmo se pode dizer do céu: não dá ao homem hábitos, história, ventura, filhos, riqueza nem esposa, mas modela a condição (KEPLER apud MOURÃO, 2003, p. 188-189).
Conforme aponta Connor, os reis e imperadores desejavam que a astrologia lançasse uma luz sobre o futuro, e, em Graz Kepler fizera algumas predições astrológicas que se confirmaram, dentre elas, um rigoroso inverno e um ataque de tropas turcas, o que acabou lhe tornando célebre na cidade da Estíria. Contudo, a popularidade de Kepler como astrólogo não era refletida em seu ofício de professor. Segundo Mourão, apesar da popularidade como mathematicus provincial, Kepler não atraía muitos estudantes para suas aulas. Não obstante, em meio ao marasmo de uma aula, Johannes desenhou uma figura geométrica no quadro negro que lhe deu a idéia de associar o sistema copernicano à geometria.
No quadro negro, uma figura mostrava um triângulo com um circulo circunscrito. Notou que a proporção entre o raio do círculo maior (circulo que envolvia o triângulo) e o do menor (círculo envolvido pelo triângulo) parecia semelhante àquela existente entre as órbitas de Saturno e de Júpiter. Logo tentou determinar uma segunda distância: entre Marte e Júpiter, com o auxilio de um quadrado. Em seguida, uma terceira, com a ajuda de um pentágono, e finalmente uma quarta com auxílio de um hexágono. Essas tentativas não deram certo, e Kepler se perguntou: “por que usar figuras planas (bidimensionais) entre os orbes sólidos (tridimensionais)?” (MOURÃO, 2003, p. 42).
Segundo Mourão, Kepler buscou para solucionar os problemas gerados pelos polígonos regulares, cinco poliedros, ou sólidos, tridimensionais regulares: o tetraedro, ou pirâmide, constituído por quatro triângulos eqüiláteros; o cubo, ou hexaedro, composto por seis quadrados; o octaedro, ou bipirâmide, composto por oito triângulos eqüiláteros; o dodecaedro, formado por doze pentágonos; e o icosaedro, constituído por vinte triângulos eqüiláteros.
Mourão (2003, p. 43) anota que “estes cinco sólidos regulares são em geral denominados sólidos pitagóricos ou platônicos, com referência aos geômetras e filósofos gregos Pitágoras (séc. VI a.C.) e Platão (428 – c.347 a.C.)”. Connor, que cita em sua obra os cinco poliedros apenas como sólidos platônicos, anota que estas cinco figuras se constituíam em um mistério para a matemática, denotando certo misticismo.
Platão associou esses sólidos aos átomos da natureza, os blocos de construção para tudo. Nisso ele seguiu o filósofo anterior a ele, Empédocles: fogo para o tetraedro, terra para o cubo, ar para o octaedro e água para o icosaedro. O dodecaedro ele associou ao elemento cosmo, a matéria de que são feitas as estrelas e os planetas. Seguindo Platão, Kepler pensou ter encontrado outro lugar onde os sólidos apareciam e, visto que Deus nada cria sem um plano, ele acreditou ter descoberto um meio de calcular as distâncias entre os planetas de modo a priori, isto é, antes de ocorrer qualquer observação. Os planetas não se encontravam a essas distâncias por acaso; estavam ali por que Deus quis (CONNOR, 2005, p. 92-93).
De acordo com Mourão, Kepler entendeu que a associação entre os cinco sólidos regulares e os intervalos existentes entre os planetas não era um mero acaso, e, passou a compreender a indicação à Graz como uma dádiva de Deus, onde ele revelaria aos homens a harmonia do mundo, o “mistério cosmográfico”.
Após as revelações que tivera, associando os sólidos platônicos e as órbitas dos planetas, Kepler iniciou a redação de sua primeira obra, Mysterium Cosmographicum, ou Mistério Cosmográfico. Mourão anota que desde 1543, quando foi publicado o livro de Copérnico, onde fora exposta a teoria heliocêntrica, houve um período de cinqüenta anos até alguém voltar a advogar a favor do copernicanismo, e, somente com a publicação da primeira obra de Kepler isto ocorreu.
Nessa obra, Kepler propôs nada mais do que estabelecer definitivamente a superioridade do Sistema copernicano sobre todos os outros, mostrando que este era o único sistema capaz de se ajustar aos arquétipos que Deus havia usado para colocar em ordem o Universo: os cinco poliedros regulares da Geometria, que segundo Kepler estariam associados aos seis planetas (Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno) (MOURÃO, 2003, p. 45).
Segundo Connor, antes da publicação do Mysterium Cosmographicum Kepler se comunicou com Mästlin para explicar como ocorria o movimento dos planetas. Ele advogava a idéia de que havia no Sol uma anima movens[12], um espírito de movimento, cuja força do movimento, rigor movens, enfraquecia à medida que os planetas se distanciavam do astro. Mästlin demonstrou certa cautela em relação à idéia de um espírito de movimento, ou uma força proveniente do Sol. Seu receio era em relação a um possível estreitamento entre física e astronomia. Vale destacar que o entrelaçamento entre astronomia e física preponderou nos estudos de Kepler. Conforme anota Mourão a astronomia, desde Ptolomeu, tratava-se de uma mera cosmografia descritiva do firmamento, com o intuito de mapear as estrelas e promover a elaboração de tabelas com os horários e posições dos corpos celestes.
A idéia de uma força de movimento proveniente do Sol preocupava Mästlin, pois, a física até então não era empregada além da região sublunar. A resposta de Kepler ao receio de Mästlin denotou um aspecto metafísico em relação ao Sol, e, em certa medida, nos remete à veneração presente nas obras de Nicolau de Cusa e Copérnico. Em uma carta a Mästlin Kepler escreveu:
De todos os corpos do universo o mais excelente é o sol [...] cuja essência no seu todo nada mais é do que a luz mais pura. Não há estrela maior do que ele; sozinho é o produtor, conservador e aquecedor de todas as coisas. É a fonte de luz, rica em calor fértil, muito claro, límpido e puro à visão. É a origem da visão retratista de todas as cores, embora em si mesmo privado de cor (apud CONNOR, 2005, p. 105).
Embora Mästlin tivesse algumas preocupações em relação às proposições presentes no Mysterium Cosmographicum, ele foi um dos grandes colaboradores para a sua publicação. Segundo Mourão, Mästlin decidiu incluir no livro de Kepler uma reedição da Narratio Prima, ou Primeira Narrativa, que se tratava de uma síntese elucidativa sobre o sistema heliocêntrico copernicano publicada em 1540, pelo astrônomo Georg Joachin Rheticus (1514-1576), antes da publicação do De Revolutionibus Orbium Coelestium.
Vale ressaltar que Rheticus, assim como Kepler, era luterano, e, um dos poucos a defender o heliocentrismo entre os seguidores de Lutero. Mourão aponta que a religiosidade de Kepler era intensa e não bastava para ele verificar a organização do mundo empiricamente, era preciso justificá-la teoricamente e teologicamente. Kepler defendia a idéia de que Deus havia criado o Universo segundo uma ordem geométrica e ele estava seguro de que havia realmente desvendado o mistério cósmico em seu modelo poliédrico do mundo.
É assombroso, embora não tivesse ainda uma idéia clara da ordem em que deviam ser dispostos os sólidos perfeitos, logrei êxito… em dispô-los tão felizmente que, mais tarde, ao verificar tudo, nada tive que alterar. Não lamentei mais o tempo perdido; não me senti cansado; não fugi a nenhum cálculo, por mais difícil que fosse. Dia e noite passeios em cálculo para verificar se a minha afirmação condizia com as órbitas copernicanas, ou se o meu júbilo seria levado pelos ventos… Ao cabo de alguns dias tudo caiu no devido lugar. Vi um sólido simétrico depois de outro se adaptar tão precisamente entre órbitas adequadas, que se um camponês me perguntar a que espécies de gancho estão presos os céus, para não caírem, ser-me-á fácil responder-lhes: a Deus! (KEPLER apud MOURÃO, 2003, p. 48).
Connor aponta que muitos homens, como o professor de teologia da Universidade de Tübingen, Matthias Hafenreffer, aconselharam Kepler a defender suas idéias apenas como hipótese e não como realidade, mas, para Kepler era a vontade de Deus que fosse desvendado o plano da criação, e, o Mysterium Cosmographicum tratava-se de um “mapa” para isto. Mourão destaca que, apesar dos conselhos dos superiores da Universidade de Tübingen, Kepler expôs na introdução de seu livro “a primeira e mais lúcida profissão de fé publicada por um astrônomo sobre as idéias de Copérnico” (2003, p. 50). Contudo, Connor ressalta que a teoria geometral de Kepler era bastante especulativa, e, embora ele acreditasse ter descoberto a forma geométrica do Universo, ele não conseguia demonstrá-la efetivamente.
Segundo Mourão, na tentativa de criar um objeto capaz de demonstrar seu modelo de mundo, Kepler, quando esteve em Württemberg, antes de publicar seu livro, se envolveu no projeto de construção de uma espécie de “taça” onde fosse representado o seu sistema cosmológico. O projeto, que era financiado pelo Duque Frederico I, patrono dos estudos de Kepler desde sua aprovação no Landesexamen, se transformou num globo, mas após dois anos o modelo se revelou muito dispendioso e foi abandonado.
Mourão revela que em meio ao agitado período de divulgação do Mysterium Cosmographicum, Kepler se casaria com Bárbara Müller, uma jovem de apenas 20 anos[13] que já acumulava duas viuvezes. Segundo Connor, o pai de Bárbara, o rico moleiro Jobst Müller de Gössendorf, não concordava com o casamento a princípio, pois, apesar da origem nobre e da notoriedade de Kepler o salário como professor não era o bastante para satisfazer as expectativas de Jobst. Depois de muita negociação foi acertado o casamento entre Kepler e Bárbara.
Mourão anota que o casamento ocorreu em 27 de abril de 1597, e, segundo o horóscopo elaborado por Kepler sob um “coelo calmitoso”, céu de calamidades. Kepler escreveu: “As estrelas anunciaram um casamento mais agradável do que feliz, no qual existiria mais ou menos amor e dignidade” (apud MOURÃO, 2003, p. 59). Um dos receios de Kepler, que ainda almejava retornar à Suábia para se tornar pastor luterano, era de ficar preso à Graz devido aos negócios da família de sua esposa.
Contudo, reviravoltas ocasionadas por conflitos entre protestantes e católicos, levariam Kepler e sua família a deixar Graz. Mourão anota que os últimos dois anos do século XVI foram muito difíceis para Kepler, pois, além de ter perdido dois filhos, presenciara o arquiduque Fernando de Habsburgo, posteriormente Imperador Fernando II, perseguir os protestantes estabelecendo a Contra-reforma[14] na cidade da Estíria.
Conforme anota Mourão, a repercussão da primeira obra de Kepler foi frágil, visto que além de Pádua, onde vivia Galileu[15], não ultrapassou as fronteiras germânicas. As opiniões acerca do Mysterium Cosmographicum eram divididas, onde havia os que aceitavam as suas conclusões e os que absorveram somente a idéia geometral poliédrica, como era o caso do astrônomo dinamarquês Tycho Brahe. Tanto Brahe como Galileu se corresponderam com Kepler. Connor aponta que Galileu escrevera a Kepler elogiando seu copernicanismo, e, manifestando em sigilo que era admirador da idéia heliocêntrica.
Já Tycho Brahe escreveu convidando-o para ir visitá-lo em Praga. Segundo Mourão, Brahe aconselhava Kepler a se dedicar às observações e depois estudá-las, abandonando a sua idéia de calcular a órbita dos planetas a priori. Apesar de manter fixa a sua opinião em relação ao cálculo à priori, Kepler, em virtude da experiência observacional de Tycho, voltou suas esperanças ao dinamarquês para aprimorar o sistema exposto em sua obra.
A partir do contato com Brahe, Kepler formularia as teorias que lhe deram notoriedade na história da ciência moderna: as três leis do movimento planetário. Kepler escreveu a Mästlin:
Calemo-nos e escutemos Tycho Brahe, que dedicou às observações trinta e cinco anos… Somente por Tycho Brahe é quem espero; ele me explicará a ordem e a disposição das órbitas… Espero, então, um dia, se Deus me der vida, erguer um admirável edifício (apud MOURÃO, 2003, p. 72).
Figura 4 – Taça de Kepler
Fonte: Connexions. Acesso em: 29 jun. 2009.
Figura 5 – Ilustração de Kepler ao lado do globo que representava o sistema de mundo proposto na obra Mysterium Cosmographicum
Fonte: ETSU. Acesso em: 29 jun. 2009.
2.4 Kepler enuncia as duas primeiras leis do movimento planetário
Quando deixou Graz a intenção de Kepler não era se estabelecer em Praga. Primeiramente, tentou manter sua cátedra na cidade governada pelo arquiduque Fernando de Habsburgo, mas não obteve sucesso, visto que não renegaria seu luteranismo para permanecer na cidade da Estíria. Recorreu então a Maestlin, que nada pôde fazer em relação seu desejo de obter um posto em Württemberg. Kepler estava sem esperanças, e, a ida à Praga era a sua última opção. No último ano do século XVI ele se encontrou em Praga com Tycho Brahe, recentemente nomeado matemático imperial desta cidade da Boêmia. A relação entre os dois astrônomos, apesar de ter sido fundamental para a formulação de novas teorias sobre o Universo, foi bastante rixosa.
Ocorre que na época da divulgação do Mysterium Cosmograficum, a fim de partilhar suas idéias com todos que se dedicavam à astronomia, Kepler se correspondeu com Nicolau R. Baer Ursus, então matemático imperial de Praga, exaltando-o como o maior matemático de seu tempo. Ursus, que não respondera à carta de Kepler, reproduziu a referida correspondência na obra Nicolai Raimari Ursi Dithmarsi de astronomices hypothesis, Hipótese astronômica de Nicolau Reymars Ursus de Ditmar, de 1597, onde, além de reclamar a propriedade do sistema proposto por Tycho Brahe, ofendia-o violentamente. Contudo, Tycho resolveu perdoar o incidente do elogio a Ursus, pois, desejava obter a colaboração de Kepler.
Não obstante, a discórdia ente os dois se manifestou outras vezes como, por exemplo, no episódio em que Tycho Brahe ficou ressentido quando tomou conhecimento de um texto redigido por Kepler, em que ele reclamava das condições em seu castelo. Segundo Mourão, Kepler desejava maior privacidade para ele e sua família “longe do barulho e da desordem reinante” na propriedade de Tycho, referindo-se as festas promovidas pelo matemático imperial de Praga. Neste texto Kepler ainda reclamava do salário e da falta de tempo para realizar suas pesquisas. Apesar das várias desavenças, os interesses recíprocos levaram a conciliação destes dois astrônomos de temperamentos ásperos.
Mourão anota que para Brahe, Kepler era o único astrônomo capaz de dar consistência às suas observações, e por outro lado, como já vimos, Kepler necessitava das observações de Tycho para edificar suas teorias.
Segundo Connor, Tycho Brahe se esforçou para garantir um posto para Kepler na corte imperial de Praga. O imperador Rudolf II[16] conhecia a fama de Kepler como astrólogo e estava disposto a aceitar qualquer pedido de Tycho Brahe em relação à permanência de Johannes em Praga. Kepler foi apresentado ao imperador que o designou como colaborador de Tycho na elaboração de um livro com novas tabelas astronômicas, que, a pedido de Brahe, se intitularia Tabulae Rudolphinae, Tabelas Rudolfinas, em homenagem ao seu protetor Rudolf II. A vida de Kepler parecia melhor, se antes era um mero assistente ou empregado de Brahe, agora havia se tornado um colaborador com consentimento imperial.
Ademais, Tycho que, conforme anota Connor, guardava os dados de suas observações “como uma loba guarda seus filhotes”, fez algo que nunca havia feito para ninguém, confiou seus estudos observacionais a Kepler. Connor aponta que Tycho Brahe acreditava que somente Kepler seria capaz de provar as “teorias tychônicas” sobre o universo, e ele desejava ver isto ainda em vida. Contudo, no dia 24 de outubro de 1601 Tycho faleceu devido a complicações no aparelho urinário. Connor anota que no leito de morte Brahe repetia incessantemente a frase: “Que eu não tenha vivido em vão” (2005, p.160). Antes de falecer Tycho pediu a Kepler que não abandonasse por completo seu sistema de mundo em favorecimento do de Copérnico, e, caso ele tivesse que se voltar para o heliocentrismo, que desse seguimento ao sistema tychônico também.
Dois dias após a morte de Tycho o imperador Rudolf II nomeou Johannes Kepler matemático imperial de Praga. Porém, se por um lado a vida profissional de Kepler parecia estar ficando melhor, em contrapartida sua vida familiar se tornava cada dia mais desagradável. Sua esposa, Bárbara, não compreendia seu trabalho e se queixava constantemente de sentir-se só.
O período em que Kepler viveu como matemático imperial em Praga foi muito produtivo, e, conforme aponta Connor, ele escreveu duas de suas obras mais amadurecidas: Astronomia Pars Optica[17], A Parte ótica da Astronomia, e, a célebre obra Astronomia Nova[18]. Segundo Connor, na primeira obra Kepler lançou as bases para a ciência ótica moderna, definindo as leis de refração, e, esclarecendo que a Lua e o Sol aparentam serem maiores no horizonte por uma razão ótica, e não astronômica.
Connor anota que foi na obra Astronomia Nova que Kepler definiu as notórias duas primeiras leis do movimento planetário: A Lei das Elipses – que consiste na afirmação de que cada planeta segue uma órbita elíptica, na qual o Sol se coloca em um dos focos da elipse; e a Lei das Áreas iguais – onde o raio vetor unindo um planeta ao Sol percorre uma área igual num mesmo período igual de tempo. Mas, para elaborar tais teorias Kepler percorreu uma laboriosa jornada.
Como havia prometido a Tycho Brahe, que lhe confiou as observações de Marte, Kepler tratou o movimento desse planeta de acordo com as hipóteses de Ptolomeu, de Tycho, de Copérnico e da sua própria. É o único exemplo de análise de dados de observações que contempla, simultaneamente, os três sistemas que disputavam o privilégio de uma representação do mundo conhecido na época.
Nessa obra [Astronomia Nova] Kepler tentou criar uma Mecânica Celeste, quando nem o cálculo infinitesimal nem mesmo os fundamentos da Mecânica Clássica haviam sido estabelecidos. Para atingir sua meta, teve de proceder a longas e penosas aproximações (MOURÃO, 2003, p. 114-115).
Em relação ao sistema de mundo proposto por Tycho Brahe, que exigia que todos os planetas orbitassem a Terra, Kepler se opôs alegando que a Terra não era grande o bastante para exercer tal força de atração, mas, que o Sol era (CONNOR, 2005). Segundo Mourão, Kepler advogava que a força que regia o movimento dos planetas era originária do centro do Sol, e, neste sentido trazia inovações ao heliocentrismo de Copérnico, visto que no modelo copernicano o centro do mundo não era ocupado pelo Sol, mas pelo centro da órbita da Terra.
Kepler ainda defendia que os planetas estavam sob a influência de duas ações, sendo uma proveniente da força do Sol e a outra oriunda do próprio planeta, onde o movimento planetário era estabelecido por uma natureza física.
Kepler apresentou vários axiomas para defender uma nova teoria de gravitação: todo corpo, à medida que é feito de matéria, está naturalmente apto a se manter imóvel onde estiver quando não sofre a influência de um corpo semelhante.
Esse axioma, portanto, mostrou que ele não tinha nenhuma idéia moderna de inércia, formulada pela primeira vez por Galileu, que disse que um corpo em movimento tende a ficar em movimento.
A gravidade para Kepler, portanto, era uma qualidade corpórea mutua existente entre os vários corpos, unindo-os, com os corpos de maior volume exercendo a força maior.
A Terra, por conseguinte, atrai uma pedra mais do que a pedra atrai a Terra. Essa força, Kepler argumentou, é também a causa das marés. Galileu acreditava que as marés ocorriam porque, como a Terra gira sobre o seu eixo, a água dos oceanos espirrava para todo o lado como a água dentro de uma banheira. Kepler argumentou que isso era devido à força de atração da Lua, que faz a água deixar certos lugares e se acumular em outros, criando a maré alta e a maré baixa (CONNOR, 2005, p. 190).
Segundo Connor, Kepler enunciava na corte imperial de Praga que a sua obra Astronomia Nova era resultado de uma longa batalha com o planeta Marte. A órbita marciana observada da Terra apresentava a trajetória celeste mais irregular. Connor anota que diariamente Marte avançava nos céus de oeste para leste e demorava 780 dias para completar uma revolução. Até aí tudo bem.
Ocorre que à medida que Marte se aproximava da posição mais oposta ao Sol, onde era visto no seu ponto mais alto no firmamento, à meia-noite, ele parecia parar e depois, curiosamente, retroceder, parando novamente e depois de um tempo seguindo adiante. Júpiter e Saturno também apresentavam essa órbita disforme, que os astrônomos como Ptolomeu chamavam de excentricidade dos planetas, mas, a irregularidade da órbita marciana sempre foi a mais evidente.
Mourão aponta que Kepler buscou definir a órbita de Marte escolhendo quatro posições das dez observadas por Tycho Brahe, onde ele encontrava-se em oposição ao Sol. Segundo Mourão, após um ano de cálculos buscando estabelecer um modelo para a órbita do planeta vermelho Kepler verificou uma conformidade quase perfeita entre os valores obtidos, porém, havia uma discordância de oito minutos de grau para os pontos intermediários.
Isso seria aceitável no caso das observações realizadas por Ptolomeu e Copérnico, cuja margem de erro era da ordem de dez minutos.
No caso das observações de Tycho Brahe, era mesmo inadmissível. Era necessário descobrir o seu significado. Kepler explicou que a hipótese dos poliedros regulares (e indiretamente das órbitas circulares) era falsa e devia ser abandonada [...] Kepler concluiu que “esses oito minutos sugerem um novo caminho para uma completa reforma da astronomia” (MOURÃO, 2003, p. 120-121).
Mourão aponta que se no Mysterium Cosmographicum Kepler defendia que as observações deveriam se adequar à teoria, na elaboração da obra Astronomia Nova, a discordância de oito minutos fez com que ele descartasse [por um momento] sua teoria geometral desenvolvida durante anos de intensa dedicação.
A aceitação de regras puramente geométricas para descrever a órbita dos planetas cedeu lugar à busca de causalidades de natureza física. Kepler chegou à conclusão de que os planetas não se deslocavam numa velocidade uniforme, pois, à medida que se distanciavam do Sol seguiam mais lentamente, e, ao se aproximarem moviam-se rapidamente. Ressaltamos que esta idéia já havia sido levantada no Mysterium Cosmographicum, contudo, na Astronomia Nova, esta concepção fora exposta sem as características metafísicas de um “espírito de movimento” no Sol.
Segundo Mourão, Kepler não estava decidido a abandonar o modelo circular uniforme dos movimentos celestes, o que dificultava seus estudos. Resolveu então deixar de lado o estudo do movimento marciano e passou a se dedicar à órbita terrestre. Após comprovar que a Terra não se deslocava com velocidade uniforme, e, levando em consideração que esta velocidade dependia da distância do Sol, Kepler chegou à lei do movimento planetário onde definia que o tempo necessário para um planeta percorrer uma mesma área da órbita é proporcional à mesma distância.
Mourão destaca que Kepler descobriu primeiro esta lei que pedagogicamente aprendemos como a “Segunda Lei dos Movimentos Planetários” (2003, p. 124).
Segundo Mourão, quando Kepler retomou os estudos da órbita de Marte já estava com muitas dúvidas em relação à concepção cosmológica do principio da circularidade dos movimentos planetários. Mourão anota que dois anos após Kepler retomar o estudo da órbita marciana tentou, pela última vez, adotar um movimento circular perfeito, mas, não tendo logrado êxito, anunciou que a órbita do planeta vermelho não era um círculo e sim “uma figura oval”. Kepler se perdeu em cálculos e mais cálculos tentando encontrar a área oval da orbita de Marte, mas não obteve sucesso, e, buscou outras formas geométricas.
Após calcular diversos pontos da órbita de Marte ao redor do Sol, encontrou uma curva, semelhante à forma de um círculo achatado nos dois pontos intermediários opostos, que tinham por eixo os pontos mais e menos afastados do centro da órbita: as lúnulas, áreas em meia-lua, que se formavam entre o círculo e a órbita de Marte [...] Todavia, ainda não sabia tratar-se de uma elipse (MOURÃO, 2003, p. 127).
Kepler chegou à conclusão de que a trajetória traçada geometricamente por Marte tratava-se de uma elipse, onde o Sol ocupava um dos focos. Desta forma elaborava a lei das órbitas elípticas, conhecida por nós como “A Primeira Lei de Kepler”. Porém, Connor destaca que para chegar a estas conclusões Kepler teve que romper com a cosmologia aceita até então, e, para ele era difícil aceitar o fato de que o movimento dos planetas não seguia uma trajetória circular perfeita.
Como vimos no primeiro item deste trabalho a órbita circular representava a Perfeição Divina e ao definir as órbitas em elipses Kepler abalou muitos conceitos presentes em sua época, conceitos dos quais ele partilhava.
Segundo Mourão, apesar do êxito na elaboração de novas teorias sobre o , Johannes se deparou com o “terrível ano de 1611”. Mourão anota que os três filhos de Kepler contraíram varíola e um deles morreu. Bárbara ficou gravemente adoecida apresentando sinais de distúrbio mental, terminando por falecer no dia 3 de julho deste fatídico ano. No ano seguinte o Imperador Rudolf II morreu, e, as tensões entre católicos e protestantes, chegaram à Praga. Kepler então seguiria para a capital da Áustria Superior, a cidade de Linz.
Figura 6 – Representação da Primeira lei de Kepler
Fonte: Patrick Lamounier. Acesso em: 29 jun. 2009.
Figura 7 – Ilustração da Segunda lei de Kepler
Fonte: Só Física. Acesso em: 29 jun. 2009.
2.5 A Harmonia do Mundo e os últimos momentos de Johannes Kepler
Segundo Mourão, a chegada de Kepler foi um evento importante em Linz, pois, o célebre matemático do império iria fixar residência nesta cidade. O cargo imperial de Johannes foi mantido pelo imperador Mattias[19], que mesmo não apresentando muito interesse em relação às questões astronômicas, preferia ter Kepler próximo à Corte para solicitar seus serviços astrológicos. Logo que chegara a Linz Kepler enfrentou problemas por conta de suas convicções religiosas. Connor aponta que em uma conversa com o principal pastor local, Daniel Hitzler, Kepler declarou suas discordâncias em relação ao luteranismo, sobretudo no que diz respeito à doutrina da ubiqüidade.
Hitzler negou-se a conceder a comunhão a Kepler, caso ele não assinasse a Fórmula da Concórdia, documento que se tratava da diretriz religiosa do luteranismo. Connor destaca que para Kepler a assinatura de todos os termos da doutrina luterana significava abandonar a sua própria consciência e a sua fé, pois, ele entendia que isto entrava em desacordo com os ensinamentos de Lutero, que havia ensinado que a fé era o caminho para a salvação. Em carta ao seu antigo professor Mästlin, Johannes escreveu:
Eu poderia calar toda a disputa assinando a Fórmula da Concórdia sem reservas. Mas não posso ser hipócrita em questões de consciência. Eu assinaria se eles aceitassem as reservas que já apresentei. Não quero parte com a fúria dos teólogos. Não julgarei irmãos; pois mesmo que se ergam ou caiam, continuam sendo meus irmãos e irmãos do Senhor (KEPLER apud CONNOR, 2005, p.246).
Em meio ao embate com sua igreja Kepler se casaria pela segunda vez. Connor anota que o segundo casamento ocorreu no dia 30 de outubro de 1613 com Susanna Reuttinger, que daria à luz a sete crianças. Segundo Connor, o casamento com Susana foi mais feliz do que o primeiro, pois, ela compreendia Kepler mais que Bárbara. “Pela primeira vez, talvez em toda a sua vida, rodeado da esposa e dos filhos, Johannes Kepler encontrou a paz” (CONNOR, 2005, p.249). Contudo, a felicidade de Kepler seria abalada, pois, ele foi surpreendido, em 29 de dezembro de 1615, com notícias de sua família que anunciavam acusações de bruxaria contra sua mãe.
Em resposta às acusações registradas contra Katharina Kepler, Johannes escreveu ao senado de Leonberg argumentando que sua mãe estava sendo vítima de calúnia e que a acusação de bruxaria fora uma cilada armada pelos seus acusadores. Kepler escreveu:
No dia 29 de dezembro, com indivisível pesar, li uma carta que minha irmã, Margaretha Binder, enviou-me datada de 22 de outubro. Pelo que entendi existe um processo a ser julgado por vós relativo a várias pessoas acusadas pelo tribunal, com base unicamente na retórica imaginativa de vossa querida amada dona-de-casa e esposa, Ursula Reinbold.
Todos sabem que, até hoje essa mulher tem vivido de modo frívolo, e agora, segundo vós, ela está mentalmente doente. Presa em meio a essa teia deprimente de suspeitas, minha própria querida mãe, que tem vivido honradamente até os seus setenta anos, foi acusada por vós de dar a essa mesma pessoa louca uma tola poção mágica, que vós dizeis lhe causou a sua insanidade [...] homens usaram de palavras gentis e promessas falsas para persuadir uma pobre e velha senhora, fazendo-a pensar que nada lhe aconteceria.
Eles usaram todos os truques diabólicos que podeis imaginar, exigindo que ela executasse esse ritual proibido, supostamente para ajudar à louca, Ursula Reinbold, a quem ela não fez nenhum mal em primeiro lugar e a quem não pôde ajudar. Pelo que soube, depois que ela finalmente executou o ritual que lhe pediram e curou a mulher, vós afirmais que isso foi feito com ajuda da magia do demônio. Portanto agora, dizem, minha mãe merece a pena de morte, quando de fato as pessoas que forçaram essas ações a merecem muito mais (apud CONNOR, 2005, p.21-22).
Connor aponta que os acusadores de Katharina buscavam desacreditar Johannes, principal defensor de sua mãe, alegando que ele estava envolvido em um escândalo em sua própria igreja sob a acusação de “calvinismo dissimulado”. Alegavam ainda que Kepler praticava magia negra e havia escrito, quando estudava em Tübingen, um texto descrevendo o heliocentrismo de Copérnico do ponto de vista de habitantes lunares. Para os acusadores de Katharina, ela invocara os espíritos do ar para levar seu filho até a Lua. Vale destacar que este texto, ou conto, posteriormente se tornou o livro Somnium, Sonho, e que segundo Connor talvez tenha sido o primeiro texto de ficção científica de que se tenha notícia. Mourão anota que em 1620 Katharina foi presa e, em 1621 foi submetida à tortura.
Em 28 de setembro de 1621, ela foi conduzida à câmara do carrasco, os instrumentos de tortura lhe foram apresentados, mas ela se manteve calma, dizendo: “Faça de mim o que quiser. Se você me tirar uma a uma as veias do meu corpo, eu não teria nada a confessar…” Comovido com a sua resistência, o duque decidiu perdoá-la. Após 14 meses de prisão, Katharine Kepler estava livre da fogueira, mas, lamentavelmente, não podia retornar à sua residência em Leonberg, pois a população ameaçava linchá-la. Seis meses mais tarde morreu (MOURÃO, 2003, p.166-167).
Em meio ao sofrido período do julgamento de sua mãe, Kepler fora excomungado da igreja luterana por não assinar todos os termos da Fórmula da Concórdia. Conforme aponta Connor as defesas públicas de Kepler em favor do copernicanismo também foram determinantes para sua exclusão da igreja de Martinho Lutero. Apesar de todas estas intempéries Kepler encontrou energia para continuar seus estudos, elaborando a terceira lei dos movimentos planetários, na obra que carregou um nome paradoxal às suas desafinadas experiências pessoais: o livro Harmonice Mundi, Harmonia do Mundo.
Segundo Mourão na obra Harmonia do Mundo, concluída em 1618, Kepler anotou a sua última lei dos movimentos planetários: os quadrados dos períodos de revolução de dois planetas quaisquer são proporcionais entre si e ao cubo das suas distâncias médias ao Sol. Nessa obra Kepler propôs nada mais do que uma harmoniosa mecânica celeste onde o Universo era concebido em proporções geométricas, e, das quais se originavam as harmonias da música.
Os movimentos celestes nada mais são do que um canto contínuo de várias vozes (imperceptíveis pelo ouvido, mas perceptíveis pela inteligência); uma música que através de tons discordantes, através de síncopes e cadências por assim dizer (como os homens as empregam na imitação de tais discordâncias naturais), progride para certas clausuras planejadas de antemão, quase de seis vozes, e com isso estabelece marcos no imensurável curso do tempo. Logo, já não surpreende que o homem, imitando o Criador, tenha finalmente descoberto a arte do canto figurado, desconhecida dos antigos.
O homem precisava reproduzir a continuidade do tempo cósmico na duração de uma breve hora por uma artística sinfonia para várias vozes a fim de obter uma amostra do deleite do Divino Criador nas suas obras, e participar do júbilo fazendo a música à imitação de Deus (KEPLER apud MOURÃO, 2003, p.174-175).
Figura 8 – Imagem do livro Harmonice Mundi onde Kepler
associou os movimentos planetários às escalas musicais.
Fonte: Massimo Mogi Vicentini. Acesso em: 29 jun. 2009.
Dentre as várias obras que Kepler escreveu encontra-se Epitome Astronomiae Copernicanae, Epítome de Astronomia Copernicana, que se tratava de um manual sobre o heliocentrismo. Em 1619 esta obra foi colocada no Index, Livros Proibidos pela Santa Inquisição, visto que apresentava a obra de Copérnico que havia sido condenada pela igreja (MOURÃO, 2003).
A última obra publicada em vida foram as Tabelas Rudolfinas que iniciadas ainda em convívio com Tycho Brahe não haviam sido terminadas até 1626. Mourão aponta que devido à Guerra dos Trinta Anos[20] a impressão das Tabelas Rudolfinas ficou retardada por alguns anos.
Em meio aos conflitos religiosos e políticos que chegaram à Linz, Kepler foi obrigado a fugir de sua morada mais uma vez. Segundo Mourão Kepler seguiu para a cidade de Ulm com o objetivo de concluir a impressão das Tabelas Rudolfinas, o que ocorreu em 1627. Contudo, as Tabelas que tiveram uma tiragem de mil exemplares, e que consumiram as economias de Kepler, não tiveram o sucesso esperado na Feira de Frankfurt onde foram expostas.
Connor anota que em 2 de novembro de 1630 Kepler ficou fortemente resfriado e vários pastores luteranos vieram visitá-lo em Ulm, e, na ocasião, Kepler comentou com eles que tudo que mais desejava era a paz entre os cristãos. Devido ao agravamento de sua enfermidade Kepler faleceu, e, no dia 17 de novembro de 1630, o homem que buscou causas físicas para os movimentos celestes, e, que tivera uma vida cheia de infortúnios, mas, que mesmo assim, substanciou uma série de conhecimentos válidos até hoje, foi sepultado.
Mourão destaca que dentre as importantes contribuições da obra de Kepler está o rompimento com o dualismo entre o mundo celeste e o mundo sublunar, e, também na idéia de que a Terra, o Sol e todos os planetas fazem parte de uma mesma natureza. Para Connor os estudos desenvolvidos por Kepler foram uma grande profissão de sua fé em Deus.
Meses antes de falecer Kepler escreveu um intrigante poema que posteriormente foi convertido em seu epitáfio: “Eu costumava medir os céus, mas agora meço as sombras da terra. Embora minha alma fosse dos céus, a sombra do meu corpo aqui jaz” (apud CONNOR, 2005, p.351).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A compreensão de mundo é algo movente e as demandas de um tempo influenciam profundamente os vários domínios da existência humana. Vimos brevemente no decorrer deste trabalho que o advento das grandes navegações, com a descoberta de novas rotas marítimas e de novos locais, estimulou uma nova compreensão do homem em relação a si e ao Universo.
Podemos inferir que o heliocentrismo, que teve suas bases notoriamente lançadas por Nicolau Copérnico no século XVI, compunha os lampejos de uma nova consciência que pairou na atmosfera intelectual do continente europeu. Kepler, assim como qualquer um de nós, foi um homem de seu tempo e sofreu a influência das elucubrações presentes em seu século para formular suas teorias.
Muitas vezes a imagem que temos dos intelectuais do chamado Renascimento é a de indivíduos desprendidos de religiosidade ou de misticismo, entretanto, o desenvolvimento deste trabalho nos possibilitou perceber que Johannes Kepler, e tantos outros intelectuais como Copérnico e Tycho Brahe, não apresentavam o cientificismo racionalista, característico de nossa época, que nega a presença da chamada tradição mágica, ou imagem mágica de mundo, no desenvolvimento da investigação científica. Kepler, assim como Copérnico, atribuiu ao Sol características metafísicas para chegar posteriormente à teoria de que havia uma força física solar que interferia nos movimentos planetários. Verificamos ainda neste trabalho que os argumentos de ordem teológica também estavam presentes na obra de Kepler, mostrando que a chamada tradição mecânica não esta dissociada de outras tradições imbricantes nos Seiscentos.
Hoje em dia não há muita dificuldade em encontrar nos manuais de Física ou Astronomia as chamadas “Leis de Kepler” que possibilitam calcular o movimento dos planetas em qualquer sistema solar do Cosmo. Entretanto, estes manuais reportam-se muitas vezes somente aos resultados de longos anos de dedicação e pesquisas do astrônomo e matemático alemão. Perquirir as obras de Connor e Mourão nos possibilitou conhecer muitos desafios enfrentados por Kepler em sua trajetória intelectual.
A pertinácia de Kepler diante dos reveses com os quais ele se deparou enquanto elaborava as suas leis dos movimentos planetários é admirável. Não queremos aqui fazer uma apologia embevecida à pessoa do Kepler, mas reconhecer a importância de sua determinação para formular teorias que possibilitaram à Humanidade uma nova compreensão sobre o Universo.
Johannes foi uma das personalidades centrais da chamada revolução científica do século XVII, e, as percepções de Connor e Mourão nos possibilitaram conhecer, além do intelectual, um pouco mais da história do homem Kepler. Johannes não pôde vivenciar a importância de seus estudos, contudo, seu legado interferiu substancialmente na atmosfera do conhecimento humano.
Fonte:
CONSCIENCIA:.ORG
http://www.consciencia.org/breve-reflexao-sobre-a-trajetoria-intelectual-de-johannes-kepler-e-as-fundacoes-da-astronomia-moderna
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.
Nenhum comentário:
Postar um comentário