Primeira parte da palestra
proferida pelo professor José Américo Motta Peçanha
a alunos de teatro em São Paulo
JOSÉ AMÉRICO MOTTA PESSANHA,
MITOLOGIA.
São Paulo: Abril
Cultural, 1973. vol. 1, pp. 33-48.
EROS – CAPÍTULO II
Pobreza e Recurso geram o amor
Olimpo está em festa. Reunidos, os imortais
banqueteiam-se em regozijo
ao nascimento de Afrodite (Vênus), a bela deusa do amor.
Pelas taças de ouro
corre néctar abundante,
a estimular a expansão
de despreocupada alegria. Os deuses riem.
Terminado o festim, surge à porta
uma figura andrajosa e esquálida. Pênia, a Pobreza,
vem mendigar os restos
do banquete. Antes,
porém, de esboçar
qualquer movimento
em direção à mesa, vislumbra a figura
de Poros, o Recurso,
filho da prudência.
De longe vê quando ele, embriagado pelo excesso de néctar,
se afasta dos imortais e entra no jardim de Zeus (Júpiter).
Ali se deita o jovem
e logo cai em
pesado sono.
Pobreza, que
vivia justamente à cata
de recursos, toma
nesse instante uma resolução:
ter um filho de Poros.
E com esse
intuito dirige-se para
o jardim. Sem
ruído, deita-se junto
a Poros. Abraça-o. Desperta-o. E concebe
o filho desejado: Eros, o Amor.
Gerado no dia do nascimento de Afrodite, o filho
de Pênia será para sempre
companheiro e servo
da beleza. E para sempre também
será duplo. Porque
da mãe herda a permanente
carência e o destino de andarilho. Do pai,
a coragem, a decisão,
a energia que
o tornam astuto caçador, ávido do Belo e
do Bom.
Das duas heranças reunidas decorre seu
destino singular:
nem mortal
nem imortal.
Ora germina e vive – quando enriquece. Ora
morre e de novo renasce. Perenemente
transita entre viver,
morrer e ressuscitar.
Marcado pela carência que lhe
transmite Pênia, ele não é sábio, mas esforça-se para conhecer. Porque ama a Sabedoria.
Eros filosofa.
Eros,
o Amor, força
universal de atração,
criador de todas as coisas
Eros, ou Amor, não aparece entre
os deuses que
povoam as epopéias de Homero e
constituem uma “sociedade de nobres
imortais”. Somente
em meados
do séc. VIII a.C., através da obra de outro poeta grego, Hesíodo,
é que há compreensão
do divino, entendido
como fundamento
de toda realidade,
adquire organização e coerência. E é justamente
então que
aparece, com grande
realce, a figura
de Eros, fator responsável
por aquela unificação
das forças divinas que
regem os destinos dos homens e do universo.
Até o momento
de Hesíodo, Eros era objeto de culto
em Téspias, na Beócia,
onde nasceu o poeta.
Mas era
cultuado apenas como
agente fecundador do gado e dos matrimônios.
Com Hesíodo, ganhará dimensão universal.
Numa de suas obras principais, a Teogonia,
Hesíodo descreve-se a si mesmo como um pastor que apascentava, certo
dia, suas
ovelhas ao pé
do monte Helicão. Enquanto
exercia sua tarefa,
teria alcançado a compreensão da origem dos deuses,
sob a inspiração
das Musas.
A Teogonia seria,
assim, o livro que
reproduz o “belo canto”
que as Musas
lhe ensinaram e cujo
conteúdo
não
é senão a narrativa
da origem dos deuses
e,
em decorrência,
a de todos os seres.
Adotando o princípio de que
tudo tem origem,
Hesíodo mostra que
primeiro surgiu o Caos
– espaço aberto,
matéria informe
– e, em seguida,
a Terra e Eros, o Amor
“criador de toda
a vida”. A colocação
de Eros logo no começo
da seqüência do nascimento dos deuses é intencional
e importantíssima. Tomando como ponto de partida, para sua compreensão do divino, velhos mitos que existiam esparsos
na tradição grega,
Hesíodo não só
os coordena e enriquece, como ainda traça uma
genealogia sistemática
das divindades.
O divino
deixa de apresentar-se composto
por entidades
isoladas e acontecimentos episódicos, para mostrar-se como um todo coeso e
interligado. Natural, portanto, que a
Eros fosse concedida posição primacial e que
ele logo
aparecesse na abertura da série: o Amor força universal de atração, é que poderia justificar que os seres se
unissem, produzindo as linhas de descendências que
acabara por ligar
todos os imortais
e todos os mortais,
e mesmo os deuses
aos homens.
Eros surge, pois, na Teogonia,
com um
caráter que
conservará para sempre:
o de liame, o de mediador.
E assim reaparece freqüentemente
nas obras de antigos
filósofos.
Se o trabalho principal
da filosofia consiste na tentativa
de vincular, através
de causas que
a justifiquem, a pluralidade
das coisas e dos eventos,
para encadeá-los e integrá-los numa compreensão unificadora, compreende-se que Eros – o liame
– seja visto como
patrocinador desse amor
à sabedoria, desse desejo
insaciável de, tudo
ligando, tudo conhecer.
Como Eros,
a razão
também opera por
meio
de relacionamentos e vinculações.
Assim,
não é de estranhar
que Eros ressurja na obra daquele que
é considerado o primeiro grande
filósofo racionalista da história do pensamento ocidental:
Parmênides de Eléia (séc. VI a.C.).
No seu poema Sobre a Natureza,
visivelmente inspirado, em certos aspectos,
pela Teogonia
de Hesíodo, Parmênides traça os dois caminhos que se oferecem aos mortais:
o da certeza alcançada estritamente por
meio da razão
e o das opiniões fundadas nos depoimentos
dos sentidos. Ao descrever
essa segunda via,
Parmênides oferece uma versão da origem do universo,
como constituído por
dois princípios
contrários – Luz
e Noite. Todas as coisas
seriam assim compostas pela mescla
desses dois princípios
em equilíbrio
recíproco. Eros, o intermediário
por excelência,
aparece então como
o autor da mescla
que é o fundamento
do universo.
O amor que conduz
à harmonia
Na concepção da criação
do mundo dada
por outro
filósofo, Empédocles de Agrigento (aprox. 495-435 a.C.), a força
de atração universal
que Hesíodo chamava de Eros, desempenha papel decisivo. No pensamento
de Empédocles, o universo é produzido e
se transforma através do jogo permanente
de “duas” forças opostas e complementares, que
atuam sobre as quatro
“raízes” (ou elementos
primordiais da realidade):
a água, o art, a terra
e o fogo.
Enquanto
Philia, o Amor, aproxima os dessemelhantes (procurando juntar
as diferentes raízes), Neikos, o Ódio, age em sentido contrário,
aproximando os semelhantes (a água da água, o
fogo do fogo
etc.) que tendem a constituir
quatro províncias
distintas, correspondentes aos quatro elementos
primordiais. Como
o comportamento de Philia e Neikos é
regido pelo princípio
democrático da igualdade
(isonomia), o universo
permanece em perene
tensão, a ação
de uma força sendo compensada
pela outra.
Resulta daí um desenvolvimento
universal cíclico, pois à
máxima preponderância
de Philia segue-se a intensificação da ação de Neikos até que, atingindo o ápice, é novamente substituída pela
crescente interferência
de Philia – e assim indefinidamente
Na fase em que o Amor
prepondera,
a força de atração e de junção
dos dessemelhantes
(as quatro raízes) tende a abolir
todas as diferenças
para
instaurar, no limite extremo,
o reino
do perfeito equilíbrio.
De todos os pensadores
antigos, foi Platão (427-347 a.C.) o que mais se
dedicou a debater o Amor,
chegando mesmo a torná-lo um dos pontos centrais de sua
construção filosófica. Por
um lado,
o pensamento de Platão foi profundamente marcado pela
influência da matemática
de sua época;
generalizando a aplicação do que
chamava “o método dos geômetras”, propôs para a aplicação dos fenômenos
da natureza a sua
teoria das idéias:
o mundo sensível
e corpóreo seria a cópia imperfeita e variável
de modelos perenes
e perfeitos, as idéias
ou formas,
que constituíam um
plano à parte
da realidade, existente num mundo
extraterreno, cujo
ápice seria o Bem supremo.
Toda a
obra de Platão foi movida pela preocupação
o modo de relacionamento entre o plano incorpóreo das idéias
e o plano material
dos objetos físicos,
meras imitações das formas.
Por outro
lado, tenta
Platão estruturar o caminho
que permitiria ao intelecto
humano ascender
até o plano
das idéias, origem
das coisas sensíveis.
Uma via de acesso
que propõe é através
do trabalho racional,
de índole matemática.
A razão discursiva servia de intermediário entre
o plano sensível
e o plano puramente
inteligível das formas.
Outra via, que apresenta no diálogo
O Banquete,
é a da “ascese erótica”:
conduzida por Eros, a alma é elevada
da contemplação da beleza
física à contemplação
final de toda
beleza. Eros surge, assim,
em O
Banquete – um
debate sobre
o amor –, como
realizando um papel
semelhante ao da matemática:
como esta, ele
é o mediador entre
a sensibilidade e a compreensão
pura das coisas
que existem.
Com
isso, Platão parece mostrar
que a ciência
não resulta apenas
de um esforço
ordenado da inteligência:
é também obra
do Amor. Ainda
no mesmo diálogo,
Sócrates, um dos personagens,
relata, baseado no que
lhe teria dito,
Diotima de Mantinéia, a origem de Eros: filho de Pênia (a Pobreza)
e de Poros (o Recurso).
No período helênico da cultura grega,
Eros é alçado por filósofos e poetas à condição
de princípio universal
que exerce seu
poder sobre
os homens, porque,
na verdade, interfere na constituição
e no curso do próprio
mundo. Já
Safo (séc. VI a.C.), a poetisa da ilha de Lesbos, falava desse Amor,
força obscura
e potente “que
dissolve os membros... doce e amargo
mostro invencível”. Aristófanes (448-388
a.C.), o comediógrafo, também fala de Eros, dizendo que
dele e de Caos teria nascido a raça dos pássaros, e
o descreve como dotado de “brilhantes asas
de ouro, parecidas aos rápidos
torvelinhos do vento”.
Aristófanes, ao que parece, baseia-se
nessa sua concepção
do Eros alado, em
tradições religiosas do século VI a.C., que
faziam de Eros um dos primeiros princípios
originados, surgido do ovo primordial que
dera nascimento a todas as coisas.
Para
Alceu, poeta lírico
do séc. VII a.C., Eros é o mais temível
dos deuses, tendo nascido de Íris e Zéfiro. Por sua vez, Eurípides (480-406 a.C), o último
dos grandes poetas
trágicos gregos,
ressalta o duplo caráter
de Eros: ora é a força
perniciosa que
conduz à ruína, ora
– quando moderado – é o poder
saudável que
leva à virtude.
Somente
mais tarde,
na época Alexandrina,
é que Eros passa
a assumir o aspecto do menino travesso, cujos caprichos
são o tormento
de deuses e homens.
Para ressaltar sua imprevisibilidade, sua
irracionalidade e sua
inconstância, Eros torna-se Cupido,
uma criança frequentemente alada, que fere
os corações com
suas flechas.
Mas já
agora é um
Eros que perde sua
dimensão cósmica para
se transforma no travesso promotor
de aventuras galantes
entre os mortais.
Esta evolução do caráter
de Eros evidencia-se também na sua arte. Suas figuras mais primitivas consistiam em
pedras toscas, se qualquer
elaboração. Depois,
o deus passou a ser
retratado sob a forma
de um adolescente,
não raro
dotado de asas, que
expressam sua rapidez.
Grandes escultores
gregos, como
Fídias (500-432 a. C.) e Escopas (420-350 a.C.) fizeram-no tema
de algumas de suas obras.
Praxíteles (370-330 a.C.) elaborou três estátuas de Eros, a mais
célebre das quais
foi consagrada no templo do deus em Téspias
e depois roubada pelo
imperador romano
Calígula (12-41 d.C.). O original
perdeu-se; existe, porém, uma cópia conservada no Museu
do Vaticano.
No séc. II d.C.
o escritor romano
Apuleio compôs a história de amor entre Eros
de Psique (Alma).
Na verdade, seu
relato tem raízes na mitologia e guarda profundo
significado alegórico. Partindo de dados elaborados pela
tradição platônica,
mostra que
só o amor
consegue tornar a alma
feliz e que
esta é capaz de enfrentar
todos os obstáculos
para reencontrar Amor, filho da Beleza. Por esta razão é que, dentre as várias lendas
sobre a origem
de Eros, existe aquela que o faz nascer de Afrodite (Vênus), deusa
do amor e da beleza.
O relato de
Apuleio serviu de inspiração a vários
escultores, pintores
e músicos dos séculos
sucessivos. Giulio Romano
(1492-1546), François Gerard (1770-1837), Jean-Baptiste Carpeaux (1827-1875)
estão entre os artistas
plásticos que
trabalharam sobre o tema.
No séc. XVII, o compositor Jean-Baptiste
Lully (1632-1687) escreveu a ópera Psiquê. Cerca
de duzentos anos mais
tarde, César Frank (1822-1890) retomou o
tema, no poema
sinfônico Psiquê.
Eros
ferido pelas próprias setas
Já quase ninguém freqüentava o templo
de Afrodite para prestar
culto à divina
Beleza. Mas, enquanto o santuário
abandonado, transformava-se pouco a pouco em ruínas, de todas as partes
chegavam à cidade os peregrinos que
iam admirar a extraordinária
formosura de uma simples
mortal: a princesa Psiquê (Alma).
Menosprezada pelos homens, que preferiam homenagear
uma beldade humana,
Afrodite encoleriza-se. E para vingar-se, pede a seu filho Eros
(Amor) que
use suas flechas
encantadas e faça Psiquê apaixonar-se pela
criatura mais
desprezível do mundo.
Eros parte para cumprir
a missão. Mas
a beleza da mortal
era tão
grande que
teve força para
deslumbrar até
um coração
divino. Ao vê-la, foi como
se Eros tivesse sido transpassado por
uma de suas próprias flechas, vítima
do encantamento em
que enredava deuses
e mortais, o deus
feriu-se de amor.
Apaixonado, nada disse à mãe;
limitou-se a convencê-la de que finalmente ela
estava livre da rival.
Ao mesmo tempo
que oculta seu
sentimento, torna
Psiquê inatingível aos amores terrenos.
Embora todos
os homens a admire, nenhum
por ela
se apaixona. Contemplam, extasiados, sua
beleza, que agora parece aureolada de distância
inalcançável, mas escolhem suas irmãs. Apesar
de infinitamente menos
belas, elas logo
se casam com reis.
Psiquê, amada por
Eros, sem que
o saiba, a ninguém
ama. E porque
é uma beleza humana
cobiçada por um
deus, permanece só.
Psiquê
e o amor velado
A solidão de Psiquê preocupava e entristecia seus pais, que gostariam de vê-la bem casada, como suas irmãs. Foram então
consultar um
oráculo de Apolo, a fim
de solicitar-lhe orientação e ajuda.
Mas Eros já
havia também procurado Apolo e fizera-o aliado de sua conquista amorosa.
Assim, para auxiliar o companheiro
do Olimpo, o deus
da luminosidade ordenou oracularmente aos pais
da princesa que a vestissem em trajes
nupciais e a conduzissem ao alto de determinada colina; lá, uma serpente
alada e medonha,
mais forte
que os próprios
deuses, iria torná-la sua mulher.
A revelação do oráculo era terrível. À
bela Psiquê parecia estar
reservado um destino pavoroso. Embora desesperados, o rei
e a rainha nada
podiam fazer senão
cumprir o que
fora determinado.
E como se lhe
preparassem os funerais, entre lamentos
e prantos, vestiram a filha para as bodas e a levaram para a colina.
Deixada sozinha, a formosa
princesa aguarda corajosamente que se cumpra seu
triste destino.
Exausta pela
prolongada e tensa espera,
adormece. E até ela
chega a suave
brisa de Zéfiro
que a arrebata, transportando-a,
adormecida, a uma planície
coberta de flores.
Perto, correm as águas
claras de um
regato. Mais
adiante, ergue-se magnífico
castelo.
Ao despertar, encantada com
o deslumbrante cenário,
Psiquê ouve uma voz que
a convida a entrar no castelo,
banhar-se e depois jantar.
Atravessando corredores e salas, a ninguém
encontra. E, no entanto, sente-se como
se estivesse sendo observada.
Durante o jantar, doce música a
envolve – mas continua sem ver ninguém. Está aparentemente
só no esplêndido
palácio. No íntimo,
porém, pressente que
ao cair da noite
chegará o esposo que
lhe fora
prometido, a terrível serpente alada.
Realmente, ao anoitecer,
dela se aproxima Eros, protegido pela escuridão. Psiquê não pode ver-lhe o rosto;
nenhum temor,
porém, a aflige mais:
o medo é banido
pelas palavras apaixonadas e pelas ardentes carícias
do Deus.
Psiquê
reata laços
terrenos
Durante algum tempo, Psiquê entregou-se a esse
amante velado, que
a visitava encapuzado pelas sombras da noite. Mesmo ser ver sua
face, a bela
princesa dedicava-lhe intenso amor.
Numa de suas visitas
noturnas, mostrando sinais de preocupação, Eros fez-lhe uma advertência:
que se prevenisse contra
uma desgraça que
lhe poderia
advir por intermédio de suas
irmãs. Estas, Eros lhe revelou, estavam junto à colina onde ela fora deixada e pranteavam-na. Mas
Psiquê não deveria comover-se com suas lágrimas e procurá-las. Ao contrário,
disse Eros, era preciso
que não
se mostrasse às irmãs. Do mesmo modo, acrescentou, para evitar a desgraça, não deveria ela
jamais tentar
ver o rosto
do amado.
A princesa
prometeu ambas as coisas. Mas deixou-se arrastar pela tristeza de não poder ver
nem consolar
as irmãs, que a julgavam infeliz na companhia
de um monstro
terrível. E tanto
chorou e tanto pediu, que Eros finalmente
consentiu na visita das jovens. Todavia,
esclareceu: reaproximando-se delas, Psiquê estava reatando laços
terrenos e construindo seu próprio sofrimento. Depois, mais
uma vez, fê-la prometer
o que era
de tudo o mais
importante: jamais
tentaria ver-lhe o rosto.
No dia seguinte Zéfiro levou as irmãs de Psiquê ao palácio.
De início, foram só
as alegrias do reencontro.
Às perguntas das jovens
sobre o marido,
porém, a amada
de Eros respondia com evasivas. Disse apenas
que o dono
de tão maravilhoso
castelo era jovem e belo, e
que se ausentara numa expedição de caça.
Aos poucos, o sentimento
das irmãs em relação
à Psiquê foi mudando. Antes, choravam
supondo-a infeliz; depois
partiram invejosas de sua felicidade. E resolveram vingar-se.
O amor não vive sem confiança
Atendendo aos insistentes rogos
da amada, Eros permitiu que as duas irmãs de Psiquê retornasse ao castelo. Desta vez,
movidas pela inveja,
elas ardilosamente
fizeram com que
a desconfiança se insinuasse no coração
da princesa. Haviam percebido, pelas reticências
e contradições, que
ela não
sabia realmente quem
era o seu
marido, e nunca
lhe vira
sequer o rosto.
Como então
poderia estar
segura de que
não se tratava do monstro
descrito pelo oráculo de
Apolo? E, se era realmente
belo e jovem,
por que
se ocultava sempre nas sombras da noite?
Psiquê acabou
minada pela dúvida
e pelo medo. Aceitou, afinal, o conselho
das irmãs, longa e maldosamente
planejado. Deveria preparar uma lâmpada
e uma faca afiada:
com a primeira,
explicaram as moças, poderia tentar ver o rosto
do esposo; com
a segunda, matá-lo – se fosse mesmo o monstro.
Durante todo o dia, Psiquê debateu-se na incerteza
e no temor. Amava o marido,
com quem
fora feliz até então; mas e se ele
pretendesse assassiná-la? Só havia um jeito de resolver os dilemas e
aplacar a angústia que a assaltara desde
que ouvira as advertências
das irmãs: ver o rosto
do amado e descobrir
se era ou
não o monstro
terrível.
À noite, retorna
Eros ardente e apaixonado como sempre. Enquanto se entrega
aos arroubos amorosos,
Psiquê esquece o próprio medo
e a dúvida. Mas
depois, quando
Eros dorme, a incerteza volta a afligir-lhe o coração.
Silenciosa, apanha
a lâmpada e ilumina o rosto do esposo. E detém-se
deslumbrada: não é um
monstro; pelo
contrário, é o mais
belo ser que jamais poderia ter existido.
Emocionada e
arrependida, a jovem cai de joelhos. Sem querer, porém, derrama uma gota
do óleo quente
da lâmpada sobre
o ombro do amado.
Ele desperta sobressaltado
e percebe o que havia acontecido. Seu formoso rosto cobre-se de profunda
tristeza. E sem
dizer palavra,
Eros vai embora.
Psiquê tenta alcançá-lo em
meio às trevas
da noite. Inútil.
Ouve-lhe apenas a voz,
que ao longe
ainda
Abandonada e em desespero,
a
bela Psiquê põe-se a percorrer
o mundo
inteiro
em busca
do amor perdido.
Psiquê
em busca
do amor perdido
Eros retornou para junto da mãe e pediu-lhe que
curasse a ferida de seu
ombro. Mas quando lhe
contou o que lhe
sucedera, Afrodite (Vênus) enfureceu-se.
Compreendendo que fora
enganada, e tudo por
causa daquela simples
mortal, de quem
tinha tanto
ciúme, passou a alimentar
apenas um
pensamento: encontrar
a rival e castigá-la.
De templo em templo, a infeliz
princesa vagou, pedindo auxílio de todos os deuses,
rogando-lhes que a ajudassem o amor perdido. Todos,
porém, temendo a fúria
de Afrodite, recusaram-se a auxiliá-la. Como
último recurso,
Psiquê decidiu ir à presença
da própria Afrodite, na esperança de que
em sua
companhia estivesse Eros. Mas, junto à
deusa, encontrou apenas zombaria
e a imposição de uma série de provas
humilhantes.
A primeira tarefa
que lhe
ordenou Afrodite consistia em separar, até a noite, imensa quantidade de grãos miúdos de diversas espécies.
Parecia impossível cumpri-la no prazo estabelecido. Mas
tão grande
era o sofrimento de Psiquê, e tão angustiado o seu
pranto, que
despertou a compaixão de formigas que
passavam no local. Em
vagas sucessivas, elas
carregaram todos os grãos
e separaram-nos por espécies,
juntando-os em vários
montículos.
Chegada a noite,
Afrodite encontrou o trabalho terminado e irritou-se
ainda mais.
Ordenou então que
Psiquê passasse a dormir no chão
e por alimento
deu-lhe apenas um
pedaço de pão duro. Esperava, assim,
destruir a beleza da mortal que dela
havia afastado o culto e a admiração dos homens.
Por outro lado, a deusa cuidou para que Eros permanecesse encerrado no quarto
onde convalescia do sofrimento. Temia que, revendo a amada,
ele novamente
se deixasse seduzir por
seus encantos.
Psique e a viagem
aos infernos
Na manhã seguinte,
nova e perigosa tarefa
aguardava Psiquê. Deveria ir a um
vale cortado por
um regato
e lá tosquiar
os carneiros que
pastavam. A lã desses carneiros era
de ouro e um pouco dela a caprichosa
Afrodite desejava para si.
Depois de muito
andar, a jovem
chegou ao local indicado pela deusa. De cansaço e desespero, pensou até
em atirar-se no regato
e terminar de uma vez
com seus
grandes sofrimentos. Nesse instante de hesitação entre a procura
e a morte, fez-se ouvir
uma voz vinda
dos caniços à beira
do regato. Trazia-lhe consolo e orientação:
não era
necessário enfrentar os
carneiros para
tentar tosquiá-los, disse a voz;
bastava esperar que
eles saíssem das touceiras
de arbustos espinhosos, quando
fossem beber água;
nos espinhos
ficariam presos alguns
fios de lã
que poderiam então
ser facilmente recolhidos. Seguindo o conselho da voz,
Psiquê assim agiu.
Mas ao receber a lã dourada, Afrodite não se deu por satisfeita. Alegando que
certamente a princesa havia sido ajudada
na execução do encargo,
incumbiu-a de novo trabalho.
Teria de subir a cascata
que provinha da nascente
do rio Estige e trazer à
deusa um frasco
contendo um pouco
daquela água escura.
As pedras que
davam acesso à cascata
eram íngremes e escorregadias, e a queda d’água era extremamente
violenta. Impossível
satisfazer a exigência
de Afrodite. Só se pudesse voar Psiquê realizaria a tarefa.
Estava já disposta
a desistir, quando
surgiu uma águia que
lhe tirou o frasco
da mão, voou até
a fonte e apanhou uma porção
do líquido negro.
A água do Estige, porém,
não saciou em
Afrodite a sede de vingança.
Psiquê devia executar outra
difícil tarefa:
ir ao Hades persuadir
Perséfone a colocar numa caixa
um pouco
de sua beleza.
Como pretexto,
diria à rainha dos Infernos
que Afrodite precisava dessa beleza para recuperar-se das
longas vigílias à cabeceira
do filho doente.
Psiquê partiu
procurando o caminho dos Infernos. Já
havia andado muito e sentia-se perdida, quando uma torre
apiedada de sua aflição
ofereceu-se para ajudá-la. Minuciosamente,
descreveu-lhe todo o itinerário que
levava ao reino de Perséfone, onde vagavam as sombras
dos mortos em
fúnebre cortejo.
Psiquê deveria percorrer um
longo túnel,
no fim do qual
encontraria o rio da morte.
Para atravessá-lo, teria de pagar
um óbolo
ao barqueiro Caronte, que a conduziria à outra
margem. Então
seguiria o caminho que
levava diretamente ao palácio
de Perséfone. Ante o portão do escuro
edifício, encontraria Cérbero, vigilante cão de
múltiplas cabeças. Para
abrandar sua
ferocidade, deveria oferecer-lhe um bolo.
Psiquê fez tudo o que lhe indicou a torre,
e assim conseguiu chegar
à presença de Perséfone. De bom
grado, a rainha
dos mortos atendeu ao pedido da jovem
e entregou-lhe a caixa solicitada por Afrodite.
Já instruída quanto
às diversas etapas do longo caminho,
a volta foi mais
fácil para
Psiquê. Em suas
mãos, transportava o fruto da missão
cumprida, mas estava ainda longe a hora de recuperar o amor.
Eros
e Psiquê, unidos para sempre
A próxima prova por que
passaria Psiquê não lhe
foi imposta pelo
ciúme de Afrodite, mas
por sua
própria vaidade.
Supondo que tantos
sofrimentos e atribulações a tivessem tornado feia,
temia não mais
parecer atraente aos olhos de Eros, quando
um dia
voltasse a encontrá-lo. Talvez na caixa de Perséfone estivesse a beleza
perdida. A tentação era
grande e Psiquê não
resistiu: no meio do caminho abriu a caixa. Para sua surpresa, nada
encontrou. Mas, tamanho
sono a tomou, que
ali mesmo
caiu, adormecida como se estivesse banhada pela beleza da morte.
Enquanto dormia inerte
no campo, Eros, curado de sua ferida,
abandonava a mansão materna,
burlando a estreita vigilância
de Afrodite e saía pelo mundo
em busca
da amada. Vagou por
toda parte,
até que
finalmente a encontrou deitada ao relento. Aprisionou o sono
que pesadamente
lhe cerrava os olhos
e recolocou-o na caixa. Em
seguida, picando-a docemente
com a ponta
de uma de suas flechas,
despertou-a. Com grande
meiguice, aconselhou-a pela curiosidade
que a fizera destampar
a caixa. Depois,
mandou-a entregar a encomenda
a Afrodite, agindo como se nada houvesse acontecido.
Terminavam as provações de Psiquê, que
recuperara o amor. Para
ter certeza
de que nada
mais aconteceria à amada,
Eros dirigiu-se ao Olimpo e pediu a Zeus
que o unisse em
matrimônio à bela
jovem.
O suserano dos deuses
recordou-se, na ocasião, de quantos momentos
desagradáveis já vivera por causa de Eros. Apesar disso, resolveu atendê-lo. Reuniu os deuses em assembléia e declarou que
Eros e Psiquê desejavam casar-se. Para isso, no entanto,
era necessário
que a princesa recebesse o privilégio da imortalidade.
Hermes (Mercúrio), o mensageiro
do Olimpo, foi buscar
Psiquê e levou-a à presença dos deuses.
O próprio Zeus deu-lhe de beber
a ambrosia, que
lhe conferiu a imortalidade.
Depois, declarou-a oficialmente
esposa de Eros.
Impotente
tornara-se o ciúme de Afrodite.
Psiquê agora era imortal e agora
estava unida a Eros.
Nada mais podia separá-los.
Entretanto,
dessa união nasceu Volúpia.
PabloPicasso
PESSANHA, José Américo Mota
(org.).
MITOLOGIA. São Paulo: Abril
Cultural, 1973. vol. 1, pp. 33-48.
(Excerto disponibilizado apenas
para fins didáticos)
Fontes:
Enviado por nyne1001 em 14/01/2012
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