quinta-feira, 31 de maio de 2012

EROS E IMAGINAÇÃO CRIADORA : José Américo Motta Peçanha - parte I.wmv


 
Primeira parte da palestra 
proferida pelo professor José Américo Motta Peçanha 
a alunos de teatro em São Paulo


JOSÉ AMÉRICO MOTTA PESSANHA, 
 MITOLOGIA.  
São Paulo: Abril Cultural, 1973. vol. 1, pp. 33-48.


EROS – CAPÍTULO II

Pobreza e Recurso geram o amor

Olimpo está em festa. Reunidos, os imortais banqueteiam-se em regozijo ao nascimento de Afrodite (Vênus), a bela deusa do amor. Pelas taças de ouro corre néctar abundante, a estimular a expansão de despreocupada alegria. Os deuses riem.

Terminado o festim, surge à porta uma figura andrajosa e esquálida. Pênia, a Pobreza, vem mendigar os restos do banquete. Antes, porém, de esboçar qualquer movimento em direção à mesa, vislumbra a figura de Poros, o Recurso, filho da prudência. 

De longe vê quando ele, embriagado pelo excesso de néctar, se afasta dos imortais e entra no jardim de Zeus (Júpiter). Ali se deita o jovem e logo cai em pesado sono. 

Pobreza, que vivia justamente à cata de recursos, toma nesse instante uma resolução: ter um filho de Poros. E com esse intuito dirige-se para o jardim. Sem ruído, deita-se junto a Poros. Abraça-o. Desperta-o. E concebe o filho desejado: Eros, o Amor.

Gerado no dia do nascimento de Afrodite, o filho de Pênia será para sempre companheiro e servo da beleza. E para sempre também será duplo. Porque da mãe herda a permanente carência e o destino de andarilho. Do pai, a coragem, a decisão, a energia que o tornam astuto caçador, ávido do Belo e do Bom. 

Das duas heranças reunidas decorre seu destino singular: nem mortal nem imortal. Ora germina e vive – quando enriquece. Ora morre e de novo renasce. Perenemente transita entre viver, morrer e ressuscitar.
Marcado pela carência que lhe transmite Pênia, ele não é sábio, mas esforça-se para conhecer. Porque ama a Sabedoria. Eros filosofa.

Eros, o Amor, força universal de atração, criador de todas as coisas

Eros, ou Amor, não aparece entre os deuses que povoam as epopéias de Homero e constituem uma “sociedade de nobres imortais”. Somente em meados do séc. VIII a.C., através da obra de outro poeta grego, Hesíodo, é que há compreensão do divino, entendido como fundamento de toda realidade, adquire organização e coerência. E é justamente então que aparece, com grande realce, a figura de Eros, fator responsável por aquela unificação das forças divinas que regem os destinos dos homens e do universo. 

Até o momento de Hesíodo, Eros era objeto de culto em Téspias, na Beócia, onde nasceu o poeta. Mas era cultuado apenas como agente fecundador do gado e dos matrimônios. Com Hesíodo, ganhará dimensão universal. 

Numa de suas obras principais, a Teogonia, Hesíodo descreve-se a si mesmo como um pastor que apascentava, certo dia, suas ovelhas ao pé do monte Helicão. Enquanto exercia sua tarefa, teria alcançado a compreensão da origem dos deuses, sob a inspiração das Musas.

 A Teogonia seria, 
assim, o livro que reproduz o “belo canto”
 que as Musas lhe ensinaram e cujo conteúdo
 não é senão a narrativa da origem dos deuses e,
 em decorrência, a de todos os seres.
Adotando o princípio de que tudo tem origem, Hesíodo mostra que primeiro surgiu o Caos – espaço aberto, matéria informe – e, em seguida, a Terra e Eros, o Amor “criador de toda a vida”. A colocação de Eros logo no começo da seqüência do nascimento dos deuses é intencional e importantíssima. Tomando como ponto de partida, para sua compreensão do divino, velhos mitos que existiam esparsos na tradição grega, Hesíodo não só os coordena e enriquece, como ainda traça uma genealogia sistemática das divindades. 

O divino deixa de apresentar-se composto por entidades isoladas e acontecimentos episódicos,  para mostrar-se como um todo coeso e interligado. Natural, portanto, que a Eros fosse concedida posição primacial e que ele logo aparecesse na abertura da série: o Amor força universal de atração, é que poderia justificar que os seres se unissem, produzindo as linhas de descendências que acabara por ligar todos os imortais e todos os mortais, e mesmo os deuses aos homens. 

Eros surge, pois, na Teogonia,
 com um caráter que conservará para sempre: 
o de liame, o de mediador. 

E assim reaparece freqüentemente 
nas obras de antigos filósofos. 
 
Se o trabalho principal da filosofia consiste na tentativa de vincular, através de causas que a justifiquem,  a pluralidade das coisas e dos eventos, para encadeá-los e integrá-los numa compreensão unificadora, compreende-se que Eros – o liame – seja visto como patrocinador desse amor à sabedoria, desse desejo insaciável de, tudo ligando, tudo conhecer.

Como Eros, 
a razão também opera por meio
 de relacionamentos e vinculações. 
 
Assim, não é de estranhar que Eros ressurja na obra daquele que é considerado o primeiro grande filósofo racionalista da história do pensamento ocidental: Parmênides de Eléia (séc. VI a.C.).

No seu poema Sobre a Natureza, visivelmente inspirado, em certos aspectos, pela Teogonia de Hesíodo, Parmênides traça os dois caminhos que se oferecem aos mortais: o da certeza alcançada estritamente por meio da razão e o das opiniões fundadas nos depoimentos dos sentidos. Ao descrever essa segunda via, Parmênides oferece uma versão da origem do universo, como constituído por dois princípios contrários – Luz e Noite. Todas as coisas seriam assim compostas pela mescla desses dois princípios em equilíbrio recíproco. Eros, o intermediário por excelência, aparece então como o autor da mescla que é o fundamento do universo.

O amor que conduz à harmonia

Na concepção da criação do mundo dada por outro filósofo, Empédocles de Agrigento (aprox. 495-435 a.C.), a força de atração universal que Hesíodo chamava de Eros, desempenha papel decisivo. No pensamento de Empédocles, o universo é produzido e se transforma através do jogo permanente de “duas” forças opostas e complementares, que atuam sobre as quatro “raízes” (ou elementos primordiais da realidade): a água, o art, a terra e o fogo. 

Enquanto Philia, o Amor, aproxima os dessemelhantes (procurando juntar as diferentes raízes), Neikos, o Ódio, age em sentido contrário, aproximando os semelhantes (a água da água, o fogo do fogo etc.) que tendem a constituir quatro províncias distintas, correspondentes aos quatro elementos primordiais. Como o comportamento de Philia e Neikos é regido pelo princípio democrático da igualdade (isonomia), o universo permanece em perene tensão, a ação de uma força sendo compensada pela outra. 

Resulta daí um desenvolvimento universal cíclico, pois à máxima preponderância de Philia segue-se a intensificação da ação de Neikos até que, atingindo o ápice, é novamente substituída pela crescente interferência de Philia – e assim indefinidamente

 Na fase em que o Amor prepondera,
 a força de atração e de junção dos dessemelhantes
 (as quatro raízes) tende a abolir todas as diferenças
para instaurar, no limite extremo, 
o reino do perfeito equilíbrio.
De todos os pensadores antigos, foi Platão (427-347 a.C.) o que mais se dedicou a debater o Amor, chegando mesmo a torná-lo um dos pontos centrais de sua construção filosófica. Por um lado, o pensamento de Platão foi profundamente marcado pela influência da matemática de sua época; generalizando a aplicação do que chamava “o método dos geômetras”, propôs para a aplicação dos fenômenos da natureza a sua teoria das idéias: o mundo sensível e corpóreo seria a cópia imperfeita e variável de modelos perenes e perfeitos, as idéias ou formas, que constituíam um plano à parte da realidade, existente num mundo extraterreno, cujo ápice seria o Bem supremo. 

Toda a obra de Platão foi movida pela preocupação o modo de relacionamento entre o plano incorpóreo das idéias e o plano material dos objetos físicos, meras imitações das formas. Por outro lado, tenta Platão estruturar o caminho que permitiria ao intelecto humano ascender até o plano das idéias, origem das coisas sensíveis. Uma via de acesso que propõe é através do trabalho racional, de índole matemática. 

A razão discursiva servia de intermediário entre o plano sensível e o plano puramente inteligível das formas. Outra via, que apresenta no diálogo O Banquete, é a da “ascese erótica”: conduzida por Eros, a alma é elevada da contemplação da beleza física à contemplação final de toda beleza. Eros surge, assim, em O Banquete – um debate sobre o amor –, como realizando um papel semelhante ao da matemática: como esta, ele é o mediador entre a sensibilidade e a compreensão pura das coisas que existem.

Com isso, Platão parece mostrar que a ciência não resulta apenas de um esforço ordenado da inteligência: é também obra do Amor. Ainda no mesmo diálogo, Sócrates, um dos personagens, relata, baseado no que lhe teria dito, Diotima de Mantinéia, a origem de Eros: filho de Pênia (a Pobreza) e de Poros (o Recurso).

No período helênico da cultura grega, Eros é alçado por filósofos e poetas à condição de princípio universal que exerce seu poder sobre os homens, porque, na verdade, interfere na constituição e no curso do próprio mundo. Já Safo (séc. VI a.C.), a poetisa da ilha de Lesbos, falava desse Amor, força obscura e potente “que dissolve os membros... doce e amargo mostro invencível”. Aristófanes (448-388 a.C.), o comediógrafo, também fala de Eros, dizendo que dele e de Caos teria nascido a raça dos pássaros, e o descreve como dotado de “brilhantes asas de ouro, parecidas aos rápidos torvelinhos do vento”. Aristófanes, ao que parece, baseia-se nessa sua concepção do Eros alado, em tradições religiosas do século VI a.C., que faziam de Eros um dos primeiros princípios originados, surgido do ovo primordial que dera nascimento a todas as coisas. 

Para Alceu, poeta lírico do séc. VII a.C., Eros é o mais temível dos deuses, tendo nascido de Íris e Zéfiro. Por sua vez, Eurípides (480-406 a.C), o último dos grandes poetas trágicos gregos, ressalta o duplo caráter de Eros: ora é a força perniciosa que conduz à ruína, ora – quando moderado – é o poder saudável que leva à virtude. 

Somente mais tarde, na época Alexandrina, é que Eros passa a assumir o aspecto do menino travesso, cujos caprichos são o tormento de deuses e homens. Para ressaltar sua imprevisibilidade, sua irracionalidade e sua inconstância, Eros torna-se Cupido, uma criança frequentemente alada, que fere os corações com suas flechas. Mas já agora é um Eros que perde sua dimensão cósmica para se transforma no travesso promotor de aventuras galantes entre os mortais.

Esta evolução do caráter de Eros evidencia-se também na sua arte. Suas figuras mais primitivas consistiam em pedras toscas, se qualquer elaboração. Depois, o deus passou a ser retratado sob a forma de um adolescente, não raro dotado de asas, que expressam sua rapidez. Grandes escultores gregos, como Fídias (500-432 a. C.) e Escopas (420-350 a.C.) fizeram-no tema de algumas de suas obras. Praxíteles (370-330 a.C.) elaborou três estátuas de Eros, a mais célebre das quais foi consagrada no templo do deus em Téspias e depois roubada pelo imperador romano Calígula (12-41 d.C.). O original perdeu-se; existe, porém, uma cópia conservada no Museu do Vaticano.

No séc. II d.C. o escritor romano Apuleio compôs a história de amor entre Eros de Psique (Alma). Na verdade, seu relato tem raízes na mitologia e guarda profundo significado alegórico. Partindo de dados elaborados pela tradição platônica, mostra que só o amor consegue tornar a alma feliz e que esta é capaz de enfrentar todos os obstáculos para reencontrar Amor, filho da Beleza. Por esta razão é que, dentre as várias lendas sobre a origem de Eros, existe aquela que o faz nascer de Afrodite (Vênus), deusa do amor e da beleza.

O relato de Apuleio serviu de inspiração a vários escultores, pintores e músicos dos séculos sucessivos. Giulio Romano (1492-1546), François Gerard (1770-1837), Jean-Baptiste Carpeaux (1827-1875) estão entre os artistas plásticos que trabalharam sobre o tema. No séc. XVII, o compositor Jean-Baptiste Lully (1632-1687) escreveu a ópera Psiquê. Cerca de duzentos anos mais tarde, César Frank (1822-1890) retomou o tema, no poema sinfônico Psiquê.

Eros ferido pelas próprias setas

Já quase ninguém freqüentava o templo de Afrodite para prestar culto à divina Beleza. Mas, enquanto o santuário abandonado, transformava-se pouco a pouco em ruínas, de todas as partes chegavam à cidade os peregrinos que iam admirar a extraordinária formosura de uma simples mortal: a princesa Psiquê (Alma). 

Menosprezada pelos homens, que preferiam homenagear uma beldade humana, Afrodite encoleriza-se. E para vingar-se, pede a seu filho Eros (Amor) que use suas flechas encantadas e faça Psiquê apaixonar-se pela criatura mais desprezível do mundo. 

Eros parte para cumprir a missão. Mas a beleza da mortal era tão grande que teve força para deslumbrar até um coração divino. Ao vê-la, foi como se Eros tivesse sido transpassado por uma de suas próprias flechas, vítima do encantamento em que enredava deuses e mortais, o deus feriu-se de amor.

Apaixonado, nada disse à mãe; limitou-se a convencê-la de que finalmente ela estava livre da rival. Ao mesmo tempo que oculta seu sentimento, torna Psiquê inatingível aos amores terrenos. Embora todos os homens a admire, nenhum por ela se apaixona. Contemplam, extasiados, sua beleza, que agora parece aureolada de distância inalcançável, mas escolhem suas irmãs. Apesar de infinitamente menos belas, elas logo se casam com reis. Psiquê, amada por Eros, sem que o saiba, a ninguém ama. E porque é uma beleza humana cobiçada por um deus, permanece só.

Psiquê e o amor velado

A solidão de Psiquê preocupava e entristecia seus pais, que gostariam de vê-la bem casada, como suas irmãs. Foram então consultar um oráculo de Apolo, a fim de solicitar-lhe orientação e ajuda. 

Mas Eros já havia também procurado Apolo e fizera-o aliado de sua conquista amorosa. Assim, para auxiliar o companheiro do Olimpo, o deus da luminosidade ordenou oracularmente aos pais da princesa que a vestissem em trajes nupciais e a conduzissem ao alto de determinada colina; lá, uma serpente alada e medonha, mais forte que os próprios deuses, iria torná-la sua mulher. 

A revelação do oráculo era terrível. À bela Psiquê parecia estar reservado um destino pavoroso. Embora desesperados, o rei e a rainha nada podiam fazer senão cumprir o que fora determinado. E como se lhe preparassem os funerais, entre lamentos e prantos, vestiram a filha para as bodas e a levaram para a colina.

Deixada sozinha, a formosa princesa aguarda corajosamente que se cumpra seu triste destino. Exausta pela prolongada e tensa espera, adormece. E até ela chega a suave brisa de Zéfiro que a arrebata, transportando-a, adormecida, a uma planície coberta de flores. Perto, correm as águas claras de um regato. Mais adiante, ergue-se magnífico castelo.

Ao despertar, encantada com o deslumbrante cenário, Psiquê ouve uma voz que a convida a entrar no castelo, banhar-se e depois jantar. Atravessando corredores e salas, a ninguém encontra. E, no entanto,  sente-se como se estivesse sendo observada. 

Durante o jantar, doce música a envolve – mas continua sem ver ninguém. Está aparentemente só no esplêndido palácio. No íntimo, porém, pressente que ao cair da noite chegará o esposo que lhe fora prometido, a terrível serpente alada. 

Realmente, ao anoitecer, dela se aproxima Eros, protegido pela escuridão. Psiquê não pode ver-lhe o rosto; nenhum temor, porém, a aflige mais: o medo é banido pelas palavras apaixonadas e pelas ardentes carícias do Deus.

Psiquê reata laços terrenos

Durante algum tempo, Psiquê entregou-se a esse amante velado, que a visitava encapuzado pelas sombras da noite. Mesmo ser ver sua face, a bela princesa dedicava-lhe intenso amor.

Numa de suas visitas noturnas, mostrando sinais de preocupação, Eros fez-lhe uma advertência: que se prevenisse contra uma desgraça que lhe poderia advir por intermédio de suas irmãs. Estas, Eros lhe revelou, estavam junto à colina onde ela fora deixada e pranteavam-na. Mas Psiquê não deveria comover-se com suas lágrimas e procurá-las. Ao contrário, disse Eros, era preciso que não se mostrasse às irmãs. Do mesmo modo, acrescentou, para evitar a desgraça, não deveria ela jamais tentar ver o rosto do amado.

A princesa prometeu ambas as coisas. Mas deixou-se arrastar pela tristeza de não poder ver nem consolar as irmãs, que a julgavam infeliz na companhia de um monstro terrível. E tanto chorou e tanto pediu, que Eros finalmente consentiu na visita das jovens. Todavia, esclareceu: reaproximando-se delas, Psiquê estava reatando laços terrenos e construindo seu próprio sofrimento. Depois, mais uma vez, fê-la prometer o que era de tudo o mais importante: jamais tentaria ver-lhe o rosto.

No dia seguinte Zéfiro levou as irmãs de Psiquê ao palácio. De início, foram só as alegrias do reencontro. Às perguntas das jovens sobre o marido, porém, a amada de Eros respondia com evasivas. Disse apenas que o dono de tão maravilhoso castelo era jovem e belo, e que se ausentara numa expedição de caça.

Aos poucos, o sentimento das irmãs em relação à Psiquê foi mudando. Antes, choravam supondo-a infeliz; depois partiram invejosas de sua felicidade. E resolveram vingar-se.

O amor não vive sem confiança

Atendendo aos insistentes rogos da amada, Eros permitiu que as duas irmãs de Psiquê retornasse ao castelo. Desta vez, movidas pela inveja, elas ardilosamente fizeram com que a desconfiança se insinuasse no coração da princesa. Haviam percebido, pelas reticências e contradições, que ela não sabia realmente quem era o seu marido, e nunca lhe vira sequer o rosto. Como então poderia estar segura de que não se tratava do monstro descrito pelo oráculo de Apolo? E, se era realmente belo e jovem, por que se ocultava sempre nas sombras da noite? 

Psiquê acabou minada pela dúvida e pelo medo. Aceitou, afinal, o conselho das irmãs, longa e maldosamente planejado. Deveria preparar uma lâmpada e uma faca afiada: com a primeira, explicaram as moças, poderia tentar ver o rosto do esposo; com a segunda, matá-lo – se fosse mesmo o monstro. 

Durante todo o dia, Psiquê debateu-se na incerteza e no temor. Amava o marido, com quem fora feliz até então; mas e se ele pretendesse assassiná-la? Só havia um jeito de resolver os dilemas e aplacar a angústia que a assaltara desde que ouvira as advertências das irmãs: ver o rosto do amado e descobrir se era ou não o monstro terrível.

À noite, retorna Eros ardente e apaixonado como sempre. Enquanto se entrega aos arroubos amorosos, Psiquê esquece o próprio medo e a dúvida. Mas depois, quando Eros dorme, a incerteza volta a afligir-lhe o coração. Silenciosa, apanha a lâmpada e ilumina o rosto do esposo. E detém-se deslumbrada: não é um monstro; pelo contrário, é o mais belo ser que jamais poderia ter existido.

Emocionada e arrependida, a jovem cai de joelhos. Sem querer, porém, derrama uma gota do óleo quente da lâmpada sobre o ombro do amado. Ele desperta sobressaltado e percebe o que havia acontecido. Seu formoso rosto cobre-se de profunda tristeza. E sem dizer palavra, Eros vai embora.
Psiquê tenta alcançá-lo em meio às trevas da noite. Inútil. Ouve-lhe apenas a voz, que ao longe ainda

Abandonada e em desespero, 
a bela Psiquê põe-se a percorrer o mundo 
inteiro em busca do amor perdido.
 
Psiquê em busca do amor perdido

Eros retornou para junto da mãe e pediu-lhe que curasse a ferida de seu ombro. Mas quando lhe contou o que lhe sucedera, Afrodite (Vênus) enfureceu-se. Compreendendo que fora enganada, e tudo por causa daquela simples mortal, de quem tinha tanto ciúme, passou a alimentar apenas um pensamento: encontrar a rival e castigá-la. 

De templo em templo, a infeliz princesa vagou, pedindo auxílio de todos os deuses, rogando-lhes que a ajudassem o amor perdido. Todos, porém, temendo a fúria de Afrodite, recusaram-se a auxiliá-la. Como último recurso, Psiquê decidiu ir à presença da própria Afrodite, na esperança de que em sua companhia estivesse Eros. Mas, junto à deusa, encontrou apenas zombaria e a imposição de uma série de provas humilhantes. 

A primeira tarefa que lhe ordenou Afrodite consistia em separar, até a noite, imensa quantidade de grãos miúdos de diversas espécies. Parecia impossível cumpri-la no prazo estabelecido. Mas tão grande era o sofrimento de Psiquê, e tão angustiado o seu pranto, que despertou a compaixão de formigas que passavam no local. Em vagas sucessivas, elas carregaram todos os grãos e separaram-nos por espécies, juntando-os em vários montículos.

Chegada a noite, Afrodite encontrou o trabalho terminado e irritou-se ainda mais. Ordenou então que Psiquê passasse a dormir no chão e por alimento deu-lhe apenas um pedaço de pão duro. Esperava, assim, destruir a beleza da mortal que dela havia afastado o culto e a admiração dos homens.
Por outro lado, a deusa cuidou para que Eros permanecesse encerrado no quarto onde convalescia do sofrimento. Temia que, revendo a amada, ele novamente se deixasse seduzir por seus encantos.

Psique e a viagem aos infernos

Na manhã seguinte, nova e perigosa tarefa aguardava Psiquê. Deveria ir a um vale cortado por um regato e lá tosquiar os carneiros que pastavam. A lã desses carneiros era de ouro e um pouco dela a caprichosa Afrodite desejava para si. 

Depois de muito andar, a jovem chegou ao local indicado pela deusa. De cansaço e desespero, pensou até em atirar-se no regato e terminar de uma vez com seus grandes sofrimentos. Nesse instante de hesitação entre a procura e a morte, fez-se ouvir uma voz vinda dos caniços à beira do regato. Trazia-lhe consolo e orientação: não era necessário enfrentar os carneiros para tentar tosquiá-los, disse a voz; bastava esperar que eles saíssem das touceiras de arbustos espinhosos,  quando fossem beber água; nos espinhos ficariam presos alguns fios de lã que poderiam então ser facilmente recolhidos. Seguindo o conselho da voz, Psiquê assim agiu. 

Mas ao receber a lã dourada, Afrodite não se deu por satisfeita. Alegando que certamente a princesa havia sido ajudada na execução do encargo, incumbiu-a de novo trabalho. Teria de subir a cascata que provinha da nascente do rio Estige e trazer à deusa um frasco contendo um pouco daquela água escura. 

As pedras que davam acesso à cascata eram íngremes e escorregadias, e a queda d’água era extremamente violenta. Impossível satisfazer a exigência de Afrodite. Só se pudesse voar Psiquê realizaria a tarefa. Estava já disposta a desistir, quando surgiu uma águia que lhe tirou o frasco da mão, voou até a fonte e apanhou uma porção do líquido negro. 

A água do Estige, porém, não saciou em Afrodite a sede de vingança. Psiquê devia executar outra difícil tarefa: ir ao Hades persuadir Perséfone a colocar numa caixa um pouco de sua beleza. Como pretexto, diria à rainha dos Infernos que Afrodite precisava dessa beleza para recuperar-se das longas vigílias à cabeceira do filho doente. 

Psiquê partiu procurando o caminho dos Infernos. Já havia andado muito e sentia-se perdida, quando uma torre apiedada de sua aflição ofereceu-se para ajudá-la. Minuciosamente, descreveu-lhe todo o itinerário que levava ao reino de Perséfone, onde vagavam as sombras dos mortos em fúnebre cortejo. Psiquê deveria percorrer um longo túnel, no fim do qual encontraria o rio da morte. Para atravessá-lo, teria de pagar um óbolo ao barqueiro Caronte, que a conduziria à outra margem. Então seguiria o caminho que levava diretamente ao palácio de Perséfone. Ante o portão do escuro edifício, encontraria Cérbero, vigilante cão de múltiplas cabeças. Para abrandar sua ferocidade, deveria oferecer-lhe um bolo.

Psiquê fez tudo o que lhe indicou a torre, e assim conseguiu chegar à presença de Perséfone. De bom grado, a rainha dos mortos atendeu ao pedido da jovem e entregou-lhe a caixa solicitada por Afrodite.

Já instruída quanto às diversas etapas do longo caminho, a volta foi mais fácil para Psiquê. Em suas mãos, transportava o fruto da missão cumprida, mas estava ainda longe a hora de recuperar o amor.

Eros e Psiquê, unidos para sempre

A próxima prova por que passaria Psiquê não lhe foi imposta pelo ciúme de Afrodite, mas por sua própria vaidade. Supondo que tantos sofrimentos e atribulações a tivessem tornado feia, temia não mais parecer atraente aos olhos de Eros, quando um dia voltasse a encontrá-lo. Talvez na caixa de Perséfone estivesse a beleza perdida. A tentação era grande e Psiquê não resistiu: no meio do caminho abriu a caixa. Para sua surpresa, nada encontrou. Mas, tamanho sono a tomou, que ali mesmo caiu, adormecida como se estivesse banhada pela beleza da morte. 

Enquanto dormia inerte no campo, Eros, curado de sua ferida, abandonava a mansão materna, burlando a estreita vigilância de Afrodite e saía pelo mundo em busca da amada. Vagou por toda parte, até que finalmente a encontrou deitada ao relento. Aprisionou o sono que pesadamente lhe cerrava os olhos e recolocou-o na caixa. Em seguida, picando-a docemente com a ponta de uma de suas flechas, despertou-a. Com grande meiguice, aconselhou-a pela curiosidade que a fizera destampar a caixa. Depois, mandou-a entregar a encomenda a Afrodite, agindo como se nada houvesse acontecido.

Terminavam as provações de Psiquê, que recuperara o amor. Para ter certeza de que nada mais aconteceria à amada, Eros dirigiu-se ao Olimpo e pediu a Zeus que o unisse em matrimônio à bela jovem. 

O suserano dos deuses recordou-se, na ocasião, de quantos momentos desagradáveis já vivera por causa de Eros. Apesar disso, resolveu atendê-lo. Reuniu os deuses em assembléia e declarou que Eros e Psiquê desejavam casar-se. Para isso, no entanto, era necessário que a princesa recebesse o privilégio da imortalidade. Hermes (Mercúrio), o mensageiro do Olimpo, foi buscar Psiquê e levou-a à presença dos deuses. O próprio Zeus deu-lhe de beber a ambrosia, que lhe conferiu a imortalidade. Depois, declarou-a oficialmente esposa de Eros. 

Impotente 
tornara-se o ciúme de Afrodite. 
Psiquê agora era imortal e agora estava unida a Eros.
 Nada mais podia separá-los.
Entretanto, dessa união nasceu Volúpia. 
 PabloPicasso

 
PESSANHA, José Américo Mota (org.).  
MITOLOGIA. São Paulo: Abril Cultural, 1973. vol. 1, pp. 33-48.
 (Excerto disponibilizado apenas para fins didáticos)

    Fontes:
    Enviado por em 14/01/2012
     Licença padrão do YouTube

    Nenhum comentário: