terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

A CRUELDADE HUMANA


Crueldade Humana - 17 min.



FILOSOFIA E LIBERTAÇÃO ANIMAL - REGINA SCHÖPKE

A crueldade humana: uma primeira reflexão
29 de janeiro de 2012 às 10:29

Quando o escritor português José Saramago afirmou que os animais podem ser selvagens, mas que apenas o homem é cruel, ele estava chamando a atenção para um fato bastante inquietante, que subverte profundamente a imagem que temos de nós mesmos. Ele estava dizendo, da maneira mais clara e assustadora possível, que a crueldade é um fenômeno humano (e não animal). Uma afirmação que, sem dúvida alguma, põe em jogo duas certezas bastante arraigadas em nós: a de que o excesso de agressividade está relacionado à nossa herança selvagem e a de que a razão fez do homem um ser realmente superior.

De fato, do ponto de vista moral e ético, a ruptura que o homem fez com a vida natural não parece ter feito dele um ser melhor. É claro que se pode alegar que somos superiores exatamente porque somos os únicos animais capazes de desenvolver uma moral e uma ética, mas isto também não depõe muito em nosso favor, já que também somos os únicos a realmente precisar delas, já que os animais vivem integrados à natureza e nunca transgridem as suas leis. Sim, é exatamente isto: é porque os homens transgridem suas próprias leis e, sobretudo, é porque a nossa espécie é a única capaz de cometer atos bárbaros por prazer ou descaso com a dor alheia (como diz Saramago, um animal jamais tortura ou humilha o outro), que precisamos de leis que regulem a vida em sociedade. Sem dúvida, a justiça é uma necessidade, mas exatamente porque nós, os ditos “animais racionais”, ainda não aprendemos a respeitar a existência alheia.

Sem dúvida, vendo à distância o mundo humano, com tanta desigualdade, miséria, guerras, exploração e escravidão (humana e animal), é difícil acreditar que somos realmente seres racionais, compassivos e sensíveis. E, no entanto, apesar de tudo, é isto o que somos, pelo menos, potencialmente (eis porque, quando a razão e a sensibilidade se aliam no homem, ele é capaz de produzir uma existência verdadeiramente bela e ética). No entanto, o problema é que, na prática, o homem se comporta sempre aquém das suas potencialidades e aí, sim, cabe-nos perguntar por que o homem pode tanto e atinge tão pouco?

Decerto, alguns responderiam: “ele não pode: isto é uma falácia!” Outros, por sua vez, diriam: “ele pode, basta querer!” Pois tanto os primeiros quantos os segundos se equivocam: os primeiros estão mergulhados no pessimismo que, certamente, tem sua origem (até certo ponto justa) numa visão clara do que tem sido a vida humana; já os segundos são otimistas demais, acreditando que a vontade é livre o suficiente para escolher. Os dois erram, porque, de fato, o homem pode mais, mas seus valores o dirigem de tal maneira que é preciso, primeiramente, que ele se liberte de seus antigos grilhões, ou seja, que se liberte dos conceitos e das ideias que o tornam prisioneiro das circunstâncias, que o tornam passivo e resignado diante de um mundo que ele não acredita poder mudar.

Aqui entramos no cerne da questão: as sociedades se estruturaram, desde os seus primórdios, de modo a beneficiar alguns em prol de outros (eis porque, desde o início, os homens escravizam outros homens e também os animais). Esta é a origem da exploração e das desigualdades. É assim que nos acostumamos, desde cedo, a usufruir de outras vidas, aprendendo a fechar os olhos para a crueldade e para a tirania, como se elas fossem naturais em nós, quando, de fato, elas expressam o adoecimento da nossa espécie. Sim, a inversão do pensamento começa aqui: não somos primeiramente seres selvagens e maldosos que se aculturam e se tornam sublimes. Como um animal dentre outros, nós possuímos censores naturais que nos impedem de ultrapassar certos limites; mas, em sociedade, somos criados para obedecer regras inventadas pelos próprios homens e é aqui que tudo se complica e se confunde. Afinal, é a própria sociedade que nos ensina o descaso com a dor alheia, dos homens e dos animais. E, assim, como todos os demais, acabamos ou explorando os outros diretamente, e sem culpa, ou usufruindo, também sem culpa, dos benefícios da exploração. Afinal, temos o consentimento da própria sociedade para sermos pequenos tiranos.

Existe, de fato, uma razão perversa para que os homens sejam mantidos de olhos fechados. É que é preciso que eles continuem na escuridão e na servidão dos valores para que a desigualdade, a exploração, a escravidão, continuem existindo. Este é o maior de todos os atavismos humanos: aprendemos a nos beneficiar dos outros, aprendemos a ser, na verdade, imorais, antiéticos. É a nossa moral que tem sido, há milênios, uma falácia. Triste condição a nossa: somos vítimas de nossa própria inteligência superior. Na ânsia de fazermos parte do mundo, de nos integrarmos ao nosso meio social, apertamos ainda mais os nossos grilhões, tornamo-nos escravos e, ao mesmo tempo, agentes de nossa própria servidão. Servidão voluntária e até mesmo desejada, porque é mais fácil viver como todos os demais do que abrir os olhos e tomar nas mãos a própria vida.

De fato, é difícil mudar… mas andar também é e, no entanto, basta darmos os primeiros passos que os outros se seguem facilmente. Quase tudo no homem é hábito, é aprendizado. Por isto, a educação é tão fundamental e, mais ainda, uma educação que se volte para produzir um homem verdadeiramente superior, moral e eticamente falando. No fundo, por mais polêmica que pareça esta afirmação, o que resiste em nós de mais sublime é exatamente o nosso instinto mais elementar, que nos sopra aos “ouvidos” que agimos mal o tempo inteiro. É nossa saudável razão natural (como diria Nietzsche) que nos alerta, e não o que homem tem chamado de moral. Na verdade, não é nossa animalidade que precisa ser extirpada; é nossa falsa humanidade.
Sem dúvida, somos animais incríveis, somos os criadores dos mais belos conceitos e valores, mas também somos facilmente corrompidos pela ambição, pela ganância, pela vaidade e, para atingir nossas metas ilusórias de felicidade, usufruímos de outras vidas sem qualquer pudor. Com relação aos animais, esta realidade é ainda mais terrível, porque quase ninguém considera a sua dor, o seu sofrimento. É assim que milhões de vidas são brutalizadas, humilhadas, mortas todos os dias, sem qualquer piedade. É por isto que, mesmo quando somos vítimas, somos também responsáveis pela crueldade que nos atinge. Afinal, a crueldade, mais do que a racionalidade, tem sido o principal atributo do homem. Eis uma verdade dolorosa, mas que é preciso encarar se desejamos mudar o que precisa ser mudado. Na verdade, o homem não tem sido, nem de longe, o animal superior que julga ser.

Falando agora mais diretamente sobre a origem da crueldade humana, cito o grande historiador das religiões Mircea Eliade, que nos revelou algo de muito valioso em sua monumental obra “História das crenças e das ideias religiosas” (algo que endossa o que dizemos aqui a respeito do aspecto “contra-natura” da crueldade): o homem, inicialmente, não matava (nem mesmo para comer). Isto quer dizer que não somos originalmente nem carnívoros nem onívoros, e esta é uma informação que a ciência não deveria nos sonegar. Aliás, segundo as pesquisas de Eliade, toda a história posterior do homem é marcada exatamente por esta decisão que ele tomou no início dos tempos: a decisão de “matar para sobreviver”. Não vamos entrar na questão propriamente dita, falar da religião, que, segundo Eliade, está na base desta cruel decisão. Precisamos apenas entender que o homem tornou-se, de fato, o senhor da natureza, mas não por ser um animal divino ou por ser dotado de um espírito enquanto os outros seres vivos são corpos vazios; ele se tornou senhor da natureza porque tiranizou a vida, todas as vidas, inclusive a de sua própria espécie.

Sem dúvida, esta primeira violação da nossa natureza não poderia deixar de causar marcas indeléveis no homem e, assim, não parece nada equivocado concluir que este primeiro ato de barbárie deu origem a todos os demais. Afinal, o que poderia se esperar de um ser que age contra sua própria natureza? Ele só poderia adoecer, enlouquecer. Não é isto, afinal, que Nietzsche diz dos homens: que somos animais adoecidos, que perdemos nossa “saudável razão natural”? Nós nos perdemos de nós mesmos e nunca mais conseguimos nos encontrar. É isto que explica esta espera ensandecida por alguém que nos salve, que nos tire do fundo do abismo, quando, na verdade, bastaria apenas que olhássemos sem medo para dentro de nós mesmos. Sim, somos o que aprendemos, mas por baixo de todas as ideias, crenças, conceitos, existe um animal desesperado que clama por liberdade e por uma vida mais digna. A felicidade não está nos bens que se obtém no mundo, menos ainda nos que se obtém à custa da exploração e do sofrimento alheio; a felicidade está em ser pleno, forte e capaz de viver sem macular a si e aos outros. Isto, sim, chama-se respeito ao outro; não o que tem sido ensinado.

O homem inverteu a lógica da vida e assim produziu um mundo assentado na dor e no sofrimento. Sim, a vida tem dores e sofrimentos, já dizia Schopenhauer, mas o homem conseguiu multiplicá-las ao infinito. Não é a natureza que é cruel; somos nós: é isto que o homem se nega a ver. E ele vive tão imerso na dor e no sofrimento que chega mesmo a sentir-se atraído por eles; a se compor com eles, a lhes fazer elogios e a morbidamente saudá-los como inerentes à sua natureza. No entanto, a verdade é que, desde a infância, somos insensibilizados, adestrados para não reagir, para não sentir em demasia (nem amor, nem dor, nem compaixão, absolutamente nada… Descartes, de fato, confundiu as coisas: os homens é que se tornaram “máquinas sem alma”). Dito de outro modo: os sentimentos são em nós, desde cedo, aprisionados, dilacerados, considerados perigosos. Não se costuma dizer que a própria paixão é um perigo? Sim, o perigo da paixão é que ela pode nos desviar dos deveres que nos foram impostos pelo mundo; deveres aos quais aprendemos a obedecer como autômatos, mesmo quando eles nos rebaixam como seres humanos.

Dito de modo mais claro: somos escravos de um mundo que nós mesmos construímos (e cada um põe um tijolo nesta construção enquanto não desperta deste longo torpor, deste anestesiamento moral que subverte nossa natureza e nos rouba a liberdade de sermos aquilo que somos: seres verdadeiramente humanos). É assim que todo homem permanece preso num círculo vicioso, aparentemente insolúvel, até que comece a dizer “não” para a crueldade, seja ela dirigida aos outros homens ou aos outros animais (certamente, as maiores vítimas deste mundo). É um caminho árduo, sem dúvida, mas como poderia ser barato o preço da liberdade e da plenitude humana depois de tanta inversão de sentimentos e ideias?
Este é o verdadeiro começo: o primeiro “não” é sempre mais difícil, mas, depois do primeiro, outros se seguirão, e a cada “não” a nossa força aumenta, porque ela é proporcional ao nível da nossa libertação. Este é o maior legado que podemos deixar para as próximas gerações: libertar todas as vidas. Aliás, esta já é a condição para que as novas gerações sejam possíveis, porque a natureza não tolera mais a tirania humana. Ou fazemos algo agora ou é a natureza que seguirá sem nós: isto é um fato. Porque gostando ou não da ideia, não é a natureza que precisa do homem, somos nós que dependemos da natureza. Nós somos partes dela, e não o contrário. É por isto que libertar os animais é também libertar o animal humano da sua doença; é dar a ele uma nova possibilidade de existência que seja mais bela, mais ética, mais verdadeiramente racional.

Não é sem razão que Nietzsche dizia que era preciso inventar novos valores para um novo homem. Ele não chegou a pensar tão profundamente na questão dos animais; mas ele sabia que um novo homem seria aquele que recuperaria o sentido da terra e da vida. Se ele afirmou que fizemos da mentira uma verdade, isto não quer dizer que não existam verdades simplesmente, que tudo “tanto faz”. Esta interpretação já tem sua origem na nossa inversão das coisas e é bem-vinda num mundo que busca argumentos para manter-se como é. Mas nem o capitalismo, nem o comunismo, nem qualquer outro sistema será justo enquanto não formos seres verdadeiramente éticos. Nós criamos as verdades que nos interessam. São mentiras: Nietzsche tem razão. Está na hora de “inventarmos” a verdade, ou melhor, está na hora de deixarmos que ela se mostre sem mais véus e dissimulações. “Da verdade mesmo, ninguém nunca quis saber”, também estas são palavras de Nietzsche. Mas, disto, falamos depois…



Comentário:
 Glauce (29 de janeiro de 2012, 12:20), disse:
Esta semana um amigo citou Rousseau sobre a desocupação no Pinheirinho, atribuindo a origem da tirania ao homem que cercou o primeiro pedaço de terra, chamou de seu e ninguém o contrariou. Já eu sempre defendi que a crueldade e a tirania despertaram e ganharam força a partir do primeiro homem que usou sua “inteligência” para construir uma arma para subjugar outra vida… e daí decorreram todas as mazelas que sofrem hoje os animais humanos e não humanos… e a natureza como um todo.
Texto extremamente sensível e de encontro ao que sempre senti, Regina.


Thomas Hobbes: "O homem é o lobo do homem"

Thomas Hobbes (1588/1679)

Para o filósofo inglês da Idade Moderna, o "Homem é o lobo do Homem".
No que ele chama de "Estado de Natureza", os homens são perfeitamente iguais, desejam as mesmas coisas e têm as mesmas necessidades, o mesmo instinto de auto-preservação.

Por isso, o estado natural é conflito..é guerra...
As guerras existem porque as pessoas querem as mesmas coisas...

Como adquirir a paz?
Apenas através de um Contrato, um pacto formal entre pessoas iguais que renunciam suas liberdades em troca de tranquilidade.
Pelo contrato as pessoas desejam o Bem Comum ..isso é feito através do Direito Positivo que se mantém pelo legislativo.

Hobbes pertence ao período filosófico chamado de "Contractualismo", período onde filósofos acreditaram que apenas um Contrato, um acordo coletivo faria o homem evoluir...

- Vc concorda que as pessoas precisem de um pacto universal para que o Estado seja pacífico? Ou...por esse prisma..o mundo precisa de um único pacto?
- As pessoas são iguais na base natural?
- Nossos instintos nos tornam agressivos? É o conforto da tecnologia e da civilização que nos mantém além dos instintos?
- É instintivo que uns tenham mais poder que outros? O mais forte?
- A Constituição seria um exemplo de Pacto?

O homem literalmente se "mata" para ter dinheiro, status, sucesso e poder consumir, mas e a qualidade de vida?
Postado por Célia Schultz às 06:49  

http://auladefilosofiacelia.blogspot.com.br/2007/12/thomas-hobbes-o-homem-o-lobo-do-homem.html


"A filosofia é hoje 

mais importante do que jamais foi", 

afirma Peter Singer

Em entrevista ao site de VEJA, o filósofo Peter Singer afirma que os avanços da ciência irão tornar as discussões éticas cada vez mais fundamentais, e explica suas ideias sobre vegetarianismo, pobreza extrema e eutanásia

Guilherme Rosa
Peter Singer
Peter Singer já foi considerado um dos mais importantes e controversos filósofos vivos. Sua ideias chegaram a ser comparadas ao nazismo e o levaram a ser chamado de o homem mais perigoso da Terra. Em 2004, no entanto, ele foi eleito o Humanista do Ano pelo Conselho de Sociedades Humanistas Australiano (Joel Travis Sage/VEJA)
O australiano Peter Singer é uma figura rara: um filósofo que atrai a atenção de multidões. Seu livro Libertação animal (Ed. WMF Martins Fontes), de 1975, foi um dos responsáveis por dar início aos movimentos modernos de defesa dos animais, influenciando um enorme número de ativistas do vegetarianismo ao redor do mundo. Ao mesmo tempo, suas ideias sobre a eutanásia também movem um grande público, mas na forma de acalorados protestos realizados em suas palestras. Os atos costumam ser organizados por grupos de defesa dos portadores de deficiência física, que encontram em seus escritos ecos da eugenia nazista.
Professor de bioética na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, Singer analisa questões éticas — como aborto, assassinato, desigualdade e direitos dos animais —, partindo do ponto de vista de que todo ser vivo capaz de sofrer e sentir dor deve ter seus interesses considerados. Isso leva o filósofo a afirmar que o consumo de carne e a maior parte das experiências científicas com animais são moralmente errados. Nos últimos anos, Singer tem se envolvido com uma série de organizações de caridade, a fim de ajudar populações pobres ao redor do planeta. Mas também é esse raciocínio que, levado ao extremo, faz Singer chegar a conclusões chocantes, como afirmar que a vida de um cachorro tem o mesmo valor moral que a de um humano recém-nascido.
Peter Singer esteve no Brasil para participar da série de palestras Fronteiras do Pensamento. Em entrevista ao site de VEJA,  afirmou que os avanços científicos fazem com que as questões éticas se tornem cada vez mais importantes e comentou avanços recentes como a carne feita em laboratório, as descobertas sobre a consciência dos animais e o desenvolvimento de inteligência artificial:











Seus argumentos costumam despertar reações apaixonadas — para o bem ou para o mal. Pessoas que não gostam do que o senhor diz já o chamaram de Dr. Morte, nazista e até de o homem mais perigoso do mundo. Ao contrário, pessoas que gostam de suas colocações já o chamaram de o homem mais ético do planeta. Por que seu trabalho costuma ter esse tipo de resposta extremada? Penso que é porque meu campo de estudo é a ética, e as pessoas têm visões muito diferentes quanto a esse tema. Particularmente, eu sigo a lógica de meus argumentos até o fim, mesmo que as conclusões entrem em confronto com o que diz o senso comum. Uma das coisas de que me chamam é de controverso — e isso é verdade. Isso acontece porque eu afirmo que a visão moral comum está, normalmente, errada. As pessoas não parecem ter realmente pensado no assunto, feito as perguntas éticas fundamentais.
Mas o senhor acha que essas reações surgem simplesmente por causa das discussões éticas gerais ou porque o senhor tem posições firmes em temas como aborto, eutanásia e direitos dos animais?  É claro que eu podia discutir a ética no nível das generalidades, nunca atingindo esses temas mais difíceis. Aí, eu não seria controverso. A maioria das pessoas não teria nenhum interesse no que digo, talvez nem me entendessem — exceto outros filósofos. Quando estudamos a ética prática não podemos evitar esses tópicos. Não é possível evitar perguntas sobre vida e morte. Você inevitavelmente terá de questionar: por que matar um ser vivo é errado? É pior matar um ser do que outro? Por exemplo, eu até poderia não ter estudado a ética da nossa alimentação a base de carne, mas isso me pareceria muito estranho, porque eu estudo justamente a ética prática — e comer é algo que fazemos todos os dias.
Por que é importante discutir questões éticas? A pergunta responde a si mesma. Discutir por que alguma coisa é importante já é, em si, uma pergunta ética. Você não pode dizer se alguma coisa é importante se não tiver alguma ideia de valores morais. Se você pensar que o ato de prevenir a morte de um milhão de pessoas de fome é mais importante do que o ato de coçar o seu pé, isso já é um valor ético. A partir daí, você já pode começar a se fazer perguntas éticas: por que tenho esses valores? Será que não existem outros valores melhores? A ética é importante porque, quando pensamos no que devemos fazer e como queremos viver, já estamos fazendo ética. Isso é inevitável. A pergunta importante não é se estamos fazendo ou não ética, mas se estamos fazendo isso do modo certo ou errado.
Quais seriam as questões éticas mais importantes de nosso tempo? Sem dúvida nenhuma, a pobreza global é um dos grandes problemas sobre os quais devemos nos deter. Também penso nas mudanças climáticas — um dos grandes desafios morais que teremos de enfrentar nos próximos dez ou vinte anos. É claro, também tenho que citar o tratamento que damos aos animais, um tema que discuti durante toda minha carreira, mas que ainda é muito importante. Há outros temas que eu devo mencionar, como o risco de extinção da espécie humana — que deveria ser reduzido ao máximo — e a seleção genética, que nos dá a possibilidade de melhorar geneticamente nossa espécie. São questões que estão sendo trazidas à tona neste século, com os avanços científicos.
Então o desenvolvimento da ciência não ameaça tornar a filosofia obsoleta? A filosofia é hoje mais importante do que jamais foi. E os cientistas que pensam que a filosofia não importa certamente não têm um grande entendimento do que é a filosofia. Eles costumam pensar que é possível chegar, de modo científico, aos juízos de valores. Mas não dá para fazer isso a partir de descrições do mundo — que é o que a ciência faz. A descrição do mundo e os nossos valores são duas coisas diferentes. Quando estamos pensando em valores, estamos fazendo filosofia.
O senhor escreveu sobre muitos temas em sua carreira, mas se tornou particularmente conhecido por causa de sua defesa dos animais. Por que esse campo de estudos se tornou mais conhecido que todos os outros? Esse é o campo da filosofia em que eu fui um pioneiro. Eu escrevi a primeira discussão filosófica moderna sobre a ética de tratamento aos animais, e a conclusão foi que deveríamos fazer o contrário do que fazemos hoje em dia. Desde então, surgiram muitos outros filósofos que contribuíram para esse campo, mas meu livro Libertação Animal é visto como o texto fundador desse movimento.
Por que alguém deveria se preocupar eticamente com um animal? Afinal, os animais não se preocupam eticamente com os seres humanos. Realmente, eles não se preocupam. Mas bebês e crianças pequenas também não têm preocupações éticas — e todos concordariam que devemos nos preocupar com eles eticamente. Se alguém quisesse causar dor numa criança por diversão, iríamos pensar que é errado, mesmo que a criança ainda não seja capaz de pensar eticamente sobre as outras pessoas. Acho que o mesmo vale para os animais. Eles são capazes de sofrer, sua vida pode ser boa ou má. E mesmo assim nós usamos bilhões deles para motivos fúteis, sem levar em conta seus interesses. Se há sofrimento acontecendo — que nós estamos causando — estamos diante de uma questão ética importante.
Mas como saber quais seres vivos importam eticamente? O senhor defende os direitos das plantas, dos insetos e das bactérias? Os seres com que devemos nos importar são aqueles que podem sofrer ou apreciar a vida, que podem experimentar dor ou prazer, que têm experiências conscientes. Isso certamente não inclui as árvores, e também duvido que inclua os insetos. Mas certamente inclui os vertebrados e provavelmente alguns invertebrados, como o polvo — que estudos apontam como um ser consciente.
Mas o que faria essa diferença? A presença de um sistema nervoso? É por causa disso que falei sobre os vertebrados: seu sistema nervoso é mais parecido com o nosso, tem uma organização central. Mas não acho que essa deve ser a única identificação. O comportamento do polvo, por exemplo, é tão complexo que nos leva a ver indícios de consciência. Se ela evoluiu no polvo, parece que foi por um caminho evolutivo diferente, que não depende de um sistema nervoso como o nosso. Eu não sei dizer onde exatamente as fronteiras estão. O que eu posso dizer é que devemos ter uma mente aberta, e se tivermos evidência de que algum tipo de ser é consciente, o que fazemos com ele passa a ter significância moral.
Mas o senhor não acha que a vida humana tem mais valor que a de um peixe, por exemplo? Acho que existe uma diferença entre seres autoconscientes e seres que apenas têm consciência, e essa diferença é relevante quanto ao erro de matar esse ser. É mais sério matar um ser autoconsciente, que recorda o seu passado e se projeta no futuro, mas não acho que o sofrimento desse ser tenha valor maior do que o de um que apenas é consciente. Não defendo que tudo que aconteça contra um ser autoconsciente seja mais importante — apenas o assassinato. Veja bem, o princípio moral básico para mim é o da igual consideração de interesses, levar na mesma conta todos os interesses envolvidos em determinada ação. Assim, se eu e um cachorro sentimos a mesma quantidade de dor, nosso interesse em não sentir dor é similar. Mas se eu for autoconsciente, eu tenho um interesse maior em continuar vivendo. Eu posso fazer planos, posso buscar objetivos. Assim, eu tenho mais a perder com a minha morte do que um animal que vive apenas no presente, cujos interesses são, basicamente, encontrar abrigo, comida, segurança.

"Os frangos são mantidos em lugares apertados e tão lotados que não conseguem se movimentar, abrir suas asas. Eles passam a vida inteira estressados", diz Singer












Então seria correto matar e comer um frango, que parece não ter autoconsciência, se não causarmos nenhuma dor? Se ele tiver tido uma boa vida, não vejo problemas. O problema não é só matar os animais. Nós não podemos apoiar os tipos de fazendas de criação que existem hoje em dia. Os frangos, por exemplo, são mantidos em lugares apertados e tão lotados que não conseguem se movimentar, abrir suas asas. Eles passam a vida inteira estressados. Mas se ele tiver vivido uma boa vida, e se sua morte for instantânea, sem nenhuma dor — e se assumirmos que os frangos realmente não são seres autoconscientes – eu não tenho uma grande objeção contra comê-lo. Eu sou vegetariano há mais de 30 anos, não tenho nenhum desejo de comer frango, mas se alguém fizer isso nessas condições, acho que não teria nenhum argumento contra.

O senhor não acha que são muitas condições? Sem dúvida, são muitas condições. Elas são muito diferentes do modo como os frangos são produzidos hoje em dia e tornam muito difícil produzi-los de modo comercial.
Mas a carne não tem um valor nutritivo importante? Seria errado comer carne para melhorar a nutrição de uma criança necessitada? Acho que isso faz muita diferença. Quando falo sobre vegetarianismo, eu falo para as pessoas que vivem em grandes cidades, como São Paulo, onde podemos andar até um supermercado e comprar muitas alternativas saudáveis aos produtos animais. Mas se você estiver em um país pobre, e tiver dificuldades em conseguir uma dieta saudável para a sua família, eu não diria que é errado você comer um frango.
No começo de agosto, pesquisadores anunciaram a criação do primeiro hambúrguer feito em laboratório a partir de células-tronco de gado. O senhor comeria essa carne artificial? Eu ficaria muito feliz em comer o hambúrguer artificial, porque nenhum animal teria sofrido para ele chegar à minha mesa. Eu não me importo nem um pouco com o fato de ele ser feito a partir de células tronco. Minha preocupação moral não é com células, mas com seres conscientes. Além disso, o hambúrguer é muito melhor para o meio ambiente do que a carne vinda dos animais. Infelizmente, por enquanto, ele é apenas uma prova do conceito, mas espero que algum dia ele se torne comercialmente viável.
Então o senhor estaria disposto a colocar a carne de volta em sua dieta? Eu não sinto nenhuma falta de comer carne. Eu experimentaria o hambúrguer para ver qual o gosto — porque eu estou curioso. Se gostasse, poderia até experimentar mais regulamente, mas no momento não sinto nenhuma necessidade de comer carne.
Recentemente, o chef brasileiro Alex Atala participou de um encontro na Europa, onde matou e cozinhou uma galinha no palco, em frente à plateia. Parte do publico reagiu com revolta à morte da ave. Como o senhor vê essa reação? É uma completa hipocrisia. Muito provavelmente, as pessoas que reagiram assim não são vegetarianas. O que eles estão dizendo é que querem que alguém mate o frango, mas não lhes mostre a ação. Sabe o que isso me lembra? Eu não gosto de traçar paralelos entre o que fazemos com os animais e o holocausto – acho que existem diferenças muito importantes – mas isso me lembra dos alemães que, durante o nazismo, preferiam não ficar sabendo o que era feito com os judeus. A atitude é semelhante.

Por que o senhor diz isso?
 Conforme a sociedade vai se tornando mais secular, as pessoas passam a não aceitar mais de modo tão imediato os ensinamentos religiosos e começam a pensar por si mesmas. A moral religiosa tende a ser focada em regras simples, como os Dez Mandamentos, porque esse era o modo mais simples de ensinar bom comportamento há milhares de anos. Hoje, podemos deixar essa regras simples para trás. Precisamos pensar de modo mais profundo sobre as questões éticas fundamentais.Essa lógica de levar em conta todos os interesses envolvidos em uma ação e decidir quais deles são mais importantes não faz o raciocínio moral se parecer com um cálculo matemático?
 Bom, eu sou um utilitarista. E o utilitarismo, sem dúvida, leva números em conta. Mas acho que seria uma loucura não levar. Se eu tivesse que escolher entre salvar a vida de mil pessoas ou salvar a vida de apenas uma, ignorar esses números seria errado. Mas o utilitarismo não é apenas matemático. Ele traz questões sobre moral e valores, leva em conta tanto a empatia quanto a razão matemática. E acho que, com o passar dos anos, o modo utilitarista de pensar se tornará mais importante.
Essa lógica utilitarista não justificaria as pesquisas científicas com animais? Afinal, elas podem salvar muitas vidas. De fato, algumas pesquisas se justificam por essa lógica. Essa é uma das questões mais difíceis no campo do bem-estar animal. Nós devemos examinar cada experimento em particular para ver se ele tem essa justificativa. E eu acho que muitos — provavelmente a maioria — não têm. Muitos deles são baseados na ideia de que o sofrimento dos animais não deve ser levado em conta, o realmente importante seria o avanço no conhecimento — o que não é verdade. Mas existem alguns casos nos quais os cientistas dão o mesmo valor ao sofrimento dos animais que dariam ao sofrimento humano, e chegam à conclusão de que os benefícios da pesquisa seriam tão grandes que ela se justifica. Como um utilitarista, eu tenho que admitir que isso é possível.

Singer diz que a maior parte das pesquisas científicas feitas com animais não leva em conta seu bem-estar. No entanto, ele reconhece que algumas pesquisas desse tipo podem ser justificadas, se ajudarem a salvar vidas.









No livro Ética Prática, o senhor diz que os cientistas que estivessem dispostos a realizar experimentos com animais deveriam também estar dispostos a realizar os mesmo estudos em bebês com doenças mentais severas. Esse, na verdade, é um modo de desafiar a percepção comum dos cientistas, um modo de fazê-los pensar se não estão achando que o sofrimento dos animais é menos importante que o dos homens. Se eu falasse que os cientistas deveriam estar dispostos a fazer suas pesquisas com seres humanos normais, eles poderiam argumentar que essas pessoas sofreriam mais durante as experiências, pois saberiam o que vai lhes acontecer, lembram de seu passado e pensam no futuro, podem ficar traumatizadas e, se morrerem, estaremos matando um ser autoconsciente. Mas se imaginamos um ser humano que esteja no mesmo nível mental que um animal, isso ilumina os fatores para analisarmos essa questão. Uma pesquisa científica estará justificada se o cientista realmente der o mesmo peso aos interesses dos animais que dá aos seres humanos.
O senhor de fato acredita que não há um valor intrínseco na vida humana que a torna diferente? Penso que o cristianismo dá muita ênfase à santidade da vida humana, e meus pensamentos são vistos como afronta a isso. Mas se você olhar para outras culturas humanas, que não foram influenciadas pela tradição judaico-cristã — muitas delas defendiam o infanticídio como uma coisa normal e até sensível de ser feita. Se a criança tivesse alguma deficiência severa, eles consideravam que seria melhor não deixar essa criança viver. Mesmo hoje, muitas pessoas afirmariam ser uma tragédia menor a morte de uma criança com uma doença severa incurável do que a de um ser humano normal de qualquer idade. Mas também existe esse ensinamento religioso sobre a santidade de todas as formas de vida humana que as pessoas se recusam a abandonar.
Mas não são só os religiosos que se colocam contra seu ponto de vista. Grupos que defendem os direitos de portadores de deficiência costumam organizar protestos em suas palestras, por exemplo. Eu costumo sofrer dois tipos de oposição forte: dos grupos religiosos e das pessoas portadoras de deficiência. A maioria desses últimos certamente não leu os meus livros ou entendeu errado o que escrevi. Eles interpretaram que eu sou hostil às pessoas com deficiência — é claro que isso não é verdade. Acho que seus interesses valem tanto quanto o de todas as outras pessoas. Mas imagine um caso onde um bebê recém-nascido apresenta uma doença severa incurável, que lhe causar muito sofrimento enquanto estiver vivo. Os médicos deveriam fazer de tudo ao seu alcance para estender a vida dessa criança? Muitas pessoas que se viram, como pais, nessa condição, optaram por não usar toda a tecnologia médica disponível para salvar a criança. Eu me envolvi nessa questão ao afirmar que, se a retirada do tratamento não matar imediatamente o bebê, não seria errado fazer algo ativamente contra sua vida. Eu não vejo diferença entre omitir ajuda e dar uma injeção letal. As duas dão o mesmo resultado: a morte da criança. Foi simplesmente isso que escrevi sobre o assunto, e muitas pessoas não gostaram. Mas não é como se eu tivesse alguma coisa contra as pessoas com deficiência, de jeito nenhum.
Esse raciocínio sobre as semelhanças entre omissão de ajuda e assassinato também está na base de seus argumentos sobre a obrigação moral de acabar com a pobreza extrema. Como uma linha de pensamento que leva à defesa da eutanásia também leva à defesa da caridade? Nós costumamos dar muita ênfase ao ato de matar alguém, mas fazemos muito pouco para ajudar as pessoas em situação de pobreza extrema, para impedir a morte de crianças em países pobres por subnutrição ou doenças. Isso mostra que estamos errando no modo como pensamos sobre as consequências de nossas ações. Porque, nos dois casos, o resultado é o mesmo: alguém morre. Nessa questão, eu traçaria uma linha para distinguir entre o julgamento da ação e de seu agente. As ações de assassinato e omissão são igualmente ruins, mas, por causa da diferença de motivação, os agentes de uma e outra não são moralmente comparáveis. Se seguirmos o tipo de julgamento moral que leva em conta regras estritas, quem se omite não está fazendo nada de errado. Mas de um ponto de vista utilitário, existe uma diferença.
O que o senhor defende que seja feito então? Acho que as pessoas deveriam doar parte de seu dinheiro para instituições de caridade. O dinheiro não deveria ir para qualquer caridade, mas para aquelas que realmente demonstrarem que são capazes de ajudar os mais pobres. Não acho que dar esmola para mendigos ou pedintes na rua é um jeito efetivo de combater aa pobreza, uma vez que não sabemos qual será o destino do dinheiro. Precisamos ser inteligentes em nossas doações, procurando evidências sobre como nosso dinheiro fará a maior diferença possível.
O senhor fala sobre a necessidade de levarmos em conta todos os seres que possuem algum tipo de preferência. Se no futuro, os seres humanos conseguirem desenvolver algum tipo de inteligência artificial, o senhor defenderia os interesses dos robôs? A questão central deve ser a consciência. Se o ser tiver preferências conscientes — e tivermos algum modo de saber que ele tem experiências mentais como as nossas — então deveríamos tratá-los como todos os outros seres conscientes. Não existe relevância no fato de eles serem sintéticos ou naturais, sua capacidade de sentir é o que importa.



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Fontes:


http://www.anda.jor.br/29/01/2012/a-crueldade-humana-uma-primeira-reflexao
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

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