quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O LÍTIO DA AMÉRICA DO SUL - EIXO GEOPOLÍTICA MUNDIAL



O Lítio na América do Sul e o eixo da geopolítica energética mundial





Em junho de 2010, a edição 45 da Piauí trazia a matéria Sonhos de Lítio.




Não é de hoje que os veículos de comunicação, especialmente os especializados em política e economia, estão publicando notícias sobre as excelentes oportunidades de negócio oferecidas pela exploração do lítio na América Latina. Os destaques que aparecem nessas manchetes frequentemente tratam sobre a demanda cada vez maior do mercado mundial por este recurso e a atuação dos governos sul americanos (detentores das maiores reservas mundiais do metal) em suas relações com as grandes companhias estrangeiras de mineração.
Para quem não está muito a par do assunto e sequer tem ideia do que seja o lítio, quais suas principais aplicações e por que cargas d’água ele passou a ser tão importante a ponto de ser figura cada vez mais constante nos principais jornais e revistas ao redor do mundo, o Hum Historiador vai dedicar alguns parágrafos a este metal que poderá mudar o eixo da geopolítica energética mundial colocando a América do Sul, uma vez mais, no centro das atenções.
UM POUCO MAIS SOBRE O LÍTIO
Começando pelo começo, como sempre é recomendado, o lítio é um elemento químico cujo símbolo na tabela periódica é Li. Segundo diferentes enciclopédias, em sua forma pura, é um metal macio, de coloração branco-prateada, que se oxida rapidamente no ar ou na água. Quanto a suas aplicações, o lítio é utilizado na obtenção de ligas metálicas condutoras de calor (alumínio), no feitio de cerâmicas e lentes (telescópios), na produção de pilhas e baterias elétricas (celulares e notebooks) e até mesmo na medicina, onde seus sais são utilizados em medicamentos para o tratamento de depressão e do transtorno bipolar.
A edição eletrônica da Enciclopédia Britannica informa que trata-se de um metal escasso, encontrado-se disperso em certas rochas, em sais naturais, águas salgadas e águas minerais. Justamente por esta razão, suas principais reservas encontram-se em regiões de salares, isto é, regiões que há dezenas de milhares de anos eram cobertas por oceanos e, com a formação geológica dos continentes, acabaram por secar e formar grandes desertos de sal. O lítio se encontra dissolvido abaixo da grossa crosta, em uma camada de solução impregnada de sal.
Foto do Salar de Uyuni, Bolívia.
A IMPORTÂNCIA GEOPOLÍTICA ENERGÉTICA DO LÍTIO
Depois de ter passado muitos anos “amargando” com baixa demanda mundial, a situação do lítio mudou completamente quando cientistas descobriram sua enorme capacidade de armazenar energia elétrica. Logo passou a ser utilizado como matéria prima na produção de baterias de longa duração em aparelhos eletrônicos como celulares e notebooks e, posteriormente, verificou-se que sua capacidade de armazenamento era tão grande que o lítio acabou transformando os automóveis movidos à baterias elétricas na grande opção ecológica e sustentável em substituição aos veículos movidos à base de petróleo. Assim, o mundo todo espera que, a partir da terceira ou quarta década deste século, o lítio assuma o papel de substituto do petróleo como provedor de energia para mover o mundo.
Baterias de Lítio utilizadas em carros elétricos






Neste sentido, é bastante significativo que General Motors, Toyota, Volkwagen e Honda já entraram no mercado estadunidense com carros híbridos, ou totalmente elétricos, munidos de grandes baterias de compostos salinos, polímeros ou ligas contendo lítio. A Toyota anunciou o lançamento de um Prius com bateria de íons de lítio. A Nissan e a Mitsubishi também divulgaram planos de fabricar carros a bateria, assim como a Mercedes-Benz, a BMW e a Hyundai. A Ford planeja vender uma versão totalmente elétrica do Focus e a China afirmou que, em meados de 2011, já tinha a capacidade de construir meio milhão de carros híbridos e elétricos ao ano.
Assim, se o lítio se confirmar no papel de substituto do petróleo como fonte de energética conforme esperado, a América do Sul poderá assumir um papel de protagonismo no cenário geopolítico mundial, tal como tem ocorrido com o Oriente Médio nos últimos 50 ou 60 anos. Some-se a isso a importância estratégica das super abundantes fontes de água doce localizadas em nosso continente, e passaremos a compreender melhor a razão pela qual os olhos do mundo cada vez mais vão se voltando para a exploração de ambos recursos em nosso continente.
FONTES DE LÍTIO E A EXPLORAÇÃO DE RECURSOS NATURAIS NA AMÉRICA LATINA











O fato do lítio ser um mineral que se concentra em região de salares, faz com que países como Bolívia (Uyuni), Chile (Atacama) e Argentina (Hombre Muerto) estejam situados entre os maiores detentores mundiais de reservas deste recurso. Se considerarmos somente a Bolívia, onde está localizado o Salar de Uyuni, veremos que aproximadamente 29% de toda a reserva mundial de lítio está concentrado nesta região, segundo tabela da United States Geological SurveySaindo da escala nacional para olhar os números continentais, as reservas sul americanas são mais expressivas e atingem um montante de 20,6 milhões de toneladas, ou 62,6% do total.
Historicamente, em raríssimas ocasiões a exploração de recursos naturais na América Latina por potências estrangeiras beneficiou as populações locais de onde tais recursos eram extraídos. Foi assim durante os mais de três séculos em que a região foi colonizada por portugueses e espanhóis, que inundaram a Europa com o ouro e a prata extraído de suas colônias americanas. Nesse sentido, em matéria publicada na Piaui 45, o escritor Lawrence Wright trouxe o precioso exemplo de Potosí (atualmente na Bolívia),  que em 1611 era uma das maiores cidades do mundo, com 180 mil habitantes, de onde se extraíam enormes riquezas.
“No sul da Bolívia, há uma montanha chamada Cerro Rico. É uma rocha pálida e calva, riscada por caminhos de terra que se entrecruzam encosta acima como cadarços de sapato. Mais de 4 mil túneis de mina escavaram a tal ponto o interior da montanha que ela corre o risco de desabar. A base é rodeada de casebres que se espalham até a velha cidade de Potosí, um Patrimônio da Humanidade. Evo Morales, o presidente da Bolívia, disse-me há pouco tempo que, para ele e seus compatriotas, Potosí é “um símbolo de pilhagem, de exploração, de humilhação. […] De meados do século xvi a meados do xvii, metade da prata extraída no Novo Mundo vinha de Cerro Rico. Carlos Mesa, o historiador que ocupou a presidência da Bolívia de 2003 a 2005, contou-me que, “por todo o império espanhol dizia-se ‘Isto vale uma Potosí’, quando se falava de sorte ou riqueza”. Hoje Potosí é um dos lugares mais pobres daquele que é há muito tempo um dos países mais pobres da América do Sul.
O cenário pouco se alterou nos quase dois séculos que se passaram desde o processo de independência que acabou dando origem às muitas nações soberanas da América do Sul. Neste período pós-independência um bom exemplo de como a exploração de recursos naturais na América Latina por potências estrangeiras não só não beneficiou as populações locais, mas ainda por cima levou à morte milhares de pessoas e causou enormes prejuízos aos países envolvidos, foi a Guerra do Pacífico (1879-1883), também conhecida como Guerra do Salitre.
De modo bastante resumido, a origem do conflito está na disputa territorial entre Chile e Bolívia por uma região riquíssima em depósito de nitratos (guano e salitre), naquela época muito valorizados no mercado mundial para a produção de fertilizantes e explosivos (já enxergam a semelhança com as reservas de lítio?). Embora a área em disputa fosse uma região desértica, localizada no famoso Atacama, os depósitos de nitrato existentes no que então era a costa boliviana do Oceano Pacífico já estavam sendo explorados por empresas chilenas de capitais britânicos, tal como a Antofagasta Nitrate & Railway Company. O governo boliviano decidiu sobretaxar as empresas chilenas, que por sua vez não aceitavam pagar os impostos. A tensão diplomática entre os países foi aumentando cada vez mais, até que em 1879 duzentos soldados chilenos invadiram a cidade portuária de Antofagasta e, em 1 de abril daquele ano, a Bolívia declararia guerra ao Chile. O Peru tinha seus próprios interesses na região e acaba se aliando à Bolívia sob a alegação de um Tratado de Defesa que havia sido celebrado anos antes, em 1873.
Mapa da região em conflito antes da Guerra do Pacífico.Fonte: Wikimedia Commons
A guerra acaba se desenrolando por alguns anos e, ao final, o Chile sai como grande vencedor do conflito. Em consequencia dessa guerra, o Peru perdeu uma porção de território que se estende até a cidade de Arica; e a Bolívia, junto com o porto de Antofagasta, perdeu o acesso soberano ao Oceano Pacífico. O Chile, por sua vez, além dos depósitos de nitrato que deram origem à guerra, acabou se beneficiando de descobertas posteriores de grandes jazidas de cobre localizadas justamente nessa região conquistada pelo Chile e, mais recentemente, de suas grandes reservas de Lítio.
NACIONALIZAÇÕES DE COMPANHIAS ESTRANGEIRAS
O histórico de exploração dos recursos naturais na América do Sul por empresas estrangeiras continuou sem produzir grandes benefícios às comunidades locais ao longo de praticamente todo o século XX. Na Bolívia, por exemplo, Lawrence Wright informa, na já citada matéria da Revista Piauí, que no ano de 1990, “o então presidente da Bolívia, Jaime Paz Zamora, concordou a princípio com um contrato plurianual com a Lithium Corporation of America (hoje fmc Corporation). O contrato permitiria à empresa extrair todo o lítio que pudesse, destinando à Bolívia apenas 8% dos lucros”. O contrato só não foi adiante, como conta Wright, porque muitos bolivianos se indignaram com o negócio e os camponeses iniciaram uma campanha contra o acordo, fazendo com que a Lithium Corporation desistisse do negócio na Bolívia e transferisse suas operações para a Argentina.
Contudo, na primeira década do século XXI, algumas nações começaram a rever os antigos contratos de exploração de recursos naturais com companhias estrangeiras instaladas em seus territórios. Na Venezuela, por exemplo, após a ascensão de Hugo Chávez à presidência (1999), os contratos das grandes companhias de petróleo instaladas naquele país foram revistos em 2005, a partir de uma nova legislação de hidrocarbonetos que havia sido adotada em 2001.
Presidente da Bolívia, Evo Morales










Na Bolívia, após a eleição de Evo Morales à presidência, o governo promoveu a nacionalização da extração de recursos minerais em todo o país. Assim, para que empresas estrangeiras possam extrair lítio de reservas bolivianas, a nova legislação estabelece que o Estado seja sócio majoritário das companhias interessadas, de modo que este não tenha que abrir mão de sua soberania nacional e, ainda, através da cobrança de royalties e de imposto sobre os lucros, que se possa fomentar o desenvolvimento local das comunidades de onde o lítio será extraído.
Se, a longo prazo, a nova legislação boliviana poderia trazer prosperidade e desenvolvimento à sua população, o que acabou ocorrendo foi que, em uma repetição do que se passou na década de 1990, ela acabou afugentando o capital estrangeiro que, uma vez mais, preferiu as melhores oportunidades de exploração oferecidas pelas grandes reservas de lítio localizadas nos vizinhos Chile e Argentina, onde a legislação é mais favorável às empresas estrangeiras, impondo menos exigências quanto ao destino dos lucros obtidos com a exploração do lítio para a população local.
Nessa guerra da concorrência pela exploração do lítio há um outro fator importante, que é o não alinhamento político da Bolívia com os interesses das grandes potências do ocidente, nomeadamente os Estados Unidos. Muito embora a tabela apresentada pela United States Geological Survey informe que as reservas de lítio da Bolívia estejam por volta de nove milhões e meio de toneladas, a Direção Nacional de Recursos Evaporíticos da Bolívia, por sua vez, estimou em janeiro deste ano que o total dessas reservas localizadas no Salar de Uyuni estão estimadas, quando pouco, em dezoito milhões de toneladas. Como destaca Joel S. Padrón em seu artigo:
“Washington e outros centros de poder e propaganda mundial têm promovido ao Chile como o grande provedor de Lítio para o mundo, destacando sua legislação neoliberal mineira e o rígido alinhamento dos sucessivos governos do sul com os interesses estadunidenses na região”. A estratégia adotada por Washington é a de exaltar o Chile para desqualificar os esforços da Bolívia para tentar explorar sua riqueza litífera, processando-a em seu próprio território e beneficiando sua população. O objetivo é diminuir a importância dos depósitos bolivianos para debilitar sua capacidade de negociação frente às empresas e países com os quais o governo de Evo Morales negocia a industrialização do Lítio em seu próprio país”.
Do outro lado desta disputa, na Argentina, vemos pela reportagem de César Felício, veiculada no jornal Valor Econômico, que os detentores da quarta maior produção mundial de lítio também está desenvolvendo um programa para industrializar o metal dentro do próprio país e que a tendência é de crescimento da extração graças ao investimento das montadoras japonesas que não se entusiasmaram com o modelo de sociedade proposto pelo governo boliviano de Evo Morales. Assim, na Argentina, a Toyota se associou à australianaOrocobre para extrair lítio da área de Cachauri, entre as Províncias de Jujuy e Salta e a Mitsubishi atua com a canadense Lithium Americas na área de Olaroz, em Jujuy.
O governo argentino, interessado no investimento das empresas estrangeiras no país, tem promovido o avanço cada vez maior dos capitais de mineradoras estrangeiras para explorar suas enormes reservas de lítio. Apesar disso, tal como já havia ocorrido na Bolívia na década de 1990, é a população diretamente afetada pela ação dessas mineradoras no interior do país que impõem as maiores resistências ao projeto. Segundo a reportagem de Felício, 32 comunidades indígenas organizadas pedem pelo fim dos projetos e chegaram até mesmo, no ano passado, a bloquear as estradas para Salta e Jujuy. O centro da questão é o uso dos recursos hídricos utilizados para a purificação do minério em uma região árida, já que ambas Províncias argentinas estão muito próximas ao deserto de Atacama.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Indubitavelmente, as próximas décadas reservam a América do Sul o protagonismo no cenário geopolítico energético mundial. Seja com as novas tecnologias à base de lítio (Bolívia, Chile e Argentina), ou com as tradicionais tecnologias como o petróleo (Venezuela e Brasil) e os minerais nucleares (Brasil e Argentina). A questão que norteou a construção desse post foi: a América do Sul irá, uma vez mais, tendo em seu solo a fonte dos recursos que moverá o mundo, seguir com sua tradição secular de ser pilhada para servir de base para a riqueza de nações em outros continentes? Qual a melhor forma de explorar estes recursos para garantir a riqueza e bem estar da população e não apenas de quem explora estes recursos? O que queremos ser no futuro?
Não encontrei melhor forma de responder estas perguntas, do que através de um diálogo do presidente boliviano Evo Morales com o escritor Lawrence Wright:
“Quando o projeto-piloto do Salar começou [projeto de exploração de lítio levado adiante pelo próprio governo boliviano], muitas empresas manifestaram interesse em extrair o metal das planícies salgadas. Autoridades bolivianas tiveram conversas preliminares com representantes da LG, o conglomerado coreano que está construindo a bateria do Volt para a GM. Em 2006, Evo Morales visitou a França, onde o industrial Vincent Bolloré o levou para dar um passeio num BlueCar – um pequeno carro elétrico, em forma de bolha, que o bilionário planeja produzir em parceria com a estatal francesa de energia. Segundo Morales, Bolloré teria dito: “O senhor é quem controla a matéria-prima chave para os séculos xxi e xxii. A Bolívia é a Arábia Saudita.” Mas Morales não quer que seu país se torne a Arábia Saudita. Ele quer que a Bolívia se transforme na França, numa potência industrial.
Perguntei ao presidente de que maneira, dado o estado miserável da infraestrutura boliviana, tal transformação poderia ocorrer. “Organizamos uma comissão científica no Ministério das Minas para dirigir as pesquisas”, respondeu. A comissão reunirá “estrangeiros e bolivianos” para determinar a melhor maneira de extrair os recursos naturais e começar a industrialização. Morales disse que esperava ver a Bolívia fabricando baterias de íons de lítio até o final deste ano [2010]. A produção de automóveis, acrescentou em tom confidencial, ainda precisa esperar “mais cinco ou seis anos.”
Não há dúvidas que Evo Morales se mostra um tanto utópico ao revelar o sonho de ver a Bolívia produzindo, em um intervalo de poucos anos, não só as baterias de lítio que moverão os carros do futuro, mas os próprios carros em si. Contudo, o lugar da Bolívia no cenário da exploração do mineral que poderá mover o mundo nos próximos anos está bem claro em sua cabeça e, neste cenário, é a Bolívia e não a Europa ou os Estados Unidos quem está no centro dos beneficiários dos recursos disponíveis em seu próprio solo.
Infelizmente para ele, as nações vizinhas não compartilham com sua ideia e acabam minando as oportunidades de desenvolvimento sustentável da Bolívia na região, ao oferecer grandes quantidades de lítio às mineradoras estrangeiras a um custo bem mais baixo do que o boliviano, uma vez que a base do modelo de exploração do mineral que vigora no Chile e na Argentina, segue os velhos padrões já bastante conhecidos do capitalismo, no qual os lucros se acumulam nas mãos dos detentores do capital do outro lado do oceano, enquanto a região explorada é degradada, não se desenvolve e seus trabalhadores vivem na miséria absoluta.
REPORTAGENS MENCIONADAS NO POST
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

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