Jorge Antunes rumo ao Senado
O pioneiro da música eletrônica fala sobre seu projeto político-cultural e suas preocupações musicais atuais.
Por Clóvis Marques
Jorge Antunes é quase uma lenda viva da música brasileira culta. Aos 68 anos, o pioneiro da música eletrônica e incansável militante das causas sociais candidata-se ao Senado pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), apresentando entre outras propostas as de extinção do próprio Senado, para o estabelecimento do unicameralismo no país, debate sobre a obrigatoriedade do voto e uma série de ações de democratização da cultura e irradiação da experiência musical.Nascido em 1942 em ambiente operário, no bairro carioca de Santo Cristo, formado em violino com Carlos de Almeida na UFRJ, aluno de Henrique Morelenbaum, Eleazar de Carvalho, José Siqueira e César Guerra-Peixe, já em 1961 Antunes começou a se interessar pela música eletrônica, compondo no ano seguinte a primeira obra exclusivamente com sons eletrônicos criada no Brasil, sua Valsa sideral. Pesquisador de correspondências entre a audição e os outros sentidos, doutor em música e professor titular da Universidade de Brasília, participante de movimentos de vanguarda, ele conviveu e trabalhou nas Américas e na Europa com sumidades como Alberto Ginastera, Luis de Pablo, Umberto Eco, Pierre Schaeffer, Iannis Xenakis.
Com vasta circulação pessoal e de sua obra em países europeus, Antunes tem entre suas criações mais famosas – muitas vezes associadas à ação política – a Sinfonia das diretas e um polêmico Hino Nacional Alternativo nos anos 80, a Cantata dos Dez Povos e a Sinfonia em cinco movimentos, no quinto centenário do Brasil, e a ópera Olga, sobre Olga Benario, estreada no Teatro Municipal de São Paulo em 2006. Membro da Academia Brasileira de Música, Chevalier des Arts et des Lettres pelo Ministério da Cultura da França, com a biografia Jorge Antunes, uma trajetória de arte e política publicada em 2003 por Gerson Valle (Editora Sistrum), Antunes é o contrário de uma glória acomodada, com sua cabeça saudavelmente inconformista e seu talento para mostrar os reis nus, e fala aqui a Opinião e Notícia sobre seu projeto político-cultural e sua preocupações musicais atuais.
Que pensar da relação dos públicos brasileiros com a música dita “de concerto”?
Jorge Antunes: Os públicos brasileiros são os pobres cidadãos brasileiros que, em sua esmagadora maioria, não têm acesso à educação de qualidade. Aos eternos donos do poder, ao empresariado, aos concessionários de emissoras de rádio e TV, aos banqueiros, que querem consumidores de supérfluos e de indústria cultural descartável e efêmera, não interessa termos um povo com acesso à educação de qualidade. Para essas classes, que gostaríamos de derrubar, é perigoso termos um povo que saiba ler, que saiba interpretar um texto e que tenha boa educação artístico-cultural. Quando Lula afirma que tirou milhões de brasileiros da linha da pobreza, seria necessário denunciar que simplesmente foram criados milhões de novos consumidores de supérfluos e de produtos culturais podres e empobrecedores do intelecto. Isso não teria acontecido se, junto com a “bolsa-família”, tivesse sido oferecida também educação de qualidade. Quando o povo tem acesso à música dita “de concerto”, a fruição artística corre solta, maravilhosa: o povo gosta. Mas ninguém pode gostar de uma coisa que não conhece.
Possível definir hoje sua própria busca musical?
J. A.: Uso como lema uma frase maravilhosa que Mário de Andrade escreveu no prefácio de seu livro Losango cáqui: “Levo a vida a procurar. Tomara eu nunca ache, pois seria a morte em vida.”
Há alguns anos descobri que o pensamento ecológico podia e devia, pelo bem da comunicação, ser aplicado à música. Passei então a fazer uso da série harmônica como material e como motivação. A série harmônica é fenômeno natural que liga cultura com natureza. Hoje, além dessa postura, busco os grandes achados do passado que se encontram escondidos, porque creio que a nova vanguarda pode ser construída com esse tesouro guardado em baú. Os arrojos revolucionários de Carlo Gesualdo, por exemplo, me despertam muito interesse no momento. Acho que vivemos uma fase de pré-Renascimento. Portanto, devemos nos espelhar na primeira metade do século XVI.
Outra faceta de minha busca atual é a aproximação e a aliança entre o saber da academia e o saber popular. Esses dois extremos discriminados podem ser aliados políticos e estéticos: a erudição e o folclore.
E sua proposta de ação política no Senado: como resumi-la?
J. A.: Minha principal proposta é a criação de um Sistema Nacional de Orquestras Juvenis, nos moldes da Venezuela. Só com novas gerações bem formadas é que poderemos contar com a construção de uma nova sociedade mais justa, solidária e fraterna. Tal como na Venezuela, o Sistema Nacional de Orquestras seria ampliado ao Sistema Prisional, para humanizar e profissionalizar futuros ex-detentos. Mas sou um defensor do Congresso Unicameral. A mudança radical na estrutura do Estado, entretanto e evidentemente, só poderá acontecer com uma nova Assembleia Constituinte. Lutarei, eleito ou não, para que isso aconteça dentro de uma década.
Por que o unicameralismo no Brasil?
J. A.: Poucos sabem que a palavra “senado” tem o mesmo radical das palavras: “senil”, “senilidade” e “sênior”. O Senado, no Brasil, nunca foi e nunca será semelhante ao Senado romano: um conselho de anciões, sábios, experientes, honestos. Ao contrário, foi, é e sempre será uma espécie de valhacouto de oligarcas, canalhas, carreiristas e oportunistas onde uma minoria massacrada tem assento. Estou tentando integrar essa minoria para, lá dentro, cuidar da implosão daquela Casa. O sistema bicameral foi inventado antes da criação de partidos políticos. A função revisora do Senado só serve para atravancar o avanço, o progresso e a vontade popular. Por outro lado, por pretender representar a Federação, a quantidade de representantes por estado é estarrecedora: o minúsculo Sergipe e a minúscula Alagoas têm, cada um, três senadores; Rio de Janeiro e São Paulo também têm três senadores cada.
Como concretizar suas propostas de formação dos corpos estáveis do Teatro Nacional de Brasília, aumento do efetivo da orquestra e criação de um coro lírico e de um corpo de baile?
J. A.: Meu partido, o PSOL, luta contra o capitalismo e contra o neoliberalismo. Foi a implantação da política neoliberal no Brasil que tratou de, cada vez mais, precarizar e tentar acabar com os quadros de servidores públicos. É preciso promover concursos públicos para criar ou completar os corpos estáveis dos teatros ligados ao poder público. Para tanto temos que lutar por mais verbas para a cultura e, óbvio, para a educação.
J. A.: A queda do pianista norte-americano que regia a orquestra, genro da deputada corrupta cassada, acendeu uma luz de esperança na comunidade cultural do DF. A atual situação, portanto, é de compasso de espera. Só a partir de 1º de janeiro de 2011, quando assumir o novo governo, é que poderemos ver definido o rumo que será tomado.
Que pensa da maneira como está sendo encaminhada a retomada das práticas musicais no ensino básico no Brasil?
J. A.: O ensino da música e a nova implantação da educação musical nas escolas são acontecimentos que nos levam à preocupação, à expectativa e à luta. Inocentes úteis da música popular, que têm suas carreiras dependentes das multinacionais do disco, estão animadinhos, liderando ações, passando a frente das lideranças da música erudita e da música não comercial. Tribunos desavisados, tais como o correligionário Chico de Alencar, têm aberto espaço às intentonas de artistas populares que querem tomar as rédeas da educação musical nas escolas. Assim, corremos o risco de ver implantada na escola aquela mesma deseducação implantada pelos meios de comunicação de massa. A carência de número suficiente de professores com formação específica na área agrava o problema. Os músicos eruditos precisam ficar atentos a esse perigo e pressionar seus órgãos representativos e suas organizações para enfrentarmos o problema.
Como levar também prática musical, como propõe em sua plataforma, ao ensino médio?
J. A.: Alguns colegas começaram a festejar e alardear a “volta do ensino musical nas escolas”. Não é possível haver volta de algo que nunca veio ou existiu. Nunca houve bom ensino musical ou boa educação musical nas escolas. Tomara agora possa haver. No tempo de Villa-Lobos – é preciso não esquecer –, o que houve foi a prática exacerbada do civismo, por meio da música. As classes de canto orfeônico só serviam para encher o saco da estudantada, e para farra e chacota. Raros colégios conseguiam criar bons orfeões e boas bandas de música.
Na escola é preciso que seja oferecido um panorama vasto e completo da música, sua história, suas linguagens, seus gêneros, suas vertentes, seus estilos, para que o jovem tenha condição de, se quiser, escolher suas preferências. Nem todos serão músicos profissionais. Mas passaremos a ter profissionais mais sensíveis e mais humanos na medicina, na advocacia, no serviço público, no transporte, no magistério etc.
Dê alguns exemplos do que poderá fazer no Senado pela democratização da cultura.
J. A.: Muitos pensam que democratizar a cultura é simplesmente facilitar o acesso do público aos espetáculos. Nada disso. É preciso acabar com esta dicotomia: de um lado os artistas iluminados, do outro lado o público consumidor.
Existem pedreiros que pintam belos quadros nos domingos, obras de arte que ninguém conhece. Existem joalheiros e padeiros que escrevem belos poemas, e que ninguém conhece. É preciso criar mecanismos e leis que permitam a descoberta de novos talentos e de velhos encobertos talentos.
É preciso aumentar a percentagem destinada à cultura no orçamento geral da União. Um mínimo de 4% tem que ser a meta. É inadmissível não termos bibliotecas em todos os municípios brasileiros. Chega a ser indecente e vergonhosa a falta de teatros, cinemas, bibliotecas e centros culturais.
Mecanismos de apoio aos agrupamentos e conjuntos musicais precisam ser criados e implementados. O Sistema Nacional de Orquestra Juvenis é um desses mecanismos. Os bancos estatais têm que criar microcréditos para artistas comprarem boas ferramentas de trabalho: instrumentos musicais, computadores, programas de edição, tintas, enciclopédias, locação de estúdios e ateliers, equipamentos etc.
As orquestras devem ser protegidas com uma legislação específica, com verbas do orçamento da União, mas com um vínculo a percentagem mínima de divulgação da música brasileira. Assim, poderemos contar com encomendas permanentes aos compositores e com a prática sistemática do trabalho com compositores-residentes. A mesma política deve ser aplicada às outras áreas artísticas e culturais. Leis devem ser criadas para que grandes edificações e grandes empreendimentos imobiliários sejam obrigados a encomendar esculturas, murais ou mosaicos aos artistas plásticos. Nova legislação deve ser criada para aumentar o mercado de trabalho dos profissionais do circo, da literatura, dos grupos de arte popular e folclórica, do cinema etc.
Fonte:
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http://opiniaoenoticia.com.br/cultura/jorge-antunes-rumo-ao-senado/2/
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