domingo, 10 de julho de 2011

A PSICOFÍSICA DE GUSTAV FECHNER

MEMORANDUM


O lugar da psicofísica de Gustav Fechner
na história da psicologia


 The place Gustav Fechner’s psychophysics in the history of psychology


Arthur Arruda Leal Ferreira
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Brasil

Resumo

O objetivo deste texto é mostrar a importância do trabalho de Gustav Fechner à luz da problemática do sujeito do conhecimento introduzida pela filosofia moderna. Questão do conhecimento iniciada em Descartes, buscando no Sujeito o ponto de partida de toda verdade demonstrável, e que gerará como contraparte o estudo dos riscos das ilusões a serem produzidas neste Sujeito. 


Esta tarefa caberá a psicologia, que desde o século XVIII tentará se estabelecer como parceira desta tarefa gnosiológica. Tarefa que será condenada pelos próprios filósofos como Imannuel Kant, decretando a a-cientificidade deste saber. Aqui será vista a importância do trabalho de Fechner: como através de seu trabalho empírico e de sua famosa equação, ele dará subsídio para uma psicologia verdadeiramente científica a ser constituída no final do século XIX.

Palavras-chave: história da psicologia; teoria do conhecimento; psicofísica.

Introdução

Quando abordamos o trabalho de Gustav Fechner (1801-1887), podemos seguir três trilhas. Em primeiro lugar haveria uma trilha indicada pelo conjunto dos seus textos, caracterizando um trabalho mais ou menos sistemático na direção do que ele designou por “visão diurna” ou panpsiquismo. 


Por panpsiquismo entendia-se
um conjunto de pensamentos e reflexões 
sobre o mundo enquanto composto por uma hierarquia
de seres em que o espírito e o corpo seriam 
coextensivos desde as esferas mais elementares.

O trabalho psicofísico de Fechner
não seria uma exceção dentro desta visão metafísica, 
mas a própria tentativa de lhe estabelecer
a sua prova e o seu rigor. 

Uma segunda trilha é operada por alguns historiadores da psicologia, como Edwin G. Boring (1886-1968), que produzem a cisão entre a doutrina panpsiquista, o que para este hitoriador era o lazer de um livre pensador, e o seu trabalho psicofísico, enquanto um rigoroso esforço de Fechner em estabelecer uma ciência psicológica (Boring, 1950/1979). 

Ainda que Fechner não se denominasse psicólogo, tais historiadores consideram o surgimento experimental desta ciência no trabalho deste psicofísico (cf. Idem, p. 297). Mais especificamente na famosa intuição de Fechner de 22 de Outubro de 1850, que, segundo Boring (citado por Saul Rosenzweig, 1987), deu ensejo ao seu trabalho psicofísico.

De modo mais conciso, o trabalho  psicofísico de Fechner se produz como a reunião de uma doutrina (a do Panpsiquismo), uma metodologia experimental (correlacionando as variações dos estímulos e das sensações percebidas) e um conjunto de leis matemáticas (destacando-se a famosa lei Weber-Fechner). Destes três fatores os dois últimos aspectos são considerados relevantes para o surgimento da psicologia. Esta cisão, que se opera no sentido contrário das intenções de Fechner, tem como finalidade constituir uma história triunfal da psicologia, escandindo o científico do seu “resto metafísico”.

Contudo, haveria uma terceira trilha: em que o conjunto dos trabalhos de Fechner é confrontado com um conjunto de questões presentes em meados do século XIX, notadamente com relação ao reconhecimento da psicologia enquanto saber científico. 


Pensar que o surgimento de uma ciência se restringe ao estabelecimento de procedimentos experimentais e de uma formalização matemática, é esquecer todo um campo de problematizações em que os instrumentos criados por Fechner puderam superar alguns obstáculos e responder a estas questões, notadamente as colocadas pela filosofia crítica de Imannuel Kant (1724-1804). É por esta trilha que este artigo seguirá. 

Antes de observar como esta resposta é possível, vejamos como este campo problemático que leva ao surgimento da psicologia surge no seio da filosofia moderna, de René Descartes (1596-1650) a Imannuel Kant e Augusto Comte (1798-1857). E finalmente, como os fisiólogos do século XIX, como Johannes Müller (1801-1858) e Ferdinand von Helmholtz (1795-1878), irão dar subsídios para resolver estas questões junto com a psicofísica de Fechner.

Em suma: o que estes últimos autores irão proceder é uma suspensão das críticas kanteanas e comteanas quanto à possibilidade de uma Psicologia Científica. É neste circuito problemático que se pretende enxergar a importância da psicofísica de Fechner para a constituição de uma Ciência Psicológica, mais do que qualquer contribuição metodológica ou matemática. Passemos à montagem desta história e de seus personagens.

A filosofia moderna como problematização do sujeito

Antônio Penna (n.1917), um eminente historiador da psicologia brasileiro, considera o trabalho de Descartes como indutor, através do seu dualismo metafísico entre uma substância extensa (o corpo) e outra inextensa (a alma), o dualismo de uma psicologia que se divide entre comportamentalista e mentalista. 


Seguindo os veios da substância extensa estaria uma psicologia comportamental fundada por John Watson (1878-1958) que, apoiada na doutrina dos “animais-máquina” de Descartes e na garantia darwinista de que o homem é um animal, concluiria que o ser humano nada mais é do que uma soma de reflexos. Por outro lado, nas trilhas da substância inextensa, teria se desenvolvido uma psicologia cognitivista, cujo maior expoente é Noam Chomsky (n.1928), a qual o corpo é posto entre parêntesis, a fim de dar conta das competências do pensamento humano às quais ele apenas executa em mero desempenho mecânico (cf. Penna, 1981, p.81).

Contudo, mais do que a delimitação do dualismo metafísico que habita a Ciência Psicológica, balizando a opção das relações entre mente e corpo, pode ser visto em Descartes a colocação de uma nova problemática, ou ao menos, um novo ponto de partida para o pensamento ocidental. No século XVI, o aristotelismo temperado com cristianismo, próprio de São Tomás de Aquino (1225-1274) dava provas de esgotamento, favorecendo todo um pensamento cético como o de Michel de Montaigne (1533-1595). 


Nutrindo-se da dúvida cética, a certeza de que não há certezas, radicalizando-a, tornando-a hiperbólica, e pondo-a sob o julgo de um suposto gênio maligno apto a fazer com que nos equivoquemos com tudo, é que Descartes estabelecerá os primeiros pilares de um novo porto-seguro do pensamento:

Não há, pois, dúvida alguma que sou, se ele (o suposto Gênio Maligno) me engana; e, por mais que me engane,não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisso e ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que essa proposição eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio em meu espírito (Descartes, 1641/1972, p.100).


Essa intuição imediata do próprio eu pensante 
impõe um novo ponto de partida 
para a filosofia ocidental
 
não mais o Ser, as Essências ou Deus, mas o Espírito e o Sujeito, enquanto sedes da verdade, mesmo que em Descartes as idéias claras e distintas que instruem nossa razão sejam de origem divina. É neste ponto que todo o nosso pensamento se torna gnosiológico: para saber do tema da verdade era necessário saber da verdade do sujeito.

Como a psicologia se insere neste projeto? Não apenas pelo fato do Sujeito e do Espírito terem sido estipulados como os novos alvos do pensamento, que por transformações sucessivas viriam a dar na mente, no psiquismo ou no complemento destes, o comportamento, mas principalmente ao se por o problema do conhecimento, como condição de acesso à verdade. 


Desde o tempo de Descartes, 
debatem racionalistas e empiristas 
sobre a via mais segura para atingir a verdade 
através do Espírito: razão ou sentidos? 

Discussão esta que se rebate nos dias de hoje, no interior da epistemologia entre racionalistas aplicados, como Gaston Bachelard (1884-1962) e Georges Canguilhem (1904-1991), e neopositivistas, como Rudolf Carnap (1891-1970) e Moritz Schlick (1882-1936), e na psicologia entre behavioristas e cognitivistas. Contudo, a questão gnosiológica que nutre o surgimento da psicologia é complementar à da busca da verdade no sujeito: trata-se da questão do erro. É neste aspecto que Aron Gurwitsch (1901-1973) verá a origem da psicologia na questão do erro, como uma desculpa do espírito à Razão identificada com o ideário mecanicista da ciência iniciante no século XVII:

O que caracteriza essencialmente a física, tal como nós a conhecemos é a separação definitiva que ela estabelece entre a realidade verdadeira e as aparências “subjetivas”. 


O mundo não é como ele parece ser,
tal como se oferece à percepção ordinária, 
na verdade ele é como a ciência física
consegue construí-lo... 

Segundo as ciências físicas, eis todo o aspecto fenomenal do mundo: as qualidades consideradas secundárias, os caracteres de valor de toda as espécies, os momentos teleológicos que ele parece conter, etc., não constituem nada de real; com estes fatos estamos na presença de uma contribuição que se deve à subjetividade humana, e que o homem, graças a sua constituição psico-fisiológica, projeta sobre um universo que é de outra natureza...

A psicologia é colocada diante da tarefa de mostrar, como, por outro lado, sendo dada a realidade objetiva e, por outro lado, a constituição psico-fisiológica do homem, o universo pode assumir este aspecto fenomenal e “subjetivo”, que uma tendência natural nos leva a considerar como a própria realidade (Gurwitsch, 1935, p.107).

Esta problemática do Espírito foi detectada por Galileu e Descartes na divisão entre as qualidades primárias e secundárias. Pensar no Espírito como ponto da verdade implica como tarefa complementar pensar o que nele conduz ao equívoco. Se há algo em Descartes que inspira o surgimento da Psicologia no século XIX não é o Eu pensante ou o Corpo mecânico, mas as Paixões, enquanto ponto do Espírito em que as duas substâncias se misturam, especialmente através dos sentidos, produzindo o erro.

Qual é o caminho de acesso
à verdade através do Espírito?

A ordem das Razões 
desviando-se dos equívocos dos sentidos,
como sugerem os racionalistas?

Ou a impressão dos sentidos,
a partir da qual a nossa razão nada mais seria 
do que um hábito, uma ilusão, 
conforme os empiristas? 

A coexistência destas duas vias de mão-dupla da verdade e do erro irá inspirar um discípulo de Gottfried Leibniz (1646-1716), Christian Wolff  (1679-1754) a produzir em meados do século XVIII, uma nova análise do Espírito, que chamará de Psychologia Rationalis, ao estudar a alma imortal como substância em 1734, e Empírica, ao estudar o fluxo de nossas vivências nesta alma em 1732. 

Com uma novidade: não é mais o conhecimento que está em questão, mas a possibilidade de se descrever objetivamente o espírito. É neste aspecto que Georges Canguilhem criticará esta suposta filiação cartesiana desta psicologia filosófica ao afirmar que:

Toda a história desta psicologia pode se escrever como a dos contra-sentidos dos quais as Meditações (Metafísicas) foram a ocasião sem ter a sua responsabilidade... As Meditações são chamadas por Descartes Metafísicas porque elas pretendem atingir diretamente a natureza e a essência do Eu penso, na apreensão imediata de sua existência. A meditação cartesiana não é uma confidência pessoal (Canguilhem, 1956/1972, p.111-112).

E, mais adiante:

É que se desconheceu o ensinamento de Descartes ao mesmo tempo constituindo, contra ele, uma psicologia empírica como história natural do eu – de Locke a Ribot, através de Condillac, os Ideólogos franceses e os Utilitaristas ingleses – e constituindo, segundo ele, acreditava-se, uma psicologia racional fundada numa intuição de um Eu substancial (Idem, p. 113).

Imannuel Kant será o formulador da mais derradeira crítica a esta psicologia mal apoiada no pensamento cartesiano. Inicialmente, ao propor que o conhecimento nada mais seria do que a reunião entre o empírico e o racional, dada na síntese a priori entre o diverso sensível e as formas e categorias do Sujeito transcendental, e superando as aporias da gnosiologia moderna entre empiristas e racionalistas.


Neste ponto, a própria pedra fundamental do pensamento cartesiano é problematizada: a intuição intelectual deste Eu penso, que seria a primeira evidência dentro de uma ordem das razões, não é mais possível, uma vez que o próprio Eu penso não é passível de uma intuição sensível. 

Ele não se encontra como um objeto no tempo e no espaço, mas acompanha todas as representações produzidas pelo sujeito. Se a psicologia filosófica é um equívoco ao tomar a evidência do Cogito como uma confidência pessoal, este engano será duplicado, ao se permitir que o Eu Penso seja abordado a partir de uma intuição intelectual. 

Em função da revolução copernicana da gnosiologia kantiana é que as psicologias racional e empírica de Wolff serão criticadas, por não poderem dar conta como uma ciência legítima do Sujeito transcendental. Examinemos as críticas e os vetos a essas psicologias.

A Psychologia Rationalis será alvo da Crítica da Razão Pura kantiana, mais especificamente da sua Dialética Transcendental, onde são examinadas as Idéias de Razão (como a de alma imortal), enquanto produtos de uma busca em uma série conceitual de um termo incondicionado, que é tomado inadequadamente como uma coisa em si. 


A tarefa da Dialética kantiana é, pois, demonstrar os paralogismos, ou sofismas, presentes numa razão desenfreada e sem limite, como a presente nas metafísicas, e, em especial, a de Wolff. 

O argumento básico
contra a Psicologia Racional é que o suposto
conhecimento de uma alma imortal 
está assentado na experiência de um eu,

ou o sentido interno fenomenal, que nada mais é do que uma intuição empírica, que diz respeito ao próprio tempo da consciência, de resto, bem diferente do Eu penso. Este seria uma pura função de organização da experiência e sujeito de todo julgamento de apercepção, sobre o qual não poderia recair qualquer ciência, uma vez que ele é condição transcendental de toda ciência.

O erro da Psicologia Racional está em tomar este Eu penso, enquanto função transcendental do conhecimento com algo a ser vivenciado, como o eu empírico. Em outras palavras, seria confundir eu determinante com eu determinável; sujeito com objeto. Nas palavras de Kant:

De tudo isto se vê que a psicologia racional deve a sua origem a um simples mal entendido. A unidade da consciência, que serve de fundamento às categorias, é tomada aqui por uma intuição do sujeito enquanto objeto e, em seguida a ela aplicada a categoria de substância (1781/1994, p. 359-360).


Se o Eu penso da Psychologia Rationalis 
não é passível de se tornar objeto de uma ciência,
uma vez que condição de todas as ciências, 
resta o Eu empírico, 
tema da Psychologia Empirica.

Esta, inclusive estaria mais próxima do projeto que norteará o surgimento da Psicologia Experimental no século XIX, visando estudar as ilusões da experiência imediata. Mas, persiste a pergunta: caberia uma ciência aqui? A resposta de Kant (1786/1989) nos Princípios metafísicos da ciência da natureza é que a Psychologia Empirica não seria uma ciência nem impropriamente dita, como a química, que assim seria por não operar com relações matemáticas (ao menos em 1786). Passemos a palavra a Kant:

A psicologia empírica está mais distanciada que a química da classe da ciência da natureza propriamente dita, primeiro, porque a matemática não é aplicável aos fenômenos do sentido interno e a suas leis, pois teria que se ter em conta em tal caso somente a lei de continuidade no fluxo das mudanças do dito sentido interno. Mas, a ampliação do conhecimento assim obtido se relacionaria com o conhecimento obtido pela matemática dos corpos de maneira semelhante ao modo como se relaciona a doutrina das propriedades da linha reta com toda a geometria. Pois a pura intuição interna, na qual devem se constituir os fenômenos da alma é o tempo, mas este tem uma só dimensão.


A doutrina empírica da alma jamais poderá se aproximar da química como arte sistemática de análise, ou doutrina experimental, uma vez que nela, o múltiplo da observação interna está separado somente por uma simples divisão no pensamento, sem poder manter-se separado, e unificar-se de novo arbitrariamente; menos ainda poderá se submeter outro sujeito pensante a nossa busca, de tal modo que seja conforme a nossos propósitos, e inclusive a observação em si mesma altera e distorce o estado do objeto observado.

Por isso, a psicologia nunca pode ser mais do que uma doutrina histórica do sentido interno, e como tal, tão, tão sistemática quanto possível, uma simples descrição da alma, mas não uma ciência da alma, nem uma doutrina psicológica experimental (Kant, 1786/1989, p. 32-33).

Para Kant, segundo Canguilhem, não restaria à psicologia lugar senão na 


“Antropologia, 
como propedêutica de uma teoria da habilidade
e da prudência, coroada por uma teoria da sabedoria” 
(Canguilhem, 1956/1972, 

p.114). Resta dizer que as críticas de Kant a psicologia empírica encontraram eco no positivismo de Augusto Comte, que em seu Curso de Filosofia Positiva assim criticava o método da introspecção: 

“O indivíduo pensante não poderia se dividir em dois, um raciocinando, enquanto o outro o visse raciocinar. O órgão observado e o órgão observador, sendo, neste caso, idênticos, como poderia haver a observação?” 
 (Comte, 1830/1972, p. 20). 

Deve-se dizer que as críticas de Comte voltam-se aqui no século XIX contra outras psicologias filosóficas: a dos Ideólogos, a dos Ecléticos, e a da Escola Escocesa, conforme Lèvy-Brul (1913, citado por Penna 1990, p.19). Restam, contudo, os vetos propostos por Kant à psicologia empírica. Para se provar ciência ela terá que:

1)     Descobrir o seu elemento de modo similar à química, para com isto efetuar análises e sínteses;

2)   
  Facultar a este elemento um estudo de tal modo objetivo, em que sujeito e objeto não se misturem como na introspecção;

3)  
   Que se produza uma matematização mais avançada que geometria da linha reta, apta a dar conta das sucessões temporais do sentido interno.

E esta missão caberá aos fisiólogos do século XIX, e, em especial a Fechner.

A superação dos vetos kantianos:
fisiologia sensorial e psicofísica

O primeiro problema listado, a falta de um elemento objetivo, será suprido pela teoria das energias nervosas específicas de Johannes Müller, formulada explicitamente em seu Handbuch der Physiologie de 1826. Para este fisiólogo, cada via aferente possuiria uma energia nervosa específica que se traduziria em uma sensação específica de cada nervo. Assim, o nervo ótico excitado pela ação da retina, ou por forças mecânicas e químicas produzirá sempre imagens luminosas. 


O mesmo ocorreria com os demais sentidos. Seria uma espécie de kantismo fisiológico, em que o mundo percebido seria uma mera propriedade das nossas energias nervosas específicas (do que Galileu havia chamado de qualidades secundárias), estimuladas sempre por um fator físico qualquer, não importando a sua natureza. Trata-se de um elemento preciso, corporalmente situado como fenômeno, ao contrário das idéias e impressões descritas pelos empiristas, enquanto elementos arbitrários. 

É por tal razão que a sensação vai se oferecer como elemento para uma possível psicologia: ela ligaria o mundo físico que constantemente estimula os sentidos; o fisiológico, uma vez que as energias nervosas específicas estão ligadas aos nervos, e o psicológico, uma vez que a sensação seria a base de nossas representações. E quem desenvolverá este aspecto, junto com a solução do segundo problema kantiano será um discípulo de Müller, Hermann von Helmholtz

Helmholtz irá elaborar em 1860 uma teoria sobre o surgimento das representações psicológicas, ou das apercepções, que, no seu reverso, irá fomentar um novo método para estudo objetivo das sensações. A teoria proposta é a das inferências inconscientes, de claro cunho empirista, e o método, o da introspecção experimental, bem diferente, como veremos do produzido na psicologia filosófica. 


As nossas sensações seriam organizadas por experiências passadas, que seriam armazenadas como as premissas maiores de um silogismo, aptas a ordenar de modo inconsciente e rápido as premissas menores informadas pelos sentidos, produzindo como conclusão as nossas representações psicológicas. 

O modo de análise das sensações, a introspecção experimental, se processaria no inverso dessas sínteses inconscientes, visando neutralizar os efeitos dessa inferência silogística operada pela experiência passada. Para neutralizar esta síntese inconsciente, processa-se então uma análise consciente, em que os sujeitos dos experimentos são treinados para reconhecer o aspecto mais bruto e selvagem de nossa experiência. Como animais selvagens domesticados teriam que ser reeducados ao seu ambiente natural.

Este treinamento dos sujeitos, que faz com que este estudo não possa ser feito sobre crianças, primitivos, ou doentes mentais, visa o evitar o erro do estímulo, qual seja, a confusão do objeto percebido com os juízos inconscientes acumulados pela experiência passada.

Por isto, o estudo objetivo das sensações em um sujeito só poderá ser feito se este mesmo sujeito for também um fisiólogo, apto a distinguir o joio da experiência passada do trigo das sensações. Por todos estes cuidados metodológicos, em que a distância entre observador e observado se impõe, ainda que ocorra no mesmo sujeito, e na presença de um elemento objetivo é que o método introspectivo irá se distinguir da introspecção dos filósofos-psicólogos.


Restava ainda o problema da matematização, 
o terceiro colocado por Kant.

É aqui que entra a psicofísica de Fechner, delineada nos Elemente der Psychophysik de 1860. Pode-se dizer que ela também oferece uma resposta experimental ao segundo veto kantiano. Mas a sua principal conquista está em oferecer a qualquer estudo psicológico a possibilidade de desenvolver uma matemática mais avançada que a geometria de uma linha reta. 

Isto, através do estabelecimento da primeira lei matemática, batizada por ele Lei Weber-Fechner, em função do aproveitamento da equação desenvolvida por Ernst Weber (1795-1878) sobre a relação de proporcionalidade entre as diferenças apenas percebidas entre estímulos e os valores absolutos destes. Fechner, além de complexificar a equação, irá transformar as diferenças apenas percebidas em sensações, sugerindo a primeira medição psicológica.

Conclusão
Por se tratar da superação do último veto kantiano é que se pode dizer que o trabalho de Fechner representa o primeiro pilar de uma psicologia a nascer, e que as fundações deste pilar se encontram na intuição de Fechner de 22 de outubro de 1850, data que serve de marco para este encontro. Mas deve se lembrar que o valor deste trabalho está correlacionado ao poder de resposta que ele oferece a problemas filosóficos que se iniciam em Descartes e desembocam nas críticas kantianas.


É neste circuito gnosiológico que se faz a importância do trabalho de Fechner, pois ele abriu espaço para a primeira formulação científica da psicologia, superando os impasses da psicologia empírica de cunho metafísico, gerada na tentativa de também responder a estes mesmos problemas filosóficos. Por detrás do sonho de Fechner havia o sonho da psicologia de acordar do sono dogmático denunciado por Kant. 

O sonho de Fechner pode ter brevemente acordado a psicologia (ou ter feito sonhar que acordou) do sono dogmático, apesar da sua intenção ter sido mais nos acordar do sono materialista. Pois correlacionar o físico (estímulo) e o espiritual (sensação) para Fechner não visava provar uma psicologia matematizável, mas um duplo aspecto de uma mesma natureza extensível a todos os seres, o seu panpsiquismo. 

Contudo, a história da psicologia prossegue na proliferação de escolas e sistemas que se colocam como a quintessência da cientificidade na psicologia. Em função da proliferação destes mundos científicos possíveis é que se pode perguntar se os vetos kantianos, formulados no final do século XVIII não continuam a assombrar a psicologia. Novos Kants e novos Fechners não apenas serão recorrentes, mas igualmente bem vindos.
Abstract
The aim of this study is to show the importance of Gustav Fechner’s contributions to the History of Psychology, as it relates to the epistemologic questions introduced by modern philosophy.  The question of knowledge posed by Descartes serves as a starting point for all demonstrable truth, and this generates - as a counterpart - the study of the risks of illusion produced in the subject. This task lies in the realm of psychology, which, since the 18th century, establishes itself as a partner in the theory of epistemology. The possibility of the study of our subjective experiences has been condemned by philosophers such as Immanuel Kant, who argued that the study of psychology is not a scientific endeavor. Through his empiricist work and based in his famous equation, Fechner elevates psychology to the field of science, overcoming Kant’s objections and establishing the beginning of the history of scientifical psychology.
Keywords: history of psychology; knowledge theory; psychophysic.
Referências bibliográficas

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-Descartes, R. (1972). Meditações metafísicas. (J. Ginsburg & B. Prado Júnior, Trads.). São Paulo: Abril (Coleção Os Pensadores, XV). (Original publicado em 1641).
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-Penna, A.G. (1990) Filosofia da mente: introdução ao estudo crítico da psicologia. Rio de Janeiro: Imago.
-Rosenzweig, S. (1987) The final tribute of E. G. Boring to G. Fechner. American Psychologist, 42 (8), 787-789.
Nota sobre o autor
Arthur Arruda Leal Ferreira é Professor Adjunto 
do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 
-Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica da São Paulo 
e pesquisador financiado pela FAPERJ. 
Contato: Rua do Riachuelo 169/405. 
Rio de Janeiro / RJ. Brasil. CEP: 20.230-014. 
E-mail: arleal@antares.com.br

Data de recebimento: 15/08/2003
Data de aceite: 18/10/2003
Memorandum 5, out/2003
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
Ferreira, A.A.L. (2003). O lugar da psicofísica de Gustav Fechner 
na história da psicologia. Memorandum, 5, 86-93.
Retirado em   /   /      , do World Wide Web:
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Fonte:
Revista MEMORANDUM
 
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos05/ferreira01.htm  
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

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