segunda-feira, 22 de março de 2010

CLARICE LISPECTOR _ Um novo jeito de ler Clarice Lispector

Um novo jeito de ler 

Clarice Lispector



A escritora também transformava palavras em imagens deixando fluir sua busca infinita nas tintas que se aliavam aos veios da madeira. É a inquietude de escrever com pincel que Ricardo Iannace apresenta no livro Retratos em Clarice Lispector, lançamento da Humanitas, em co-parceria com a Editora da UFMG. Também a Edusp apresenta uma nova edição de Clarice: uma vida que se conta, de Nádia Battella Gotlib

Ler Clarice Lispector através de suas pinturas. 
É esse o desafio do leitor ao folhear as primeiras páginas de Retratos em Clarice Lispector – Literatura, pintura e fotografia, de Ricardo Iannace, lançado pela Humanitas e Editora da UFMG. São 18 imagens – 17 em madeira de pinho-de-riga e apenas uma em tela –, que estão arquivadas na Fundação Casa de Rui Barbosa.

Cada uma delas tem algo para contar. Ver. Ou esconder.  Foram todas pintadas em 1975. Dois anos antes de morrer. Mas o que levava Clarice a escrever pintando ou pintar escrevendo? É esse questionamento que toca o leitor diante dos quadros e da vida. O mesmo questionamento que levou Iannace a pesquisar durante anos. O resultado foi a tese de doutorado defendida em 2004 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que agora pode ser vista em livro.

“Quando me deparei pela primeira vez com essas imagens, tive uma sensação indefinida”, conta Iannace. “Não eram paisagens que sugeriam uma estética, uma composição ou o belo. As cores, as linhas traziam exatamente a transgressão de Clarice. Percebi a identificação com o hostil, com o avesso”, diz o autor.

Iannace percebeu o mundo da escritora saltando da madeira. “São imagens pequenas, feitas em chapas de pinho-de-riga, de espessura fina, que já sofreram uma ligeira alteração”, explica. “Duas delas trazem imagens na frente e no verso e há aquelas que, na ausência de título, apresentam, atrás, apenas a assinatura da autora de atravessado.” Clarice, na avaliação de Iannace, não tinha a intenção de mostrar a sua face de pintora. Seus quadros não traziam nenhuma perfuração, gancho, nem foram feitos para serem emoldurados. “A impressão é que ela pintava como um exercício, sem nenhuma pretensão.”

 A professora da FFLCH Nádia Battella Gotlib, que há anos estuda e pesquisa a trajetória de Clarice Lispector, observa as suas pinturas como um mero passatempo. “Uma tendência para deslocar-se cada vez mais do figurativo, na escrita, aproximando-se do ritmo e de sons puros, desvinculados de compromissos com a linha contínua do discursivo e da história; e na pintura, detendo-se em cores e linhas, com manchas fortes. E construção que indicia inquietação e turbulência interior.”

Só recentemente a crítica vem se atendo
à pintura de Clarice Lispector. 

Mas, exatamente para evitar que esses quadros tenham a análise rigorosa de uma obra de arte, o trabalho de Ricardo Iannace traz uma nova dimensão do trabalho da escritora. E propõe uma análise inusitada no contexto da literatura e também da pintura e da fotografia.  Ou, como define Nádia Gotlib, que assina a apresentação do livro Retratos em Clarice Lispector, é um novo jeito de ler e apreciar o legado da escritora. “A leitura da arte abstrata em Clarice e a partir de Clarice, Iannace faz promovendo um diálogo produtivo com teóricos e críticos como Giulio Carlo Argan, Mel Goodin e Charles Harrison”, explica a professora. “O repertório atento ao movimento do próprio processo de linguagem artística, desvinculado de compromissos figurativos, desenvolve a discussão sobre a forma do retrato a partir da leitura de textos que a própria Clarice traduziu e adaptou.”

A capa do livro de Iannace traz um retrato inédito de Clarice Lispector: um desenho pintado pelo poeta mineiro Otávio Dias Leite em abril de 1947.

Linhas e linhas – Iannace vai buscando a admiração e a identificação de Clarice com a pintura. Em A descoberta do mundo, Clarice registrou: “A verdade é que simplesmente me faltou o dom para a minha verdadeira vocação: a de desenhar. Porque eu poderia, sem finalidade nenhuma, desenhar e pintar um grupo de formigas andando ou paradas – e sentir-me inteiramente realizada nesse trabalho. Ou desenharia linhas e linhas, uma cruzando a outra, e me sentiria toda concreta nessas linhas que os outros talvez chamassem de abstratas”.

São paisagens que aliam o abstrato e o figurativo. Em cores fortes, pinceladas soltas e o descompromisso com a forma, Clarice vai imprimindo sensações como a do Medo, uma tela de maio de 1975 onde predomina o preto e uma massa amarela que, segundo Iannace, é uma boca sem dentes tentando gritar. Ou Perdida na vaguidão, também daquele mesmo mês, com traços livres em tons terra.

O título Tentativa de ser alegre é um desabafo e uma sugestão. Nesse quadro, Clarice estampa Ulisses, cachorro que a acompanha nos seus últimos anos de vida. O autor registra o depoimento de Clarice em Um sopro de vida: “Eu quase que já sei como será a minha morte. A sala vazia, o cachorro a ponto de morrer de saudade. Os vitrais de minha casa. Tudo vazio e calmo”.

O vermelho pintado em círculos, manchado com tinta preta. E uma legenda onde há o nome do quadro Raiva e rei[ndifi]ção, de 28 de abril de 1975, como se fosse, na observação de Iannace, uma lápide de sepultura. Nesse quadro, Clarice sugere uma explosão de movimentos circulares. Iannace cita, nesse mesmo clima lúgubre, Escuridão e luz: centro da vida, com três velas brancas acesas se projetando no meio do negro.
“Não são quadros agradáveis de se olhar”, constata Nádia Gotlib. “As cores são lúgubres e distribuem-se num feio carregado. Nem atraem pela combinação de cores ou pelo ritmo do traçado das linhas. Impressiona a carga pesada, funesta.”

Porém, nem tudo é sombra ou avesso. Clarice registra momentos de sonho em Pássaro da liberdade, de junho de 1975, ou Ao amanhecer, de setembro do mesmo ano. “Se comparados aos quadros já descritos, exibem motivos ingênuos”, assinala Iannace. “Enquanto em um aparece o traçado pouco expressivo de uma gaivota azul, no outro se armam nuvens brancas alvacentas ligeiramente azuladas.”

Uma mesma fontePara apresentar a escritora e pintora na mesma tela, Ricardo Iannace – como define Aurora Fornoni Bernardini, professora da FFLCH que o orientou na tese de doutorado – traçou uma engenhosa trama entre os textos que Clarice escreveu, traduziu ou leu, onde estão presentes a arte do retrato. O autor tem como referência citações da escritora como: “Antes de mais nada, pinto pintura. Acho que o processo criador de um pintor e do escritor são da mesma fonte. Quando eu escrevo, misturo uma tinta a outra e nasce uma nova cor”.

“O percurso é sabiamente construído”, analisa a professora Aurora. “Parte de uma crônica de Fundo de gaveta, de A legião estrangeira. Passa pela obra O retrato de Dorian Gray, que Clarice adaptou para o português, e pausa no quadro de Paul Klee, Paysage aux oiseaux jaunes, que Clarice admirou.”

Na análise sobre retrato e fotografia, Iannace vai buscar o estudo de especialistas como Susan Sontag, Roland Barthes e Philippe Dubbois. “Vozes entre outras que acompanham as de Platão e Leibniz no momento da análise profunda de dois escritos fundamentais de Clarice: A imitação da rosa e A quinta história.”

O que é o concreto e o abstrato é o questionamento que Clarice Lispector deixa transparecer entre tintas e textos.

O autor termina o livro lembrando o diálogo na crônica intitulada Irmãos:
– Mas agora vamos brincar de outra coisa. Quero saber se o senhor é inteligente. Este quadro é concreto ou abstrato?
– Abstrato.
– Pois o senhor é burro. É concreto: fui eu que pintei, e pintei nele meus sentimentos e meus sentimentos são concretos.

Retratos em Clarice Lispector –
Literatura, pintura e fotografia, de Ricardo Iannace, 
Humanitas e Editora da UFMG, 184 páginas, R$ 36,00.
Uma vida que se conta

Acompanhar as reflexões e inquietações de Clarice Lispector, pesquisar suas histórias e o transcorrer de sua própria vida. Com essa proposta, Nádia Battella Gotlib, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, vem escrevendo artigos e livros que são uma referência nos estudos sobre a escritora.

Neste mês, a Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) lança a sexta edição de Clarice: uma vida que se conta. “Esse livro é o resultado de uma experiência de leitura dos textos de Clarice Lispector que procura considerar sua escrita a partir de uma via dupla”, explica Nádia.

Centra-se nas suas ficções por meio de abordagens críticas; detém-se em certos dados de caráter autobiográfico, desde que tenham eles ligação mais direta com a produção literária, no sentido de que possam contribuir para sua contextualização.”

Nesta edição da Edusp (a anterior foi pela Ática, em 1995), Nádia inseriu novos dados e notas.

“Incluí uma cronologia abreviada e esquemática, para facilitar a visualização de informações espalhadas ao longo dos capítulos do livro. E ampliei o repertório de imagens acrescentando fotos e documentos inéditos.”

Clarice: uma vida que se conta, 
de Nádia Battella Gotlib, Edusp, 656 páginas, R$ 62,00.
http://espaber.uspnet.usp.br/jorusp/?p=8340
 Publicado por admin - Segunda-feira, 15 Março 2010
LEILA KIYOMURA

Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

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