sábado, 26 de junho de 2010

MEMÓRIA E MATÉRIA - Henri Bergson - 02

 HENRI-LOUIS  BERGSON
- 02 -

p. 107 a 108
"Constantemente inibida pela consciência prática e útil do momento presente, isto é, pelo equilíbrio sensório-motor de um sistema estendido entre a percepção e a ação, essa memória aguarda simplesmente que uma fissura se manifeste entre a impressão atual e o movimento concomitante para fazer passar aí suas imagens. Em geral, para remontar o curso de nosso passado e descobrir a imagem-lembrança conhecida, localizada, pessoal, que se relacionaria ao presente, um esforço é necessário, pelo qual nos liberamos da ação a que nossa percepção nos inclina: esta nos lançaria para o futuro; é preciso que retrocedamos no passado.

Nesse sentido, o movimento tenderia a afastar a imagem. Todavia, por um certo lado, ele contribui para prepará-la. Pois, se o conjunto de nossas imagens passadas nos permanece presente, também é preciso que a
representação análoga à percepção atual seja escolhida entre todas as representações possíveis. Os movimentos efetuados ou simplesmente nascentes preparam essa seleção, ou pelo menos delimitam o campo das imagens onde iremos colher.

Devido à constituição de nosso sistema nervoso, somos seres no quais impressões presentes se prolongam em movimentos
apropriados: se antigas imagens vêm do mesmo modo prolongar-se nesses movimentos, elas aproveitam a ocasião para se insinuarem na percepção atual e fazerem-se adotar por ela. Com isso aparecem de fato à nossa consciência, quando deveriam de direito permanecer cobertas pelo estado presente.

Poderíamos portanto dizer que os movimentos que provocam o reconhecimento automático impedem por um lado, e por outro favorecem, o reconhecimento por imagens. Em princípio, o presente desloca o passado. Mas, justamente porque a supressão das antigas imagens resulta de sua inibição pela atitude presente, aquelas cuja forma poderia se enquadrar nessa atitude encontrarão um obstáculo menor que as outras; e, se, a partir de então, alguma delas for capaz de superar o obstáculo, é a imagem semelhante à percepção presente que irá superá-lo."

p. 114 a 115
"a atenção implica uma volta para trás do espírito que renuncia a perseguir o resultado útil da percepção presente: haverá inicialmente uma inibição de movimento, uma ação de detenção. Mas nessa atitude geral virão em seguida introduzir-se movimentos mais sutis, alguns dos quais foram observados e descritos, e que têm por função tornar a passar sobre os contornos do objeto percebido. Com esses movimentos começa o trabalho positivo, e não mais simplesmente negativo, da atenção.

Ele é continuado pelas lembranças. / Se a percepção exterior, com efeito, provoca de nossa parte movimentos que a desenham em linhas gerais, nossa memória dirige à percepção recebida as antigas imagens que se assemelham a ela e cujo esboço já foi traçado por nossos movimentos. Ela cria assim pela segunda vez a percepção presente, ou melhor, duplica essa percepção ao lhe devolver, seja sua própria imagem, seja uma imagem-lembrança do mesmo tipo.

Se a imagem retida ourememorada não chega a cobrir todos os detalhes da imagem percebida, um apelo é lançado às regiões mais profundas eafastadas da memória, até que outros detalhes conhecidos venham a se projetar sobre aqueles que se ignoram. E a operaçãopode prosseguir indefinidamente, a memória fortalecendo e enriquecendo a percepção, a qual, por sua vez, atrai para si um número crescente de lembranças complementares."

p. 117
"toda imagem-lembrança capaz de interpretar nossa percepção atual insinua-se nela, a ponto de não podermos mais discernir o
que é percepção e o que é lembrança." /"a leitura corrente é um verdadeiro trabalho de adivinhação, nosso espírito colhendo aqui e ali alguns traços característicos e preenchendo todo o intervalo com lembranças-imagens que, projetadas sobre o papel, substituem-se aos caracteres realmente impressos e nos dão sua ilusão. Assim, criamos ou reconstruímos a todo instante. Nossa percepção distinta é verdadeiramente comparável a um círculo fechado, onde a imagem-percepção dirigida ao espírito e a imagem-lembrança lançada no espaço correriam uma atrás da outra."

p. 118 a 119
"a percepção refletida [é] um circuito, onde todos os elementos, inclusive o próprio objeto percebido, mantêm-se em estado de tensão mútua como num circuito elétrico, de sorte que nenhum estímulo partindo do objeto é capaz de deter sua marcha nas profundezas do espírito: deve sempre retornar ao próprio objeto."

p. 119
"Que não se veja aqui uma simples questão de palavras."


p. 120
"o progresso da atenção tem por efeito criar de novo, não apenas o objeto percebido, mas os sistemas cada vez mais vastos aos quais ele pode se associar". /"as lembranças pessoais, exatamente localizadas, e cuja série desenharia o curso de nossa existência passada, constituem, reunidas, o último e maior invólucro de nossa memória. Essencialmente fugazes, elas só se materializam por acaso, seja porque uma determinação acidentalmente precisa de nossa atividade corporal as atraia, seja porque a indeterminação mesma dessa atitude deixe o campo livre ao capricho de sua manifestação."

p. 121
"As imagens passadas, reproduzidas tais e quais com todos os seus detalhes, e inclusive com sua coloração afetiva, são as imagens do devaneio ou do sonho; o que chamamos agir é precisamente fazer com que essa memória se contraia ou, antes, se aguce cada vez mais, até apresentar apenas o fio de sua lâmina à experiência onde irá penetrar."

p. 127
"O progresso que resultará da repetição e do exercício consistirá simplesmente em desembaraçar o que estava inicialmente enredado, em dar a cada um dos movimentos elementares essa autonomia que garante a precisão, embora conservando-lhe a solidariedade com os outros, sem a qual se tornaria inútil. É correto afirmar que o hábito se adquire pela repetição do esforço;
mas para que serviria o esforço repetido, se ele reproduzisse sempre a mesma coisa? A repetição tem por verdadeiro efeito decompor em primeiro lugar, recompor em seguida, e deste modo falar à inteligência do corpo."
/
"Posso perceber uma melodia, acompanhar seu desenho, fixá-la inclusive em minha memória, e não saber cantá-la."

p. 128

"Uma coisa, com efeito, é compreender um movimento difícil, outra é poder executá-lo. Para compreendê-lo, basta perceber o essencial, o suficiente para distingui-lo dos outros movimentos possíveis. Mas para saber executá-lo é preciso também que o corpo tenha compreendido. Ora, a lógica do corpo não admite os subentendidos. Ela exige que todas as partes constitutivas do
movimento pedido sejam mostradas uma a uma, e depois recompostas juntamente. Uma análise completa torna-se aqui necessária, sem negligenciar nenhum detalhe, acompanhada de uma síntese atual em que não se abrevia nada.
O esquema imaginativo, composto de algumas sensações musculares nascentes, era apenas um esboço. As sensações musculares real e
completamente experimentadas dão-lhe o colorido e a vida."

p. 133
"O reconhecimento atento, dizíamos, é um verdadeiro circuito, em que o objeto exterior nos entrega partes cada vez mais profundas de si mesmo à medida que nossa memória, simetricamente colocada, adquire uma tensão mais alta para projetar nele suas lembranças."

p. 134
"Acompanhar um cálculo é refazê-lo por conta própria. Compreender a fala de outrem consistiria do mesmo modo em reconstituir inteligentemente, isto é, partindo das idéias, a continuidade dos sons que o ouvido percebe. E, de uma maneira mais geral, prestar atenção, reconhecer com inteligência, interpretar, constituiriam uma única e mesma operação pela qual o espírito, tendo fixado seu nível, tendo escolhido em si mesmo, com relação às percepções brutas, o ponto simétrico de sua causa mais ou menos próxima, deixaria escoar para essas percepções as lembranças que as irão encobrir."

p. 137

"os nomes próprios desaparecem em primeiro lugar, depois os nomes comuns, e finalmente os verbos."

p. 138
"do paciente que havia esquecido a letra F, e a letra F apenas, perguntamo-nos se é possível fazer abstração de uma letra
determinada onde quer que ela se encontre, desligá-la portanto das palavras faladas ou escritas às quais está fortemente
aderida, se primeiramente não houve um reconhecimento implícito dessa letra."

p. 139

"as lembranças, para se atualizarem, têm necessidade de um coadjuvante motor, e elas exigem, para serem chamadas à memória, uma espécie de atitude mental inserida, ela própria, numa atitude corporal. Com isso os verbos, cuja essência é exprimir ações imitáveis, são precisamente as palavras que um esforço corporal nos permitirá alcançar quando a função da

linguagem estiver prestes a se perder: ao contrário, os nomes próprios, sendo de todas as palavras as mais afastadas dessas ações impessoais que nosso corpo é capaz de esboçar, são aquelas que um debilitamento da função atingiria em primeiro lugar."

p. 139 a 140
"não podendo pensar a palavra exata, ele pensou a ação correspondente, e essa atitude determinou a direção geral de um movimento de onde a frase saiu. É deste modo que nos acontece, tendo retido a inicial de um nome esquecido, de reencontrar o nome à força de pronunciar a inicial."

p. 140

"a invencível tendência que nos leva a pensar, em qualquer ocasião, antes em coisas do que em progressos."

p. 141
"Mas o pensamento científico, ao analisar esta série ininterrupta de mudanças e cedendo a uma irresistível necessidade de figuração simbólica, detém e solidifica em coisas acabadas as principais fases dessa evolução."

p. 142
"Também não é impunemente que se terá fixado em termos distintos e independentes a continuidade de um progresso indiviso.Esse modo de representação será suficiente talvez enquanto estritamente limitado aos fatos que serviram para inventá-lo: mas cada fato novo obrigará a complicar a figura, a intercalar ao longo do movimento estações novas, sem que jamais essas estações justapostas cheguem a reconstituir o próprio movimento."

p. 143
"Assim a teoria complica-se cada vez mais, sem conseguir no entanto abarcar a complexidade do real."

p. 144
"Raciocinam como se uma frase se compusesse de nomes que vão evocar imagens de coisas."

p. 145
"refinada ou grosseira, uma língua subentende muito mais coisas do que é capaz de exprimir. Essencialmente descontínua, já que procede por palavras justapostas, a fala limita-se a assinalar, a intervalos regulares, as principais etapas do movimento do pensamento. Por isso compreenderei sua fala se eu partir de um pensamento análogo ao seu para acompanhar-lhe as
sinuosidades com o auxílio de imagens verbais destinadas, à maneira de letreiros, a mostrar-me de tempos em tempos o caminho. Mas não a compreenderei jamais se partir das próprias imagens verbais, porque entre duas imagens verbais consecutivas há um intervalo que nenhuma representação concreta conseguiria preencher. As imagens, com efeito, serão
sempre coisas, e o pensamento é um movimento."

p. 146
"as idéias, as lembranças puras, chamadas do fundo da memória, desenvolvem-se em lembranças-imagens cada vez mais capazes de se inserirem no esquema motor. À medida que essas lembranças adquirem a forma de uma representação mais completa, mais concreta e mais consciente, elas tendem a se confundir com a percepção que as atrai ou cujo quadro elas
adotam. Portanto, não há nem pode haver no cérebro uma região onde as lembranças se fixem e se acumulem. A pretensa destruição das lembranças pelas lesões cerebrais não é mais que uma interrupção do progresso contínuo através do qual a lembrança se atualiza."

p. 149
"não é possível restar algo de um imagem na substância cerebral, e não poderia haver também um centro de apercepção, mas há simplesmente, nessa substância, órgãos de percepção virtual, influenciados pela intenção da lembrança, assim como na periferia há órgãos de percepção real, influenciados pela ação do objeto."

p. 150
"Esse órgão [dos sentidos] é precisamente construído de modo a permitir que uma pluralidade de excitações simultâneas o impressionem de uma certa maneira e numa certa ordem, distribuindo-se, todas ao mesmo tempo, sobre partes escolhidas de sua superfície. Trata-se portanto de um imenso teclado de piano, sobre o qual o objeto exterior executa de uma só vez seu
acorde de milhares de notas, provocando assim, numa ordem determinada e num único momento, uma quantidade enorme de sensações elementares que correspondem a todos os pontos interessados do centro sensorial."

p. 151
"os centros onde nascem as sensações elementares podem ser acionados, de certo modo, por dois lados diferentes, pela frente e por trás. Pela frente eles recebem as impressões dos órgãos dos sentidos e, conseqüentemente, de um objeto real; por trás eles sofrem, de intermediário em intermediário, a influência de um objeto virtual. Os centros de imagens, se existem,
só podem ser órgãos simétricos aos órgãos dos sentidos em relação a esses centros sensoriais. Eles não são depositários das lembranças puras, ou seja, dos objetos virtuais, assim como os órgãos dos sentidos não são depositários dos objetos reais."

p. 152
"Quaisquer que sejam o número e a natureza dos termos interpostos, não vamos da percepção à idéia, mas da idéia à percepção, e o processo característico do reconhecimento não é centrípeto, mas centrífugo."
/
"A lembrança pura, à medida que se atualiza, tende a provocar no corpo todas as sensações correspondentes. Mas essas sensações na verdade virtuais, para se tornarem reais, devem tender a fazer com que o corpo aja, com que nele se imprimam os movimentos e atitudes dos quais elas são o antecedente habitual."

p. 153
"O progresso pelo qual a imagem virtual se realiza não é senão a série de etapas pelas quais essa imagem chega a obter do corpo procedimentos úteis. A excitação dos centros ditos sensoriais é a última dessas etapas; é o prelúdio de uma reação motora, o começo de uma ação no espaço. Em outras palavras, a imagem virtual evolui em direção à sensação virtual, e a
sensação virtual evolui em direção ao movimento real: esse movimento, ao se realizar, realiza ao mesmo tempo a sensação da qual ele seria o prolongamento natural e a imagem que quis se incorporar à sensação."

p. 158
"Mas a verdade é que jamais atingiremos o passado se não nos colocarmos nele de saída. Essencialmente virtual, o passado não pode ser apreendido por nós como passado a menos que sigamos e adotemos o movimento pelo qual ele se manifesta em imagem presente, emergindo das trevas para a luz do dia. Em vão se buscaria seu vestígio em algo de atual e já realizado: seria o mesmo que buscar a obscuridade sob a luz."

p. 160
"Meu presente é aquilo que me interessa, o que vive para mim e, para dizer tudo, o que me impele à ação, enquanto meu passado é essencialmente impotente."

p. 161 a 162

"O que é, para mim, o momento presente?
É próprio do tempo decorrer; o tempo já decorrido é o passado, e chamamos
presente o instante em que ele decorre. Mas não se trata aqui de um instante matemático. Certamente há um presente ideal, puramente concebido, limite indivisível que separaria o passado do futuro. Mas o presente real, concreto, vivido, aquele a que me refiro quando falo de minha percepção presente, este ocupa necessariamente uma duração.

Onde portanto se situa essa duração?
Estará aquém, estará além do ponto matemático que determino idealmente quando penso no instante presente?

Evidentemente está aquém e além ao mesmo tempo, e o que chamo "meu presente" estende-se ao mesmo tempo sobre meu passado e sobre meu futuro. Sobre meu passado em primeiro lugar, pois "o momento em que falo já está distante de mim"; sobre meu futuro a seguir, pois é sobre o futuro que esse momento está inclinado, é para o futuro que eu tendo, e se eu
pudesse fixar esse indivisível presente, esse elemento infinitesimal da curva do tempo, é a direção do futuro que ele mostraria.
É preciso portanto que o estado psicológico que chamo "meu presente" seja ao mesmo tempo uma percepção do passado imediato e uma determinação do futuro imediato. Ora, o passado imediato, enquanto percebido, é, como veremos, sensação, já que toda sensação traduz uma sucessão muito longa de estímulos elementares; e o futuro imediato, enquanto determinando-se, é ação ou movimento.

Meu presente portanto é sensação e movimento ao mesmo tempo; e, já que meu presente forma um todo indiviso, esse movimento deve estar ligado a essa sensação, deve prolongá-la em ação. Donde concluo que meu presente consiste num sistema combinado de sensações e movimentos. Meu presente é, por essência, sensório-motor. / Equivale a dizer que meu presente consiste na consciência que tenho de meu corpo. Estendido no espaço, meu corpo experimenta sensações e ao mesmo tempo executa movimentos."

p. 162

"De maneira mais geral, nessa continuidade de devir que é a própria realidade, o momento presente é constituído pelo corte quase instantâneo que nossa percepção pratica na massa em vias de escoamento, e esse corte é precisamente o que chamamos de mundo material, aquilo que sentimos diretamente decorrer; em seu estado atual consiste a atualidade do nosso
presente. Se a matéria, enquanto extensão no espaço, deve ser definida, em nossa opinião, como um presente que não cessa de recomeçar, nosso presente, inversamente, é a própria materialidade de nossa existência, ou seja, um conjunto de sensações e de movimentos, nada mais."

p. 169 a 170
"E, se a realidade, enquanto extensão, nos parece ultrapassar ao infinito nossa percepção, em nossa vida interior, ao contrário, só nos parece real o que começa com o momento presente; o resto é praticamente abolido. Então, quando uma lembrança reaparece à consciência, ela nos dá a impressão de uma alma do outro mundo cuja aparição misteriosa precisaria ser explicada
por causas especiais. Na realidade, a aderência dessa lembrança a nosso estado presente é inteiramente comparável à dos objetos não percebidos em relação aos que percebemos, e o inconsciente desempenha nos dois casos um papel do mesmo tipo."

p. 170
"adquirimos o hábito de acentuar as diferenças, e por outro lado de apagar as semelhanças, entre a série dos objetos simultaneamente escalonados no espaço e a dos estados sucessivamente desenvolvidos no tempo. Na primeira, os termos condicionam-se de uma maneira totalmente determinada, de modo que o aparecimento de cada novo termo possa ser previsto. Assim, ao sair de meu quarto, sei quais são as peças que irei atravessar. Minhas lembranças, ao contrário, apresentam-se numa ordem aparentemente caprichosa. A ordem das representações é portanto necessária numa caso, contingente no outro; e é essa necessidade que hipostasio, de certo modo, quando falo da existência dos objetos fora de toda consciência.

Se não vejo nenhum inconveniente em supor dada a totalidade dos objetos que não percebo, é porque a ordem rigorosamente determinada desses objetos lhes dá o aspecto de uma cadeia, da qual minha percepção presente não seria mais que um elo: este elo comunica então sua atualidade ao restante da cadeia. - mas, se examinarmos de perto, veremos que nossas lembranças formam uma cadeia do mesmo tipo, e que nosso caráter, sempre presente em todas as nossas decisões, é exatamente a síntese atual de todos os nossos estados passados. Sob essa forma condensada, nossa vida psicológica anterior existe inclusive mais, para nós, do que o mundo externo, do qual nunca percebemos mais do que uma parte muito pequena, enquanto ao contrário utilizamos a totalidade do nossa experiência vivida. 
É verdade que a possuímos apenas como um resumo, e que nossas antigas percepções, consideradas como individualidades distintas, nos dão a impressão, ou de terem desaparecido totalmente, ou de só reaparecerem ao sabor de seu capricho.

Mas essa aparência de destruição completa ou de ressurreição caprichosa deve-se simplesmente ao fato de a consciência atual aceitar a cada instante o útil e rejeitar momentaneamente o supérfluo. Sempre voltada para a ação, ela só é capaz de materializar, de nossas antigas percepções, aquelas que se organizam com a percepção presente para concorrer à decisão final. Se é preciso, para que a vontade se manifeste sobre um ponto dado do espaço, que minha consciência ultrapasse um a um esses obstáculos ou essas mediações
cujo conjunto constitui o que chamamos a distância no espaço, em compensação lhe é útil, para esclarecer esta ação, saltar sobre o intervalo de tempo que separa a situação atual de uma situação anterior análoga; e, como a consciência assim se transporta de um salto, toda a parte intermediária do passado escapa à suas influências. 
As mesmas razões que fazem com que nossas percepções se disponham em continuidade rigorosa no espaço fazem portanto com que nossas lembranças se iluminem de maneira descontínua no tempo.

Não estamos lidando, no que concerne aos objetos não percebidos no espaço e às lembranças inconsciente no tempo, com duas formas radicalmente diferentes da existência; mas as exigências da ação são inversas, num caso, do que elas são no outro."

p. 172
"a existência, no sentido empírico da palavra, implica sempre ao mesmo tempo, mas em graus diferentes, a apreensão consciente [apresentação à consciência] e a conexão regular [conexão lógica ou causal daquilo que é assim representado com o que precede e o que segue]."

p. 173
"Donde a impossibilidade de deixar aos objetos existentes mas não percebidos a menos participação na consciência, e aos estados interiores não conscientes a menor participação na existência. Já mostramos [...] as conseqüências da primeira ilusão: ela acaba deturpando nossa representação da matéria. A segunda, complementar da primeira, vicia nossa concepção do espírito, ao espalhar sobre a idéia do inconsciente uma obscuridade artificial. Nossa vida psicológica passada inteira condiciona nosso estado presente, sem determiná-lo de uma maneira necessária; também inteira ela se revela em nosso caráter, embora nenhum dos estados passados se manifeste no caráter explicitamente."

p. 173 a 174
"Mas estamos tão habituados a inverter, para a maior vantagem da prática, a ordem real das coisas, padecemos a tal ponto a obsessão das imagens obtidas do espaço, que não podemos nos impedir de perguntar onde se conserva a lembrança.

Concebemos que fenômenos físico-químicos tenham lugar no cérebro, que o cérebro esteja no corpo, o corpo no ar que o circunda, etc.; mas o passado uma vez realizado, se ele se conserva, onde se encontra?"

p. 175

"Tal sobrevivência em si do passado impõe-se assim de uma forma ou outra, e a dificuldade que temos de concebê-la resulta simplesmente de atribuirmos à série das lembranças, no tempo, essa necessidade de conter e de ser contido que só é verdadeira para o conjunto dos corpos instantaneamente percebidos no espaço. A ilusão fundamental consiste em transportar à própria duração, em vias de decorrer, a forma dos cortes instantâneos que nela praticamos."
/
"a questão é precisamente saber se o passado deixou de existir, ou se ele simplesmente deixou de ser útil. Você define arbitrariamente o presente como o que é, quando o presente é simplesmente o que se faz."

Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.
Fonte:
 http://patio.com.br/labirinto/materia%20e%20memoria.html

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