terça-feira, 22 de junho de 2010

MEMÓRIA E MATÉRIA - Henri Bergson - 04

 HENRI-LOUIS  BERGSON
Citações...

p. 227
"Não há símbolo matemático capaz de exprimir que é o móvel que se move e não os eixos ou os pontos aos quais está relacionado. E é natural que seja assim, já que esses símbolos, sempre destinados a medidas, só são capazes de exprimir distâncias. Mas que haja um movimento real, ninguém pode contestar seriamente: caso contrário, nada mudaria no universo, e sobretudo não se percebe o que significaria a consciência que temos de nossos próprios movimentos."

p. 227 a 228
"Quando estou sentado tranqüilo, e um outro, afastando-se mil passos de mim, está exausto de fadiga, é efetivamente ele que se move e sou eu que repouso." [H. Morus]

p. 228
"Não podemos portanto deixar de tomar todo lugar por relativo, nem de crer num movimento absoluto."

p. 230
"já não se trataria de saber como se produzem, em tais partes determinadas da matéria, mudanças de posição, mas como se realiza, no todo, uma mudança de aspecto".
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"Toda divisão da matéria em corpos independentes de contornos absolutamente determinados é uma divisão artificial."

p. 231
"os dados da visão e do tato são os que se estendem mais manifestamente no espaço, e o caráter essencial do espaço é a continuidade. Há intervalos de silêncio entre os sons, pois a audição nem sempre está ocupada; entre os odores e os sabores existem vazios, como se o olfato e o gosto só funcionassem acidentalmente: assim que abrimos os olhos, ao contrário, nosso campo visual se colore por inteiro, e, uma vez que os sólidos são necessariamente contíguos uns aos outros, nosso tato deve acompanhar a superfície ou as arestas dos objetos sem jamais encontrar interrupção verdadeira."
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"De que modo fragmentamos a continuidade primitiva percebida da extensão material em tantos corpos, cada um dos quais com sua substância e individualidade? Certamente essa continuidade muda de aspecto, de um momento a outro; mas por que não constatamos pura e simplesmente que o conjunto mudou, como se houvéssemos girado um caleidoscópio? Por que buscamos enfim, na mobilidade do conjunto, pistas deixadas por corpos em movimento? Uma continuidade movente nos é dada, em que tudo muda e permanece ao mesmo tempo: como se explica que dissociemos esses dois termos, permanência e mudança, para representar a permanência por corpos e a mudança por movimentos homogêneos no espaço?

p. 232
"Ao lado da consciência e da ciência, existe a vida."
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"Mas uma vez constituído e distinguido esse corpo, as necessidades que ele experimenta o levam a distinguir e a constituir outros."

p. 233
"Nossas necessidades são portanto feixes luminosos que, visando a continuidade das qualidades sensíveis, desenham aí corpos distintos. Elas só podem satisfazer-se com a condição de se moldarem nessa continuidade um corpo, e depois de delimitarem aí outros corpos com os quais este entrará em relação como com pessoas. Estabelecer essas relações muito particulares entre porções assim recortadas da realidade sensível é justamente o que chamamos viver."

p. 233 a 234
"como se obteria um conhecimento mais próximo das coisas levando a divisão ainda mais longe? Deste modo prolongamos o movimento vital; viramos as costas ao conhecimento verdadeiro. Por isso a operação grosseira que consiste em decompor o corpo em partes da mesma natureza que ele nos conduz a um impasse, incapazes que nos sentimos em seguida de conceber por que motivo essa divisão se deteria e de que maneira ela se prolongaria ao infinito. Tal operação representa, com efeito, uma forma usual da ação útil, indevidamente transportada ao domínio do conhecimento puro.

Portanto não se explicará jamais através de partículas, sejam quais forem, as propriedades simples da matéria: quando muito se acompanharão até os corpúsculos, artificiais como o próprio corpo, as ações e reações desse corpo em face de todos os outros. Tal é precisamente o objeto da química. Ela estuda menos a matéria do que os corpos; concebe-se portanto que ela se detenha num átomo, dotado ainda das propriedades gerais da matéria. Mas a materialidade do átomo dissolve-se cada vez mais sob o olhar do físico.

Não temos nenhum motivo, por exemplo, para nos representarmos o átomo como sólido, em vez de líquido ou gasoso, nem para nos figurarmos a ação recíproca dos átomos através de choques e não de outra maneira. Por que pensamos num átomo sólido, e por que em choques? Porque os sólidos, sendo os corpos sobre os quais temos uma influência mais manifesta, são aqueles que nos interessam mais em nossas relações com o mundo exterior, e porque o contato parece ser o único meio de que dispomos para fazer agir nosso corpo sobre os outros corpos. Mas experiências muito simples mostram que não há jamais contato real entre dois corpos que interagem; por outro lado, a solidez está longe de ser um estado absolutamente definido da matéria.

Solidez e choque obtêm portanto sua aparente clareza dos hábitos e necessidades da vida prática; - imagens desse tipo não lançam nenhuma luz sobre o âmago das coisas."

p. 234 a 235
"Se há uma verdade, aliás, que a ciência colocou acima de qualquer contestação, é a de uma ação recíproca de todas as partes da matéria umas sobre as outras. Entre à moléculas supostas dos corpos se exercem forças atrativas e repulsivas. A influência da gravidade estende-se através dos espaços interplanetários. Existe portanto alguma coisa entre os átomos. Dir-se-á que já não é matéria, mas força. Representar-se-ão, estendidos os átomos, fios cada vez mais delgados, até que tenham se tornado invisíveis e mesmo, pelo que se acredita, imateriais. Mas para que poderia servir essa imagem grosseira? A conservação da vida exige certamente que distingamos, em nossa experiência diária, coisas inertes e ações exercidas por essas coisas no espaço.

Como nos é útil fixar o lugar da coisa no ponto preciso onde poderíamos tocá-la, seus contornos palpáveis tornam-se para nós seu limite real, e vemos então em sua ação um não-sei-quê que se separa e difere dela. Mas já que uma teoria da matéria se propõe justamente a recuperar a realidade sob essas imagens usuais, todas relativas a nossas necessidades, é dessas imagens que ela deve se abstrair em primeiro lugar. E, de fato, vemos força e matéria reaproximarem-se e reunirem-se à medida que o físico aprofunda seus efeitos. Vemos a força materializar-se, o átomo idealizar-se, esses dois termos convergirem para um limite comum, e o universo recuperar assim sua continuidade."

p. 237
"O movimento real é antes o transporte de um estado que de uma coisa."

p. 238
"O movimento que a mecânica estuda não é mais que uma abstração ou um símbolo, uma medida comum, um denominador comum que permite comparar entre si todos os movimentos reais; mas esses movimentos, considerados neles mesmos, são indivisíveis que ocupam duração, supõem um antes e um depois, e ligam os momentos sucessivos do tempo por um fio de qualidade variável que deve ter alguma analogia com a continuidade de nossa própria consciência."

p. 239
"Ali onde o ritmo do movimento é bastante lento para se ajustar aos hábitos de nossa consciência - como acontece para as notas graves da escala musical, por exemplo -, não sentimos a qualidade percebida decompor-se espontaneamente em estímulos repetidos e sucessivos, ligados entre si por uma continuidade interior?"

p. 240
"Sua objetividade, ou seja, o que ela tem a mais do que oferece, consistirá precisamente então, tal como já havíamos sugerido, na imensa multiplicidade dos movimentos que ela executa, de certo modo, no interior de sua crisálida. Ela se expõe, imóvel, nasuperfície; mas ela vive e vibra em profundidade."

p. 241 a 242
"A duração vivida por nossa consciência é uma duração de ritmo determinado, bem diferente desse tempo de que fala o físico e que é capaz de armazenar, num intervalo dado, uma quantidade de fenômenos tão grande quanto se queira. No espaço de um segundo, a luz vermelha - aquela que tem o maior comprimento de onda e cujas vibrações são portanto as menos freqüentes - realiza 400 trilhões de vibrações sucessivas. Deseja-se fazer uma idéia desse número? Será preciso afastar as vibrações umas das outras o suficiente para que nossa consciência possa contá-las ou pelo menos registrar explicitamente sua sucessão, e se verá quantos dias, meses ou anos ocuparia tal sucessão. Ora, o menor intervalo de tempo vazio de que temos consciência é igual, segundo Exner, a dois milésimos de segundo; ainda assim é duvidoso que possamos perceber um após outro vários intervalos tão curtos.

Admitamos no entanto que sejamos capazes disso indefinidamente. Imaginemos, em uma palavra, uma consciência que assistisse ao desfile de 400 trilhões de vibrações, todas instantâneas, e apenas separadas umas das outras pelos dois milésimos de segundo necessários para distingui-las. Um cálculo muito simples mostra que serão necessários 25 mil anos para concluir a operação.

Assim, essa sensação de luz vermelha experimentada por nós durante um segundo corresponde, em si, a uma sucessão de fenômenos que, desenrolados em nossa duração com a maior economia de tempo possível, ocupariam mais de 250 séculos de nosso história.

p. 242
"O espaço aliás, no fundo, não é mais do que o esquema da divisibilidade indefinida."

p. 243 a 244
"Esse pretenso tempo homogêneo, como tentamos demonstrar em outra parte, é um ídolo da linguagem, uma ficção cuja origem é fácil de encontrar. Em realidade, não há um ritmo único da duração; é possível imaginar muitos ritmos diferentes, os quais, mais lentos ou mais rápidos, mediriam o grau de tensão ou de relaxamento das consciências, e deste modo fixariam seus respectivos lugares na série dos seres. Essa representação de durações com elasticidade desigual é talvez incômoda para nosso espírito, que contraiu o hábito útil de substituir a duração verdadeira, vivida pela consciência, por um tempo homogêneo e independente; mas em primeiro lugar é fácil, como dissemos, desmascarar a ilusão que torna uma tal representação incômoda, e em segundo essa idéia conta, no fundo, com o consentimento tácito de nossa consciência.

Não nos acontece perceber em nós mesmos, durante o sono, duas pessoas contemporâneas e distintas, sendo que uma dorme alguns minutos enquanto o sonho da outra ocupa dias e semanas? E a história inteira não caberia num tempo muito curto para uma consciência mais tensa que a nossa, que assistisse ao desenvolvimento da humanidade condensando-o, por assim dizer, nas grandes fases de sua evolução?

Perceber consiste portanto, em suma, em condensar períodos enormes de uma existência infinitamente diluída em alguns momentos mais diferenciados de uma vida mais intensa, e em resumir assim uma história muito longa. Perceber significa imobilizar."

p. 244 a 246
"Mas, se você suprime minha consciência, o universo material subsiste tal qual era: apenas, como foi feita abstração do ritmo particular de duração que era a condição de minha ação sobre as coisas, essas coisas retornam a si mesmas para se separarem na infinidade de momentos que a ciência distingue, e as qualidades sensíveis, sem desaparecerem, espalham-se e dissolvem-se numa duração incomparavelmente mais dividida. A matéria converte-se assim em inumeráveis estímulos, todos ligados numa continuidade ininterrupta, todos solidários entre si, e que se propagam em todos os sentidos como tremores. - Volte a ligar uns aos outros, em uma palavra, os objetos descontínuos de sua experiência diária; faça fluir, em seguida, a continuidade imóvel de suas qualidades como estímulos locais; adira a esses movimentos, desvencilhando-se do espaço divisível que os subentende, para já não considerar senão sua mobilidade, esse ato indiviso que sua consciência capta nos movimentos que você mesmo executa: você irá obter da matéria uma visão fatigante talvez para a imaginação, no entanto pura, e desembaraçada daquilo que as exigências da vida o obrigam a acrescentar na percepção exterior.

- Restabeleça agora minha consciência e, com ela, as exigências da vida: a longos intervalos repetidos, e transpondo a cada vez enormes períodos da história interior das coisas, visões quase instantâneas serão tomadas, visões desta vez pitorescas, cujas cores mais definidas condensam uma infinidade de repetições e de mudanças elementares. É assim que os milhares de posições sucessivas de um corredor se contraem numa única atitude simbólica, que nosso olho percebe, que a arte reproduz, e que se torna, para  todo o mundo, a imagem de um homem que corre.

O olhar que lançamos ao nosso redor, de momento a momento, só percebe portanto os efeitos de uma infinidade de repetições e evoluções interiores, efeitos por isso mesmo descontínuos, e cuja continuidade é restabelecida pelos movimentos relativos que atribuímos a "objetos" no espaço. A mudança encontra-se por toda parte, mas em profundidade; nós a localizamos aqui e acolá, mas na superfície; e constituímos assim corpos ao mesmo tempo estáveis quanto a suas qualidades e móveis quanto a suas posições, uma simples mudança de lugar condensando nele, a nossos olhos, a transformação universal."

p. 246
"Que existem, num certo sentido, objetos múltiplos, que um homem se distingue de outro homem, uma árvore de outra árvore, uma pedra de outra pedra, é incontestável, uma vez que cada um desses seres, cada uma dessas coisas tem propriedades características e obedece a uma lei determinada de evolução. Mas a separação entre a coisa e seu ambiente não pode ser absolutamente definida; passa-se, por gradações insensíveis, de uma ao outro: a estrita solidariedade que liga todos os objetos do universo material, a perpetuidade de suas ações e reações recíprocas, demonstra suficientemente que eles não têm os limites precisos que lhes atribuímos. Nossa percepção desenha, de certo modo, a forma de seu resíduo; ela os delimita no ponto em que se detém nossa ação possível sobre eles, e em que eles cessam, conseqüentemente, de interessar nossas necessidades."

p. 246 a 247
"para dividir assim o real, devemos nos persuadir inicialmente de que o real é arbitrariamente divisível. Devemos em conseqüência estender abaixo da continuidade das qualidades sensíveis, que é a extensão concreta, uma rede de malhas indefinidamente deformáveis e indefinidamente decrescentes: tal substrato meramente concebido, tal esquema inteiramente ideal de divisibilidade arbitrária e indefinida, é o espaço homogêneo."

p. 247
"ao mesmo tempo que nossa percepção atual e, por assim dizer, instantânea efetua essa divisão da matéria em objetos independentes, nossa memória solidifica em qualidades sensíveis o escoamento contínuo das coisas. Ela prolonga o passado no presente, porque nossa ação irá dispor do futuro na medida exata em que nossa percepção, aumentada pela memória, tiver condensado o passado. Responder a uma ação sofrida por uma reação imediata que se ajusta ao seu ritmo e se prolonga na mesma duração, estar no presente, e num presente que recomeça a todo instante, eis a lei fundamental da matéria: nisso consiste a necessidade."
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"A independência de sua ação sobre a matéria ambiental afirma-se cada vez melhor à medida que eles se libertam do ritmo segundo o qual essa matéria escoa-se."

p. 247 a 248
"as qualidades sensíveis, tal como figuram em nossa percepção acompanhada de memória, são efetivamente os momentos sucessivos obtidos pela solidificação do real. Mas, para distinguir esses momentos, e também para juntá-los através de um fio que seja comum à nossa própria existência e à das coisas, somos forçados a imaginar um esquema abstrato da sucessão em geral, um meio homogêneo e indiferente que esteja para o escoamento da matéria, no sentido do comprimento, assim como o espaço no sentido da largura: nisto consiste o tempo homogêneo."

p. 248
"Espaço homogêneo e tempo homogêneo não são portanto nem propriedades das coisas, nem condições essenciais de nossa faculdade de conhecê-los: exprimem, de uma forma abstrata, o duplo trabalho de solidificação e de divisão do real para nela encontrarmos pontos de apoio, para nela fixarmos centros de operação, para nela introduzirmos, enfim, mudanças verdadeiras; estes são os esquemas de nossa ação sobre a matéria."

p. 249
"as concepções errôneas da qualidade sensível e do espaço encontram-se tão profundamente enraizadas no espírito, que não se poderiam atacá-las de uma só vez num grande número de pontos."

p. 252
"como se o papel da memória não fosse justamente fazer sobreviver a complexidade do efeito à simplificação da causa!"
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"não é verdade que, na percepção visual de um objeto, o cérebro, os nervos, a retina e o próprio objeto formam um todo solidário, um processo contínuo do qual a imagem retiniana não é mais que um episódio? Qual o direito de isolar essa imagem para resumir toda a percepção nela?"

p. 254
"A verdade é que o espaço não está mais fora de nós do que em nós, e que ele não pertence a um grupo privilegiado de sensações. Todas as sensações participam da extensão."

p. 255 a 256
"o espaço é de fato o símbolo da fixidez e da divisibilidade ao infinito. A extensão concreta, ou seja, a diversidade das qualidades sensíveis, não está nele; é ele que colocamos nela. O espaço não é o suporte sobre o qual o movimento real se põe; é o movimento real, ao contrário, que o põe abaixo de si. Mas nossa imaginação, preocupada antes de tudo com a comodidade de expressão e as exigências da vida material, prefere inverter a ordem natural dos termos. Habituada a buscar seu ponto de apoio num mundo de imagens inteiramente construídas, imóveis, cuja fixidez aparente reflete sobretudo a invariabilidade de nossas necessidades inferiores, ela não consegue deixar de ver o repouso como anterior à mobilidade, de tomá-lo por ponto de referência, de instalar-se nele, e de não perceber no movimento, enfim, senão uma variação de distância, o espaço precedendo o movimento. Então, num espaço homogêneo e indefinidamente divisível nossa imaginação desenhará uma trajetória e fixará posições: aplicando a seguir o movimento contra a trajetória, o fará divisível como essa linha e, como ela, desprovido de qualidade. É de admirar que nosso entendimento, exercendo-se desde então sobre essa idéia que representa justamente a inversão do real, só descubra nela contradições?"

p. 256 a 257
"Relegado ao espaço, e ao espaço abstrato, onde não há mais que um instante único e onde tudo recomeça sempre, o movimento renuncia a essa solidariedade do presente e do passado que é sua própria essência."

p. 257
"Nossa percepção, dizíamos, encontra-se originariamente antes nas coisas do que no espírito, antes fora de nós do que em nós. As percepções de diversos tipos assinalam algumas das muitas direções verdadeiras da realidade. Mas essa percepção que coincide com seu objeto, acrescentávamos, existe mais de direito do que de fato: ela teria lugar no instantâneo. Na percepção concreta intervém a memória, e a subjetividade das qualidades sensíveis deve-se justamente ao fato de nossa consciência, que desde o início não é senão memória, prolongar uns nos outros, para condensá-los numa intuição única, uma pluralidade de momentos."

p. 258
"A matéria extensa, considerada em seu conjunto, é como uma consciência em que tudo se equilibra, se compensa e se neutraliza".
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"E o espaço homogêneo, que se erguia entre os dois termos [percepção e matéria] como uma barreira intransponível, não tem mais outra realidade senão a de um esquema ou de um símbolo. Ele diz respeito aos procedimentos de um ser que age sobre a matéria, mas não ao trabalho de um espírito que especula sobre sua essência."

p. 259
"se existe passagem gradual da idéia à imagem e da imagem à sensação, se, à medida que evolui nos sentido da atualidade, ou seja, da ação, o estado da alma se aproxima da extensão, se finalmente, essa extensão, uma vez atingida, permanece indivisa e por isso não contraria de maneira alguma a unidade da alma, compreende-se que o espírito possa colocar-se sobre a matéria no to da percepção pura, conseqüentemente unindo-se a ela, e que não obstante dela se distinga radicalmente. Ele se distingue na medida em que condensa os momentos dessa matéria para servir-se dela e para manifestar-se através de ações que são a razão de ser de sua união com o corpo. Tínhamos portanto razão ao afirmar, no início deste livro, que a distinção do corpo e do espírito não deve ser estabelecida em função do espaço, mas do tempo."

p. 260
"as dificuldades atenuam-se num dualismo que, partindo da percepção pura em que sujeito e objeto coincidem, promova o desenvolvimento desses dois termos em suas respectivas durações - a matéria, à medida que se leva mais a fundo sua análise, tendendo a não ser mais que uma sucessão de momentos infinitamente rápidos que se deduzem uns dos outros e portanto se equivalem; o espírito sendo já memória na percepção, e afirmando-se cada vez mais como um prolongamento do passado no presente, um progresso, uma evolução verdadeira."

p. 260 a 261
"Mas a relação entre corpo e espírito torna-se com isso mais clara? Substituímos uma distinção espacial por uma distinção temporal: os dois termos serão mais capazes de se unir? Convém notar que a primeira distinção não comporta graus: a matéria está no espaço, o espírito está fora do espaço; não há transição possível entre eles.

Ao contrário, se o papel mais modesto do espírito é ligar os momentos sucessivos da duração das coisas, se é nessa operação que ele toma contato com a matéria e também se distingue dela inicialmente, concebe-se uma infinidade de graus entre a matéria e o espírito plenamente desenvolvido, o espírito capaz de ação não apenas indeterminada, mas racional e refletida. Cada um desses graus sucessivos, que mede uma intensidade crescente de vida, corresponde uma tensão mais alta de duração e se traduz exteriormente por um maior desenvolvimento do sistema sensório-motor.

O importante é então esse sistema nervoso? Sua complexidade crescente parecerá deixar uma amplitude cada vez maior à atividade do ser vivo, a capacidade de esperar antes de reagir, e de colocar a excitação recebida em relação com uma variedade cada vez mais rica de mecanismos motores.

Mas isto é apenas o exterior, e a organização mais complexa do sistema nervoso, que parece assegurar uma maior independência do ser vivo em face da matéria, não faz mais que simbolizar materialmente essa própria independência, isto é, a força interior que permite ao ser vivo libertar-se do ritmo do transcorrer das coisas, reter cada vez melhor o passado para influenciar profundamente o futuro, ou seja, enfim, sua memória, no sentido especial que damos a essa palavra. Assim, entre a matéria bruta e o espírito mais capaz de reflexão há todas as intensidades possíveis da memória, ou, o que vem a ser o mesmo, todos os graus da liberdade."

p. 262
"As dificuldades do dualismo vulgar não advêm de que os dois termos [matéria e espírito] se distingam, mas de que não se percebe como um deles se introduz no outro. Ora, mostramos que a percepção pura, que seria o grau mais baixo do espírito - o espírito sem a memória -, faria verdadeiramente parte da matéria tal como a entendemos. Vamos mais longe: a memória não intervém como uma função da qual a matéria não tivesse algum pressentimento e que já não imitasse à sua maneira. Se a matéria não se lembra do passado, é porque ela o repete sem cessar, porque, submetida à necessidade, ela desenvolve uma série de momentos em que cada um equivale ao precedente e pode deduzir-se dele: assim, seu passado é verdadeiramente dado em seu presente. Mas um ser que evolui mais ou menos livremente cria a todo instante algo de novo: é portanto em vão que se buscaria ler seu passado em seu presente se o passado não se depositasse nele na condição de lembrança. Assim, para retomar uma metáfora que já apareceu várias vezes neste livro, é preciso, por razões semelhantes, que o passado seja desempenhado pela matéria, imaginado pelo espírito."

p. 267
"a memória de um ser vivo parece medir antes de tudo a capacidade de sua ação sobre as coisas, e não ser mais do que a repercussão intelectual disso."

p. 268
"se fossem reunidos todos os estados de consciência, passados, presentes e possíveis, de todos os seres conscientes, só se abrangeria com isso, a nosso ver, uma parte muito pequena da realidade material, porque as imagens ultrapassam a percepção por todos os lados."

p. 269
"não há entre o "fenômeno" e a "coisa" a relação da aparência à realidade, mas simplesmente a da parte ao todo."

p. 271 a 272
"As mesmas necessidades, a mesma capacidade de agir, que recortaram nosso corpo na matéria, irão delimitar corpos distintos no meio que nos cerca. Tudo se passará como se deixássemos filtrar a ação real das coisas exteriores para deter e reter delas a ação virtual: essa ação virtual das coisas sobre nosso corpo e de nosso corpo sobre as coisas é propriamente a nossa percepção. Mas, como os estímulos que nosso corpo recebe dos corpos circundantes determinam constantemente, em sua substância, reações nascentes, e como os movimentos interiores da substância cerebral esboçam assim a todo momento nossa ação possível sobre as coisas, o estado cerebral corresponde exatamente à percepção. Não é nem sua causa, nem seu efeito, nem, em nenhum sentido, sua duplicata: ele simplesmente a prolonga, a percepção sendo nossa ação virtual e o estado cerebral nossa ação começada."

p. 272 a 273
"Nossa percepção, dizíamos, desenha a ação possível de nosso corpo sobre os outros corpos. Mas nosso corpo, sendo extenso, é capaz de agir sobre si mesmo tanto quanto sobre os outros. Em nossa percepção entrará portanto algo de nosso corpo. Todavia, quando se trata dos corpos circundantes, eles são, por hipótese, separados do nosso corpo por um espaço mais ou menos considerável, que mede o afastamento de suas promessas ou de suas ameaças no tempo: é por isso que nossa percepção desses corpos só desenha ações possíveis. Ao contrário, quanto mais a distância diminui entre esses corpos e o nosso, tanto mais a ação possível tende a se transformar em ação real, a ação tornando-se mais urgente à medida que a distância decresce. E, quando essa distância é nula, ou seja, quando o corpo a perceber está em nosso próprio corpo, é uma ação real, e não mais virtual, que a percepção desenha. Tal é precisamente a natureza da dor, esforço atual da parte lesada para recolocar as coisas no lugar, esforço local, isolado, e por isso mesmo condenado ao insucesso num organismo que já não é mais apto senão aos efeitos de conjunto. A dor portanto está no local onde se produz, como o objeto está no lugar onde é percebido. Entre a afecção sentida e a imagem percebida existe a diferença de que a afecção está em nosso corpo, a imagem  fora de nosso corpo. E por isso a superfície de nosso corpo, limite comum deste corpo e dos outros corpos, nos é dada ao mesmo tempo na forma de sensação e na forma de imagem."

p. 274
"É portanto a percepção pura, isto é, a imagem, que devemos nos dar em primeiro lugar. E as sensações, longe de serem os materiais com que a imagem é fabricada, aparecerão como a impureza que nela se mistura, sendo aquilo que projetamos de nosso corpo em todos os outros."

p. 274 a 275
"o próprio universo material, definido como a totalidade das imagens, é uma espécie de consciência, uma consciência em que tudo se compensa e se neutraliza, uma consciência em que todas as partes eventuais, equilibrando-se umas às outras através de reações sempre iguais às ações, impedem-se mutuamente de se destacarem."

p. 276
"como nossa percepção do objeto presente era algo desse objeto mesmo, nossa representação do objeto ausente será um fenômeno completamente diferente da percepção, uma vez que entre a presença e a ausência não há nenhum grau, nenhum meio-termo."

p. 278
"o reconhecimento não se fazia em absoluto por um despertar mecânico de lembranças adormecidas no cérebro. Ele implica, ao contrário, uma tensão mais ou menos alta da consciência, que vai buscar na memória pura as lembranças puras, para materializá-las progressivamente em contato com a percepção presente."

p. 280
"A verdade é que a memória não consiste, em absoluto, numa regressão do presente ao passado, mas, pelo contrário, num progresso do passado ao presente. É no passado que nos colocamos de saída. Partimos de um "estado virtual", que conduzimos pouco a pouco, através de uma série de planos de consciência diferentes, até o termo em que ele se materializa numa percepção atual, isto é, até o ponto em que ele se torna um estado presente e atuante, ou seja, enfim, até esse plano extremo de nossa consciência em que se desenha nosso corpo."

p. 280 281
"Mas a verdade é que nosso presente não deve se definir como o que é mais intenso: ele é o que age sobre nós e o que nos faz agir, ele é sensorial e motor; - nosso presente é antes de tudo o estado de nosso corpo. Nosso passado, ao contrário, é o que não age mais, mas poderia agir, o que agirá ao inserir-se numa sensação presente da qual tomará emprestada a vitalidade. É verdade que, no momento em que a lembrança se atualiza passando assim a agir, ela deixa de ser lembrança, torna-se novamente percepção."

p. 281
"a lembrança não poderia resultar de um estado cerebral. O estado cerebral prolonga a lembrança; faz com que ela atue sobre o presente pela materialidade que lhe confere; mas a lembrança pura é uma manifestação espiritual. Com a memória estamos efetivamente no domínio do espírito."

p. 282
"menos sonhada, isto é, mais próxima da ação e por isso mesmo mais banal, mais capaz de se modelar - como uma roupa de confecção - conforme a novidade da situação presente."

p. 282 a 283
"Entre o plano da ação - o plano em que nosso corpo contraiu seu passado em hábitos motores - e o plano da memória pura, em que nosso espírito conserva em todos os seus detalhes o quadro de nossa vida transcorrida, acreditamos perceber, ao contrário, milhares e milhares de planos de consciência diferentes, milhares de repetições integrais e no entanto diversas de totalidade de nossa experiência vivida. Completar uma lembrança com detalhes mais pessoais não consiste, de modo algum, em justapor mecanicamente lembranças a esta lembrança, mas em transportar-se a um plano de consciência mais extenso, em afastar-se da ação na direção do sonho. Localizar uma lembrança não consiste também em inseri-la mecanicamente entre outras lembranças, mas em descrever, por uma expansão crescente da memória em sua integralidade, um círculo suficientemente amplo para que esse detalhe do passado aí apareça. Esses planos não são dados, aliás, como coisas inteiramente prontas, superpostas umas às outras. Eles existem antes virtualmente, com essa experiência que é própria à coisas do espírito. A inteligência, movendo-se a todo instante ao longo do intervalo que as separa, as reencontra, ou melhor, as cria de novo sem cessar: sua vida consiste nesse próprio movimento."

p. 283
"O interesse de um ser vivo é perceber numa situação presente o que se assemelha a uma situação anterior, em seguida aproximar dela o que a precedeu e sobretudo o que a sucedeu, a fim de tirar proveito de sua experiência passada. De todas as associações que se poderiam imaginar, as associações por semelhança e contigüidade são portanto as únicas que têm inicialmente uma utilidade vital."

p. 284
"E por isso será sempre fácil para uma certa filosofia, dizíamos, localizar a idéia geral em uma das duas extremidades, cristalizando-a em palavras ou evaporando-as em lembranças, quando em realidade ela consiste na marcha do espírito que vai de uma extremidade a outra."

p. 286
"O que é dado não são sensações inextensivas: como haveriam elas de juntar-se ao espaço, escolher um lugar, coordenar-se enfim a ele para construir uma experiência universal? O que é real também não é uma extensão dividida em partes independentes: de que maneira aliás, não tendo assim nenhuma relação possível com nossa consciência, ela haveria de desenvolver uma série de mudanças cuja ordem e cujas relações correspondessem exatamente à ordem e às relações de nossa representação? O que é dado, o que é real, é algo intermediário entre a extensão dividida e o inextenso puro; é aquilo que chamamos de extensivo."

p. 289
"Entre as qualidades sensíveis consideradas em nossa representação e essas mesmas qualidades tratadas como mudanças calculáveis, há portanto apenas uma diferença de ritmo de duração, uma diferença de tensão interior."

p. 290 a 291
"O progresso da matéria viva consiste numa diferenciação das funções que leva primeiramente à formação, e depois à complicação gradual, de um sistema nervoso capaz de canalizar excitações e organizar ações: quanto mais os centros superiores se desenvolverem, mais numerosas se tornarão as vias motoras entre as quais uma mesma excitação irá propor à ação uma escolha.

Uma amplitude cada vez maior oferecida ao movimento no espaço, eis efetivamente o que se vê. O que não se vê é a tensão crescente e concomitante da consciência no tempo. Não apenas, por sua memória das experiências já antigas, essa consciência retém cada vez melhor o passado para organizá-lo com o presente numa decisão mais rica e mais nova, como, vivendo uma vida mais intensa, condensando, por sua memória da experiência imediata, um número crescente de momentos exteriores em sua duração presente, ela torna-se mais capaz de criar atos cuja indeterminação interna, devendo repartir-se em uma multiplicidade tão grande quanto se queira dos momentos da matéria, passará tanto mais facilmente através das malhas da necessidade.

Assim, quer a consideremos no tempo ou no espaço, a liberdade parece sempre lançar na necessidade raízes profundas e organizar-se intimamente com ela." 

Fonte:

Sejam felizes todos os seres. 
Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

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