sábado, 26 de junho de 2010

MEMÓRIA E MATÉRIA - Henri Bergson - 03

 HENRI-LOUIS  BERGSON
Citações...

 HENRI-LOUIS BERGSON

p. 175 a 176
"Na fração de segundo que dura a mais breve percepção possível de luz, trilhões de vibrações tiveram lugar, sendo que a primeira está separada da última por um intervalo enormemente dividido. A sua percepção, por mais instantânea, consiste portanto numa incalculável quantidade de elementos rememorados, e, para falar a verdade, toda percepção é já memória. Nós só percebemos, praticamente, o passado, o presente puro sendo o inapreensível avanço do passado a roer o futuro."

p. 176
"Nossa repugnância em admitir a sobrevivência integral do passado deve-se portanto à própria orientação de nossa vida psicológica, verdadeiro desenrolar de estados em que nos interessa olhar o que se desenrola, e não o que está inteiramente desenrolado."

p. 177
"a memória verdadeira. Coextensiva à consciência, ela retém e alinha uns após outros todos os nossos estados à medida que eles se produzem, dando a cada fato seu lugar e conseqüentemente marcando-lhe a data, movendo-se efetivamente no passado definitivo, e não, como a primeira [a memória-hábito], num presente que recomeça a todo instante."
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"nosso corpo não é nada mais que a parte invariavelmente renascente de nossa representação, a parte sempre presente, ou melhor, aquela que acaba a todo momento de passar. Sendo ele próprio imagem, esse corpo não pode armazenar as imagens, já que faz parte das imagens; por isso é quimérica a tentativa de querer localizar as percepções passadas, ou mesmo presentes, no cérebro: elas não estão nele; é ele que está nelas."

p. 177 a 178
"Se eu representar por um cone SAB a totalidade das lembranças acumuladas em minha memória, a base AB, assentada no passado, permanece imóvel, enquanto o vértice S, que figura a todo momento meu presente, avança sem cessar, e sem cessar também toca o plano móvel P de minha representação atual do universo. Em S concentra-se a imagem do corpo; e, fazendo parte do plano P, essa imagem limita-se a receber e a devolver as ações emanadas de todas as imagens de que se compõe o plano."

p. 179
"Para que uma lembrança reapareça à consciência, é preciso com efeito que ela desça das alturas da memória pura até o ponto preciso onde se realiza a ação. Em outras palavras, é do presente que parte o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório-motores da ação presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida."
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"Viver no presente puro, responder a uma excitação através de uma reação imediata que a prolonga, é próprio de um animal inferior: o homem que procede assim é um impulsivo. Mas não está melhor adaptado à ação aquele que vive no passado por mero prazer, e no qual as lembranças emergem à luz da consciência sem proveito para a situação atual: este não é mais um impulsivo, mas um sonhador. Entre esses dois extremos situa-se a favorável disposição de uma memória bastante dócil para seguir com precisão os contornos da situação presente, mas bastante enérgica para resistir a qualquer outro apelo. O bom senso, ou senso prático, não é na verdade outra coisa."

p. 180
"O desenvolvimento extraordinário da memória espontânea na maior parte das crianças deve-se principalmente a que elas ainda não solidarizaram sua memória com sua conduta. Seguem habitualmente a impressão do momento, e, como a ação não se submete nelas à indicações da lembrança, inversamente suas lembranças não se limitam às necessidades da ação. Elas só parecem reter com mais facilidade porque se lembram com menos discernimento. A diminuição aparente da memória, à medida que a inteligência se desenvolve, deve-se portanto à organização crescente das lembranças com os atos. A memória consciente perde assim em extensão o que ganha em força de penetração."
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"Mas se nosso passado permanece quase inteiramente oculto para nós porque é inibido pelas necessidades da ação presente, ele irá recuperar a força de transpor o limite da consciência sempre que nos desinteressarmos da ação eficaz para nos recolocarmos, de algum modo, na vida do sonho. O sono, natural ou artificial, provoca justamente um desinteresse desse tipo."

p. 181 a 182
"Um ser humano que sonhasse sua existência em vez de vivê-la manteria certamente sob seu olhar, a todo momento, a multidão infinita dos detalhes de sua história passada. E aquele que, ao contrário, repudiasse essa memória com tudo o que ela engendra, encenaria sem cessar sua existência em vez de representá-la verdadeiramente: autômato consciente, seguiria a encosta dos hábitos úteis que prolongam a excitação em reação apropriada. O primeiro não sairia jamais do particular,  e mesmo do individual. Dando a cada imagem sua data no tempo e seu lugar no espaço, veria por onde ela difere das outras e não por onde se assemelha. O outro, ao contrário, sempre conduzido pelo hábito, só distinguiria numa situação o lado por onde ela se assemelha praticamente a situações anteriores."

p. 183
"para generalizar é preciso primeiro abstrair, mas para abstrair utilmente é preciso já saber generalizar."

p. 185
"A generalização só pode ser feita por uma extração de qualidades comuns; mas as qualidades, para serem comuns, deverão já ter sofrido um trabalho de generalização."
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"parece claro que a distinção nítida dos objetos individuais seja um luxo da percepção, do mesmo modo que a representação clara das idéias gerais é um refinamento da inteligência."

p. 185 a 186
"Parece portanto que não começamos nem pela percepção do indivíduo nem pela concepção do gênero, mas por um conhecimento intermediário, por um sentimento confuso de qualidade marcante ou de semelhança: este sentimento, igualmente afastado da generalidade plenamente concebida e da individualidade claramente percebida, as engendra, uma e outra, por meio da dissociação. A análise reflexiva o depura em idéia geral; a memória discriminativa o solidifica em percepção do individual."

p. 187

"do mineral à planta, da planta aos mais simples organismos conscientes, do animal ao homem, acompanha-se o progresso da operação pela qual as coisas e os organismos apreendem em seu ambiente o que os atrai, o que os interessa praticamente, sem que haja necessidade de abstrair, simplesmente porque o restante do ambiente permanece sem ação sobre eles: essa identidade de reação a ações superficialmente diferentes é o germe que a consciência humana desenvolve em idéias gerais."

p. 187 a 188
"A sensação é instável; ela pode adquirir as nuances mais variadas; o mecanismo motor ao contrário, uma vez montado, funcionará invariavelmente da mesma maneira. Podem-se portanto supor percepções as mais diferentes possíveis em seus detalhes superficiais: se elas se prolongam pelas mesmas reações motoras, se o organismo é capaz de extrair delas os mesmos efeitos úteis, se elas imprimem ao corpo a mesma atitude, algo de comum irá resultar daí, e deste modo a idéia geral terá sido sentida e experimentada antes de ser representada."

p. 188

"a semelhança de que o espírito parte, quando abstrai de início, não é a semelhança a que o espírito chega quando, conscientemente, generaliza. Aquela de que ele parte é uma semelhança sentida, vivida, ou, se quiserem, automaticamente desempenhada. Aquela a que ele chega é uma semelhança inteligentemente percebida ou pensada. E é precisamente ao longo desse progresso que se constróem, através do duplo esforço do entendimento e da memória, a percepção dos indivíduos e a concepção dos gêneros - a memória introduzindo distinções nas semelhanças espontaneamente abstraídas, o entendimento retirando do hábito das semelhanças a idéia clara da generalidade. Essa idéia de generalidade não era, na origem, senão nossa consciência de uma identidade de atitude numa diversidade de situações; era o próprio hábito, remontando da esfera dos movimentos à do pensamento. Mas, dos gêneros assim esboçados mecanicamente pelo hábito, passamos, por um esforço de reflexão efetuado sobre essa própria operação, à idéia geral do gênero; e, uma vez constituída essa idéia, construímos, agora voluntariamente, um número ilimitado de noções gerais."

p. 192

"entre duas idéias quaisquer, escolhidas ao acaso, há sempre semelhança e sempre, se quiserem, contigüidade, de sorte que, ao descobrir uma relação de contigüidade ou de semelhança entre duas representações que se sucedem, não se explica em absoluto por que uma evoca a outra."

p. 193
"Na realidade, percebemos as semelhanças antes dos indivíduos que se assemelham, e, num agregado de partes contíguas, o todo antes das partes. Vamos da semelhança aos objetos semelhantes, bordando sobre a semelhança, essa talagarça comum, a variedade das diferenças individuais. E vamos também do todo às partes, por um trabalho de decomposição cuja lei veremos mais adiante, e que consiste em parcelar, para a maior comodidade da vida prática, a continuidade do real. A associação não é , portanto, o fato primitivo; é por uma dissociação que começamos, e a tendência de toda lembrança a se agregar a outras explica-se por um retorno natural do espírito à unidade indivisa da percepção."

p. 194 a 195
"a solidariedade dos fatos psicológicos, sempre dados juntos à consciência imediata como um todo indiviso que somente a reflexão separa em fragmentos distintos."

p. 196
"Uma consciência que, desligada da ação, mantivesse sob o olhar a totalidade de seu passado, não teria nenhuma razão para se fixar sobre uma parte desse passado em vez de uma outra."

p. 198
"Tudo se passa como se nossas lembranças fossem repetidas um número indefinido de vezes nesses milhares e milhares de reduções possíveis de nossa vida passada. Elas adquirem uma forma mais banal quando a memória se contrai, mais pessoal que se dilata, e deste modo participam de uma quantidade ilimitada de "sistematizações" diferentes. Uma palavra de uma língua estrangeira, pronunciada a meu ouvido, pode fazer-me pensar nessa língua em geral ou em uma voz que a pronunciava outrora de uma certa maneira. Essas duas associações por semelhança não se devem à chegada acidental de duas representações diferentes que o acaso teria trazido sucessivamente à esfera de atração da percepção atual. Elas respondem a duas disposições mensais diversas, a dos graus distintos de tensão da memória, aqui mais próxima à imagem pura, ali mais voltada à resposta imediata, ou seja, à ação."

p. 200

"Há sempre algumas lembranças dominantes, verdadeiros pontos brilhantes em torno dos quais os outros formam uma vaga nebulosidade. Esses pontos brilhantes multiplicam-se à medida que se dilata nossa memória."

p. 202
"o espírito percorria sem cessar o intervalo compreendido entre seus dois limites extremos, o plano da ação e o plano do sonho."

p. 203

"Nosso corpo, com as sensações que recebe de um lado e os movimentos que é capaz de executar de outro, é portanto aquilo que efetivamente fixa nosso espírito, o que lhe proporciona a base e o equilíbrio. A atividade do espírito ultrapassa infinitamente a massa das lembranças acumuladas, assim como essa massa de lembranças ultrapassa infinitamente as sensações e os movimentos do momento presente; mas essas sensações e movimentos condicionam o que se poderia chamar de atenção à vida, e é por isso que tudo depende de sua coesão no trabalho normal do espírito, como numa pirâmide que se equilibrasse sobre sua ponta."
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"Passemos os olhos, aliás, na fina estrutura do sistema nervoso, tal como a revelaram descobertas recentes. Acreditaremos ver por toda parte condutores, em nenhuma parte centros. Fios dispostos de uma ponta à outra e cujas extremidades se aproximam certamente quando a corrente passa, eis tudo o que se vê. E talvez seja tudo o que existe, se é verdade que o corpo não é mais que um lugar de encontro entre as excitações recebidas e os movimentos efetuados, tal como supusemos ao longo de todo o nosso trabalho."

p. 204

"De sorte que o sonho seria sempre o estado de um espírito cuja atenção não é fixada pelo equilíbrio sensório-motor do corpo."

p. 208
"Todos os fatos e todas as analogias estão a favor de uma teoria que veria no cérebro apenas um intermediário entre as sensações e os movimentos, que faria desse conjunto de sensações e movimentos a ponta extrema da vida mental, ponta incessantemente inserida no tecido dos acontecimentos, e que, atribuindo assim ao corpo a única função de orientar a memória para o real e ligá-la ao presente, consideraria essa própria memória como absolutamente independente da matéria. Neste sentido, o cérebro contribui para chamar de volta a lembrança útil, porém mais ainda para afastar provisoriamente todas as outras. Não vemos de que modo a memória se alojaria na matéria; mas compreendemos bem - conforme a observação profunda de um filósofo contemporâneo [Ravaisson] - que "a materialidade ponha em nós o esquecimento"."


p. 209
"Uma conclusão geral decorre dos três primeiros capítulos deste livro: a de que o corpo, sempre orientado para a ação, tem por função essencial limitar, em vista da ação, a vida do espírito. Com relação à representações, ele é um instrumento de seleção, e de seleção apenas. Não poderia nem engendrar nem ocasionar um estado intelectual. No que diz respeito à percepção, nosso corpo, pelo lugar que ocupa a todo instante no universo, marca as partes e os aspectos da matéria sobre os quais teríamos ação: a percepção, que mede justamente nossa ação virtual sobre as coisas, limita-se assim aos objetos que influencima nossos órgãos e preparam nossos movimentos. No que diz respeito à memória, o papel do corpo não é armazenar

as lembranças, mas simplesmente escoher, para trazê-la à consciência distinta graças à eficácia real que lhe confere, a lembrança útil, aquela que completará e esclarecerá a situação presente em vista da ação final."

p. 210

"Uma certa margem é portanto necessariamente deixada desta vez à fantasia; e, se os animais não se aproveitam muito dela, cativos que são da necessidade material, parece que o espírito humano, ao contrário, lança-se a todo instante com a totalidade de sua memória de encontro à porta que o corpo lhe irá entreabrir: daí os jogos da fantasia e o trabalho da imaginação - liberdades que o espírito toma com a natureza. É verdade que mesmo assim a orientação de nossa consciência para a ação parece ser a lei fundamental de nossa vida psicológica."

p. 212
"nossa percepção fazendo parte das coisas, as coisas participam da natureza de nossa percepção."

p. 213

"Ora, onde está exatamente a diferença entre as qualidades heterogêneas que se sucedem em nossa percepção concreta e as mudanças homogêneas que a ciência coloca por trás dessas percepções no espaço? As primeiras são descontínuas e não podem ser deduzidas umas das outras; as segundas, ao contrário, prestam-se ao cálculo. Mas, porque se prestam a isso, não há necessidade de fazer delas quantidades puras: equivaleria a reduzi-las ao nada. Basta que sua heterogeneidade seja suficientemente diluída, de certo modo, para tornar-se, de nosso ponto de vista, praticamente negligenciável. Ora, se todapercepção concreta, por mais breve que a suponhamos, já é a síntese, pela memória, de uma infinidade de "percepções puras" que se sucedem, não devemos pensar que a heterogeneidade relativa das qualidades sensíveis tem a ver com sua contração em nossa memória, e a homogeneidade relativa das mudanças objetivas com seu relaxamento natural?"

p. 213 a 214
"O que chamamos ordinariamente um fato não é a realidade tal como apareceria a uma intuição imediata, mas uma adaptação do real aos interesses da prática e às exigências da vida social."

p. 214
"A intuição pura, exterior ou interna, é a de uma continuidade indivisa. Nós a fracionamos em elementos justapostos, que correspondem, aqui a palavras distintas, ali a objetos independentes. Mas, justamente porque rompemos assim a unidade de nossa intuição original, sentimo-nos obrigados a estabelecer entre os termos disjuntos um vínculo, que já não poderá ser senão exterior e justaposto. À unidade viva, nascida da continuidade interior, substituímos a unidade factícia de uma moldura vazia, inerte como os termos que ela mantém unidos."
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"Justamente porque essa fragmentação do real se operou em vista das exigências da vida prática, ela não acompanhou as linhas interiores da estrutura das coisas".

p. 215

"se a metafísica não é mais que uma construção, há várias metafísicas igualmente verossímeis, que se refutam  conseqüentemente umas às outras, e a última palavra caberá a uma filosofia crítica que toma todo conhecimento por relativo e o âmago das coisas por inacessível ao espírito."
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"Tal é, com efeito, a marcha regular do pensamento filosófico: partimos daquilo que acreditamos seja a experiência,procuramos diversos arranjos possíveis entre os fragmentos que a compõem aparentemente, e, diante da fragilidade reconhecida de todas as nossas construções, acabamos por renunciar a construir.

- Mas haveria um último empreendimento a tentar. Seria ir buscar a experiência em sua fonte, ou melhor, acima dessa virada decisiva em que ela, infletindo-se no sentido de sua utilidade, torna-se propriamente experiência humana."


p. 216

"Esse método apresenta, na aplicação, dificuldades consideráveis e que não cessam de renascer, porque ele exige, para a solução de cada novo problema, um esforço inteiramente novo. Renunciar a certos hábitos de pensar e mesmo de perceber já é difícil: mas esta é só a parte negativa do trabalho a ser feito; e, quando a fizemos, quando nos colocarmos naquilo que chamávamos a virada da experiência, quando aproveitamos a nascente claridade que, ao iluminar a passagem do imediato ao útil, dá início à aurora de nossa experiência humana, resta ainda reconstituir, com os elementos infinitamente pequenos que percebemos da curva real, a forma da própria curva que se estende na obscuridade atrás deles."

p. 217

"Daí os dois pontos de vista opostos sobre a questão da liberdade: para o determinismo, o ato é a resultante de uma composição mecânica dos elementos entre si; para seus adversários, se estivessem rigorosamente de acordo com seu princípio, a decisão livre deveria ser um fiat arbitrário, uma verdadeira criação ex nihilo. - Pensamos que haveria um terceiro partido a tomar. Seria colocarmo-nos na duração pura, cujo decorrer é contínuo, e onde passamos, por gradações insensíveis, de um estado a outro: continuidade realmente vivida, mas artificialmente decomposta para a maior comodidade do conhecimento usual. Então acreditamos ver a ação sair de seus antecedentes por uma evolução sui generis, de tal sorte que encontramos nessa ação os antecedentes que a explicam, e no entanto ela acrescenta aí algo de absolutamente novo, estando em desenvolvimento neles como o fruto na flor."

p. 217 a 218

"A duração em que nos vemos agir, e em que é útil que nos vejamos, é uma duração cujos elementos se dissociam e se justapõem; mas a duração em que agimos é uma duração na qual nossos estudos se fundem uns nos outros, e é lá que devemos fazer um esforço para nos colocar pelo pensamento no caso excepcional e único em que especulamos sobre a natureza íntima da ação, ou seja, na teoria da liberdade."

p. 218 a 219
"A questão é saber se, nessa "diversidade dos fenômenos" de que falou Kant, a massa confusa com tendência extensiva poderia ser apreendida aquém do espaço homogêneo sobre o qual ela se aplica e por intermédio do qual a subdividimos - do mesmo modo que nossa vida interior é capaz de se desligar do tempo indefinido e vazio para voltar a ser duração pura. Certamente, seria um empreendimento quimérico querer libertar-se das condições fundamentais da percepção exterior. Mas a questão é saber se certas condições, que tomamos geralmente por fundamentais, não concerniriam ao uso a fazer das coisas, à vantagem prática que nos proporcionam, bem mais do que ao conhecimento puro que podemos ter delas.

Mais particularmente, no que se refere à extensão concreta, contínua, diversificada e ao mesmo tempo organizada, pode-se contestar que ela seja solidária ao espaço amorfo e inerte que a subentende, espaço que dividimos indefinidamente, onde separamos figuras arbitrariamente, e onde o próprio movimento, conforme dizíamos em outra parte, só pode aparecer como uma multiplicidade de posições instantâneas, já que nada poderia assegurar nele a coesão do passado e do presente. Seria possível portanto, numa certa medida, libertar-se do espaço sem sair da extensão, e haveria efetivamente aí um retorno imediato, uma vez que percebemos de fato a extensão, enquanto não fazemos mais que conceber o espaço à maneira de um esquema."

p. 219

"Mas que razões teríamos para duvidar de um conhecimento?"

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"Todo movimento, enquanto passagem de um repouso a um repouso, é absolutamente indivisível."

p. 220

"Quando vejo o móvel passar num ponto, concebo certamente que ele possa se deter nele; e, ainda que não se detenha, tendo a considerar sua passagem como um repouso infinitamente curto, porque necessito pelo menos do tempo para pensar nele; mas é apenas minha imaginação que repousa aqui, e o papel do móvel, ao contrário, é se mover."

p. 221 a 222
"Você substitui o trajeto pela trajetória e, porque o trajeto está subentendido pela trajetória, você acredita que ambos coincidem. Mas de que modo um progresso coincidiria com uma coisa, um movimento com uma imobilidade?"

p. 222
"A indivisibilidade do movimento implica portanto a impossibilidade do instante."

p. 223 a 224

"Os argumentos de Zenão de Eléia não têm outra origem senão a ilusão. Todos consistem em fazer coincidir o tempo e o movimento com a linha que os subentende, em atribuir-lhes as mesmas subdivisões, enfim, em tratá-los como linha. A essa confusão Zenão era encorajado pelo senso comum, que transporta geralmente ao movimento as propriedade de sua trajetória, e também pela linguagem, que traduz sempre em espaço o movimento e a duração. 

Mas o senso comum e a linguagem estão aqui em seu direito, e inclusive cumprem, de certo modo, seu dever, pois, considerando sempre o devir como uma coisa utilizável, eles não têm por que se inquietar mais com a organização interior do movimento do que o operário com a estrutura molecular de suas ferramentas. Ao tomar o movimento por divisível como sua trajetória, o senso comum exprime apenas os dois fatos únicos que importam na vida prática: 1) que todo movimento descreve um espaço; 2) que em cada ponto desse

espaço o móvel poderia se deter. Mas o filósofo que reflete sobre a natureza íntima do movimento é obrigado a restituir-lhe a mobilidade que é sua essência, e é isto que Zenão não faz."

p. 224
"é impossível construir [...] o movimento com imobilidades".

Fonte
Sejam felizes todos os seres. 
Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

Um comentário:

ingrid disse...

Olá! RADEIR, foi um prazer enorme encontrar seu, digamos, "fichamento" de Matéria e Memória. Estava buscando aqui no livro a passagem onde Bergson faz a distinção entre trajeto e trajetória e não a encontrava... e deu-me na veneta buscar na internet
ao encontrar seu blog, (muito obrigada) localizei a citação na pag 156 da minha edição comprada em sebo (martins Fontes 1990) qual edição vc usa ? vejo ser a mesma tradução com outras paginação,
abraço, ingrid
imx.muller10@gmail.com