sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O SEGREDO DA FLOR DE OURO - C.G.JUNG

 

O SEGREDO DA FLOR DE OURO
       UM LIVRO DE VIDA CHINÊS
 
   C.G.Jung / R.Wilhelm

      Tradução de
 Dora Ferreira da Silva  e Maria Luiza Appy

5  . A REALIZAÇÂO  ( PLENIFICAÇÃO)


O conhecimento que se tem do espírito oriental pode ser considerado como
a expressão simbólica do relacionamento com o estranho em nós mesmos.
seria uma tolice completa renegar nossas bases históricas, sem falar no perigo de que seria este o melhor modo de provocar um novo desenraizamento. Apenas nos mantendo com firmeza na própria terra, poderemos assimilar o espírito do Oriente.

Diz GU DE: “As pessoas mundanas perderam as raízes e se atêm às copas das árvores”, referindo-se aos que não sabem onde estão as verdadeiras fontes da força secreta. O espírito do Oriente nasceu da terra amarela, e assim o nosso espírito pode e deve nascer da nossa própria terra. É este o motivo pelo qual eu me acerco destes problemas de um modo que me valeu muitas vezes a censura de “ psicologismo”. Se por isso se entendesse “psicologia”, sentir-me-ia lisonjeado, uma vez que é meu intuito afastar decididamente a pretensão metafísica de todos os ensinamentos secretos; o desejo oculto de obter poder através das palavras não suporta a ignorância profunda que deveríamos ter a modéstia de reconhecer.

Deliberadamente, faço o possível para trazer à luz da compreensão psicológica certas coisas que soam de um modo metafísico, a fim de evitar que as pessoas acreditem em obscuras palavras de poder. Todo cristão convicto deve crer, porque assumiu tal dever. Mas quem não o é, perdeu por sua própria culpa a graça da fé. (Talvez tenha sido condenado a não crer desde que nasceu , para somente poder saber). E não deve também acreditar em algo diferente. É impossível compreender metafísicamente , mas tão-só psicologicamente. Assim ,pois , dispo as coisas de seu aspecto  metafísico, para torná-las objeto da psicologia .

Desse modo pelo menos consigo  extrair delas algo de compreensível para integrá-lo captando o fato e processos psicológicos anteriormente ocultos em símbolos que ultrapassam minha compreensão. Dessa forma. posso percorrer um caminho semelhante ao da fé, tendo experiências similares, e se houver no fundo de tudo isso algo de inefavelmente metafísico, é a melhor ocasião para que se revele.

Minha admiração pelos grandes filósofos do Oriente é tão indubitável, quanto irreverente minha posição relativamente à sua metafísica. Suspeito de que fazem uma psicologia simbólica e seria um erro, portanto, tomá-los literalmente. Se se tratasse de metafísica, tal como pretendem, nada seria mais inútil do que tentar compreendê-los , Tratando-se porém de psicologia, não só poderemos compreendê-los, como também tiraremos um grande proveito disso, porquanto essa assim chamada “ metafísica” tornar-se-á experimental . Se aceito que Deus é absoluto, ultrapassando qualquer possibilidade de experiência humana, isto me deixa indiferente. Não atuo sobre ele, nem sobre mim. Mas se, pelo contrário, sei que é um poderoso impulso da minha alma, posso tratar com ele; tornar-se-á importante, talvez de modo desagradável, na prática (por mais banal que isto possa soar), como tudo aquilo que se manifesta na  esfera do real.

A palavra depreciativa “psicologismo”  atinge apenas os tolos que julgam ter a alma no bolso. É verdade que há uma multidão deles, pois a desvalorização  de tudo o que diz respeito às “coisas anímicas” constitui um procedimento  tipicamente ocidental, por mais grandiloquentes que sejam as referências à “ alma”. Quando emprego a expressão “complexo anímico autônomo”, meu público já tem um preconceito formado: “ nada mais do que um complexo anímico” . Mas como se pode estar tão seguro de que a alma “ não é mais do que”? Tudo se passa como se as mencionadas pessoas não soubessem, ou então se esquecessem de que tudo aquilo que se torna consciente é imagem e de que  imagem é alma.  Julgam depreciativo considerar Deus como o movido e o move no âmbito da alma, como um “ complexo autônomo”, e  no entanto são inválidos por afetos incontroláveis e por estados neuróticos, diante dos quais toda  a sua vontade e sabedoria fracassam de modo lamentável. Será isso a prova da impotência da alma?

Dever-se-á acusar Mestre ECKART de “psicologismo” por ter dito:
     Deus deve nascer sempre de novo em nossa alma?”

Na minha opinião deve-se acusar de “psicologismo” ao intelecto que nega a natureza verídica do complexo autônomo, procurando explicá-lo racionalisticamente  como uma conseqüência de fatos conhecidos, isto é, como algo de derivado. Este juízo é tão arrogante quanto a posição “metafísica” que confia a uma divindade, que ultrapassa os limites do humano e de toda experiência, a responsabilidade de nossos estados anímicos.  O psicologismo é simplesmente a contrapartida do abuso metafísico, e tão infantil quanto ele. Parece-me, portanto, mais razoável atribuir à alma a mesma validez que ao mundo no qual o eu está contido.
Talvez haja peixes que acreditem conter o mar. Devemos livrar-nos dessa ilusão comum, se quisermos considerar as afirmações  metafísicas de um ponto de vista psicológico.

A idéia do “corpo diamantino”, do corpo-alento incorruptível que nasce na flor de ouro, ou no espaço da polegada quadrada, é uma dessas afirmações metafísicas. Esse corpo é, como os demais, um símbolo de um fato psicológico muito importante, o qual, por ser objetivo, aparece primeiramente projetado em formas através de experiências da vida biológica: fruto, embrião,criança, corpo vivente, etc. Tal fato pode expressar-se  melhor pelas palavras:
     “ Não sou eu que vivo, mas sou vivido”.


A ilusão de preponderância consciente faz-me acreditar que sou eu quem vive. Mas se esta ilusão for abalada pelo reconhecimento do fator inconsciente, este último aparece então como algo de objetivo, no qual o eu está incluso; tal atitude é um pouco semelhante à do homem primitivo, que considera seu filho a garantia da continuação de sua própria vida; sentimento que pode revestir-se de aspectos grotescos, como no caso do velho negro que, indignado com a desobediência do filho, exclamou:
 “Aí está ele, com meu corpo, e nem sequer me obedece!”

Trata-se de uma mudança do sentimento interno, semelhante à que experimenta um pai, cujo filho nasceu; mudança que conhecemos através do testemunho do apóstolo Paulo: “ Não sou eu que mais que vive, mas é  Cristo que vive em mim”

O símbolo “Cristo, como  “filho do Homem” , é uma experiência psíquica análoga à de um  ser espiritual mais alto que nasce do indivíduo, corpo pneumático que nos servirá de morada futura. Na expressão de Paulo, esse corpo cobre-nos como uma veste ( “vós que vos revestistes de Cristo”) . Naturalmente, é sempre muito problemático exprimir em termos intelectuais sentimentos sutis que são, no entanto, muito importantes para a vida e o bem-estar do indivíduo.

Em certo sentido, trata-se de sentir que somos “substituídos”, sem ser “destituídos”. É como se o rumo dos assuntos da vida se deslocasse em
Direção a um lugar central e invisível. A metáfora de NIETZSCHE: “livre na mais amorosa das prisões “, caberia muito bem aqui. A linguagem religiosa é rica de imagens que exprimem esta livre dependência, esta calma aceitação.

Vejo nesta experiência impressionante uma conseqüência do desprendimento da consciência, graças ao qual o “eu vivo” subjetivo se transforma no objetivo “sou vivido”. Esta situação é realmente como que um libertar-se da compulsão e da responsabilidade absurdas, que são conseqüências  inevitáveis da participation mystique. Este é também o sentimento de reconciliação com tudo o que acontece, pois segundo o Hai Ming Ging, o olhar daquele que atinge a realização ou plenificação se volta para o esplendor da natureza.

No símbolo paulino de Cristo, as experiências supremas do Ocidente e do Oriente se tocam: Cristo, o herói carregado de dores e a Flor de Ouro que floresce na sala púrpura da cidade de jade.Que contraste! Que diferença impensável, que abismo da História! Problema digno de coroar a obra de um futuro psicólogo!

Ao lado dos grandes problemas religiosos do presente há um, tão pequeno quanto esquecido: o do progresso do espírito religioso. Para discuti-lo, teremos de ressaltar a diferença entre Oriente e Ocidente, quanto ao modo de tratar a “jóia”, isto é, o símbolo central. O Ocidente enfatiza a encarnação humana, a personalidade e historicidade do Cristo, ao passo que no Oriente se diz: “sem começo, sem fim, sem passado, sem futuro”.



O Cristo subordina-se à pessoa  divina e superior, à espera de sua graça; mas o oriental sabe que a redenção depende de sua própria obra. O Tão em sua totalidade cresce a partir do indivíduo. A imitatio Christi tem esta desvantagem: ao longo do caminho cultuamos, como um exemplo divino, um homem que encarnou o sentido mais profundo da vida e, presos a esta imitação, esquecemos de realizar nosso mais alto sentido.  Mas não é de todo inconveniente renunciar ao próprio sentido. Se Jesus o tivesse feito, provavelmente ter-se-ia tornado um carpinteiro respeitável, e não um religioso rebelde que, provavelmente, sofreria hoje o mesmo que sofreu em sua época.

A imitação de Cristo poderia muito bem ser compreendida em seu sentido mais profundo como a obrigação de realizar, com a mesma coragem e o mesmo auto-sacrifício de Jesus, a convicção mais autêntica e essencial da própria vida. Felizmente nem todos têm a missão de serem condutores da humanidade, ou grandes rebeldes; dessa forma, cada um poderá realizar-se a seu modo. Tal honestidade poderia mesmo construir um ideal. Já que  as grandes novidades sempre começam nos lugares mais improváveis, o fato de que as pessoas não se envergonhem, atualmente, tanto a sua nudez quanto há tempos atrás, pode significar o começo de se assumirem corajosamente, tais como são. Isto será talvez o ponto de partida do reconhecimento crescente de muitas coisas que já foram tabus, pois a realidade da terra não permanecerá velada para sempre, como as  “virgines velandae” de TERTULIANO.

O desmascaramento moral é um passo a mais na mesma direção e se atinge a realidade ao confessar-se alguém ser quem é. Se o fizer de um modo carente de significado, é um tolo desajeitado. Mas se compreender o sentido do que está fazendo, tornar-se-á um homem superior e apesar do sofrimento realizará o símbolo de Cristo. Já se observou muitas vezes que tabus puramente concretos ou ritos mágicos, numa primeira etapa religiosa, se tornaram na seguinte uma questão anímica, ou então símbolos puramente espirituais. Uma lei externa torna-se no decurso do tempo uma convicção interna. Pode ser que o homem  protestante, o qual ainda vive a pessoa de Jesus no âmbito da História, passe a vive-lo como o homem superior que o habita. 

Desse modo, se alcançaria de um modo europeu o estado psicológico que corresponde ao Iluminado, na concepção oriental.

Tudo isso representa um degrau no processo de desenvolvimento de uma consciência mais alta da humanidade, que se encontra a caminho de metas desconhecidas, e não metafísicas em sentido usual. Antes de tudo, nessa extensão, trata-se apenas de “psicologia”, mas também nessa mesma extensão trata-se de algo experimentável, compreensível e – graças a Deus – real, de uma realidade com a qual podemos tratar, viva e rica de pressentimentos.

O fato de que eu me contente com o que é com o que é psiquicamente experimentável e rejeite o metafísico não implica , como qualquer pessoa inteligente poderá compreender, um gesto de ceticismo ou de agnosticismo dirigido contra a fé e a confiança em poderes mais altos, mas significa aproximadamente o que KANT pretendeu dizer, referindo-se á “ coisa em si”, ao  designá-la como um “conceito-limite  meramente negativo” . 

Dever-se-ia evitar qualquer afirmação acerca do transcendental, uma vez que isso representa apenas uma presunção ridícula de um espírito humano inconsciente de suas limitações. Portanto, ao designar-se Deus ou o Tão como um impulso ou estado da alma, com isso só se diz algo sobre o cognoscível, e nada sobre o incognoscível; acerca deste último, até agora, nada foi descoberto.
                                             
6 CONCLUSÃO

A finalidade deste comentário é a tentativa de estabelecer a ponte de uma compreensão, íntima e anímica entre Ocidente e Oriente. A base de toda a compreensão verdadeira é o homem e por isso tive que falar de coisas humanas. Que me perdoem, portanto, por ter tratado apenas dos  aspectos gerais, sem entrar em detalhes técnicos.  

As instruções técnicas são preciosas para os que sabem o que é uma máquina fotográfica, ou  um motor a gasolina, mas são totalmente inúteis para quem não os conheça. O homem ocidental – e é para ele que escrevo -, se acha nesta situação. Achei, por este motivo , preferível ressaltar , acima de tudo, a concordância entre estados psíquicos e o caminho que conduz às câmaras interiores do espírito oriental, caminho este que não pede o sacrifício de nossa própria maneira de ser. Isto sim, seria uma ameaça de desenraizamento. 

Mas essas analogias também não são um telescópio ou microscópio intelectuais, que abrissem uma perspectiva indiferente, pelo fato de nada representarem de fundamental. Trata-se do caminho do sofrimento, busca e luta, comum a todos os povos civilizados; trata-se da tremenda experiência da natureza de tornar-se consciente, outorgada à humanidade, e que une as culturas mais distantes numa tarefa comum.

A consciência ocidental não é a única forma existente de consciência; ela é condicionada histórica e geograficamente, e só representa uma parcela da humanidade. A ampliação de nossa consciência não deve se processar à custa de outras formas de consciência, mas deve proceder do desenvolvimento daqueles elementos de nossa psique, análogos aos da psique estrangeira. Do mesmo modo, o  Oriente não pode abster-se de nossa técnica, ciência e indústria.  A invasão européia do Oriente foi um ato de violência em grande escala e nos legou – “noblesse oblige” – a obrigação de compreender o espírito do Oriente. Isto é talvez mais importante para nós do que parecemos presentir.

 
(páginas; 62 até a 67 )
 Fonte:
EDITORA VOZES
11 Edição -Petrópolis - 2001
 Sejam felizes todos os seres
Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

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