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A ESTRUTURA DO CONHECIMENTO – EM BERGSON – E O PROBLEMA DA DETERMINAÇÃO DO MOMENTO INICIAL DO SER HUMANO
THE STRUCTURE OF THE KNOWLEDGE - IN BERGSON - AND THE PROBLEM OF THE DETERMINATION OF THE INITIAL MOMENT OF THE HUMAN BEING
Márcio Renato Bartel¹
Resumo
O objetivo deste estudo é descobrir se realmente há possibilidade de se determinar o momento, aquele instante inicial, que no processo de desenvolvimento se possa confirmar a existência de um ser humano. Esse é um problema que gerou e gera inúmeras respostas. A postura filosófica bergsoniana deste trabalho visa esclarecer áreas do problema que são inacessíveis ao método científico, e contribuir para a solução desse impasse. O problema gira em torno não propriamente sobre qual o momento inicial, mas sobre a possibilidade de se conhecer esse momento. De acordo com Bergson, a ciência por si só é incapaz de determinar esse momento, pois seu método é fruto da inteligência: essa faculdade do conhecimento não atinge a unidade real do ser vivo, a sua duração, somente isola partes e as recompõe, construindo uma unidade artificial. Duração é geração de elementos, não apenas composição de partes.
A vida é um total fluxo, e não soma de fragmentos.
Tais fragmentos são isolados pelo mecanismo da inteligência e marcados com símbolos que os representam. Esses símbolos são conceitos abstratos, obras da inteligência, e não a realidade do ser vivo. Por isso, segundo Bergson, o conhecimento científico é simbólico, e necessita de auxílio filosófico.
Somente a filosofia está capacitada a valer-se de outra faculdade do conhecimento, a intuição, e assim alcançar a duração do ser vivo. Assim, em união com a ciência, a filosofia pode revelar a unidade verdadeira do organismo vivo, habilitando a possibilidade de conhecer a realidade vital do ser humano, porém a determinação de um momento inicial preciso continua um problema insolúvel às capacidades cognitivas humanas.
PALAVRAS-CHAVE:
Inteligência. Intuição. Momento inicial.
Realidade vital. Método científico.
1 Considerações Iniciais
A expressão Ser Humano implica o humano em sua totalidade de ser, em toda a sua realidade existencial, que é una, não fragmentada. Já a expressão início quer exprimir que o Ser Humano, em um dado momento, passa a existir integralmente. Determinar o momento inicial da existência de um Ser Humano é questão de frequentes controvérsias no campo bioético e cientifico.
A expressão Ser Humano implica o humano em sua totalidade de ser, em toda a sua realidade existencial, que é una, não fragmentada. Já a expressão início quer exprimir que o Ser Humano, em um dado momento, passa a existir integralmente. Determinar o momento inicial da existência de um Ser Humano é questão de frequentes controvérsias no campo bioético e cientifico.
Investigar – com Bergson - sobre a possibilidade de determinar um momento inicial do Ser Humano é conveniente para esclarecer que postura assumir diante de um impasse ético e auxiliar no avanço da ciência, ao mesmo tempo em que auxilia na preservação do respeito à vida desse Ser.
2 A estrutura do conhecimento humano – segundo Bergson
“O desenvolvimento do embrião é uma perpétua mudança de forma. Quem queira observar todos os seus aspectos sucessivos há de perder-se num infinito, como acontece quando lidamos com uma continuidade” (BERGSON, 1079, p. 27).
Realmente é o que se constata ao analisar os aspectos biológicos do desenvolvimento humano: a incessante mudança de formas. E é em meio a essas mudanças que se encontra, presumivelmente, o momento inicial. Mas como entender esse perder-se em um infinito, se a ciência apresenta atualmente etapas bem definidas dessas mudanças contínuas, onde uma forma sucede a outra, como um processo mecanicamente previsível?
Bergson (1979) diz que esse tipo de raciocínio se aplica à matéria inerte (matéria não viva), onde os estados se sucedem como numa causalidade, ou seja, a condição em que se encontra um corpo inerte se explica eficazmente em relação à sua situação anterior, através de equações matemáticas. Contudo, as leis da vida não obedecem à mesma regra. Para Bergson, a matéria viva se comporta de modo diferente: “A evolução do ser vivo, como a do embrião, implica um registro ininterrupto da duração, uma persistência do passado no presente, e por conseguinte uma aparência pelo menos de memória orgânica”(BERGSON, 1979, p. 28).
Com isso, Bergson (1979) afirma que a matéria viva dura, ou seja: para explicar o estado atual em que ela se encontra não basta recorrer a seu estado anterior, mas se deve juntar a ele todo o passado do organismo, com sua hereditariedade e o conjunto de sua longa história. O conceito de duração é de grande importância na compreensão do pensamento de Bergson. Diferente do tempo da ciência que é mensurável e constituído de sucessão de instantes idênticos, a duração dá uma idéia do tempo real, que é fluido, de mobilidade constante, que não é sucessão de momentos, mas conservação de tudo o que passa e continua a passar. Algo que dura é algo que se estica, como uma bola de neve que conserva os aspectos formados em si. É permanência do passado no presente, semelhante à memória que conserva em si o tempo passado.
Aqui se percebe o porquê do perder-se no infinito e consequentemente a dificuldade em determinar, com precisão, o momento do início do ser humano, já que esse momento vem carregado de passado e continua seu movimento incessante. E é devido a essas características – movimento e duração – que a ciência encontra limites.
Por isso, é relevante analisar a relação que há entre método científico e objeto, e o modo como ambos se comportam, do ponto de vista de Bergson.
3 Relação entre a ciência e o objeto
É importante esclarecer que Bergson trata do objeto material não vivo com os seguintes termos: matéria inerte, matéria bruta ou matéria inorgânica. Todos expressam o mesmo sentido ao se oporem à matéria viva, ou orgânica.
A ciência atua sobre seu objeto com o fim de compreendê-lo, e aumentar a sua influência sobre ele. Isso ela o faz mediante a decomposição desse em partes mais simples, transformando o uno em múltiplo. E quanto mais partes simples do objeto for decomposto, mais refinada e precisa será a explicação do seu todo. Posteriormente, a justaposição dessas partes revela o mecanismo de funcionamento do objeto, que, se observado em seu estado original e uno, é demasiado complexo para se entender. Com as partes distintas entre si, é possível estabelecer as suas mútuas relações e assim compreender o objeto, que revela o funcionamento das partes e do todo.
Bergson (1979, p. 175), afirma que “a ciência positiva é obra de pura inteligência” e “a inteligência tem por função estabelecer relações”.
Portanto, ao estabelecer relações entre as partes que ela mesma divide, sua intenção é de uni-las, para compreendê-las. Ora, então se pode perguntar: a inteligência, cuja função é relacionar, propõe-se com isso a dividir ou a unir o objeto? Bergson responde a essa questão afirmando que a inteligência visa primeiramente fabricar, o que consiste nas duas atitudes de dividir (tornar múltiplo) e unir (retornar ao uno). Fabricar, então,
Consiste em montar partes de matéria que se modelou de tal modo que se as possa inserir umas nas outras e obter delas uma ação comum. [...] A fabricação vai, pois, da periferia ao centro ou, como diriam os filósofos, do múltiplo ao uno. [...] A obra fabricada desenha a forma do trabalho de fabricação. Entendo por isso que o fabricante encontra exatamente em seu produto aquilo que nele pôs. Se ele quer fazer certa máquina, ele a desenhará peça por peça, e depois as montará: uma vez construída, a máquina exibirá tanto as peças como a montagem. O conjunto do resultado representa no caso o conjunto do trabalho, e a cada parte do trabalho corresponde uma parte do resultado (BERGSON, 1979, p. 88).
Dessa forma, Bergson (1979) quer dizer que a nossa inteligência naturalmente se relaciona com seu objeto como uma fabricação, e apreende de cada parte somente o sólido inorganizado. Entendido aqui o termo inorganizado, segundo Weisflog (1998), como oposto do termo organizado ou orgânico, que caracteriza os corpos vivos. É com a matéria bruta que a inteligência se sente à vontade, pois a qualidade desse objeto é ser extenso e divisível em tantas partes quanto se queira, arbitrariamente. Isso confere à inteligência a possibilidade de manipulação, pois ela traz em si um geometrismo oculto, que se manifesta cada vez mais à medida que vai penetrando na intimidade da matéria inerte. E à medida que a inteligência vai pensando essa matéria bruta de maneira mecânica, geométrica, maior é o domínio sobre ela. Resultado disso são as inúmeras invenções mecânicas que a inteligência alcança com sucesso, pois a matéria física se adapta naturalmente nos esquemas seus, é passiva de ser medida matematicamente.
Consiste em montar partes de matéria que se modelou de tal modo que se as possa inserir umas nas outras e obter delas uma ação comum. [...] A fabricação vai, pois, da periferia ao centro ou, como diriam os filósofos, do múltiplo ao uno. [...] A obra fabricada desenha a forma do trabalho de fabricação. Entendo por isso que o fabricante encontra exatamente em seu produto aquilo que nele pôs. Se ele quer fazer certa máquina, ele a desenhará peça por peça, e depois as montará: uma vez construída, a máquina exibirá tanto as peças como a montagem. O conjunto do resultado representa no caso o conjunto do trabalho, e a cada parte do trabalho corresponde uma parte do resultado (BERGSON, 1979, p. 88).
Dessa forma, Bergson (1979) quer dizer que a nossa inteligência naturalmente se relaciona com seu objeto como uma fabricação, e apreende de cada parte somente o sólido inorganizado. Entendido aqui o termo inorganizado, segundo Weisflog (1998), como oposto do termo organizado ou orgânico, que caracteriza os corpos vivos. É com a matéria bruta que a inteligência se sente à vontade, pois a qualidade desse objeto é ser extenso e divisível em tantas partes quanto se queira, arbitrariamente. Isso confere à inteligência a possibilidade de manipulação, pois ela traz em si um geometrismo oculto, que se manifesta cada vez mais à medida que vai penetrando na intimidade da matéria inerte. E à medida que a inteligência vai pensando essa matéria bruta de maneira mecânica, geométrica, maior é o domínio sobre ela. Resultado disso são as inúmeras invenções mecânicas que a inteligência alcança com sucesso, pois a matéria física se adapta naturalmente nos esquemas seus, é passiva de ser medida matematicamente.
Mesmo sendo a matéria inerte seu objeto natural, tal objeto não deixa de ser um móvel. Aqui, de acordo com Bergson (1979), no trato da matéria enquanto móvel – pois a matéria, assim como toda a realidade é devir – a inteligência se preocupa antes de tudo com a necessidade da ação, e limita-se a tomar do transformar-se constante da matéria pontos instantâneos, e por isso mesmo, imóveis. Esse argumento é chave para a compreensão da relação da inteligência humana com a realidade, sob a ótica bergsoniana.
4 O mecanismo da inteligência
Nos seguintes termos, Bergson (1979, p. 260) reflete sobre a inteligência perante seu objeto:
O papel da inteligência é, com efeito, presidir ações. Ora, na ação, é o resultado que nos interessa; os meios importam pouco desde que o alvo seja atingido. [...] E daí decorre também que só o termo no qual nossa atividade repousará é representado explicitamente ao nosso espírito. [...] O espírito transporta-se imediatamente ao alvo, isto é, à visão esquemática e simplificada do ato supostamente realizado. [...] Portanto, a inteligência só representa à atividade objetivos a atingir, isto é, só lhe representa pontos de repouso. E de um objetivo atingido a outro objetivo atingido, de um repouso a outro repouso, nossa atividade se transporta por uma série de saltos, durante os quais nossa consciência se desvia o mais possível do movimento em realização para só contemplar a imagem antecipada do movimento realizado.
Bergson faz uma comparação interessante disso com um rolo de filme, usado em máquinas cinematográficas. A inteligência usa o mesmo artifício dessa máquina: o rolo de filme consiste numa série de imagens impressas, como fotografias, que são projetadas numa tela, de modo que uma substitua a outra rapidamente. Tem-se, então, a impressão do movimento da imagem que, na realidade, é imóvel. São várias imagens imóveis que se justapõem, e assim a máquina cinematográfica recompõe um movimento artificial da realidade. Do mesmo modo opera a inteligência, recompondo o devir da realidade artificialmente:
Tomamos aspectos quase instantâneos da realidade que passa, e, como eles são característicos dessa realidade, basta-nos incluí-los ao longo de um devir abstrato, uniforme, invisível, situado no fundo do aparelho do conhecimento, para imitar o que há de característico nesse próprio devir (BERGSON, 1979, p. 265).
A própria característica de ação de nossa inteligência a faz ser assim, apreendendo da realidade somente os aspectos que lhe interessam para montar sua ação. Bergson (1979), explica que somos constituídos para agir e para pensar, mas quando pensamos, pensamos para agir. Segundo ele, é incontestável que toda ação humana tem seu ponto de partida numa insatisfação, e, por isso mesmo, num sentimento de carência. Não agiríamos se não nos propuséssemos um objetivo, e só procuramos alguma coisa por que sentimos falta dela. Por isso, os hábitos da ação permanecem nos hábitos do pensamento, pois nos comportamos no pensamento do mesmo modo que quando agimos.
A realidade é movimento, é devir constante e instável. Porém, se essa realidade se apresentasse à inteligência como um fluir perpétuo, não conseguiríamos pôr um termo em nenhuma das nossas ações (BERGSON, 1979). Por isso, a inteligência, ao procurar o que lhe interessa e carece, se detém nas extremidades do objeto móvel, e não no seu intervalo, que lhe escapa. É como um móvel que, na matemática, se move de um ponto ao outro. E são esses pontos que se fixam na inteligência. Mesmo que se queira analisar entre eles, é um novo ponto que a inteligência isola do movimento. E ela pode proceder assim, dividindo o intervalo ao infinito, e nunca alcançará o movimento real do objeto no espaço.
De acordo com Bergson (1979, p. 265), “percepção, intelecção, fala, procedem de modo geral assim. Quer se trate de pensar o devir, de exprimi-lo, ou mesmo de percebê-lo, nada mais fazemos senão acionar uma espécie de máquina cinematográfica interior”.
A ciência, como ato de inteligência, ao analisar seu objeto, atua com esse mecanismo: ela retém da matéria móvel pontos imóveis de sua trajetória fluida. Tais pontos, ou etapas, são virtuais, pois que só existem como abstração na inteligência. Ao reter esses pontos, a ciência cria sinais para identificá-los, dá nomes a eles, cria termos, conceitos. Isso equivale a dizer que, quando a ciência manipula a matéria, na verdade ela manipula signos da matéria, os conceitos, que são idéias fixas e imóveis recolhidas do objeto, que é móvel.
Isso significa que “os signos são constituídos para nos livrar desse esforço ao substituir pela continuidade móvel das coisas uma recomposição artificial que lhe equivalha na prática e que tenha a vantagem de se manipular sem dificuldade” (BERGSON, 1979, p. 284). Não é a matéria em si que a ciência manuseia quando a trata por conceitos, pois sendo ela constante movimento, precisaria de esforço enorme da inteligência para acompanhar cada mudança que ocorre.
Os conceitos são sinais desses momentos essenciais retidos do movimento – como as fotos no rolo de filme – os quais são suficientes para que a inteligência os recomponha e compreenda em unidade e compreenda seu movimento. Porém, movimento aparente, artificial, imitação do real.
Por isso, quanto maior o conhecimento que a ciência obtém de um objeto, tanto maiores são os momentos que ela isola dele. Quanto mais refinado é o conhecimento, tanto mais é também simbólico. E tudo aquilo que se passa no movimento e não é retido, o intervalo entre os pontos, escapa à técnica científica, pois esta se refere sempre aos pontos, aos momentos isolados. A ciência moderna está submissa à lei cinematográfica. É da sua essência, com efeito, manipular signos que ela põe em lugar dos próprios objetos (BERGSON, 1979). São aspectos tomados da realidade contínua que a inteligência isola e armazena nos conceitos que ela cria. A ciência
[...] Considera sempre momentos, sempre paradas virtuais, sempre, em resumo, imobilidades. O que equivale a dizer que o tempo real, considerado como um fluxo ou, em outras palavras, como a própria mobilidade do ser, escapa no caso ao domínio do conhecimento científico (BERGSON, 1979, p. 290).
O objetivo essencial da ciência é aumentar nossa influência sobre as coisas. Por isso, é sempre a utilidade prática a sua finalidade. E como já foi dito, a ação procede por saltos; ela não se refere ao intervalo, mas às extremidades.
A realidade física é movimento, devir; por isso dura. E duração é a conservação do passado no presente, mas isso sempre em movimento, sempre em evolução. A ciência não atinge, com seu método, a duração, pois possui hábitos estáticos, parte de dados imóveis para tentar explicar o móvel, não considera o todo real, e sim a justaposição das partes, um todo artificial.
Desse modo, se destacam da duração os momentos que interessam, e só se retém esses instantes. “Do devir só percebemos estados, da duração só instantes, e mesmo quando falamos de duração e de devir, é noutra coisa que pensamos. Tal é a mais flagrante das ilusões: crer que podemos pensar no instável por meio do estável, o movente por meio do imóvel” (BERGSON, 1979, p. 239).
Contudo, mais problemático é ainda quando a ciência trata da matéria viva, do ser biológico, do ser orgânico. Isso porque “[...] a vida é um processo e uma organização em que a conduta da matéria é diferente da que se observa nos estados não vivos” (ABBAGNANO, 2003, p. 734). A matéria orgânica viva, ou biofísico, tende a evoluir, algo que não acontece com a matéria inorgânica, que é inerte. E evolução não é sucessão de momentos, mas dissociação, é desdobramento (BERGSON, 1979).
A vida é impulso tendencioso, que organiza a matéria em que ela atua de tal forma que esse ser cria-se a si mesmo, modificando-se constantemente. E, de acordo com Bergson (1979, p. 46), “a função da vida é inserir indeterminação na matéria”, ou seja, as formas que a vida cria paulatinamente na matéria são imprevisíveis. Tais formas também possuem uma liberdade indeterminada em suas atividades, que servem como veículos para a vida. Como exemplo, Bergson (1979, p. 116) diz que “um sistema nervoso, com neurônios situados de ponta a ponta de tal modo que na extremidade de cada um deles se abram vias múltiplas onde outras tantas questões se apresentam, é um verdadeiro reservatório de indeterminação”. Para ele, uma simples inspeção no conjunto do mundo organizado parece mostrar-nos que o essencial do impulso vital tenha se dado para a criação de aparelhos desse gênero.
Assim, a vida mostra-se como evolução, uma evolução que se cria, criação essa que é livre e indeterminada, é instável, ou seja, a vida em geral é a própria mobilidade (BERGSON, 1979). Esse impulso vital, ao se manifestar nos vários indivíduos orgânicos, mesmo sendo instáveis, se revela à inteligência como relativamente estável, devido aos aspectos aparentemente repetitivos do seu movimento. Chega, assim, a imitar tão bem a imobilidade que o tratamos como coisas mais que como progressos, esquecendo que a própria permanência de sua forma não passa de um projeto de movimento. Portanto, o ser vivo é sobretudo um lugar de passagem, e o essencial da vida reside no movimento que a transmite.
Desse modo, Bergson dá a entender que a matéria inerte se adapta aos esquemas geométricos e cinematográficos da inteligência, e que, quanto à matéria viva, esses esquemas não são apropriados. Mas a ciência, quando trata do vivo, age da mesma forma como age com o inerte?
Bergson entende que o método científico é essencialmente empírico, e, além disso, a ciência positiva é obra de pura inteligência. Tal inteligência trata a matéria inorgânica com um mecanismo geométrico tal que, ao realizar construções e ao fabricar objetos com esse material, alcança grandes êxitos. Ou seja, as características da matéria inerte estão em harmonia com o mecanismo da inteligência. Logo, “quando a inteligência empreende o estudo da vida, necessariamente ela trata o vivo como o inerte, aplicando a esse novo objeto as mesmas formas, transportando para esse novo domínio os mesmos hábitos que lhe foram tão proveitosos no antigo” (BERGSON, 1979, p. 175).
Ora, se a matéria orgânica se comporta de modo diferente da matéria inerte, a ciência terá o mesmo êxito que teve, por exemplo, na física, na matemática, na química? Uma coisa é certa: o ser humano é matéria viva, não deixa de ser material. Sendo matéria, é extensão, e pode ser medido, pesado matematicamente, assim como avaliado fisicamente e analisado quimicamente. Nisso reside o avanço real da ciência médica em geral, o êxito da inteligência no estudo do ser vivo. Até mesmo Bergson (1979, p. 89) reconhece o modo como a ciência pode e deve agir perante o organismo vivo:
Ora, a física e a química são já ciências avançadas, e a matéria viva só se presta à nossa ação na medida em que podemos tratá-la pelos processos de nossa física e química. A organização só será estudável cientificamente se primeiramente o corpo organizado for reduzido à máquina. As células serão as peças da máquina, o organismo será a sua montagem. E os trabalhos elementares, que organizaram as partes, serão destinados a serem os elementos reais do trabalho que organizou o todo científico.
A ciência, na análise do desenvolvimento do Ser Humano, procedeu dessa maneira. Têm-se cada célula como peças dessa máquina, e as várias etapas do processo como os principais momentos da construção, que revelam a montagem da mesma (máquina).
Se a ciência se presta a isolar momentos do movimento e ela já possui os momentos essenciais, por que a discordância entre as teorias?
O que faz, então, o ser humano ser um humano?
É necessário mais etapas, momentos mais pormenorizados desse processo para descobrir isso? Não, pois o organismo vivo tem duração: ou se é tomado em sua totalidade, um uno, ou será continuamente dividido, ao infinito, sem nunca alcançar seu verdadeiro ser, que é devir. (BERGSON, 1979)
Muitos aspectos do objeto orgânico escapam do domínio da inteligência. Então, simplesmente esse momento escapa por enquanto do conhecimento cientifico, ou a inteligência é incapaz de apreendê-lo.
Muitos aspectos do objeto orgânico escapam do domínio da inteligência. Então, simplesmente esse momento escapa por enquanto do conhecimento cientifico, ou a inteligência é incapaz de apreendê-lo.
Ora, todo ser humano usa da sua inteligência para conhecer: como não conseguir resolver este problema? Parece que, enquanto um ser que dura, o aspecto momento adquire uma complicação maior. Isolar momentos, fragmentar o tempo, reter instantes que não duram: é da natureza da inteligência. O tempo real e fluido do qual participa o ser humano é a própria duração. É possível determinar um momento de algo que está em constante devir e evolução, sem recorrer à inteligência?
5 A possibilidade de indicar o momento inicial
Mediante o problema do uso da faculdade intelectual na compreensão da vida enquanto seu objeto, Bergson (1979, p. 175-176) relata, com linguagem clara e perspicaz, como outro tipo de conhecimento deveria se impor:
Ora, quando a inteligência empreende o estudo da vida, necessariamente ela trata o vivo como o inerte, aplicando a esse novo objeto as mesmas formas, transportando para esse novo domínio os mesmos hábitos que lhe foram tão proveitosos no antigo. E ela tem razão em proceder assim, porque só sob essa condição o vivo se exporá à nossa ação do mesmo modo que a matéria inerte. Mas a verdade a que se chega desse modo torna-se inteiramente relativa à nossa faculdade de agir. Não é mais que uma verdade simbólica. Não pode ter o mesmo valor que a verdade física, não passando de extrapolação da física a certo aspecto externo.
5 A possibilidade de indicar o momento inicial
Mediante o problema do uso da faculdade intelectual na compreensão da vida enquanto seu objeto, Bergson (1979, p. 175-176) relata, com linguagem clara e perspicaz, como outro tipo de conhecimento deveria se impor:
Ora, quando a inteligência empreende o estudo da vida, necessariamente ela trata o vivo como o inerte, aplicando a esse novo objeto as mesmas formas, transportando para esse novo domínio os mesmos hábitos que lhe foram tão proveitosos no antigo. E ela tem razão em proceder assim, porque só sob essa condição o vivo se exporá à nossa ação do mesmo modo que a matéria inerte. Mas a verdade a que se chega desse modo torna-se inteiramente relativa à nossa faculdade de agir. Não é mais que uma verdade simbólica. Não pode ter o mesmo valor que a verdade física, não passando de extrapolação da física a certo aspecto externo.
O dever da filosofia seria, pois, intervir aqui ativamente, examinar o vivo sem preconceito de utilização prática, abstraindo formas e hábitos propriamente intelectuais. Seu objeto próprio é o especular, isto é, ver; sua atitude para com o ser vivo não poderia ser a da ciência, que só tem em mira o agir, e que só podendo agir por intermédio da matéria inerte, encara o restante da realidade sob esse único aspecto. Assim, que acontecerá se ela deixar à ciência positiva sozinha os fatos biológicos e os fatos psicológicos, como o fez, corretamente, quanto aos fatos físicos? A priori, ela aceitará uma concepção mecanicista de toda a natureza, concepção esta irrefletida e mesmo inconsciente, decorrente da necessidade material.
E, embora a ciência alcance certo domínio sobre o ser vivo, isso não é alcançado sem maiores problemas:
[...] é por acaso – probabilidade ou convenção, como se queira – que a ciência obtém sobre o vivo um domínio análogo ao que tem sobre a matéria bruta. No caso a aplicação dos esquemas do entendimento não mais é natural. Não queremos dizer que ela não mais seja legítima, no sentido científico da palavra. Se a ciência deve estender nossa ação sobre as coisas, e se só podemos agir com a matéria inerte por instrumento, a ciência pode e deve continuar a tratar o vivo como tratava o inerte.
E, embora a ciência alcance certo domínio sobre o ser vivo, isso não é alcançado sem maiores problemas:
[...] é por acaso – probabilidade ou convenção, como se queira – que a ciência obtém sobre o vivo um domínio análogo ao que tem sobre a matéria bruta. No caso a aplicação dos esquemas do entendimento não mais é natural. Não queremos dizer que ela não mais seja legítima, no sentido científico da palavra. Se a ciência deve estender nossa ação sobre as coisas, e se só podemos agir com a matéria inerte por instrumento, a ciência pode e deve continuar a tratar o vivo como tratava o inerte.
Compreende-se, contudo, que quanto mais ela se afunde nas profundezas da vida, mais o conhecimento que ela nos fornece se torna simbólico, relativo às contingências da ação. Nesse novo terreno, a filosofia deverá, pois, acompanhar a ciência, para sobrepor à verdade científica um conhecimento de outro gênero, que podemos chamar de metafísico (BERGSON, 1979, p. 177-178).
Enquanto a inteligência trabalhar de acordo com o método científico é inteiramente em vista da ação que o objeto será tratado, e como já analisado, a ação procede por saltos, não tomando o objeto em sua totalidade, e, analogamente, a realidade também. Uma abordagem unicamente materialista e mecanicista sobre a vida humana só pode acarretar uma representação equivocada e grosseira da sua realidade, porque, se a análise estiver sempre restrita à representação mecanicista que a inteligência dá da vida, tal representação será necessariamente artificial e simbólica. Isso porque se reduz a atividade da vida à forma de certa atividade humana, que não passa de manifestação parcial e local da vida, efeito ou resíduo da operação vital.
Enquanto a inteligência trabalhar de acordo com o método científico é inteiramente em vista da ação que o objeto será tratado, e como já analisado, a ação procede por saltos, não tomando o objeto em sua totalidade, e, analogamente, a realidade também. Uma abordagem unicamente materialista e mecanicista sobre a vida humana só pode acarretar uma representação equivocada e grosseira da sua realidade, porque, se a análise estiver sempre restrita à representação mecanicista que a inteligência dá da vida, tal representação será necessariamente artificial e simbólica. Isso porque se reduz a atividade da vida à forma de certa atividade humana, que não passa de manifestação parcial e local da vida, efeito ou resíduo da operação vital.
Bergson alerta, por isso, sobre a necessidade de um conhecimento que abarque o objeto de maneira diferente do modo como a inteligência científica o estuda. Por isso, ele exprime o porquê do conhecimento filosófico intervir nesse contexto. O olhar da filosofia é diferente do olhar da ciência, pois esta visa o dado particular, e aquela visa o universal. A função própria da filosofia seria se inserir no movimento evolutivo em si do organismo, “para o acompanhar até em seus resultados atuais, em vez de recompor artificialmente esses resultados, com fragmentos de si mesmos” (BERGSON, 1979, p. 317). Isso porque, na duração, há a geração de elementos, não apenas composição de partes. A vida é um total fluxo, e não soma de fragmentos.
De acordo com Bergson (1979, p. 256), “não se chegará à duração por um desvio: impõe-se instalar-se nela de uma só vez. E a isso se recusa a inteligência no mais das vezes, habituada que está a pensar o movimento por intermédio do imóvel”. Como se percebe, a inteligência é mediata, ou seja, ela sempre atinge o objeto através de meios, seja por meio de conceitos abstratos, para falar sobre a matéria inerte, seja por meio de conceitos e matéria física, para tratar do organismo vivo. Como, então, atingir a duração, de modo imediato? Isto seria possível pela faculdade da intuição.
6 A intuição
Enquanto a inteligência se harmoniza com os esquemas da matéria inerte, a faculdade da intuição se harmoniza com os esquemas da vida em si, como diz Bergson (1979, p. 233-234):
“Intuição e inteligência representam duas direções opostas do trabalho consciente: a intuição caminha no próprio sentido da vida; a inteligência segue em sentido inverso, e acha-se assim de modo inteiramente natural regida pelo movimento da matéria”.
Seria isso o mesmo que afirmar que enquanto a inteligência se relaciona com o exterior do seu objeto (conhecimento formal), a intuição relaciona-se com o interior (a matéria, o conteúdo).
Quando Bergson (1979) fala de intuição, ele explica que tal faculdade é aquele aspecto do instinto que se torna consciente de si mesmo, capaz de refletir seu objeto. Tal movimento seria semelhante ao da inteligência, porém não igual. Só que, pelo fato do instinto não estar situado fora dos limites do espírito, tanto a inteligência quanto a intuição se envolvem no conhecimento, criando dificuldades no ato de conhecer.
O instinto significa formas de comportamento dos organismos não adquiridas durante a vida do indivíduo, mas que são herdadas. É um estímulo ou impulso natural, involuntário, pelo qual os animais excutam certos atos sem conhecer o fim ou o porquê desses atos (WEISZFLOG, 1998).
Analisando o instinto desta forma, percebe-se que ele detém certo tipo de conhecimento, que orienta a ação do indivíduo. Mas este conhecimento é inconsciente pelo fato de não se saber o fim ou o porquê dele. Tal tarefa seria da inteligência. Mas, mesmo não sendo acessado pela inteligência, não deixa de ser um conhecimento. Bergson (1979) utiliza o exemplo de vespas (um tipo de inseto) que paralisam suas vítimas sem as matar, para que sirvam de alimento às suas crias:
A escólia, que ataca a larva de cetônia, pica-a num só ponto, mas nesse ponto se acham concentradas os gânglios motores, e só esses gânglios, pois a picada em outros gânglios poderia ocasionar a morte e a putrefação, que se trata de evitar. O esfex de asas amarelas, que escolheu por vítima o grilo, sabe que o grilo tem três centros nervosos que movem seus três pares de patas, ou pelo menos age como se soubesse. Ele pica o inseto primeiro embaixo do pescoço, e depois atrás do protórax, e finalmente na base do abdômen. A amófila encrespada dá nove golpes de ferrão sucessivos em nove centros nervosos de sua lagarta, e por fim lhe abocanha a cabeça e a mastiga lentamente, precisamente o suficiente para a paralisia sem causar a morte.
Esses animais, como tantos outros, agem somente por instinto, ou seja, eles não têm mecanismos de conhecimento inteligente como o ser humano. Mas de onde lhes advém esse conhecimento tão rigoroso do processo de paralisação? Como é que conhecem tão bem o organismo da vítima, se agem só por instinto, e não racionalmente? Tal conhecimento não foi adquirido por tentativas e erros inteligentes. Nem mesmo a suposição de hábitos adquiridos por transmissão hereditária bastaria para explicar um conhecimento tão preciso e rigoroso.
Os animais, através do instinto, conhecem como que por dentro a vulnerabilidade de suas vítimas. É como se houvesse uma simpatia entre a vespa e a lagarta, simpatia que do grego sympathia significa uma suposta correspondência entre duas coisas, e no contexto bergsoniano, assume o significado de comunhão.
Por isso, na compreensão do organismo vivo, o caminho a se seguir não seria mais o da ciência, que se orienta pela inteligência, mas se seguiria pela filosofia que se orienta por essa comunhão, uma filosofia da intuição. A ciência, ao analisar o instinto, não pode fazer outra coisa senão traduzi-lo em termos de inteligência, e construirá assim uma imitação do instinto por meio de conceitos abstratos e artificiais, em vez de penetrar nele (BERGSON, 1979).
Essa vida, que é evolução criadora e constante devir, só o instinto conhece o seu interior, como ela é. A inteligência conheceria certos dados, e o fluxo restante escaparia de seu domínio. Se o instinto pudesse voltar para seu objeto e refletir sobre si mesmo, ele daria a chave das operações vitais – assim como a inteligência, desenvolvida, nos introduz na matéria inerte.
A inteligência, através da ciência, nos revela o segredo das operações físicas, mas ao próprio interior da vida nos conduziria a intuição, que é o conhecimento instintivo das operações vitais, percepção interna do organismo.
É justamente essa percepção interna, intuitiva, que os animais possuem. Contudo, como revela Bergson (1979, p. 158), é extremamente de alcance restrito: o animal, sem dúvida, “apreende pouca coisa, precisamente o que lhe interessa; mas pelo menos, o apreende por dentro, de modo inteiramente diverso do que um processo de conhecimento: por uma intuição (vivida mais que representada) que se assemelha sem dúvida, ao que chamamos de comunhão adivinhadora (sympathie divinatrice, no original) ”.
O conhecimento intuitivo é direto, imediato, porém é restrito, ao contrário do conhecimento pela inteligência. Esta, por ser formal, é ampla o bastante para se aplicar a qualquer objeto, mas que, no entanto, é de um conhecimento superficial, e não atinge o devir da duração, o interior da vida. Mas, mesmo assim, o conhecimento intelectual é suficiente para garantir vantagens da raça humana sobre as demais:
[...] esse conhecimento inteiramente formal da inteligência tem uma incalculável vantagem sobre o conhecimento material do instinto. Uma forma, precisamente pelo fato de ser vazia, pode ser preenchida alternadamente, à vontade, por um número infinito de coisas, inclusive para coisas que nada servem. Assim é que o conhecimento formal não se limita ao que é útil na prática, não obstante seja em vista da utilidade prática que ele surge no mundo. Um ser inteligente traz em si aquilo com que ultrapassar a si mesmo (BERGSON, 1979, p. 137).
A humanidade perfeita e completa seria aquela em que essas duas formas de atividade consciente (inteligência e intuição) atingissem seu pleno desenvolvimento.
A evolução poderia ter gerado humanos ainda mais inteligentes ou mais intuitivos. Porém não é esse o caso da nossa condição, pois na humanidade de que fazemos parte, a intuição acha-se quase completamente sacrificada à inteligência. A intuição, reduzida em sua capacidade durante a evolução do humano, está presente, porém com manifestações vagas e fugidias, e se revela em fenômenos como, por exemplo, do sentimento, ou sempre quando um interesse vital está em jogo.
Assim, a filosofia, apoderando-se dessas intuições fugidias, poderá fazer-nos captar aqueles fatos que escapam à inteligência e possibilitar algum meio de completá-los e, assim, compreender a vida. Esse gênero de conhecimento pode ser chamado de metafísico. Quanto mais a filosofia avançar nesse trabalho, tanto mais se aperceberá de que a intuição é o próprio espírito e, em certo sentido, a própria vida: a inteligência nela se destaca por um processo imitador daquele que engendrou a matéria. Desse modo é que aparece a unidade da vida mental. Só a reconhecemos colocando-nos na intuição para ir dela à inteligência, porque da inteligência não se passará jamais à intuição. Essa filosofia vê na duração o próprio substrato da realidade, realidade esta que se revela como perpétuo devir: ela se faz e se desfaz, mas nunca é alguma coisa feita (BERGSON, 1979).
A intuição é um esforço para transcender a inteligência pura. Mas somente a inteligência é capaz de relacionar os fatos para compreendê-los, e, com o conteúdo fornecido pela intuição que faltava em suas explicações, a realidade da vida, vivida também por dentro na sua duração, poderá ser compreendida. Desse modo, filosofia e ciência se auxiliam:
A partir de então, todo o nosso conhecimento, científico ou metafísico, reabilita-se. No absoluto estamos, nele transitamos e vivemos. O conhecimento que dele temos é incompleto, sem dúvida, não, porém, exterior ou relativo. É o próprio ser, em suas profundezas, que atingimos pela revelação combinada e progressiva da ciência e da filosofia (BERGSON, 1979, p. 178).
Para Bergson, esse seria o modo de se conhecer a realidade vital, numa relação entre o método científico e uma filosofia intuitiva. Os dados que essa filosofia fornecesse do seu objeto seriam relacionados com os dados alcançados pela ciência, e assim a intuição poderá levar a inteligência a reconhecer que a vida não entra completamente em seus esquemas, e que suas categorias não dão uma tradução suficiente do processo vital. E mais: essa cooperação entre inteligência e intuição estabelecerá uma comunicação comungante entre o humano e o restante dos seres vivos, pela dilatação que obterá de sua consciência, e o introduzirá no domínio próprio da vida, que é interpenetração recíproca, criação infinitamente continuada. É a duração que se terá alcançado, o devir do ser vivo, “uma duração em que o passado, sempre em marcha, se enche sem cessar de um presente absolutamente novo” (BERGSON, 1979, p. 178).
É a esse ponto que esta reflexão visa a chegar; é este presente absolutamente novo, que se renova sem cessar, um presente que possa revelar o início de um novo ser integrante da raça humana. Esse presente é integrante de um ser vivo em constante fluxo, uma única corrente fluida, onde não existem cortes nítidos nem separações, que é indiviso, e no qual, em cada instante, tudo é novo e tudo ao mesmo tempo é conservado. Essa é a complexidade do organismo vivo, o qual é inapreensível pelo mecanismo da inteligência pura, mecanismo esse que necessita de pontos, momentos para fazer entre eles relações. Tal realidade só é acessada pela intuição que, no entanto, revela apenas dados fugidios desse fluxo constante.
Ora, então buscar determinar um instante preciso, um corte nesse fluxo, seria tarefa impossível? Não seria se a intuição fornecesse todas as informações da realidade vital que faltam à inteligência, e se essa, por sua vez, relacionar todos esses dados com a sua formalidade.
7 O indicar do instante presente
Do ponto de vista da intuição, sabe-se que o ser vivo é um fluxo continuo e indiviso, evolução que se cria constantemente. Resta agora saber como a inteligência iria trabalhar com essa informação, através de seu mecanismo formal.
O filósofo grego Heráclito de Éfeso (540-470 a.C.) vê a realidade como devir constante ao afirmar que “tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo” (HERÁCLITO, 1973, p. 92). Esta concepção também é aceita e usada pelo filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831).
Na sua obra Fenomenologia do Espírito (1806), Hegel faz uma análise do que seria o indicar o agora (o momento, o instante) por uma racionalidade que é consciente do devir da realidade. Ele explica que, quando se indica, no tempo, o presente, um agora, enquanto ele é indicado, deixa de ser um agora devido o fluxo contínuo do tempo. Somente a inteligência é capaz do imóvel, pois ela representa conceitos abstratos. Logo, enquanto a inteligência afirma que o agora é, na realidade ele já foi, passou. Então, Hegel diz que o agora é precisamente isto: é um que–já-foi, e essa é a sua verdade (HEGEL, 1992). “O que é, ao mesmo tempo já novamente não é” (HERÁCLITO, 1973, p. 93). Isso quer dizer que o indicar do agora comporta um movimento que funciona da seguinte maneira: primeiro, afirmo que o agora é (o ser é) e essa é a primeira verdade. Porém, ao fazer isto, o tempo passou e o agora já foi, não mais é, já fluiu. Ao perceber esse movimento do tempo, afirmo então que o agora foi (ser-que-foi), então nego a primeira verdade: o agora não é (o ser não é). Suprassumo a primeira verdade, e esta fica sendo a segunda verdade. Novamente, ao afirmar isto, o tempo, que é fluido, passou, e então afirmo que, o ser-que-foi , já foi, (ser-que-foi não é). Fazendo isto, nego a segunda verdade, ou seja: nego uma negação (o ser não é, não é). Suprassumo a segunda verdade e acabo afirmando a primeira verdade, que o agora é (o ser é) ( HEGEL, 1992).
Hegel quis dizer com isso que, ao afirmar um momento (o agora) não se afirma o momento imediato, mas se afirma um movimento que contém momentos diversos. O agora que se afirma vêm carregado de agoras suprassumidos. Isto acontece quando se quer refletir o momento indicado: ora, refletir gasta tempo, e com isso, os agoras vão passando e se acumulando, de maneira que a inteligência nunca alcança o agora em si, o momento instantâneo. O que ela alcança é uma pluralidade de agoras rejuntados. Por isso Hegel diz que indicar o agora, esse momento imediato do presente, é experimentar que o agora não é um momento particular, mas um momento universal ( HEGEL, 1992).
Nos termos de Bergson, o agora suprassumido seria como aquilo que é substituído durante o movimento. No devir do ser vivo, a inteligência só considera o substituído, e não se ocupa do que está sendo substituído. Esse substituído só existe como abstração na inteligência. É preciso, para continuar a vê-lo e, por conseguinte falar dele, voltar as costas à realidade, que flui do passado ao presente, de trás para frente. Verifica-se a mudança, a substituição, como um viajante de um ônibus veria o trajeto olhando para trás, e não quisesse conhecer a cada instante senão o ponto em que ele deixou de ser. Ele não determinaria jamais sua posição atual senão por relação àquela que acaba de deixar em vez de exprimi-la em função de si mesma.
Ao fazer, então, uma afirmação de um momento, a inteligência está na verdade negando o que ele é em si, o seu ser. Está afirmando não aquilo que é, mas aquilo que já foi. Definir o momento, o agora, é falar daquilo que não é realidade, mas daquilo que é abstrato, que só existe na inteligência, que é formal.
Essa é a dificuldade de se determinar um instante estático daquilo que é fluxo contínuo. O próprio mecanismo da inteligência é um movimento, como disse Hegel no indicar do agora, e como disse Bergson, quando o compara à maquina cinematográfica. As únicas coisas realmente estáticas são as fotos no rolo de filme e os agoras suprassumidos; a pura abstração dos conceitos criados pela inteligência. São justamente os espaços entre as fotos do rolo e os agoras suprassumidos que a filosofia deve buscar preencher, desenvolvendo a faculdade da intuição. Mas como isso seria possível de fazer em meio aos conceitos biológicos da ciência?
8 A possibilidade de se encontrar o momento
Fica assim evidente que a ciência positiva não tem condições suficientes de agir sozinha se quiser saber da verdade sobre o ser vivo, assim como é equivocada a pretensão de, por si mesma, isolar e julgar um momento como sendo o início de um ser humano. Como já dito anteriormente, esse conhecimento é exterior, superficial, e não trata o objeto em seu interior, na sua duração. E, além do mais, “quanto mais ela se afunde nas profundezas da vida, mais o conhecimento que ela nos fornece se torna simbólico, relativo às contingências da ação” (BERGSON, 1979, p. 178). E ao relacionar esses dados simbólicos da vida, a ciência constrói uma unidade artificial da mesma, pois esses momentos simbólicos não atingem a duração do ser vivo, ou seja, o seu ser verdadeiro, que é devir criativo e evolutivo.
Cada conceito simboliza um conjunto de momentos percebidos no movimento contínuo. O conceito, além do mais, não passa de símbolo, de uma representação do real. Por ser representação não passa de cópia, uma imitação artificial. O termo zigoto, por exemplo, não diz respeito a um único momento simples, mas a um conjunto de momentos suprassumidos, semelhante o indicar do agora hegeliano. O conceito zigoto encerra, congela, paralisa em si toda uma realidade em constante movimento, de gametas que se uniram e de um material genético em ampla evolução.
Por isso, enquanto a discussão sobre o início do ser humano pairar somente sobre os dados físicos da biologia, o máximo que se chegará será a uma compreensão mecânica e artificial, longe da duração verdadeira. Bergson explica isso considerando que a essência da explicação mecânica consiste em se calcular o passado e o futuro por meio do presente, e assim o todo seria conhecido. Evidentemente, conhecendo o todo de um ser humano, facilmente poder-se-ia dividi-lo e compreendê-lo mecanicamente, onde as definições e explicações seriam perfeitas.
Mas, “A definição perfeita só se aplica a uma realidade completa: ora, as propriedades vitais jamais estão inteiramente realizadas, mas sempre em via de realização” (BERGSON, 1979, p. 22).
Mediante tal percepção bergsoniana, fica inviável para as capacidades humanas definir com precisão um momento inicial do ser humano; mesmo com a aplicação mais aprofundada da faculdade intuitiva, pois a realidade humana está sempre em vias de evolução, nunca completa. O próprio termo momento tem uma conotação mecânica, pois significa divisão do tempo.
9 Considerações finais
O problema de determinar o momento preciso para o início do ser humano permanece sem solução, como diz Bergson (1979, p. 138): “Há coisas que só a inteligência é capaz de procurar, mas que por si mesma, jamais encontrará. Essas coisas, só o instinto as encontraria; mas ele jamais irá procurá-las”.
Entretanto, está mais evidente que não é um problema tão simples quanto alguns possam conceber. Ele perpassa várias áreas do conhecimento humano. Tal problema desafia a biologia e todas as suas ramificações, como também a filosofia, pois o problema, antes de ser bioético, é de teoria do conhecimento. E ainda, quando Bergson analisa a inteligência humana, ele analisa o cerne da faculdade de conhecer. E ao contrapor esse modo de conhecer à faculdade da intuição, ele tira a inteligência do seu posto solitário como fonte geradora de conhecimento.
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Docente da Faculdade de São Luiz e Universidade da Região Joinville - UNIVILLE
Correspondência para
Márcio Renato Bartel¹
E-mail: marcio_renato@hotmail.com
Fonte:
Revista da Unifebe
Revista da Unifebe
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Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.
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