Memória em Henri Bergson e Gaston Bachelard
Reflexões sobre memória em Henri Bergson e Gaston Bachelard
Este texto tem por objetivo abordar algumas questões levantadas a partir das reflexões nos estudos centrados nas obras do partir dos filósofos Henri Bergson[1] e Gaston Bachelard[2], principalmente o conceito de memória, tentando estabelecer uma contraposição entre estes dois autores, apontando para as críticas de Bachelard à obra de Bergson.
Para tanto utilizaremos o discurso de abertura do carnaval de rua de Porto Alegre do ano de 1947, a partir do depoimento do primeiro Rei Momo negro[3], Adão A. de Oliveira.
Acreditamos oportuna a utilização desta fala, pois, esta nos remete à memória do espaço do Areal da Baronesa[4], ao mesmo tempo, vem ao encontro de nossa proposta inicial, ou seja, o que é a memória..Abordaremos assim, a noção de memória em Bergson, a partir da obra Matéria e Memória (BERGSON, 1990), onde o autor tenta superar o dualismo matéria-espírito. Em um segundo momento, faremos uma contraposição a Bergson a partir de alguns capítulos do trabalho de Bachelard A Poética do Espaço (BACHELARD, 1976).
No relato do depoente Adão de Oliveira, assim é descrito o carnaval de 1947:
"A Praia de Belas, naquele tempo,
vinha até aqui a beirada;
ali, então, tinha um caíque
já a minha espera.
E contrataram um cidadão pra me levar.
(..) Então (..) na Ponte de Pedra.
E naquele tempo o Areal da Baronesa
era aquela areia vermelha,
aquela poeira danada (..)
Até chegar na esquina da Baronesa.
Quando cheguei ali, tinha um coreto (..)
onde eu começava o discurso:
"Povo, povo do meu reinado,
é com grande satisfação,
não medindo esforços nem energia
para vir lá da minha Etiópia
para abrir o carnaval aqui no Brasil (..)."
(KRAWCZYK,1992,p.31)
Como repensar as recordações do passado e a ordenação das lembranças a partir deste relato e as diversas imagens do território do Areal da Baronesa?
Para Henri Bergson, que entra no campo da biologia e da filosofia como forma de explicação e superação do idealismo e realismo, a imagem é o meio de caminho entre a "coisa" (concreto) e a representação (abstrato), e a representação do objetoestá muito além da imagem. A existência da Etiópia, um país o qual Lelé não conheceu, estruturada no seu pensamento pertence a ordem da representação, e o Areal da Baronesa remete-se a "coisa" de existência concreta. Podemos inferir, que a partir daí temos uma construção da imagem do território do Areal como um lugar de identidade negra, um espaço (físico e simbólico) habitado essencialmente por africanos e afro-descendentes semelhante à Etiópia, desconhecida, mas marcante por seu um país negro e que resistiu ao domínio italiano.
Mas, Bergson alerta que toda esta construção do conhecimento é do senso-comum, e encaminha sua obra para uma reflexão de aprofundamento maior, sempre na tentativa de superar o dualismo. Como já foi anteriormente observado, o autor utilizará os elementos da biologia, para as possíveis explicações do funcionamento do cerebral e seu movimento, a percepção, a lembrança, a matéria (conjunto de imagens) e a imagem[5], para conseguir fundamentar a sua explicação sobre memória. Inicialmente então esboçaremos essas noções que nos levam até o que Bergson entende por memória.
No I capítulo "Da seleção das imagens para a representação. O papel do corpo", Bergson propõe ao leitor despir-se das concepções materialistas e espiritualistas, colocando-se diante das imagens no seu sentido mais vago. O autor então percorre os movimentos que o cérebro faz ao receber as imagens "estas imagens agem e reagem uma sobre as outras" (BERGSON,1990,p.9). Ocorpo(que é matéria e imagem, exterior e interior) recebe e atua como mediador dessas imagens, como se tudo estivesse que estar relacionado a ele, ele é o tradutor da imagem.
" Tudo se passa como se, nesse conjunto de imagens que chamo de universo, nada se pudesse produzir de realmente novo a não ser por intermédio de certas imagens particulares, cujo modelo mo é fornecido por meu corpo".
"Meu corpo é portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento, com uma única diferença, talvez, de que meu corpo parece escolher, em certa medida, de maneira de devolver o que recebe."(BERGSON,1990,p.10)
Para o pensamento bergsoniano, os objetos exteriores ao corpo provocam estímulos no centro nervoso- que é o palco dos movimentos moleculares- esses movimentos moleculares dependem da natureza e da posição do objeto. Modificando a posição do objeto, modifica-se a relação com o corpo alterando a percepção, e a percepção é por sua vez, função desses movimentos moleculares, ela depende deles.
Se o cérebro, também é imagem, e os estímulos transmitidos pelos nervos sensitivos e propagados pelo cérebro são imagens, tudo é imagem. O cérebro faz parte do mundo material, e não o mundo material faz parte do cérebro, "fazer do cérebro a condição da imagem total é verdadeiramente contradizer a si mesmo, já que o cérebro, por hipótese, é uma parte dessa imagem" (BERGSON, 1990,p.11). Bergson, posteriormente conceberá o cérebro como um sistema dinâmico, relacional e complexo.
Nos demais capítulos do seu trabalho, Bergson, investiga a percepção, ou seja, como as imagens são percebidas pelo cérebro. A percepção pura é colocada como subjetividade total, desprovida de memória, sem lembranças e limitada., é a lembrança mais primitiva e profunda, mas que não se reflete na vida cotidiana do sujeito. Ao longo do trabalho, o autor irá rechaçar a noção de percepção pura, afirmando que toda a imagem recebida sempre será impura.
Quanto ao tempo da percepção, este é instantâneo (como um flash), ou seja, existe um instante, quando recebemos a imagem, esta já é tempo passado, portanto, também não existe presente. A percepção é assim virtual (vem e escapa a nossa mente), e nunca é somente uma percepção (ela já é memória), ela cria outra imagem, mas nunca atingirá a totalidade. Nesse sentido para Bergson, quanto mais imediata a percepção mais real ela torna-se, quanto mais distinto de nosso corpo por um intervalo, nunca exprime mais que uma ação virtual. (BERGSON, 1990,p.41)
Retornando ao objeto empírico, no discurso de Lelé, a percepção da imagem de um país distante na África (Etiópia), cristalizada na sua memória, é uma imagem anterior, que precede, enquanto a imagem do Areal da Baronesa excedendo o seu significado.
Dentro deste universo, a percepção e as imagens que entram em nosso corpo são selecionadas pelo cérebro, ou seja, toda a percepção passa necessariamente pela nossa escolha, essas constituem para Bergson algo inexplicável,
''O que você tem a explicar, portanto, não é como a percepção nasce, mas como ela se limita, já ela seria, de direito, a imagem do todo, e ela se reduz, de fato, à aquilo que interessaa você." (BERGSON,1990,p.28)
A percepção está impregnada de lembranças, e as lembranças estão impregnadas de percepção.
"A percepção não é jamais um simples contato do espírito com o objeto presente; está impregnada de lembranças-imagens que a contemplam, interpretando- a.A lembrança imagem, por sua vez, participa da "lembrança pura" que ela começa a se materializar, e da percepção na qual tende a se encarnar: considerada desse último ponto de vista, ela poderia ser definida como percepção nascente." ((BERGSON,1990,p.109)
A lembrança assim como a percepção, tem movimento, ela não é da ordem do espaço, mas sim do tempo. Este tempo (passado, presente e futuro) é virtual, o presente é o instante em que o tempo decorre, e o passado já decorreu (é apenas uma sensação). Portanto, entre passado e presente não há diferença, há um prolongamento, ou seja, o passado se estende para aquilo que chamamos de presente.
E a memória, será uma lembrança ou percepção imediata, uma sensação (da ordem da percepção) num tempo instantâneo?
Bergson diz que há duas memórias,
" ...uma fixada no organismo, não se é senão o conjunto de mecanismos inteligentemente montados que assegurem uma réplica conveniente às diversas interpelações possíveis. Ela faz com que nos adaptemos à situação presente, e que as ações sofridas por nós (...) antes hábito, do que memória, ela desempenha nossa experiência passada, mas não evoca sua imagem. A outra é a memória verdadeira. Coextensiva à consciência, ela retém e alinha uns após todos os nossos estados à medida que eles se produzem, dando a cada fato seu lugar, (...) data....". (BERGSON, 1990,p.124)
Mas ao mesmo tempo, no intento de superação novamente do dualismo, Bergson propõe um vínculo (espírito e matéria) entre os dois conceitos de memória. Definindo assim a função da memória
"No que concerne à memória ela tem por função primeira evocar todas as percepções passadas análogas a uma percepção presente, recordar-nos o que precedeu e o que seguiu, sugerindo-nos assim a decisãomais útil. Mas não é tudo. Ao captar numa intuição única momentos múltiplos de duração, ela nos libera do movimento de transcorrer das coisas(...). Quanto maisela puder condensar esses momentos num único, tanto mais sólidaserá a apreensão que nos proporcionará da matéria(...)". ) (BERGSON,1990,p.187)
Assim, ao finalizarmos este esboço dos pressupostos básicos para o entendimento de memória em Bergson, que leva o dualismo ao extremo para posteriormente estabelecer o vínculo entre matéria e espírito, concluímos que, a memória parte da lembrança (que é do domínio do espiritual) e se prolonga através de um processo cerebral, onde se materializa.
Cabe, ressaltar que a obra de Bergson, ao propor o desmonte do pensamento moderno sobre a memória, e na tentativa de fugir da dicotomia realismo e idealismo, recai muitas vezes no próprio idealismo.
Nesse sentido, na obra Poética do Espaço, Gaston Bachelard aborda também a temática do dualismo, conseguindo avançar em relação a obra de Bergson, quando afirma que a dualidade também é conhecimento. Não há para Bachelard, diferença entre subjetividade e objetividade, a própria subjetividade é colocada aqui na poética da casa.
No discorrer de sua análise sobre memória, Bachelard tece críticas a Bergson, acusando-o de reducionista, metafórico, e de não superação do arco hermenêutico.
Essa crítica está principalmente centrada no capítulo III "A gaveta, os cofres e os armários," onde Bachelard diz que as palavras cumprem um ofício no cotidiano, mas não perdem a poética. As palavras são usadas por Bergson de uma forma metafórica "em Bergson , as metáforas são abundantes e, no fim das contas, as imagens são muito raras.(...) parece que a imaginação é metafórica." (BERGSON,1990,p.246) As palavras são apenas aparência,
"(...) são pequenas casas com porão e sótão. O sentido comum reside no nível do solo, sempre perto do comércio exterior, no mesmo nível de outrem, (...) Subir a escada na casa da palavra é, de degrau em degrau, abstrair. Descer ao porão é sonhar (...)"..(BERGSON,1990,p.293)
Diferenciando imagem e metáfora, Bachelard coloca que a metáfora não pode ser objeto de estudo fenomenológico, pois não tem esse valor, ou seja, ela é somente um sentido, ela não cria. Assim, a metáfora está fora de mim, (dou sentido às coisas que estão fora de mim) mas não consigo apreender a sua essência, quando presente a metáfora, é a imaginação que não está mais atuando.
Nesse sentido, a metáfora é uma falsa imagem que é utilizada para exprimir a insuficiência de uma filosofia do conceito. Em contraposição a Bergson que utiliza conceitos, Bachelard diz que os conceitos são como as gavetas que servem para classificar o conhecimento assim como a ciência moderna o fazem. O conhecimento é colocado em gavetas, compartimentadas para classificar os pensamentos, ou seja, o racionalismo coloca tudo em gavetas, mas esquece o fundamental o móvel (o ser humano).
A memória por sua vez, é como um armário de lembranças, mas não é um móvel cotidiano, não se abre todos os dias, não é o local onde se guardam as imagens do passado, pois não há gavetas na memória. A mente não está cheia de imagens, ela somente cria imagens e comunica-as, sendo este ato de criação um processo interior. Para Bachelard, a lembrança pura é uma imagem, é unicamente pessoal e incomunicável, e está no interior do armário (memória).
O inconsciente é incomunicável, é o cofre- a memória do imemorial- onde guardamos o inesquecível, e lá o tempo (passado, presente, futuro) está condensado. O cofre guarda outro cofre, "haverá mais coisas num cofre fechado do que num cofre aberto. A verificação faz morrer as imagens" (BACHELARD, 1976,p.254) ou seja, no momento em que abrimos o cofre perdemos o imaginar, e imaginar é mais que viver.
Enquanto a totalidade de Bergson somente pode ser percebida na dor (um ser somente é total no dor), para Bachelard a totalidade é comparada a uma concha. A concha é inseparável de seu conteúdo, quando fechada é totalidade, quando aberta é dualidade, pois o ser deixa de existir. Portanto, desvendar ou abrir a concha (aparência) e verificar o que está dentro(essência), é perder a totalidade.
A essência nunca pode ser revelada, quando se coloca para fora já não é mais o ser. Mas o que realmente totaliza o homem para Bachelard, não é a memória, mas o ato de criação- a imaginação, a criação está ligada ao cosmos e a natureza, onde o homem é totalidade. E a imaginação é anterior a memória: consegue-se construir a noção de ninho e concha sem nunca tê-los visto.
Dentro da perspectiva de Bachelard, analisando o discurso de nosso depoente, as imagens da Etiópia e do Areal se confundem, são inseparáveis na sua memória, quando separáveis elas perdem o sentido, ou seja, o Areal da Baronesa seria apenas um espaço onde havia uma areia vermelha e que moravam alguns negros.
Apesar das críticas à obra de Bergson, este transformou e influenciou muitos trabalhos sobre memória, inclusive o cinema de Godard, com idéia de imagem-movimento. Na contraposição dos autores, Bachelard consegue ultrapassar a perspectiva bergsoniana de memória em um ponto fundamental, a criação. A criação ou ato de criar para Bachelard seria um momento único, incomunicável, individual e totalizador. Mas, o que nos parece insolúvel para os autores aqui citados é como surgem ou como "brotam" as imagens, e como estas são selecionadas em nosso cérebro.
Desvendar a memória de um depoente seria como nos coloca Bachelard, uma fechadura que se torna um apelo ao arrombador. Trabalhar com memória significa entrar no campo talvez do incomunicável e cheio de metáforas, pois a subjetividade ou a essência nunca será alcançada. Então se coloca diante de nós um impasse, como estudar um território negro dentro de Porto Alegre onde os testemunhos que nos restam são resgatados através da história oral?
A análise e o debate das duas obras (de Bergson e Bachelard) nos possibilitaram um questionamento maior de nosso papel de historiador, em relação às fontes que dispomos. Repensar o método e a utilização das mesmas é como o cômodo de carvalho, nunca saberemos o que realmente tem dentro, mas talvez nos surpreenderemos muitas vezes como o seu conteúdo.
BIBLIOGRAFIA
BACHELARD, Gaston. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
KRAWCZYK, Flavio, GERMANO, Iris e POSSAMAI, Zita. Carnavais de Porto Alegre. Porto Alegre, Secretaria Municipal da Cultura, 1992.
[2] Gaston Bachelard (1884-1962) filósofo.
[3] Adão A. de Oliveira conhecido como Lelé, foi o primeiro Rei Momo negro eleito em 1947, sendo suatrajetóriaimportante para ocarnaval da cidade de Porto Alegre/RS.
[4] O Areal da Baronesa é o local onde atualmente situa-se a praça Cônego Marcelino , e as ruas Baronesa do Gravataí, Barão do Gravataí, Cel. André Belo e Miguel Teixeira, e algumas transversais menores, na região da Cidade Baixa e Menino Deus. Era uma extensa área de terra que pertencia a Baronesa da Gravathay, que ali mantinha uma chácara em meados do século XIX. Ficou famoso por seu carnaval e por abrigar uma população majoritariamente negra no final do século XIX e ao longo do século XX. Atualmente a área está sendo reconhecida como um dos quilombos urbanos de Porto Alegre.
[5] Para Gilles Deleuze, que compartilha das mesmas idéias de Bergson, e diz que "Bergson sem ainda conhecer o cinema, destaca o conceito fundamental de imagem-movimento, com suas três formas principais- imagem-percepção, imagem-ação, imagem-afecção". In: DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.p.63.
Jane Rocha de Mattos
Professora de Ensino Médio, Mestre em História do Brasil pela Pontifícia Universidade Católica do RS (PUC/RS),atualmente atua como pesquisadora na àrea de patrimônio e memória, e também na pesquisa histórica de comunidades quilombolas urbanas em Porto Alegre/RS.
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Reflexões sobre memória em Henri Bergson e Gaston Bachelard
publicado 3/07/2009
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