quinta-feira, 22 de setembro de 2011

JOEL BIRMAN : OS JOGOS DE VERDADE DA PSICANÁLISE


ENTREVISTA (29):
 Joel Birman


Os jogos de verdade da Psicanálise




Joel Birman demonstra habitar de modo tranqüilo o paradoxo que ele faz emergir, após múltiplas viagens pelos campos da psicanálise, da pulsão e do inconsciente desde seus confins: por mais que se procure, não existe um pai que vá costurar o hiato permanente entre o mundo simbólico e sublimatório e a pressão sempre renovada da força erótico-pulsional. E é nesse lugar de desamparo estrutural que o ser humano tem de se confrontar com sua angústia, e do vazio inventar sua singularidade através da criação estética de seu estilo de viver.

É assim que, ao mesmo tempo em que constituiu lugares sólidos de pertinência na universidade, no campo editorial, no campo clínico e institucional psicanalítico, ele faz valer um pensamento inquieto, sempre em movimento, passeando rigorosamente pelos confins. Uma reflexão que sempre desconstrói sólidas certezas para se lançar no magma criativo de invenções renovadas em novos jogos de verdade e de linguagem, que pelo movimento pulsante no qual se constituem ressoam com uma contundente autenticidade. Ao fazer brotar pensamento da matéria da vida, Birman abre-o novamente para transformar a vida e ser por ela transformado.

 Joel Birman

Em setembro de 2002, em São Paulo, nossa equipe e Joel tiveram um marcante, intenso e produtivo encontro. Esperamos que o leitor possa desfrutar prazerosamente do que resultou desta experiência.

Percurso: Seu pensamento se constitui no cruzamento entre psicanálise e filosofia e se alimenta, também, de outras áreas de saber. O Sr. poderia comentar como é que essas áreas confluíram na construção de sua formação de analista?
Joel Birman: Sou médico de formação, psiquiatra. Quando comecei nessa área, nos anos 60, a formação que tive já era dentro de uma, digamos assim, psiquiatria psicanaliticamente orientada. Na época, o trabalho em hospitais psiquiátricos era aquilo que, no Brasil, era chamado comunidade terapêutica – o que no movimento francês corresponde à psicoterapia institucional. De imediato a minha entrada na psiquiatria deu-se através do viés crítico da psicopatologia clássica, seja ela alemã ou francesa, do viés que se poderia chamar de psiquiatria social. Basicamente, o tipo de instrumentos que tínhamos na época eram instrumentos na área de fronteira com as Ciências Humanas (Ciências Sociais, Filosofia, Antropologia).

O nosso manuseio da própria compreensão 
do que fosse o psiquismo, a subjetividade, 
passava pelo que, hoje, chamamos 
de interdisciplinaridade 
ou transdisciplinaridade.

Além disso, a minha entrada dentro da psiquiatria e da psicanálise também foi marcada pelo fato de que eu era um militante comunista. Naquela época, o Partido Comunista era uma escola importante na qual tínhamos uma formação humanista mais ampla. Isso compôs uma marca de fronteira na minha formação. Trata-se da construção de um modo de pensar que veio tanto do modelo crítico-psiquiátrico em que eu fui envolvido, quanto da minha formação de militante político comunista. Inclusive, nessa época, dentro do movimento comunista, a psicanálise era tida como sendo uma coisa horrorosa. Tendemos a esquecer disso... 

As pessoas que se interessavam por psicanálise, seja para praticá-la seja para se submeter a ela como pacientes, eram muito mal vistas dentro do movimento político. Ela era, naquela época, considerada uma espécie de ideologia da pequena-burguesia, não comprometida com as grandes causas da revolução. De uma certa maneira, eu tinha que segurar duas pontas: uma, a de ser excêntrico dentro do movimento comunista e, a outra, de ser um pouco excêntrico dentro de uma certa postura em relação à psiquiatria oficial (coisa que eu não acho ruim). Se quisermos atribuir um certo valor ético-político à formação do psicanalista, eu diria que a condição do psicanalista é a condição de uma certa exterioridade, de uma certa excentricidade em relação às normas grupais estabelecidas. 

Poderíamos até dizer que a crise da psicanálise atual consiste, de certa forma, na perda dessa condição de excentricidade ou de exterioridade e na configuração – sobretudo a partir do boom da psicanálise brasileira dos anos 70 em diante – do que eu chamo de normalização da psicanálise, no sentido de perda desse lugar de fronteira. Um certo aprendizado dessa posição de exterioridade fronteiriça, como diria talvez Pontalis, de estar nos confins, deve ser aquele da posição do psicanalista. É o lugar onde você pode ter uma certa liberdade de escuta do inconsciente.


Percurso: O Sr. tem alguma hipótese a propósito dessa perda da posição de exterioridade?
Birman: Por um lado, atribuo aos processos de formação psicanalítica no Brasil (assim como em outros lugares do mundo): esse processo maciço de formação, seja pelo modelo da IPA seja pelo modelo dos movimentos lacanianos. Houve um aspecto positivo que foi o fato de se criar uma certa cultura psicanalítica, a qual, evidentemente, foi gerada pela produção e divulgação de idéias, pela fundação de agrupamentos e centros de discussão, enfim, por toda uma dissonância e ressonância do pensamento psicanalítico. 

Em contrapartida, aconteceu uma certa massificação da formação do analista que implicou isso que chamo de normalização do analista. Ou seja, esse último se define muito mais por sua inclusão emblemática em um grupo do que propriamente pela sua condição de estar numa excentricidade, numa condição fronteiriça tal como a que eu falava anteriormente. Uma das decorrências disso foi a criação de cursos de psicanálise fora da universidade e, mesmo recentemente, dentro dela. Acabou-se ganhando cursos ou cursinhos de psicanálise, que é algo problemático – considerando o que deva ser a formação de um analista.


Percurso: Em seu texto "Fascínio e servidão"1, o Sr. desenvolve a idéia de que essas grandes instituições acabariam por gerar uma espécie de pacto masoquista. Nesse sentido, será que ainda haveria algum futuro para elas? De outra parte, o Sr. aponta a saída dessa situação através dos pequenos agrupamentos. Será que eles, por definição, reúnem as condições para responder pelo tripé necessário à formação (análise, supervisão e formação teórica)?
Birman: Atualmente, eu considero existir pelo menos dois modelos de grandes instituições: um deles, evidentemente, é o modelo da IPA (International Psychoanalytical Association), da análise-formação centrada em uma análise didática. A variante disso, que, a meu ver, acaba constituindo alguma coisa muito parecida, apesar da abolição do que chamamos de análise didática, são certos modelos lacanianos. A impressão que tenho é que o campo lacaniano aqui em São Paulo não é exatamente o que a gente vê em outros lugares, e que o próprio fenômeno lacaniano aqui é menor do que em outros estados do Brasil, inclusive no Rio de Janeiro.


Percurso: Talvez não seja similar dada a existência de outros acontecimentos, de outras tendências tão fortes quanto, e não por ser um fenômeno menor. Parece existir uma espécie de contraponto de outras instituições igualmente ou até mais fortes.
Birman: No caso do Rio de Janeiro há uma hegemonia maior de lacanianos. As formações propostas por eles possuem um certo modelo similar ao modelo da IPA, ainda que sem a instituição da análise didática. De qualquer maneira, o que é parecido, é uma relação que, no artigo por vocês mencionado, eu chamo de relação de servidão à figura do líder. No caso da IPA, essa servidão está relacionada à figura dos didatas. Já em relação às instituições lacanianas, trata-se de uma certa figura do chefe a quem se deve uma certa obediência teórica, ética etc. 

As pessoas que circulam nesses grupos têm pouco poder crítico em relação ao líder, seja este o didata sejam os professores que lecionam nessas instituições. Isso acaba por criar um efeito que eu chamo de uma submissão masoquista, justamente porque o funcionamento da estrutura pedagógica da instituição e o funcionamento da estrutura terapêutica são muito superpostos e articulados. Essa é uma questão que vem sendo denunciada na própria tradição da IPA, pelo menos desde os anos 40, pelos bons autores: Balint, Gittelson, Nacht e o próprio Lacan. 

De uma certa maneira, a crítica que este último faz à IPA coloca-o no contexto dos vários autores que já nos anos 50 mostravam os impasses desse processo de formação. Nele, o masoquismo se produzia e se produzia também uma espécie de reforço paradoxal do funcionamento do supereu nos jovens analistas. Tudo isso gera uma certa esterilização simbólica no campo psicanalítico, uma espécie de atividade pedagógica repetidora. Daí eu considerar que o potencial de ousadia, o potencial para novas idéias, hipóteses, conceitos fica muito esterilizado quando não se corre o risco no plano simbólico por receio de ser excluído no plano institucional, de ser marginalizado. Isso acaba por compor um grande concerto dissonante que é uma instituição esterilizada e normalizada.


Percurso: E esses pequenos agrupamentos teriam alguma chance de quebrar, de reinstalar justamente esse lugar do fora?
Birman: Penso que sim, porque a idéia básica seria a idéia do fora, a idéia da fronteira, que eu associo ao rico artigo de Foucault, no qual ele relativiza a oposição entre interioridade e exterioridade e dialetiza o dentro e o fora (que pode ser uma espécie de fonte de irrupção de coisas novas, criativas).

O que eu acho interessante na proposta de agrupamentos psicanalíticos menores encontra-se no fato de eles conterem um potencial de diversidade, de pluralismo teórico que não é contemplado nas grandes instituições que são sempre dogmáticas, e nas quais a teoria se torna doutrina. Quando se transforma uma teoria em doutrina, não há mais a chance de se posicionar uma teoria diante de várias outras que disputam entre si a interpretação, a explicação de determinados fenômenos ou determinados acontecimentos. Ou seja, ocorre um fechamento num paradigma supostamente absoluto a partir do qual se excluem as demais teorias através de uma série de estratégias de desqualificação, de demonização do outro, de subterfúgios presentes nos jogos de linguagem:

"Não, isso aqui não é psicanálise. 
Isso é uma sub-psicanálise; 
isso é uma falsa maneira 
de se entender psicanálise...".

Penso então que essas grandes instituições, esses grandes agregados como, por exemplo, a instituição de Miller ou qualquer instituição da IPA, na medida em que são monológicas e dogmáticas, não têm pluralismo. Daí eu considerar que uma das características básicas que uma instituição de psicanálise, que eu chamo de menor, deva ter é o fato de que ela seja pluralista, de que se admita conviver com diferenças no campo da formulação teórica, podendo-se até não concordar, por exemplo, com o que diz um freudiano ou um winnicottiano, mas admitindo a cada referencial diferente o mesmo potencial de dizer alguma coisa a propósito do que chamamos de psicanálise. Esse é o primeiro aspecto importante: a possibilidade de conviver, e suportar viver, num campo pluralista marcado por diferenças. É o que estou chamando de viver nos confins, nessa posição do fora. 

Outro aspecto que julgo ser importante é o plano da formação. Entendo que há um defeito que faz as instituições de psicanálise não funcionarem. Ao invés de se criar uma instituição em torno da discussão de uma série de temas, sejam eles quais forem – clínicos, técnicos ou ligados a problemáticas do campo da cultura – e onde se possa fazer confluir diferentes autores, as instituições de psicanálise, geralmente, funcionam na base do aprendizado de autores. Elas oferecem um cursinho sobre Freud, um cursinho sobre Lacan, outro sobre Ferenczi, mais um sobre Melanie Klein, quer dizer, torna-se disponível o aprendizado dos dogmas e não o aprendizado de problemas, o que eu considero que produz uma brutal diferença.

E o terceiro ponto é o empecilho de qualquer grande instituição de psicanálise: o fato de que, apesar de elas serem um espaço de troca entre os psicanalistas (foi para isso que foram formadas quando Freud reunia o grupo das quartas-feiras: ter pessoas com quem ele pudesse trocar as próprias inquietações, constituir um lugar de troca para os analistas onde eles pudessem ousar, desenvolver novas hipóteses, desenvolver novos conceitos, criar, inclusive, novas teorias), por um efeito de inversão (que eu entendo que tenha a ver com a maneira pela qual a questão da servidão se organiza na relação transferencial) essas instituições acabam por funcionar apenas como um espaço de formação.

Conseqüentemente, todo poder das instituições de psicanálise se organiza em torno da formação que é onde os analistas "formadores" estabelecem a hierarquia. Eles, ao mesmo tempo, têm suas várias troupes – dos seus analisandos, dos seus supervisionandos, dos seus alunos propriamente ditos – que constituem um amálgama altamente perverso, no meu modo de entender, no qual múltiplas manipulações se superpõem, se solidificam de maneira que levam também a uma certa esterilidade.


Percurso: Há uma construção de pensamento nos seus trabalhos que delineia algumas etapas discerníveis. Uma das etapas – aliás, interessante e que chama a atenção – distingue-se por sua investida editorial: época em que o Sr. introduziu obras de Ferenczi e de Tausk. Na introdução de cada um desses livros 2 percebe-se que há uma espécie de denúncia a respeito do movimento psicanalítico, a respeito desse efeito de silenciamento dos pensamentos – efeito mortificante da relação mestre-discípulo. Ou seja, sua atividade editorial afirma-se não apenas como uma busca de trazer à luz um pensamento que as pessoas, em geral, não sabiam que existia e que é potente por si mesmo, mas afirma-se também através da função política dessas publicações.
Birman: Com certeza! Vários autores que eu "recuperei", pelo menos aqui no Brasil, eram autores que estavam completamente à parte, que não existiram até os anos 80 – no caso do Tausk o livro Sobre a máquina de influenciar e no de Ferenczi uma coletânea. Depois, aqui no Brasil, aconteceu uma maior divulgação do pensamento de Ferenczi e, de uma certa forma, esse autor hoje está na moda (ou esteve mais na moda, atualmente é a época da moda de Winnicott). Ambos os dois são autores que tiveram uma marca de rebeldia em relação à mestria. 

No caso do Tausk, talvez de uma maneira um pouco mais trágica, devido a seu suicídio. Mas eram autores excêntricos e, ao mesmo tempo, autores geniais, pessoas que tiveram essa marca de ousadia, de questionamento. Ferenczi era chamado de enfant terrible da psicanálise exatamente por causa disso. Ao mesmo tempo, criaram uma obra nova. Essas publicações se deram num contexto evidentemente histórico, no qual as organizações mais tradicionais, em termos da história da Psicanálise no Brasil, estavam no ápice dessa espécie de imperialismo do mestre nos anos 80 – tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo. De certa maneira, essa máquina de trituração transferencial estava no auge. 

Trazer Ferenczi, trazer Tausk era uma maneira de fazer um certo contraponto a isso. Essa máquina de trituração, na época, não era mais referida à obra de Freud, mas, no caso do Rio de Janeiro, referida ao pensamento da Melanie Klein e aqui em São Paulo ao pensamento de Bion. Quem não era bioniano não era psicanalista. Trazer Tausk e trazer Ferenczi era dizer: "Olha, tem outras maneiras de dizer isso, tem outras maneiras de pensar isso", uma espécie de oxigenação, de propor que se respirasse um ar menos envenenado. Certamente essa função crítico-política estava presente.


Percurso: Talvez o Sr. pudesse falar um pouco a respeito desse processo através do qual algo cuja potência é oxigenante acaba se tornando sufocante por conta das tais modas.
Birman: O virar moda acaba virando norma de um grupo, acaba criando identidades fixas, as instituições acabam assimilando o novo. No caso específico de Ferenczi isso foi muito claro. Muito mais do que as neuroses clássicas, as novas formas de subjetividade, que hoje batem à porta das nossas clínicas, tornaram mais presentes as estruturas regredidas, narcísicas, com problemas psicossomáticos. 

Isso deu força para que um autor como Ferenczi virasse doutrina, perdesse o potencial de ousadia e de inovação que ele tinha e acabasse virando norma de grupo; há grupos de formação ferencziana, o que me parece um contra-senso, no sentido ferencziano do termo. 


Percurso: Vamos retornar ao começo desta entrevista e abordar seu trajeto tanto em termos de pensamento como em termos de seus caminhos de formação. Estes poderiam ser descritos como um "brincar várias brincadeiras", sem o risco do ecletismo e com a prerrogativa de que os jogos criam uma maneira de pensar não aderente a este ou aquele modelo. Então, quais foram especificamente seus jogos?
Birman: Um deles eu já mencionei: o militante comunista. Eu sou judeu de origem. Meus pais são judeus imigrados, romenos. Eu sou quase filho caçula, de uma família de mulheres – daí o interesse pela feminilidade, entre outras coisas... Essa experiência da excentricidade ou da fronteira ou dos confins, tem a marca judaica, é evidente. O fato de eu ter sido socializado como judeu de uma maneira muito estandardizada, uma vez que minha família não tinha o apego aos rituais judaicos, criou uma indagação a respeito de minha condição antropológica. 

Judeu era uma palavra 
que eu não sabia bem o que é 
que implicava para mim;
eu tive de construir o sentido dela. 

Há essa marca judaica e essa marca comunista. Certamente foi isso que me levou para um caminho no campo da psiquiatria que já era um determinado caminho crítico. Nos anos 60, a psiquiatria existente era uma psiquiatria muito medicalizada, nos modelos franceses, sobretudo, alemães; e a psicanálise existente era muito dogmática (acho que ela ainda continua sendo). O boom da psicanálise não tinha acontecido ainda, estava começando a acontecer. No caso do Rio de Janeiro a cultura psicanalítica era fundamentalmente kleiniana.


Percurso: E o Sr. iniciou sua aproximação com a psicanálise por essa cultura?
Birman: Eu comecei a minha aproximação com a psicanálise nessa época porque fiz uma experiência de psicanálise de grupo. Eu tive duas experiências com psicanálise de grupo, sempre com analistas de formação kleiniana. Foram cinco anos nesse processo. Um de meus analistas foi analisado pelo Décio Soares de Souza, analisando direto da Melanie Klein que se mudou para São Paulo depois de expulso do Rio de Janeiro. Eu tinha muita dúvida se queria ser psicanalista. Quer dizer, não se eu queria ser psicanalista, mas se eu podia ser psicanalista. 

Diferentemente das novas gerações, para as gerações dos anos 60, definir se se poderia ser psicanalista ou não era uma questão. Considerávamos as condições mínimas de sanidade para tanto. Eu levava em conta não apenas as dúvidas sobre a minha sanidade mental – não tomem isso como metáfora ou como charme, não, porque era a absoluta verdade literal. Levei muito tempo para fazer uma formação psicanalítica. Não foi algo que rapidamente eu decidi.

Fiz muitos anos de análise 
até iniciar uma formação psicanalítica.

Enquanto isso, eu trabalhava em hospitais, trabalhava fazendo psicoterapia etc. Mas eu pensava que aquilo que me era oferecido na formação psiquiátrica, ou aquilo que eu escutava às vezes dos psicanalistas, era uma coisa muito pobre, muito técnica. Depois das duas análises de grupo, fiz uma análise individual com duração de 12 anos. A minha analista não era uma kleiniana. Era uma mulher (os outros dois foram analistas homens) que analisava também crianças e tinha, inclusive, um traço winnicottiano – apesar de ter tido uma análise freudiana, o analista dela foi um analista que fez formação no Instituto Psicanalítico de Berlim. Ela tinha essas duas faces: freudiana e winnicottiana, e era mulher. 

Por outro lado, havia um estranhamento frente ao discurso dos psicanalistas. Ou melhor, um estranhamento diante de tudo que ainda há pouco estávamos chamando de doutrina. Isso era algo que me afligia. Eu não gostava, me incomodava, e foi em função disso mesmo que, em vez de fazer pós-graduação em psiquiatria, eu escolhi fazer mestrado e doutorado em filosofia. Foi uma maneira de acessar um outro tipo de informação ou de conhecimento que fornecesse elementos para eu criar novos jogos de pensamento. Nesse percurso alguns autores foram especialmente importantes para minha formação: Foucault, Deleuze, Nietzsche – autores que marcaram muito meu trajeto. Anteriormente tive uma formação marxista-hegeliana com todas suas variantes – o que compreende autores como Althusser, prolongamentos no campo da epistemologia francesa, Bachelard, Canguilhem etc.

Esses autores estão presentes nas teses que escrevi e que marcaram meu trajeto. Num determinado momento, quando eu estava para fazer a minha tese de doutorado, levantei a possibilidade de pesquisar o campo psicanalítico como uma série de jogos de linguagem. Eu estava fazendo cursos sobre Wittgenstein no Rio de Janeiro, no doutorado da PUC (apesar de que o doutorado eu fiz aqui na USP). 

Fiquei encantado com a idéia de pensar
a psicanálise como uma série 
de jogos de linguagem. 

Mas não fiz isso – o que seria uma coisa enorme – e acabei fazendo uma tese sobre Freud. Hoje estou retrabalhando essa mesma idéia de uma outra maneira. 

Por outro lado, naquela época, eu era professor no Departamento de Psiquiatria da UERJ e no Instituto de Medicina Social – um instituto também interdisciplinar, que reunia não só analistas e epidemiólogos (na área de medicina), mas também economistas, sociólogos, antropólogos. Havia um convívio pedagógico com pessoas que estavam pensando aquilo que hoje chamamos de saúde coletiva. Isso me marcou. Depois disso tudo, entrei numa associação de psicanálise e fiz formação na IPA. Senti um grande mal-estar na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, não só porque eu achava que era uma instituição intelectualmente muito limitada, como várias instituições psicanalíticas que conheço, como também porque começou a me incomodar uma certa pobreza existencial dos analistas. Mostravam-se como figuras muito limitadas, muito narcisistas, dadas a rivalizar...

Aquilo ali começou a me produzir um mal-estar, uma espécie de disgusting que me levou a sair. Eu tinha uma prática pedagógica anti-IPA, de uma certa maneira, porque eu dava aulas para diferentes formações psicanalíticas e não tinha nenhuma identificação com o projeto político daquela instituição. Acabei permanecendo muito tempo longe de qualquer ligação formal com instituição. Eu considerava interessante que os analistas ficassem ligados a projetos ou, mais especificamente, a uma prática, uma militância aberta freqüentada por diferentes grupos resguardando o sentido dos diferentes espaços. 


Percurso: O Sr. poderia nos contar sobre a sociedade em que está atualmente?
Birman: Recentemente criei o grupo "Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos" no Rio de Janeiro, que tem uma ligação com uma instituição francesa chamada Espace Analytique, formada por Maud e Octave Mannoni. É uma instituição pluralista, apesar de suas marcas freudo-lacanianas, nos moldes não-dogmáticos, ou seja, sem uma identificação específica com qualquer autor. Há pessoas com formação freudiana, ou marcadas pela leitura de Lacan, de Winnicott, de Ferenczi que se organizam em torno de grupos de trabalho, centrados na sua produção.

Cada três pessoas que se interessem por um tema podem abrir um grupo de trabalho. A instituição não tem nenhum interesse de definir que temas são válidos ou que temas não são válidos. Nós não fazemos um trabalho de ensino; qualquer pessoa está em condição de igualdade com os outros, é uma instituição que não tem hierarquia.


Percurso: Existe algum processo de seleção?
Birman: As pessoas são submetidas a uma entrevista inicial, na qual seu percurso na psicanálise é examinado. Nosso contingente, em grande parte, é formado por pessoas com uma sólida formação psicanalítica, sem ter necessariamente passado por alguma instituição de psicanálise. São pessoas que fizeram uma análise, fizeram ou fazem supervisões e cursos. Muitas delas passaram pela universidade, fizeram mestrado, doutorado. É uma instituição na qual circulam diferentes gerações. A maioria dos participantes tem ao redor de 35-40 anos, mas também há pessoas na faixa entre 60-65 anos.


Percurso: Com quantos participantes a instituição conta atualmente?
Birman: Temos em torno de 65 a 70 pessoas no Rio de Janeiro operando na base de grupos de trabalho. Alguns franceses são membros da nossa instituição: Alain Grenier, Louis Léraise, Gisella Chapelais e outros desse grupo francês, sem que haja uma relação de submissão hierárquica. Diferentemente do campo do Miller ou do modo de funcionar da IPA, nós participamos de um mesmo dispositivo diretor que é chamado de Collège de Psychanalystes: um conselho que dirige essa espécie de organização internacional tanto de Paris como de Madrid e do Rio de Janeiro. É uma rede institucional, e a instituição francesa não tem uma posição de superioridade hierárquica em relação às outras. 

Percurso: Sua relação com essa instituição se deu durante sua estada na França? Como foi sua inserção nos espaços analíticos franceses?
Birman: Várias das minhas inserções na França deram-se a partir do período em que estive lá e que durou cerca de um ano e oito meses. Suspendi todas as minhas atividades aqui para fazer pós-doutoramento – o que, aliás, é uma experiência muito agradável, muito menos pelo que se faz, e muito mais em função da liberdade e do tempo que se tem.

É possível assistir aos cursos e seminários que se quiser, ler os livros que se quiser, escrever o que se quiser; depois, evidentemente, é necessário prestar algumas contas à agência financiadora (CNPq, no meu caso). Mas o mais interessante é a oportunidade de se manter afastado de uma série de obrigações formais: daí surge espaço para uma criatividade interessante e, ao mesmo tempo, cria condições para uma certa experiência de nomadismo. Na École des Hautes Études freqüentei coisas muito diversificadas, tanto no campo da psicanálise quanto fora dele, como na área de filosofia e de ciências sociais. 

Tive contato com o Espace Analytique, sobretudo em função da amizade com Joël Dor, mantive encontros pessoais e profissionais que geraram para mim a oportunidade de retornar regularmente, duas ou três vezes por ano. Participo de diversos congressos e também de cursos na Universidade Paris VII. Este ano, por exemplo, fui a Nice para uma discussão com um grupo lacaniano sobre formas atuais de violência e criminalidade, e falei sobre a violência no Rio de Janeiro. Em fevereiro, vou participar de um congresso sobre o assédio sexual, na área de psicologia social e psicanálise. Há um processo muito interessante de troca, de renovação com diferentes grupos. Trata-se novamente da cartografia do jogo, da manutenção de diferentes contatos. 

Eu gosto de manter contatos 
com grupos que não sejam de psicanalistas, 
ou grupos de psicanalistas sustentados 
de acordo com diferentes ideologias. 

Existe um grupo psicanalítico francês do qual eu faço parte, por exemplo, chamado Psy-chanalyse Actuel, que se pergunta acerca dos efeitos do holocausto para a subjetividade contemporânea: você tem uma instituição de militância pós-holocausto – inclusive um dos elementos do grupo escreveu um livro sobre o que é o amor pós-holocausto. É um grupo interessante, e as pessoas têm idéias muito arejadas. Isso é uma coisa curiosa que a experiência francesa possibilita: verificar que os analistas são muito abertos, vinte anos depois de toda a questão lacaniana mais árdua, e mesmo sustentando filiações lacanianas, como é o caso desse grupo. Eles não têm, absolutamente, esse dogmatismo que a psicanálise brasileira tem.


Percurso: Nós já entrevistamos analistas franceses que foram analisandos de Lacan ou que são da segunda geração pós-Lacan, e no decorrer dessas entrevistas experimenta-se exatamente isso: há uma ventilação de idéias, uma possibilidade de participar de coisas diversas sem preconceitos.
Birman: Exatamente. Mesmo tendo uma instituição de referência, eles participam de outros grupos e discursos, têm um diálogo com o campo da política, das ciências sociais, da arte e há uma diferença com relação a nós: eles são exigidos a ter isso. A diferença é que no primeiro mundo, as pessoas são obrigadas a produzir criações novas e diferentes e no terceiro mundo a produção não é voltada para a criação, mas para marcar a pertinência institucional, para definir qual dialeto você fala e qual o seu grupo de referência. É uma produção que vale mais para o reconhecimento do lugar institucional do que efetivamente para afrontar questões novas que possam interessar.

Na Europa importa o efeito que um texto exerce sobre as pessoas, se a produção diz alguma coisa, se alguma vírgula, algum travessão ou algum ponto e vírgula foi acrescentado ou se o texto está repetindo uma bobagem que já está instituída. Lá há um imperativo da produção, que evidentemente não é aquele de uma produção que marque lugar no campo institucional. No Brasil vemos a necessidade de codificar discursos e marcar lugares – questão abordada por Roberto Da Matta a partir do conhecido "Você sabe com quem está falando?" Parece-me que o discurso teórico brasileiro e o discurso teórico do campo da psicanálise, senso estrito, é para as pessoas saberem com quem estão falando, em qual espaço se encontram, quais as instituições participantes, quais as regras vigentes, quem reconhece e quem não reconhece o autor.

E há uma série de conseqüências, não só de reconhecimento institucional, mas, sobretudo, de reconhecimento clínico: quem vai mandar paciente para quem, quem não vai. A produção francesa não é baseada nesse código; ao contrário, ela é baseada na premissa de um país de primeiro mundo, a qual indica que se deve escrever alguma coisa (ainda que seja acrescentar uma vírgula numa frase) ou então, não havendo nada a acrescentar, ter a dignidade de não escrever.


Percurso: Gostaríamos de seguir considerando as publicações psicanalíticas, seja na Europa seja no Brasil, mas introduzindo uma vertente teórico-clínica atual. Pensando que o campo editorial reflete o modo de subjetividade contemporâneo, não é possível deixar de notar que a construção subjetiva sustentada pelo conflito psíquico está perdendo terreno para uma outra, que se pauta pela exacerbação do narcisismo. Que conseqüências isso acarreta para o exercício clínico, na medida em que há um deslocamento da atenção das neuroses clássicas para os casos limites, os estados regressivos e o campo da psicossomática?
Birman: De uma certa forma, historicamente o que aconteceu desde o período entre os anos setenta e oitenta, foi o aparecimento de novas formas de sofrimento, onde a questão do corpo e a do narcisismo foram colocadas cada vez mais em primeiro plano, os traços obsessivos ou histéricos foram relativamente postos de lado, o modelo da conflitualidade foi se apagando e, de maneira crescente – através da psicossomática e daquilo que os franceses chamam de estados-limites – temos nos deparado com analisandos ou pacientes com traços cada vez mais melancólicos.

Foi nesse contexto que determinados autores foram recuperados: Ferenczi, Balint, Winnicott. Esses autores entraram na moda na medida em que os modelos mais centrados no narcisismo como teoria libidinal, ou na melancolia como um modelo de estrutura clínica, colocaram-se como paradigmas. Esse foi o efeito da moda. Com isso, criaram-se novas doutrinas adaptadas à conjuntura atual dessas formas. 

É assim que entendo, por exemplo, como Winnicott hoje é um autor que está na moda, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro. Os modelos mais clássicos freudo-lacanianos ficam em segundo plano, o boom de Lacan começou a baixar, perdeu-se a dimensão de que a psicanálise trata num campo que tem uma certa mobilidade. Não se pode ficar deslocado do modelo do Édipo, do modelo do narcisismo como se fossem doenças antigas em relação a doenças modernas, até mesmo porque psicanálise não trata de doença, mas de funcionamentos ou processos psíquicos.

Basicamente, a minha hipótese em relação a isso é o seguinte: acho que através de Freud, Lacan, Ferenczi, Tausk, Winnicott, e assim sucessivamente, a psicanálise constituiu historicamente diferentes jogos de linguagem. Jogos de linguagem entendidos no sentido wittigensteiniano do termo, ou então na versão de Foucault que chama isso de jogos de verdade; isto é, nós criamos diferentes jogos de verdade para falarmos dos processos psíquicos e existe uma espécie de doença fatal dos psicanalistas que os faz acreditar que um jogo é melhor do que o outro.


Percurso: Que um jogo de verdade é a Verdade verdadeira.
Birman: Sim, que a verdade não é uma ficção e que o jogo, na verdade, é criado por uma espécie de acordo entre os jogadores a respeito das suas regras. Então o fato de que determinados jogos privilegiem determinadas formas de funcionamento a respeito da subjetividade não quer dizer que esse jogo seja mais verdadeiro que um outro. Vivemos diante de um conjunto de jogos e, de fato, o analista, em primeiro lugar, deve reconhecer que se tratam de jogos e de que jogo quer dizer regras compartilhadas e não regras transcendentais. Cada jogo implica num conjunto de artefatos, de instrumentos técnicos e metodológicos utilizáveis.

Eu não vou conversar com um psicótico da mesma forma como eu vou falar com um histérico clássico. Tenho que dispor de mobilidade para inventar e reinventar o meu dispositivo de acordo com o tipo de demanda que me é apresentada, senão eu vou produzir aquilo que se chama uma experiência catastrófica, de querer impor algo ao outro. Isso implicaria um modelo acachapante, ao invés de acolher uma certa sensibilidade para jogar diferentes jogos, para saber que certos jogos são mais passíveis de serem jogados com certos atores, e outros com outros; ao invés de considerar que só existe uma Psicanálise e que as outras são, por assim dizer, mentirosas.


Percurso: Quem sabe o jogo e a plasticidade precisem estar presentes para manter a idéia do que é psicanálise, seja nas instituições de formação, seja no contato analista-paciente, seja nos jogos sexuais...
Birman: Seja na teorização. Quando se está centrado numa doutrina, está-se falo-referido, perdeu-se a capacidade de brincar e de saber que isso tudo são jogos de verdade, e que outros jogos de verdade podem ser inventados, até mais interessantes...


Percurso: Essa concepção nietzscheana da verdade parece conduzir suas escolhas na psicanálise.
Birman: Com certeza.



Percurso: Seria interessante o Sr. nos falar um pouco a respeito de suas idéias sobre a medicalização e sobre a adicção crescentes no mundo contemporâneo.
Birman: Do ponto de vista psicanalítico a medicalização e a adicção crescentes são instrumentos ou formas que caminham em direção à falicidade. O uso de medicação sistemática, o Prozac ou outros tranqüilizantes, ou a adicção, o consumo de drogas ilegais são as duas faces da mesma moeda. Promovem uma drogadicção que, do ponto de vista do funcionamento social e também subjetivo, são equivalentes. O que é evitado em ambas é o limite da organização fálica, é evitada a possibilidade de experimentar diferentes nuances de sofrimento. Isso porque as condições atuais da nossa existência contemporânea vão cada vez mais contra essa experiência, devido à exigência de performance e eficácia na ética da sociedade do espetáculo. Não tem lugar para angústia, não tem lugar para variações de humor e assim subseqüentemente. 

A adicção às drogas, sejam elas medicamente reguladas sejam drogas ditas narcóticos, tem a função sempre de aumentar o potencial de performance das pessoas. Portanto, elas vão numa direção evidentemente fálica, na qual busca-se eliminar a singularidade e o desamparo. Se a psicanálise – e essa é uma outra maneira de encarar a crise da psicanálise – tem menos lugar hoje do que tinha há vinte ou trinta anos atrás, é porque surgiram instrumentos de regulação e de promoção do ideal fálico. Diante deles o convite da psicanálise aparece um tanto quanto risível, ao propor exatamente que as pessoas abram mão da falicidade em nome do desamparo e da feminilidade.

O mundo corre numa outra direção 
– eis assinalado, de uma certa maneira, 
o lugar excêntrico da psicanálise.


Percurso: Estamos conversando a respeito da própria montagem contemporânea dos modos de vida – e isso implica um campo muito maior do que a psicanálise. Esta se insere aí e, tanto como sujeitos de nossas vidas quanto como psicanalistas, não nos constituímos em Marte. Não podemos exigir estarmos acima de qualquer suspeita. Como, então, participar internamente da roda do mundo ao qual pertencemos e manter a posição de exterioridade ao mesmo tempo? Como ocuparmos o ponto de fuga excêntrico, como retomarmos a cada vez a excentricidade fundante da psicanálise que a sustenta enquanto um dispositivo criativo? Ela sequer pode competir com a psiquiatria, pois não dá respostas rápidas.
Birman: E não tem o efeito imediato de uma droga.


Percurso: Mas é possível exercer uma clínica tranqüilizante, não-analítica. E nesse sentido, o analista deixa de ser excêntrico. Esse é um risco das formações, hoje.
Birman: Exatamente. Porque o modelo da normalização, do discurso doutrinário do mestre, tem o mesmo efeito tranqüilizante do que tomar um antidepressivo, um ansiolítico, ou uma boa dose de cocaína – todos caminham no sentido de reforçar narcisicamente o eu, caminham na contra-mão da experiência singular de desamparo. Um dos efeitos da psicanálise normalizada, da psicanálise cheia de certezas, é exatamente criar uma clínica da tranqüilização. É uma psicanálise muito conservadora, do ponto de vista dos valores, sem a menor dúvida.


Percurso: Talvez aí possa haver certos conluios encontrados em análises longuíssimas, por exemplo. Há a manutenção de um lastro do mesmo, seja da mesma análise seja do mesmo modo de funcionamento.
Birman: Seja da mesma análise seja do mesmo analista, exatamente porque se houver um rompimento, seja de um lado seja do outro, esse rompimento esfacela o sistema de certezas do analista. O analista vai perder sua tranqüilidade.


Percurso: Conceitualmente há uma diferença entre o desamparo estrutural (ligado à angústia de castração) e a vivência do desmoronamento (ligada a angústias e defesas psicóticas). Na condução de um processo analítico não haveria um risco significativo do analista se confundir entre os dois registros? Esse parece ter sido, por exemplo, o ocorrido com Margareth Little.3 No relato que faz de suas três experiências de análise, a autora indica como, em duas delas, os analistas insistentemente trabalharam na direção de atingir algo da ordem do desamparo estrutural quando o que ela vivia dizia respeito ao breakdown próprio das psicoses. Essa vivência só foi analiticamente atingida e elaborada através de uma difícil regressão conduzida por Winnicott.
Birman: Esse risco, evidentemente, existe: considerar como desamparo estrutural algo que traz o risco de uma desorganização psicótica. Mas, não se pode perder de vista a questão da lógica da transferência: um analista não tem esse poder de forçar o sujeito a atravessar determinados problemas, a não ser que ele esteja preparado para isso. 

O analista tem que ter sensibilidade e saber respeitar o timming dos analisandos. A maneira de se contornar a diferença entre um desamparo estrutural e o risco de uma descompensação psicótica é ter presente a relatividade dos nossos modelos de escolha. Isto é, a possibilidade de se trabalhar com diferentes jogos de linguagem, não com um e apenas um jogo de linguagem. Acho que esse é o critério de que o analista pode dispor ao longo da sua escuta para evitar determinadas barbaridades: não usar um código dogmático de interpretação, sem considerar o que o outro apresenta. 

Tomando o parâmetro da antropologia, isso implicaria o analista não ser tão etnocêntrico para poder perceber que tem diante dele um conjunto de manifestações que as suas categorias culturais e de pensamento não dão conta. E é nesse sentido que eu entendo que a psicanálise é uma experiência: não no sentido da ciência experimental, mas como um espaço onde o analista pode propiciar – para o analisando e para si próprio – a oportunidade de experimentar e de se experimentar de outros modos. É desta maneira que entendo a multiplicidade de jogos de linguagem que podem operar e existir ao longo de uma experiência psicanalítica.
Trabalho com pessoas que apresentam graves distúrbios – devo ter no momento pelo menos três ou quatro pacientes psicóticos, mas não fico preocupado se alguma coisa que eu diga vá provocar grandes explosões de angústia. Não tenho medo. Se a pessoa chegou a este ponto é porque ela precisa experimentar isso. 

Quanto mais um analista tem medo do que o analisando pode experimentar, e tenta conter aquilo através de uma série de táticas explicativas e interpretativas, tanto mais ele vai estimular uma espécie de regressão malévola para o paciente.

Se o paciente tem uma grande explosão
de angústia, o analista tem de reconhecer 
a legitimidade daquilo e dar o suporte 
para o paciente viver aquilo.


Percurso: Em seu artigo "Estilo de ser, maneira de padecer e de construir"4 o Sr. afirma que "as depressões incuráveis, as dissociações massivas e até mesmo as novas modalidades de patologias ditas borderline constituem os flagelos e os terrores que a dessexualização da histeria engendrou através da normalização do erotismo". Como o Sr. define a expressão "normalização do erotismo" no contexto da vida psíquica?
Birman: Há um certo padrão de funcionamento psíquico que está na moda, cada vez mais instituído, o que implica uma forma de vida mental na qual se busca evitar sistematicamente o conflito psíquico. Essa forma é deserotizante porque evita a polaridade pulsional permanentemente presente no psiquismo e esvazia uma espécie de afetivação da experiência e do experimentar.

Se por um lado o indivíduo desfruta
uma espécie de proteção contra o conflito, 
por outro, ele é preso disso que chamo 
de normalização erótica. 

A hiperpresença do narcisismo, o reforço da inflação do eu ou do corpo se faz muito mais às custas daquilo que Freud chamou de presença livre da pulsão de morte do que, propriamente, da presença diversificada do erotismo. Para mim, a cultura da depressão e da melancolia, a cultura do narcisismo que se observa no Brasil é uma cultura deserotizada. Freud falava em pulsões eróticas e não eróticas e estas têm um sentido de morte. Esse estilo narciso-referido, essa melancolização geral da vida, a falta de risco em acreditar que se pode ser outro, a falta de risco diante do desejo levam a uma deserotização.

Nesse sentido, volto ao nosso ponto de partida, à questão da excentricidade, dos confins. Propiciar ao paciente sair dele próprio para experimentar ser de uma maneira diferente, que é uma forma de propor uma histericização, uma mise en scène, é um modo de fazer com que ele, a partir do fora, possa se re-erotizar, re-erotizar a vida psíquica e, por conseqüência, a vida relacional.

É assim que entendo a idéia da psicanálise 
como sendo uma experiência, uma proposta 
de se re-experimentar de uma maneira diferente. 
Um convite para sair de si próprio.

Percurso: O Sr. faz uso do conceito de arte-experimentação de modo que a ética psicanalítica fica próxima da concepção desse tipo de pensamento no campo da arte.
Birman: A idéia que sustento de que a psicanálise encontra-se mais próxima de um paradigma estético do que de um paradigma científico ou cognitivo caminha nesse sentido. A própria consideração hipotética de que as subjetividades têm estilos de funcionamento e que existem estilos de psicanálise é muito próxima de uma concepção estética dessa ordem. O se re-experimentar permite não só se reconhecer, como inventar outros estilos de ser. Penso que é também nesse sentido que Freud dizia que a psicanálise, para funcionar, tem de possibilitar a histericização dos pacientes. Lacan retomou essa hipótese freudiana legitimamente: a histeria é aquilo que é analisável, porque quando alguém é levado a se re-experimentar de uma forma diferente, a ser um outro do que é, a sair de dentro de si próprio, está se histericizando e é isso que entendo como erotização.


Percurso: Em seu livro Cartografias do feminino,5 o Sr. discorre sobre a diferença entre a paralisia gélida da histeria e o movimento da histerização. Entretanto quando o Sr. coloca a pulsão de morte do lado não-erótico isso parece ir contra o seu ponto de chegada no final do livro Gramáticas do erotismo.6 Nele o Sr. aborda justamente a dimensão erógena da pulsão de morte, diferenciando o congelamento masoquista sintomático do masoquismo erógeno, que é a pura assunção da pulsão de morte na sua positividade erógena.
Birman: Vocês têm razão no comentário. Aproximo a idéia de pulsão de morte ao que Freud chama, nas Pulsões e seus destinos, de exigência de trabalho da pulsão – a força, a Drang. O que eu estava dizendo, usando a oposição Eros e Thanatos, é que o aprisionamento narcísico é um impedimento dessa exigência de trabalho; é isso que Freud chama de pulsão de morte, de congelamento da pulsão de morte. Ou o que ele diz em O Ego e o Id, a propósito do supereu ser a pura cultura da pulsão de morte quando a mobilidade da exigência de trabalho é perdida. 

O que o analista visa no experimentar é exatamente promover uma tal exigência de trabalho. O trabalho de descongelamento implica reverter o próprio funcionamento da pulsão de morte: de pólo aprisionante ela passa a ser exigência de trabalho. Isso é o risco e por isso mesmo eu não tenho tanto medo da descompensação. Ela pode ser produtiva.


Percurso: A pergunta não era se o Sr. tem medo do risco da descompensação, e sim a propósito da discriminação, na escuta, entre uma questão estrutural (desamparo) ou uma fragilidade marcada (ansiedades psicóticas), na medida em que o tipo de presença e trabalho do analista irá variar num caso e no outro.
Birman: Sim, e nesse sentido sempre que o analista tiver um código de escuta rígido, doutrinário, maior será o risco de promover uma organização narcísica mortificada. Quanto mais o analista estiver na incerteza da própria escuta, de seus códigos de conhecimento, quanto mais ele estiver experimentando a partir da experiência que estiver promovendo no outro, quanto mais ele puder atravessar limiares fecundos de angústia segundo essa idéia da pulsão como exigência de trabalho, como condição erotizante, melhor.


Percurso: Ou seja, o código rígido implica o congelamento do analista, que congela, em posição masoquista, o analisando. Isso pensando no risco mortificante da relação transferencial mestre-discípulo que pode acontecer na formação – assunto que abordamos antes. Não existe uma fórmula para sair disso, é um paradoxo-risco incessante.
Birman: É um paradoxo porque se por um lado o paciente quer ser, por outro, ele busca a posição servil, busca um mestre que lhe diga qual é a certeza para ele poder ser. Ele pede isso.


Percurso: Afinal, trata-se da posição histérica. O mais importante é cada paciente não ser ouvido segundo o paciente que saiu, ou segundo ele mesmo da última vez. Tudo isso compõe a dificuldade da formação e da sustentação da escuta analítica.
Birman: O analista tem de estar em posição permanente de histericização. Mas, muitas vezes ele pede um foco de organização do mesmo modo que o analisando, e nesse momento ambos ficam numa posição servil, voltando à analogia do mestre-senhor e do servo. É a mesma dinâmica. A experiência do se experimentar e de possibilitar ao outro que se experimente exige colocar em suspensão as próprias certezas. Isso é uma experiência de angústia para o analista. E é a condição da análise.


Percurso: Esse é o foco fundamental da psicanálise de Bion: o O do não-saber, essa posição fundante do analista; talvez exatamente o oposto do que possa fazer um grupo que busque institucionalizar o seu pensamento.
Birman: Bion nunca se propôs a ter uma doutrina. Escreveu algumas coisas interessantes, mas nunca se preocupou em ter uma escola. Só se transformou em doutrina no Brasil, mais especificamente em São Paulo. Acho que é uma necessidade brasileira. O Brasil vive em busca das suas origens. Os filmes Terra estrangeira e Central do Brasil, de Walter Moreira Salles, são exemplos disso.

O Brasil, com sua volúpia de colonizado, também busca esses paradigmas no campo da psicanálise e transforma Lacan, Melanie Klein, Winnicott, Bion, Ferenczi em cânones colonizadores, o que é uma tentativa de ter uma filiação paternal definida, um made in Hungary, made in Germany e assim sucessivamente... É a mesma questão. Isso inclusive é um tema interessante para se desenvolver: o que são as idas e vindas da história da psicanálise no Brasil nessa volúpia pelas origens.


Percurso: Quando anteriormente o Sr. comentou a respeito das exigências que a instituição psicanalítica acaba não cumprindo, algo que poderia ser simples e ao mesmo tempo muito rico, que é fazer uma formação a partir das problemáticas, torna-se difícil. Tomemos como exemplo as pessoas que estão se formando e que trabalham em instituições públicas. Na maioria das vezes, isso é visto como um a-menos a justificar: "é por enquanto...", "enquanto não tenho consultório...". A formação acaba sendo uma espécie de hiato entre o que esses profissionais vivem cotidianamente na sua experiência de trabalho e um ideal de analista ao qual estão submetidos. Mas a formação poderia se deter, por exemplo, numa problemática da experiência institucional daqueles analistas e instrumentalizá-los para ela.
Birman: Retomemos a idéia de um modelo. Nele é como se a formação do analista fosse para aprender a fazer aquilo que os autores dos anos 50 chamavam de cura-tipo: tantas sessões por semana, com uma duração determinada, uma certa forma de silêncio do analista, um domínio tecnológico de intervenções etc. ao invés de pensar que a psicanálise, como experiência, e até historicamente, quebrou com esse modelo. 

Se considerarmos a psicanálise de 1940 até hoje, observaremos uma ruptura permanente com o modelo da cura-tipo. Primeiro foi a psicanálise de crianças, depois a psicanálise dos psicóticos, em seguida o campo dos estados-limites, o da psicossomática e também a psicanálise nas instituições. Quer dizer, uma série de modelos que quebraram de fato o modelo da cura-tipo e demonstraram que este é um caso particular do ato de analisar.


Percurso: Nisso Winnicott foi preciso. Apesar de o Sr. mencioná-lo como um modismo atual, havia casos em que ele atendia cinco vezes por semana, com sessões de 50 minutos etc. mas, também, havia situações em que ia na casa do paciente, buscava a ajuda de outro analista, colocava o paciente para dormir no quarto ao lado do seu consultório, sempre dependendo do que fosse indicado a cada situação.
Birman: Qualquer analista tem que estar atento à singularidade e ao fato de que não existe um modelo. Os primeiros analistas tiveram essa maleabilidade, porque não havia um código dogmático estabelecido institucionalmente, nem a exigência de formar discípulos. Eles tinham essa plasticidade e sabiam que, em última instância, estavam ali para dar alguma ajuda, algum destino para o sofrimento das pessoas que os procuravam. Depois disso, a dimensão da dor e do sofrimento ficou completamente em segundo plano diante do modelo que o analista quer aplicar. 

A história da psicanálise de 1940 a 2000 mostra claramente que a cura-tipo é um caso particular de diálogo psicanalítico. Pode-se perfeitamente fazer uma análise num espaço público sem estar confinado em um consultório; pode-se fazer psicanálise com um tempo menor do que 45 ou 50 minutos e com menos vezes por semana. Eu tenho milhares de experiências desse tipo, tanto no espaço público quanto na minha clínica privada, que não têm nada a ver com o modelo da cura-tipo.


Percurso: E o que sustentaria cada uma dessas experiências como psicanálise?
Birman: O que sustenta é o reconhecimento e o manejo da transferência. Se os brasileiros fossem menos colonizados poderiam aprender muito com a experiência européia em ambulatórios. Hoje, a grande maioria dos analistas franceses não tem clínica privada, uma vez que apenas os muito reconhecidos têm uma maior demanda de trabalho em consultório. Nos ambulatórios há dispositivos pedagógicos e através das descrições percebe-se que o que ocorre é, sim, um processo de psicanálise: a maneira pela qual se estabelece e se maneja a transferência supõe o inconsciente como hipótese.

De fato, a condução da experiência de transferência não mostra diferença entre psicanálise e psicoterapia psicanalítica. Isso é uma criação das instituições psicanalíticas que acreditam que a única forma da psicanálise existir é através da cura-tipo. Isso é uma perversão promotora de um modelo de identidade psicanalítica e de uma hierarquia que dita quem é e quem não é psicanalista, além de ser uma reserva de mercado... 


Percurso: Em vários ensaios,7 o Sr. justamente aponta a necessidade de a psicanálise realizar a autocrítica de seu dispositivo de escuta, que levou à ritualização obsessiva e ao silenciamento da dimensão do ato e do corpo na prática clínica – o que implicaria resgatar a singularidade do sujeito e a especificidade do lugar do analista. Essa autocrítica poderia igualmente levar a mudanças de enquadre...
Birman: Com certeza. O modelo da cura-tipo criou um norma obsessionalizante: só determinadas formas de intervenção são psicanalíticas, só determinadas formas de freqüência e duração, ou então o oposto (o que dá no mesmo) quando se aplica de forma standard o tempo lógico, no caso dos lacanianos. Ao invés de achar que uma sessão pode durar 5 minutos, programa-se para receber pacientes de 5 em 5 minutos. Assim perde-se a dimensão da experiência que, acredito, era o que Lacan originariamente pensou em relação ao tempo lógico. 

Tudo isso entra nessa ritualização
propriamente obsessiva. 

  Até mesmo a maneira de se entender o funcionamento da regra fundamental vai além da questão da freqüência. Hoje, muitos dos pacientes que procuram o terapeuta para fazer análise não têm a menor condição de deitar no divã e associar livremente, não têm condições psíquicas para um exercício desses. 

Retomando a questão da descompensação do psicótico: deitar um sujeito desses num divã, pedir para que "associe livremente" e ficar em silêncio é a melhor receita para psicotizar meia dúzia de pessoas. Nessas circunstâncias, o que o analista tem a fazer é manter uma espécie de diálogo face a face com o sujeito, para permitir que ele tenha um mínimo de reconhecimento narcísico, dado pelo analista, e possibilitar um outro tipo de diálogo – isso é uma estratégia psicanalítica. Concretamente é uma mudança de enquadre. Esse tipo de coisas se coloca.

Como não falar no telefone com um sujeito psicótico? Mas é claro que se o sujeito liga 20 vezes por dia, o analista tem de colocar um limite, o analista não está disponível para ele 20 vezes por dia. Mas a disponibilidade de, eventualmente, conversar com esse tipo de paciente no telefone ou mesmo na sua casa, no fim-de-semana, deve existir. Isso faz parte de um tipo de diálogo que um sujeito tem de ter nesse tipo de dificuldade. Isso é uma mudança de enquadre. 

É possível manter o lugar de analista, entendendo qual a lógica da transferência que está em jogo e não tendo medo de responder à demanda. Isso é a condição para que um processo desejante se organize, partindo do pressuposto de que o processo psicanalítico é um engendramento produtivo de determinadas experiências, tanto do lado do paciente quanto do lado do analista. Seria importante começar a teorizar sobre o fato de que a experiência psicanalítica, quando acontece, seja no ambulatório da Previdência Social seja num consultório de luxo, em São Paulo, é uma experiência de produção de acontecimentos. O inconsciente não é alguma coisa que está dada e o analista vai, como Sherlock Holmes, decifrar qual foi o crime que você cometeu ou sofreu. 


Percurso: Em seu livro Gramáticas..., ao discutir o gozo vaginal, o Sr., a partir de Laqueur,8 parece concordar que isso seria uma invenção freudiana a qual implicou a redução da figura da mulher ao papel de mãe. Pensar assim não incorre no risco de se reduzir o paradoxo feminino ao identificar a transformação da condição desejante da mulher que acede ao gozo vaginal, bem como a imagem da vagina em si (com todos seus componentes), apenas à maternidade deserotizada?
Birman: Se tomarmos a história da psicanálise, já nos anos 20 e 30, algumas analistas colocaram em questão as concepções freudianas sobre a sexualidade feminina – ao que Freud respondeu com pelo menos três textos: o de 1924, sobre a diferença anatômica dos sexos; o de 1931 e o de 1932 sobre a feminilidade. Depois, Melanie Klein e os kleinianos indicaram a não existência dessa hierarquia e do deslocamento entre o gozo clitoridiano e o gozo vaginal. Mas o que quero dizer, na leitura que faço e onde considero que o modelo do Thomas Laqueur tocou muito bem, é que foi Freud quem disse que o gozo da mulher é vaginal, e isso é uma descoberta histórica importante. Uma coisa é um psicanalista dizer isso. 

Outra coisa é um historiador, que analisou um arquivo que vai do Renascimento até o século XX, mostrar que o lugar da vagina como órgão de gozo da mulher é uma invenção freudiana e que a hierarquia da vagina em relação ao clitóris é uma formulação para identificar o feminino com a maternidade. Na clínica nota-se que fundamentalmente essa hierarquia traz constrangimento: muitas mulheres sofrem como se isso fosse uma impossibilidade de ser mulher. 

Há uma espécie de incorporação perversa de uma certa cultura psicanalítica que arrebenta com a cabeça das mulheres. A minha crítica, então, vai menos no sentido de dizer que é bobagem o gozo vaginal – o que seria dizer uma bobagem – mas de apontar que essa hierarquia não existe, é falsa, não se sustenta. Acho que, de uma certa maneira, todas as pesquisas de sexologia dos últimos 20 anos, psicanalítica ou não, caminham um pouco nessa direção.


Percurso: Isso seria uma maneira de ver. Já do ponto de vista da sexologia presente nos meios de comunicação, sobretudo na televisão, há novamente uma hipervalorização do gozo clitoridiano, no sentido de falicização.
Birman: Não se pode transformar o clitóris em falo, não se trata disso. A grande descoberta da psicanálise, a mais inquietante, foi o fato de que a sexualidade é perverso-polimorfa. Isto é, qualquer lugar do corpo é um órgão sexual, inclusive a vagina, mas não só a vagina, inclusive o pênis, mas não só o pênis. 

Erigir seja o pênis, seja a vagina,
seja o clitóris como sendo o órgão 
implica uma falsificação da maior descoberta psicanalítica 
a respeito do inconsciente, que são as teses desenvolvidas
por Freud nos Três ensaios 
para uma teoria sexual


Percurso: Mas também temos de pensar na concepção freudiana relativa à confluência para uma organização genital em contraponto às questões ligadas às perversões.
Birman: Claro, não se pode perder de vista que em algum momento, nas edições posteriores dos Três ensaios..., quando Freud vai recolocar a centralidade da organização genital, organização fálica, essa ambigüidade está sempre presente. Ele estava pensando no gozo, mas também no problema de qual órgão genital teria o maior poder de descarga, e é aí que ele vai se enrolar, durante muito tempo, em relação à sexualidade feminina, porque essa descarga, no caso da mulher, não vai ser igual nem da mesma ordem que a do homem. Todas as ambigüidades de Freud ao pensar a sexualidade feminina derivam daí. Mas também, em seu texto sobre a organização fálica da libido, Freud coloca, de uma maneira muito clara, que para se aceder à diferença sexual é preciso perder a organização fálica.


Percurso: Trata-se de uma organização pós-fálica, na qual se perde o falo como referência, mas cria-se uma confluência para o gozo genital. Isso não pode ser esquecido, ainda que seja um gozo genital com o corpo inteiro. De qualquer maneira, seria importante confrontar a erogeneidade poliforma dos Três ensaios... com a organização genital e com a questão da perversão e do fetichismo.
Birman: Aí é que vem o ponto do pós-falus: a idéia do gozo genital como não-fálico, marcando uma certa diferença que não se reduz ao anatômico, e dando um lugar fundamental para a experiência do polimorfismo sexual. A questão da perversão vai se colocar de uma maneira muito precisa, pois quanto mais se estiver apegado ao falus mais perversa vai ser a experiência. O falus vai ser colocado como fetiche na cabeça do homem ou na cabeça da mulher quando acharem que o clitóris é o seu órgão de gozo, como se estava falando a respeito da sexologia nos programas de televisão. O gozo perverso é falo-referido na medida em que algo é transformado num fetiche que não tem plasticidade. 

A fronteira entre perversidade polimorfa e perversão é exatamente a mobilidade libidinal, a possibilidade de criar cenários libidinais, de se experimentar em diferentes lugares e em diferentes posições. Nesse sentido, podemos voltar ao que Freud dizia sobre bissexualidade, desde a correspondência dele com Fliess.

A bissexualidade é o fato de que se ocupam diferentes posições, masculina ou feminina, ou diferentes posições no sentido do polimorfismo, em que se é diversos personagens, diversos outros, em que não se é o si mesmo, o tempo todo, na cena ou no ato sexual. Já a posição homoerótica é essencialmente perversa, fixada no falus – chame-se isso de pênis, vagina ou clitóris – e na qual se cria uma espécie de bloco monolítico do que seja o gozar.

A experiência da perversão
é o congelamento da capacidade de fantasiar: 
ter uma e apenas uma fantasia, 
caso contrário não se goza. 

Já a experiência sexual é um jogo,
em que se inventa quem se é, 
em quais cenários se está. 


Percurso: Ainda em Gramáticas do erotismo o Sr. procede a uma desmontagem da maternidade como destino final deserotizado da mulher a serviço do patriarcado, abordando o investimento fálico na maternidade. No entanto, é sabido que quando um psiquismo está sendo fundado, a função materna é, por definição, erogeneizante. Como pensar que essa mesma função na vida da mulher esteja deserotizada se tomarmos em conta que na regressão materna toda vida autoerótica da mulher/mãe é reativada?
Birman: O problema é que essa regressão pode engolir tudo... Não se pode confundir função materna com papel materno. O que basicamente indico nesse livro é que, historicamente, em função do patriarcado, a função materna foi subvertida pelo papel de mãe. 

A rigor, a função materna pode ser exercida tanto por um homem quanto por uma mulher. Os homens, hoje, pelo menos a vanguarda da masculinidade, se é que se pode inventar essa terminologia, exerce a função materna como qualquer mulher. Uma das grandes virtudes do movimento feminista foi relativizar os papéis e redistribuir as funções materna e paterna para as duas figuras parentais. É essa diferença que eu tentei desconstruir no Gramáticas..., mostrando como a mulher ficou circunscrita ao papel de mãe. 

Freud, inclusive, dizia que para ser mulher de verdade, como a "Amélia", é preciso ser mãe para ser falicamente restituída. E o que eu coloco em questão é exatamente essa leitura fálica da condição da mulher. Pode acontecer de o ato de cuidar de uma criança ser tão satisfatório para a mulher, tão pleno de gozo, que ela não precise de mais nada, que lhe baste o exercício desse papel. A isso estou chamando de deserotização, seja ela sexualmente circunscrita seja em relação à criatividade em qualquer área da vida. É um pouco dos efeitos dessa desorganização nos dias de hoje, para o bem e para o mal, que eu estava querendo trabalhar.


Percurso: Dessa perspectiva o matriarcado é uma ampliação do patriarcado, uma vez que esse gozo irá falicizar a maternidade.
Birman: Claro. Inclusive, não se pode esquecer, na passagem do patriarcado tradicional para o patriarcado moderno, com a dissolução da família extensa, foi outorgado um imenso poder à figura da mulher. Isso resultou em determinados ganhos fálicos na sua relação com os filhos, mas que a congelou nesse papel de mulher, e não na função materna propriamente dita.


Percurso: Mas, se na sociedade patriarcal a mulher estaria impelida à maternidade como destino hegemônico da sua sexualidade, na sociedade contemporânea, ao contrário, a maternidade estaria subvalorizada, ou mesmo desvalorizada, em prol de um hiperinvestimento profissional, com conseqüências nefastas para as mulheres, como o aumento de câncer de seio nos centros urbanos. Na clínica, é comum encontrarmos mulheres, em torno dos 37-40 anos, muito bem sucedidas profissionalmente, que começam a enfrentar a questão da maternidade eternamente adiada e a pressão do famoso relógio biológico; são problemáticas pós-feministas.
Birman: Existe uma diferença entre exercer a função fálica com uma criança e exercê-la esmerando-se para se transformar numa profissional. A mudança nas formas de sofrimento mostra isso. Hoje, por exemplo, aparentemente, as mulheres sofrem menos de histeria, ou, talvez, sejam um pouco menos masoquistas, e encontramos uma melancolização muito mais violenta. Uma maneira de entender essa diferença é ver que o contato corporal com uma criança oferece um prazer imediato, direto, que o trabalho não oferece. O ganho do trabalho é muito diferido.

Esse é um aspecto que não se pode deixar de considerar. É óbvio que a função fálica nesses tempos pós-feministas, freqüentemente, levou as mulheres a valorizarem menos a dimensão da diferença e mais o ideal identificatório masculino. É uma outra maneira de aproximação desse gozo direto ou desse gozo diferido. Há uma experiência de masculinização que diz respeito muito menos ao que se pode fazer considerando as demandas de se ter um corpo de mulher, e muito mais ao ato de se congelar num papel masculino ou feminino.

Uma série de patologias advirá disso: perturbações psicossomáticas, melancolias violentíssimas, sofrimentos narcísicos muito grandes exatamente porque no gozo da profissionalização o ganho é incerto e em longo prazo.


Percurso: A medicina está apontando que as mulheres estão sofrendo de doenças que antes eram características de homens, como é o caso das doenças cardíacas. É curioso pensar isso como a liberação de um modo de funcionar no mundo acoplando as mulheres a uma espécie de masculinização que carrega consigo essas doenças. Haveria alguma relação disso com o que você chama de uma sociedade fálica homo-erótica?
Birman: Homo-erótica corresponde ao modelo fálico-masculino e não ao modelo da diferença. Antes as mulheres obtinham ganhos mais imediatos no papel de mulher. Nesse novo contexto de incertezas, os ganhos vêm em médio e longo prazo e as mulheres incorporam formas de sofrimento e de patologias que anteriormente eram mais reservadas aos homens. Daí as doenças que os médicos consideram causadas por stress, hipertensão, doenças cardíacas... Lipovetsky, em A Terceira mulher, dizia que a diferença sexual acabaria na pós-modernidade. Ele tentou mostrar através de uma série de indicadores sociológicos, que vão desde a indústria da moda, até cosméticos, ginástica etc., como a diferença aparece nos pequenos diferenciais de consumo. Do ponto de vista psicanalítico, considero essa hipótese insuficiente. Ela reforça o modismo fálico.

Da perspectiva libidinal, eu diria que nunca fomos tão homossexuais como agora, no sentido da anulação da potencialidade da diferença. E o quadro que Lipovetsky descreve, dos pequenos símbolos de diferença no nível da vestimenta, dos perfumes, da lingerie, dos corpos cada vez mais parecidos, mais andróginos, sublinha o modelo homo-erótico falicamente referido, isto é, o masculino como referência. Outro dia, um estilista brasileiro famoso dizia que os homens não têm a capacidade de brincar com a maquiagem; por mais que usem determinadas sandálias, camisetas, colares, brincos etc. eles não têm essa ousadia feminina. Digamos que isso ainda seja uma espécie de reserva feminina. Entretanto essa própria androgenização da mulher faz com que haja desqualificação da maquiagem como potencial de atração erótica.

Percurso: Quando se fala, por exemplo, do corpo andrógino é possível observar uma migração masculina para um modelo feminino. Há uma desconstrução do modelo masculino como tal.
Birman: Sim, mas na qual a reconfiguração é fálico-centrada. O modelo do homossexual feminino não é o dominante. Muito pelo contrário. Há um certo cuidado dos homossexuais em não se apresentarem desta forma para não serem vistos como bichas. Existe uma certa respeitabilidade em torno deles, mas o modelo é fálico-referido. Mesmo quando se incorporam determinados traços femininos, observa-se um processo galopante de masculinização das mulheres.

Percurso: Poderíamos abordar a questão fálica de uma maneira diferente, como uma espécie de alavanca, uma espécie de relais, e não como congelador, tanto para a mulher, como para o homem, que permitiria, no caso da mulher, por exemplo, a saída do universo auto-erótico da maternidade para o universo do trabalho através de um investimento simbolizante no mundo cultural. Do ponto de vista do homem se trataria da valorização de outras experimentações de vida, inclusive com os filhos, experimentações de cunho caseiro que não estejam ligadas ao estereótipo do desempenho produtivo masculino. Ou seja, como o analista poderia pensar a positividade do feminino – partilhável pelos dois sexos – e o trabalho analítico favorecendo o acesso simbólico à diferença?
Birman: Isso é a positividade do feminino. Nesse aspecto o papel do analista é exatamente de relativizar esse valor excessivo ainda conferido ao falus, de ver nas mulheres que se masculinizam, ou nos homens hipermasculinos, uma defesa contra a feminilidade. 

Essa é nossa hipótese de trabalho. Interessa-nos a feminilização a partir da qual se opera a relativização dos papéis: os homens poderem exercer uma série de funções domésticas e as mulheres uma série de funções no espaço público e não apenas no espaço privado. Determinadas formas hoje são estrangulantes: "Você quer ir para a rua, minha filha, vá... mas leve o filho na escola, acorde uma hora mais cedo para fazer o café da família, volte na hora do almoço...". 

Então a mulher não almoça, leva o filho na escola, busca o filho na escola... Há um conjunto de exigências que os sociólogos chamam de dupla jornada de trabalho, que é o caminho dessa masculinização e que faz com que as mulheres comecem a sofrer de hipertensão arterial, ataque cardíaco...

Percurso: Sua presença no campo editorial tem sido significativa e atualmente o Sr. dirige tanto a coleção Subjetividade e História (Civilização Brasileira) quanto a Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (Contra-Capa). Ambas as duas visam a interlocução da psicanálise com saberes afins. Gostaríamos que o Sr. nos contasse sobre sua atividade editorial.
Birman: A atividade editorial marcou todo meu percurso: desde os anos 70 tenho uma atividade editorial intensa, seja como autor seja como editor. Naquela época, no campo psicanalítico, havia a revista da IPA e mais nada. Não havia editoras de psicanálise. Procurei criar, junto com algumas editoras, um espaço de ocupação dos psicanalistas no campo editorial, e dirigi algumas coleções. A proposta da coleção Subjetividade e História é tirar a psicanálise de um discurso fechado sobre si próprio e abrí-la para um discurso que trabalhe na fronteira. Ela inclui textos psicanalíticos que dialogam com as questões atuais e se articulam com outros discursos. 

Observando os livros que publiquei isso fica claro: o primeiro livro da coleção é sobre a droga e o mal. Foi escrito por uma filósofa helenista, que não é psicanalista, mas que certamente conhece mais de drogas, do ponto de vista psicanalítico, do que 90% dos psicanalistas. É um livro maravilhoso, claramente interdisciplinar, que aborda Baudelaire, Freud e Lacan com o mesmo domínio. Já o livro de Michel Tort, O desejo frio, é uma tese de professor titular sobre as novas formas de reprodução. Ele foi aluno de Althusser, estudou com Lacan, tem um domínio enorme sobre as novas formas de medicalização e instaura uma discussão psicanalítica nessa região de fronteira, que é onde as questões se colocam hoje em dia. 

Outro exemplo é Crueldade melancólica, de Jacques Hassoun, publicado recentemente. É um livro clínico interessante. Está saindo agora o livro de Renné Major sobre Lacan com Derrida, que trabalha na questão da fronteira da psicanálise com a filosofia. Será editado o livro de Derrida sobre o cartão postal, que não sei por que ainda não foi editado no Brasil até hoje; assim como o livro de Judith Butler, uma filósofa, comunista, americana, interessantíssima, que faz uma leitura da psicanálise muito curiosa a partir de Lacan e de Julia Kristeva, mostrando como o argumento psicanalítico da intenção do incesto teve o poder de masoquizar as mulheres.

Há ainda livros de alguns alunos meus que fizeram tese de doutoramento, um texto sobre perversão social, outro sobre feminilidade – várias produções brasileiras –, sempre com o objetivo de colocar a psicanálise numa região de fronteira. Estamos diante de fronteiras fluidas, tanto na clínica como no plano da produção de saber, e, para mim, a possibilidade de renovação da psicanálise só acontecerá se estivermos na fronteira, se sairmos da ficção de que somos um aparelho de Estado. Não sei se respondi, é uma maneira de eu fazer também a minha diáspora, estar sempre um pouco na fronteira, mudando, não acreditando naquilo que se diz do Estado. 
NOTAS

1 Birman, J. "A Servidão em Psicanálise" in Furtado, A.; Rodrigues, G. V.: Chagas, N. F.; Alves, S. L. e Gontijo, T. D. (orgs.) Fascínio e servidão, Belo Horizonte: Autêntica, 1999, pp. 7-20.
2 Birman, J. (org) Tausk e o Aparelho de Influenciar na Psicose, São Paulo: Editora Escuta, 1990 e Birman, J. Sàndor Ferenczi – Escritos Psicanalíticos – 1909-1933, Rio de Janeiro: Livraria Taurus Editora, sem data.
3 Little, M. Ansiedades Psicóticas e Prevenção – Re-gistro Pessoal de uma Análise com Winnicott Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992.

4 In Percurso – Revista de Psicanálise São Paulo: Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, 18, 1997, - p. 24.
5 Birman, J. Cartografias do Feminino, São Paulo: Editora 34,1999.
6 Birman, J. Gramáticas do Erotismo – A Feminilida-de e suas Formas de Subjetivação em Psicanálise, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. (Coleção "Sujeito e História’).
7 Trata-se dos ensaios "Um Futuro para a Psicanálise? Sobre os Impasses Atuais do Psicanalisar" in Birman, J. Estilo e Modernidade em Psicanálise, São Paulo: Editora 34, 1997, p. 141-190 e Birman, J. (1999) "Subjetividade, Tempo e Psicanálise’ in Revista Latino-Americana de Psicopatologia Fundamental 4, dezembro de 2000, p. 11-31.
8 Laqueur, T. Inventando o Sexo: Corpo e Gênero dos Gregos até Freud, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001.



Li

Fonte:
http://www2.uol.com.br/percurso/main/pcs29/29Entrevista.htm
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

Nenhum comentário: