sexta-feira, 16 de agosto de 2013

EXISTENCIALISMO - SOREN AABYE KIERKEGAARD



 Mozart -Documentário 
- O Gênio de Mozart - BBC-- 59min

Toda obra de Kierkegaard é a pura expressão de sua própria vida. Seu pensamento surgiu da luta de consciência perante sua condição de existir. A condição absoluta de sua filosofia, e até a única razão de seu viver, estava na relação estreita entre existir como pessoa e a consciência desse existir. Foi, na verdade, o primeiro representante da filosofia existencial e o primeiro a se preocupar em compreender a existência.
Kierkegaard defendia a ideia de que existe uma verdade subjetiva: “uma verdade que seja pra mim encontrar uma ideia pela qual eu possa viver ou morrer” (1974). Sua religião – luterana – se opunha a esta concepção. Tornou-se um filósofo solitário por não conseguir se adaptar às ideias religiosas então impostas, assim como pela angústia do pecado e da sensualidade que o invadiam na época.

A filosofia resumia-se na tomada de consciência das exigências absolutas feitas a qualquer pessoa que quisesse viver uma existência verdadeiramente autêntica. Para ele, pensar não é existir, mas tornar-se um espectador dessa vivência. Oposto ao racionalismo de Descartes. No racionalismo, o sujeito é objeto para si mesmo, deixando de existir como pessoa, e é ai que reside a grande diferença de Kierkegaard: o sujeito e o objeto são uma coisa só, ou melhor, são partes de uma mesma estrutura. Basta compreender-se existindo; viver a experiência ao invés de observá-la de fora. A verdade é própria existência, não havendo, por isso, uma verdade absoluta. Ela existe para o indivíduo na medida em que, por ação, a produz.

A escolha constitui uma das noções mais importantes de sua filosofia, pois era vista como uma espécie de núcleo da existência humana. A escolha é desprovida de lógica, mas não de uma psicológica: o que o indivíduo faz, depende do que ele quer, do que escolher, não do que compreende. Entretanto, nenhuma opção se realiza sem angústia. Cada escolha é um risco pela sua própria incerteza. Existir é escolher-se. Sendo artífice de si mesmo, realizando a sua essência, uma pessoa se expõe ao risco. A escolha é necessária e livre: o indivíduo é obrigado a fazer opções para existir, embora essas opções não sejam constrangedoras.

Ao mesmo tempo, existir implica em angústia e desespero. A obrigação de escolher, assim como o risco a que se está exposto, desespera.

Analisando a existência humana, percebe que esta se processa em três estágios: estético, ético e religioso. Não se tratam de estados que todos os indivíduos passariam sucessivamente, mas opções que cada um realiza no decorrer da existência.

O primeiro é causado por um hedonismo onde impera a dor e o tédio. Buscando um sentido para a sua existência, o indivíduo se coloca ao sabor dos impulsos. As possibilidades que o indivíduo realiza neste modo de vida não proporcionam uma realização plena, mas apenas uma atualização transitória. A ameaça do tédio é uma constante neste estágio, o que pode conduzir ao desespero. Diante disso, e frustrado em seu objetivo, o indivíduo passa para o segundo estágio. Este está ligado ao dever, às regras e às exigências a que o indivíduo está exposto.

O mais importante aí não é a quantidade de dever, mas a sua intensidade sentida pelo indivíduo. A liberdade agora está limitada pelo social. O extremo da etapa ética leva à contradição. Com a ideia de pecado, essa etapa fracassa, pois surge o arrependimento, sentimento supremo nesse momento. Acredita-se então que é necessário ultrapassar esse estágio, chegando a uma outra etapa, a religiosa. Neste caso, a escolha do indivíduo independe de critérios pulsivos, racionais ou ainda de regras universais. Entretanto, o desespero e a ansiedade são fortes sinais que ajudam o indivíduo a escolher. É pela religiosidade que o indivíduo atinge uma relação com o Absoluto e encontra a existência que tanto almeja.

O desespero de sim mesmo é a grande preocupação de Kierkegaard, que surge diante do vazio não-satisfeito pelos estados anteriores. O prazer antes alcançado no passado, somente pode se repetir no futuro quando o indivíduo se submete religiosamente diante do desconhecido.
O paradoxo e o absurdo, assim como o desespero e a angústia, o risco e o drama do indivíduo, a subjetividade em oposição à incerteza absoluta do objetivo, são o arcabouço da filosofia de Kierkegaard, que não chega a ser um sistema organizado e construído, pois sua maior preocupação é com o profundo conhecimento da personalidade, com a existência do indivíduo. Não se pode reduzir a existência humana a conceitos abstratos, já que a realidade é concreta.

É da doutrina Kierkegaardiana que os filósofos existenciais derivam seus conceitos. Precisavam no entrando, de um método de reflexão e de análise apropriado, e foram buscá-lo em Husserl.
 Publicado em: 20 de Janeiro de 2009 - Categoria: Humanismo

Bicentenário lembra filósofo dinamarquês Kierkegaard, "pai do existencialismo"

O intelectual imortal Soren Kierkegaard completa 200 anos no domingo (5). O filósofo lírico dinamarquês é amplamente considerado o pai do existencialismo, um movimento filosófico e literário que enfatiza a categoria do individual e medita sobre questões diáfanas tais como: há um sentido na vida?

O artigo é de Gordon Marino,  professor de filosofia e diretor da Biblioteca Hong-Kierkegaard, no Saint Olaf College, em Northfield, Minnesota, e publicado pelo International Herald Tribune e reproduzido pelo Portal Uol, 04-05-2013.

Sem causar surpresa, o existencialismo atingiu seu zênite após a humanidade ter dado uma boa olhada em si mesma no espelho do Holocausto, mas então as lembranças desapareceram, as economias prosperaram e o existencialismo começou a parecer um pouco esgotado.

Mesmo assim, ao longo dos altos e baixos do mercado erudito, o mundo intelectual permaneceu otimista em relação a Kierkegaard, em parte porque o dinamarquês, diferente de outros membros do grêmio de crates, sempre tratou do que os seres humanos enfrentam em si mesmos, a ansiedade, a depressão, o desespero e a passagem do tempo.
Há pelo menos uma dúzia de festividades acadêmicas por todo o mundo para celebração do bicentenário de Kierkegaard, e aqui, na Biblioteca Hong-Kierkegaard no Saint Olaf College, nós estamos esperando mais de 100 participantes internacionais em nossa festa de aniversário.

Em sua juventude, Kierkegaard recebeu o apelido de "gaflen", ou "o garfo", por sua capacidade de discernir as fraquezas nas outras pessoas e espetá-las para elas. Por toda sua vida autoral, Kierkegaard empunhou sua pena vermelha para espetá-las para a cristandade burguesa. Sua vida foi uma meditação sobre o que significa ter fé.
Apesar de Kierkegaard nunca ter usado a frase "salto de fé", essas palavras se tornaram sua pedra de toque. Um luterano criado em um ambiente demasiadamente devoto, Kierkegaard insistia que não havia algo como já nascer no rebanho; não havia passagem fácil, não bastava proferir uma série de silogismos para se chegar à fé.

Para Kierkegaard, fé envolvia colisão com o entendimento e uma escolha radical, ou para usar os termos de seu best-seller singular, vida e fé exigem um "ou isto ou aquilo". Acreditar ou não acreditar, mas não imaginar que se possa ter ambos. Como a maioria dos bancos vazios atesta, grande parte da Europa aceitou o desafio de Kierkegaard.

Mas Kierkegaard foi mais do que um luterano de sua tradição luterana; seus textos estão repletos de entendimentos sobre a cultura e a humanidade que podem ser trocados na moeda do secularismo.
Por exemplo, Kierkegaard floresceu no nascimento da mídia de massa. Revistas e jornais diários e semanais estavam começando a circular amplamente. Como se pudesse sentir o Facebook e o Twitter mais à frente, ele previu um tempo em que a comunicação seria instantânea, mas ninguém teria nada a dizer; ou um momento em que todos estivessem obcecados por encontrar sua voz, mas sem muita substância ou "significado profundo" por trás de suas postagens em blogs.

Em um de seus livros, Kierkegaard lamenta: "A era presente é a era da publicidade, a era dos anúncios diversos: nada acontece, mas ainda assim há publicidade instantânea". No final, Kierkegaard estava preocupado com o poder da imprensa de fomentar e formar a opinião pública, e no processo nos desobrigando da necessidade de pensar nos assuntos à fundo por conta própria.
Em um espaço de 17 anos, Kierkegaard publicou vários livros e compilou milhares de páginas de anotações de diários. Como Nietzsche e outros gênios que muitas vezes foram imolados pela força de suas próprias ideias, Kierkegaard sacrificou seu corpo na dança da riqueza de seus pensamentos. Consciente de seus próprios poderes sobrenaturais, ele escreveu: "Os gênios são como as trovoadas: vão contra o vento, aterrorizam as pessoas, purificam o ar".

É claro, todos nós conhecemos horas de inspiração, mas viver com a Musa nos ombros ano após ano significa habitar próximo da fronteira do que às vezes pode parecer loucura. Não é uma tarefa fácil.
Apenas para colher algumas poucas ameixas da ampla árvore da obra extraordinária de Kierkegaard: ele não foi o que rotularíamos como um eticista. Ele não dedicou suas energias a tentar encontrar uma base racional para a ética, nem se ocupou em destrinchar dilemas morais. Mesmo assim, ele tem algo muito significativo a dizer sobre a ética.

Segundo Kierkegaard, não é mais conhecimento ou capacidade de análise que é necessário para se levar uma vida zelosa. Se conhecimento fosse a questão, então a ética seria uma espécie de talento. Algumas pessoas nasceriam gênios morais e outras palermas morais. Mesmo assim, até onde ele e Kant podem dizer, quando se trata de bem e mal, nós todos estamos em pé de igualdade.

Diferente da indústria da ética que está pulsando atualmente, Kierkegaard acreditava que a principal tarefa é se ater ao que sabemos, e evitar nos enganarmos, porque não gostaremos dos sacrifícios que fazer a coisa certa provavelmente exigirá. Como colocou Kierkegaard, quando nos vemos em um dilema moral, nós não apenas procuramos a saída fácil. Em vez disso, ele escreve, "deixe passar algum tempo e então abre-se um ínterim: cuidaremos disso amanhã".

E depois de amanhã, nós geralmente decidimos que a saída certa era, afinal, a saída fácil. E assim o provocador de Copenhague conclui: "Assim vive talvez a maioria de pessoas, trabalhando gradualmente para obscurecer o seu juízo ético e ético-religioso, o que os leva a decisões e conclusões com as quais sua natureza inferior não se importa".

Há epifanias em cada canto da obra de Kierkegaard, mas paradoxalmente, do início ao fim, o homem que parecia saber sobre tudo foi gentilmente enfático: "A maioria dos homens (...) vive e morre com a impressão de que a vida é simplesmente uma questão de entender mais e mais, e que se pudéssemos ter vidas mais longas, essa vida continuaria sendo um longo crescimento contínuo de entendimento. Quantos deles já experimentaram a maturidade de descobrir que chega um momento crítico em que tudo é invertido, após o qual o sentido se torna entender mais e mais que há algo que não pode ser entendido."

E o que significaria entender que há algo de vital importância na vida que não pode ser entendido? Com as vias indiretas de um mestre zen, nosso aniversariante nos ajuda a destravar esse e outros koans que atingem o âmago da questão do que significa ser um ser humano.
Veja também:
EXISTENCIALISMOPor Ana Lúcia Santana


Nascido no século XIX, através das ideias do filósofo dinamarquês Kierkegaard, esta vertente filosófica e literária conheceu seu apogeu na década de 50, no pós-guerra, com os trabalhos de Heidegger e Jean-Paul Sartre. A contribuição mais importante desta escola é sua ênfase na responsabilidade do homem sobre seu destino e no seu livre-arbítrio.
Para os existencialistas, a existência tem prioridade sobre a essência humana, portanto o homem existe independente de qualquer definição pré-estabelecida sobre seu ser. Assim, não há uma inquietação relativa aos postulados produzidos pela Ciência ou às especulações metafísicas, e sim no que se refere ao sentido da existência. Daí a predominância de elementos da Fenomenologia de Husserl – movimento que procura compreender os fenômenos tais como eles parecem ser, sem depender do real conhecimento de sua natureza  essencial – nesta corrente filosófica, já que ambas privilegiam a vivência subjetiva em detrimento da realidade objetiva.

O existencialismo pressupõe que a vida seja uma jornada de aquisição gradual de conhecimento sobre a essência do ser, por esta razão ela seria mais importante que a substância humana. Seus seguidores não crêem, assim, que o homem tenha sido criado com um propósito determinado, mas sim que ele se construa à medida que percorre sua caminhada existencial. Portanto, não é possível alcançar o porquê de tudo que ocorre na esfera em que vivemos, pois não se pode racionalizar o mundo como nós o percebemos. Esta visão dá margem a uma angústia existencial diante do que não se pode compreender e conceder um sentido. Resta a liberdade humana, característica básica do Existencialismo, a qual não se pode negar.

Coube a Sartre batizar esta escola filosófica com a expressão francesa ‘existence’, versão do termo alemão ‘dasein’, utilizado por Heidegger na sua obra Ser e Tempo. Além destes filósofos renomados, o movimento contava também com Albert Camus – adepto destes postulados apenas no campo literário – e Boris Vian.
 
Soren Aabye Kierkegaard, antecessor do Existencialismo, encontra seu caminho dentro da Filosofia ao rebater os conceitos de Aristóteles ainda presentes nas teorias da época, combatendo assim os ideais hegelianos, principalmente sua crença na submissão de todos os fenômenos às leis naturais, o que lhes confere um determinismo providencial e retira das mãos do homem sua liberdade individual.
Foi este filósofo que legou ao existencialismo a ideia central da liberdade do homem, bem como de sua eterna aflição perante a falta de um projeto que regeria a caminhada humana, o que deixa o indivíduo à mercê de suas próprias decisões e atitudes.

Ele vê a realidade como um feixe de possibilidades diante das quais o ser, com sua liberdade de escolha, pode optar pelas que mais lhe convém. Estes caminhos podem ser englobados, para ele, em três opções primordiais – o estilo estético, no qual cada um busca aproveitar ao máximo cada momento; o estilo ético, dentro do qual o homem procura viver com atitudes corretas e morais; e o estilo religioso, que se apoia sobre a fé.

De certa forma, a moderna física quântica parece adotar esta mesma visão, agora em uma versão mais científica, porém acompanhada da crença na existência de uma força superior, traduzida em termos energéticos. O existencialismo, porém, continua mais ativo que nunca, influenciando a filosofia, a literatura e as artes cinematográficas.
 

 
"Algun dia até,não somente os meus escritos,mas a minha vida e todo o complicado segredo do seu mecanismo serão minuciosamente estudados."Isso foi o que Kierkegaard disse de si mesmo. E a profecia tornou-se verdadeira com o existencialismo contemporâneo , que se propôs explicitamente como uma Kierkegaard-Renaissance, trazendo novamente ao primeiro plano, no palco da filosofia, o pensamento daquele filósofo solitário que foi Soren Aabye Kiekegaard, nascido e crescido no restrito ambiente cultural da Dinam arca de então.

Kierkegaard veio ao mundo em 5 de maio de 1813, em Copenhaga. Seu pai, comerciante, desposara em segunadas núpcias sua própria doméstica. Ao contrário do primeiro casamento, que fora infértil, o segundo foi fecundo de nada menos que sete filhos. Soren fo i o último dos sete filhos, tendo nascido quando o pai já tinha ciquenta e seis anos e a mãe quarenta e quatro. Por isso, ele se definiu "filho da velhice".Somente Pedro, que depois tornou-se bispo luterano, lhe sobreviveu.

Em sua família, sobretudo no pai, Kierkegaard viu a marca de trágio destino misterioso. Falando de obscura culpa do pai, ele afirma que a revelação dessa culpa constituiu para ele o "grande terremoto"de sua vida. Em 1844, no seu Diário, fala de "relação entre pai e filho, na qual o filho descobre involuntariamente tudo o que está por detrás dos bastidores, mas sem ter a coragem de ir até o funo. O pai é homem estimado, piedoso e austero. Somente uma vez, em estado de embriaguez, escapam-lhe algumas palav ras que fazem suspeitar de coisa mais horrenda. O filho não consegue sabê-lo por outra via. E não ousa nunca perguntar sobre o assunto ao pai ou a outras pessoas".

Talvez a culpa secreta do pai tenha sido a "maldição"que lançara, quando menino, contra Deus na deserta charneca de Jutland e que ainda não esquecera com a idade de oitenta e dois anos. Ou então o "pecado com Betsabéia", cometido com a doméstica poucos m eses depois da morte da primeira mulher. Seja como for, a imprevista revelação da culpa do pai representaria para Kiekegaard uma como que lâmpada no escuro, que lhe permitiria a compreensão profunda do mistério de sua vida.
Escreveu ele: "Foi então que tive a suspeita de que a avançada idade do meu pai não fosse uma bênção divina, mas muito mais uma maldição, e que os eminentes dons de inteligência de nossa família nos houvessem sido dados só para que se extirpassem um ao o utro. Então senti o silência da morte crescer em torno de mim: meu pai apareceu-me como condenado a sobrevivier a todos nós, como cruz funérea plantada sobre o túmulo de todas as suas próprias esperanças. Alguma culpa devia pesar sobre a família inteira, pois um castigo de Deus pendia sobre ela: ele devia desaparecer, derrubada ao solo pela divina onipotência, cancelada como tentativa malograda(..)"
A relaçao de Kierkegaard com o pai e com a família é uma "cruz", uma dolorosa relação religiosa vivida sob a marca do castigo de Deus. É relação voltada para algo de culpado e pecaminoso, que bloqueou a tentativa de Kierkegaard de se realizar no ideal ét ico e impediu-o de casar com Regina Olsen ou de tornarse pastor. Regina Olsen, filha de alto funcionário, tinha dezoito anos quando, em 1840, com vinte e sete anos, Kierkegaard pediu-a em casamento.

A doze anos de distância do seu primeiro encontro com Regina, eis o que Kierkegaard ainda escreve dela: "Era jovem deliciosa, de natureza amável, como que feita de propósito para que uma melancolia como a minha pudesse encontrar no encantá-la a sua única alegria. Ela estava verdadeiramente graciosa na primeira vez em que a vi: graciosa no seu abandono, era comovente em sentido nobre, não sem certa sublimidade no último momento da separação. Infantil do princípio ao fim, malgrado a sua cabecinha esperta, uma coisa sempre encontrei nela, algo que, para me, vale como elogio quando pedia, que teria podido comover até as pedras. Teria sido uma bem-aventurança poder encantar-lhe a vida e uma bem-aventurança poder ver a sua bem-aventurança indescritível."

Essa atormentada recordação que o apaixonado tem de sua jovem amada testemunha o profundo significado da presença de Regina na vida de Kierkegaard. Sua relação com Regina foi a sua "grande relação". E, no entanto, ele não conseguiu concluir o noivado: "Pedi uma conversa com ela, que aconteceu na tarde de 10 de setembro. Não disse uma palavra sequer para iludi-la: consenti(...). Mas, no dia seguinte, no meu íntimo, vi que me tinha enganado. Um penitente como eu, com a minha vida ante acta e a minha melancolia... já devia ser o bastante. Naquele momento, sofri penas indescritíveis(...). O rompimento definitivo ocorreu cerca de dois meses depois. Ela se desesperou(...)"

Mais tarde, Regina casou-se com certo Schlegel e teve matrimônio tranquilo. Mas Kierkegaard não a esqueceu: no fundo, continou esperando que a oposição do mundo de que ele era vítima talvez lhe conferisse "novo valor"aos olhos de Regina. Além disso, os pontos decisivos. Como aquele general que comandou pessoalmente os que o fuzilavam, em também sempre comandei quando devia ser ferido (...) O pensamento (e isso era amor) era: eu serei teu ou ter será permitido ferir-me tão profundamente, no mais íntimo da minha melancolia e na minha relação com Deus que, ainda que de ti separado, continuo sendo teu".

O conteúdo daquel ano de noivado, observa Kierkegaard, "no fundo, nada mais foi para mim do que sequela de penosas reflexões de consciência angustiada. Perguntava-me: ousarias noivar, ousarias te casar? Que estranho! Sócrates fala sempre do que havia apr endido com uma mulher. Também eu posso dizer que devo tudo o que tenho de melhor a uma moça: não o aprendi dela, propriamente, mas por causa dela".

Na opinião de Kierkegaard, um penitente, alguém que abraçou o ideal cristão da vida, com toda aquela tremenda seriedade que o cristianismo comporta, não pode viver a tranquila existência de homem casado. Ele não pode aceitar o compromisso mundano e a gra tificante inserção na ordem constituída. Regina não podeia tornar-se sua esposa "porque Deus tinha a precedência". E essa também é a razão por que Kierkegaard a tornar-se pastor.

É ainda aía, na fé que relativiza todas as coisas humanas e que não pode ser reduzida à cultura, que Kierkegaard se lança à ruína, em violenta polêmica contra a cristandade de sua própria época. O bispo luterano Mynster - que, à renovação da vida crstã, como Kierkegaard a entendia, opôs a defesa da "ordem constituída"- morreu tranquilamente em fins de janeiro de 1854 e, homenageado por seu povo, foi celebrado por seu sucessor, Martensen, como "um elo da cadeia sagrada que liga entre si as testemunhas da verdade". Mas, em polêmica com Martensen, Kierkegaard se pergunta: "O bispo Mynster era testemunha da verdade, uma daquelas verdadeiras testemunhas: será isso verdade?"

A verdade, para Kierkegaard, era que não poderia ser celebrado como "testemunha da verdade quem viveu desfrutando a vida, ao abrigo dos sofrimentos, da luta interior, do medo e do temor, dos escrúpulos, das angústias da alma e das penas do espírito (...) . A verdadeira testemunha da verdade é o homem que, na humuldade e no rebaixamento, é desprezado, odiado, rejeitado, desconhecido, ironizado, que tem a perseguição como o seu pão cotidiano e é tratado como resíduo. Será que foi essa a vida do bispo Mynste r?"

A polêmica de Kierkegaard desenvolveu-se nos nove fascículos de "O Momento", de maio a setembro de 1855. Foi nela que ele consumiu suas últimas energias antes de ceder de repente e morrer em 11 de novembro desse mesmo ano. Alguns anos antes, Kierkegaard escrevera: "Mynster pensa provavelmente (e, habitualmente, isso é a modernidade) que cristianismo é cultura. Mas esse conceito de cultura é pelo menos inadequado e talvez até diametralmente oposto ao cristianismo quando se torna desfrutamento, refinamento e pura cultura humana."

Na opinião de Kierkegaard, o contraste entre cristianismo e cristandade estabelecida é claro: "O cristianismo é de uma seriedade tremenda: é nesta vida que se decide a tua eternidade(...). Ser cristão é sê-lo como espírito, é a inquietude mais elevada do espírito, é a impaciência da eternidade, é temor e tremor contínuo, aguçados pelo fato de encontrar-se neste mundo perverso que crucifica o amor e abalado de estremecimento pela prestação de contas final, quano o Senhor e Mestre retornará para julgar se os cristãos foram fiéis".

Entretanto, depois de mil e oitocentos anos de cristianismoa, "tudo se tornou superficialidade na cristandade atual". E isso porque o cristianismo é visto como instrumento capaz de "facilitar sempre mais a vida, a temporalidade no sentido mais trivial". O que se quer é "viver tranquilo e atravessar o mundo em felicidade". essa é a razão por que "toda a cristandade é disfarce, mas o cristianismo não existe em absoluto". e Kierkegaard se escandaliza diante da realidade - para ele, terrível - de que, entre as heresias e os cismas, não se encontra nunca a heresia mais sutil e mais cheia de perigos: a heresia que consiste em "brincar de cristianismo".

 
 InfoEscola » Filosofia » 
 http://www.antroposmoderno.com/antro-articulo.php?id_articulo=623
http://artigos.psicologado.com/abordagens/humanismo/existencialismo-soren-aabye-kierkegaard
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.
 

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